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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
21/1993, de 06.05.1993
Data do Parecer: 
06-05-1993
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Maioria
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Ciência e Ensino Superior
Relator: 
CABRAL BARRETO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
ENSINO SUPERIOR
PROPINA
ISENÇÃO
DIREITO PREMIAL
LEI GERAL
LEI ESPECIAL
LEI EXCEPCIONAL
Conclusões: 
1 - Aquando da publicação do Decreto-Lei n 358/70, de 29 de Julho, a isenção de propinas e ou a concessão de bolsas de estudos estavam condicionadas em todos os graus e ramos de ensino, para além de outros requisitos, à carência de recursos económicos;
2 - O Decreto-Lei n 358/70 veio criar uma isenção de propinas em todos os graus e ramos de ensino ministrados nos estabelecimentos oficiais não militares para os combatentes e antigos combatentes de operações militares ao serviço da Pátria que se distinguissem de forma a merecerem determinadas condecorações ou louvores, ou ficassem incapacitados para o serviço militar ou diminuídos fisicamente, isenção extensiva aos filhos, regalia que não estava condicionada à insuficiência económica do aluno ou da sua família;
3 - O Decreto-Lei n 132/80, de 17 de Maio, que veio definir os princípios gerais da estrutura dos Serviços Sociais do ensino superior, não inovou no que diz respeito à isenção de propinas e à concessão de bolsas de estudo, não revogando expressa ou implicitamente o regime consagrado no Decreto-Lei n 358/70;
4 - O Decreto-Lei n 358/70 apresenta-se, em relação ao regime geral que condicionava a isenção de propinas à carência de recursos económicos, como uma "lei especial";
5 - A Lei n 20/92, de 14 de Agosto, visa o ensino superior, estabelecendo normas relativas ao sistema de propinas e concedendo isenções apenas aos alunos com um rendimento familiar mais débil;
6 - A Lei n 20/92 é uma "lei geral" que deixou intocadas as situações especiais previstas em diplomas, como o Decreto-Lei n 358/70, que consagram isenções de propinas independentemente da situação económica do beneficiado;
7 - Na falta de uma inequívoca manifestação em tal sentido, não pode o intérprete concluir que a Lei n 20/92 quis revogar o disposto no Decreto-Lei n 358/70, tanto mais que os valores dominantes na sociedade que justificaram a diferença de tratamento aqui consagrada continuam actuais.
Texto Integral
Texto Integral: 
 Senhor Secretário de Estado do Ensino Superior,
Excelência:
 
 
 
1 - Vossa Excelência solicitou parecer deste Conselho Consultivo sobre o seguinte:
"Após a publicação da Lei nº 20/92, de 14 de Agosto, suscitou-se o problema de saber se, na revogação operada pelo respectivo artº 17º, estaria ou não incluído o regime especial criado pelo Decreto-Lei nº 358/70, de 29 de Julho.
"Com a homologação, por despacho de 5.11.92, do então Secretário de Estado Adjunto e do Ensino Superior, do Parecer nº 66/92 (1) que, por cópia, vai em anexo, passou, no âmbito do Ministério da Educação, a dar-se resposta afirmativa à questão acima colocada.
"No entanto, a argumentação carreável em contrário da orientação acabada de referir, "maxime" a que invoca a inexistência, ao longo do articulado da Lei nº 20/92, de manifesto e inequívoco propósito de se proceder à revogação da legislação especial anterior, leva a que não possa ter-se como pacífica a conclusão que, a respeito do Decreto-Lei nº 358/70, no referido Parecer se extrai".
Cumpre, por isso, emiti-lo.
 
2 - O Parecer nº 66/92, antes referido, ocupou-se, entre outras matérias, do regime instituído pelo Decreto-Lei nº 358/70.
Conheçam-se algumas das suas passagens:
"...................................................................................
"2. Ainda antes da publicação da referida Lei nº 20/92, defendeu esta Auditoria Jurídica no Parecer nº 57/91, em anexo, que o regime especial estabelecido no Decreto-Lei nº 358/70, de 29 de Julho, teria sido implicitamente revogado por força do artigo 4º do Decreto-Lei nº 132/80, de 17 de Maio, conjugado com o disposto nas portarias que em sucessivos anos regulamentaram a matéria, instituindo um sistema de escalões que consagravam uma solução mais perfeita do ponto de vista técnico-jurídico e mais justa.
"A nova regulamentação então publicada instituía um sistema coerente que dificilmente permitiria a subsistência de regimes excepcionais; assim, considerou-se não haver razão para considerar em vigor o regime instituído no referido preceito.
"Com efeito, apenas no caso de se verificarem situações de carência económica, se justificaria a protecção jurídica atribuída neste domínio; e, nesse sentido, o regime geral estabelecido pelo Decreto-Lei nº 132/80 e respectivas portarias regulamentares conferia a protecção adequada aos combatentes, ex-combatentes ou seus filhos, como a quaisquer cidadãos.
"3. O sistema agora instituído pela Lei nº 20/92, de 14 de Agosto, veio dar maior força normativa ao critério da carência económica que já predominava em termos praticamente absolutos na regulamentação anterior.
"E assim, bastará reparar nos termos injuntivos em que foi redigido o nº 1 do artigo 4º da Lei nº 20/92 para concluir que o regime especial instituído pelo Decreto-Lei nº 358/70, de 29 de Julho, se estivesse ainda em vigor, não poderia agora subsistir.
"Com efeito no nº 1 do citado artigo 4º estatui-se que "não beneficiam dos regimes de isenção ou de redução do pagamento de propinas os alunos cujo rendimento familiar anual ilíquido "per capita" e o rendimento familiar anual ilíquido ou cujos níveis de riqueza bruta sejam superiores a valores anualmente fixados na portaria referida no artigo 2º".
O referido Parecer concluía, além do mais, que o regime especial de isenção de propinas no ensino superior estabelecido para combatentes, antigos combatentes e seus filhos no Decreto-Lei nº 358/70, seria incompatível com a nova regulamentação da matéria instituída pela Lei nº 20/92, se ainda estivesse em vigor.
 
3 - A matéria colocada à ponderação deste Conselho Consultivo desdobra-se em duas sub-questões, a primeira prejudicial da segunda:
1ª - O regime instituído pelo Decreto-Lei nº 358/70 ainda estava em vigor quando foi publicada a Lei nº 20/92?
2ª - E, se a resposta for afirmativa, aquele regime foi afastado pela Lei nº 20/92?
 
4 - A abordagem da primeira sub-questão implica que, preliminarmente, se conheçam os regimes de propinas nos diversos graus de ensino, e sobretudo, no superior, vigentes aquando da publicação do Decreto-Lei nº 358/70.
 
4.1. Nessa altura, para o ensino superior, disciplinava o Decreto-Lei nº 31658, de 21 de Novembro de 1941, que precisava no seu preâmbulo:
"...................................................................................
"A propina estabelecida não pode julgar-se gravosa para os que podem; dos que não podem, e de todo até, só interessa ao Estado que sigam cursos superiores os que realmente valem. Mas destes interessa-lhe que se não perca um único por se lhe tornar incompatível o pagamento das propinas. Por isso se institui a faculdade para as escolas de conceder o benefício da isenção de propinas e emolumentos de secretaria até 10 por cento dos alunos que as frequentem. Pareceu que bastava instituir este benefício dentro daquele limite, porque ele já existia e, na generalidade das escolas, não só o referido limite nunca foi atingido, mas o número de isenções concedidas ficou sempre muito aquém dele.
"Isto podia ainda ser insuficiente para que se não perdessem valores apreciáveis; por isso, além da isenção de propinas e emolumentos, se instituem cem bolsas de estudo de 3000$ anuais a atribuir aos melhores que precisem.
.....................................................................................
"Pede-se, aos que podem, menos do que seria legítimo exigir-lhes; isentam-se os que valem e não podem; subsidiam-se os melhores, que o Estado não quer ver perdidos por falta de meios; e ensaia-se um princípio de protecção à família, com vontade de o generalizar logo que se enxergue o caminho e as possibilidades".
E, estatuiu-se:
"...................................................................................
"Artigo 20º. Pela matrícula nas Universidades, pelas inscrições e trabalhos práticos e pelos actos de secretaria são devidas as propinas, as indemnizações e os emolumentos fixados na tabela anexa a este decreto-lei".
.....................................................................................
"Art. 22º São instituídas cem bolsas, da importância de 3000$ anuais, a distribuir, proporcionalmente ao número de alunos inscritos, pelas diferentes escolas de ensino superior.
....................................................................................
"Art. 24º Só poderão concorrer às bolsas de estudo e à isenção de propinas, indemnizações e emolumentos os alunos que preencherem os seguintes requisitos:
1) Terem realizado no ano anterior todos os exames a que eram obrigados pelo plano de estudos da respectiva escola;
2) Terem obtido nesses exames, ou no que constituir condição de ingresso na respectiva escola, média não inferior a 16 valores, para as bolsas de estudo, e a 14 valores, para a isenção de propinas;
3) Não possuírem a habilitação de qualquer curso profissional ou superior;
4) Provarem insuficiência económica, relativamente aos pais e a si mesmos (sublinhado agora);
5) Terem conduta moral, cívica e académica irrepreensível".
Infere-se assim que a isenção de propinas e a concessão de bolsas de estudo no ensino superior oficial dependiam de vários factores, entre eles e designadamente, da "insuficiência económica, relativamente aos pais e a si mesmos", isto é, como explicitamente se afirmava no exórdio do diploma, isentavam-se os que valiam, os que tinham valor para frequentarem a Universidade mas não o poderiam fazer por carência de meios económicos, como se apoiavam com bolsas de estudo os "melhores" que se perderiam por falta dos referidos meios.
 
4.2. A mesma filosofia se detectava no ensino secundário.
O diploma fundamental continuava a ser, naquela altura, o Decreto-Lei nº 36508, de 17 de Setembro de 1947, que aprovou o Estatuto do Ensino Liceal (2).
Este Estatuto dispunha no seu artigo 312º:
"1- Até ao limite de 10 por cento do número de alunos internos matriculados podem ser concedidas isenções de propinas aos que demonstrem regular aproveitamento e careçam de recursos.
.............................................................................." (3).
O artigo 324º estatuía:
"1- São anualmente concedidas cinquenta bolsas de estudo da quantia de 3000$00 cada uma, pagas em dez prestações, correspondentes aos meses de Outubro a Julho, a alunos internos, distintos, do 2º e 3º ciclos dos liceus e que careçam de recursos.
..................................................................................".
A carência de recursos económicos, para a isenção de propinas e a concessão de bolsas de estudos no ensino liceal, permanece como elemento fundamental até aos nossos dias (4).
 
4.3. O ensino primário era, aquando da publicação do Decreto-Lei nº 358/70, obrigatório e gratuito, estando prevista uma assistência escolar aos alunos pobres a prestar por intermédio das caixas escolares e das cantinas escolares (5).
Este ensino, que entretanto passou a ser denominado de "básico", manteve, com o evoluir dos tempos, o seu carácter "universal, obrigatório e gratuito", envolvendo nomeadamente, por um lado, a isenção de pagamento de propinas e, por outro, auxílios económicos directos no caso de crianças "cujas dificuldades económicas do agregado familiar constituam obstáculos à frequência escolar" (6).
 
4.4. Em resumo, em todos os graus e ramos de ensino, a isenção de propinas e ou a concessão de bolsas de estudo estavam condicionadas, para além de outros requisitos, à carência de recursos económicos.
 
5. O Decreto-Lei nº 358/70 veio criar uma isenção de propinas de frequência e exame em todos os graus e ramos de ensino ministrados nos estabelecimentos oficiais não militares, (e não apenas no ensino superior), para um núcleo restrito do universo geral dos estudantes: os combatentes e antigos combatentes de operações militares que, ao serviço da Pátria, tenham obtido determinadas condecorações ou tenham ficado incapacitados ou diminuídos fisicamente, isenção extensiva aos seus filhos.
E, se da leitura do preâmbulo do diploma se poderiam tentar vislumbrar alguns resquícios de uma medida de carácter social ao referir-se o "auxílio" para os estudos, o certo é que o seu dispositivo se desprende da situação económica dos visados para atribuir a todos a "isenção".
Pese a sua extensão, transcreve-se todo o conteúdo do Decreto-Lei nº 358/70:
"Considerando ser justo auxiliar na continuação dos seus estudos os militares que hajam participado ou participem em operações militares de combate e nelas se tenham distinguido por forma notável, ou tenham sofrido, em consequência, diminuição física;
"Atendendo a que também os filhos desses combatentes devem beneficiar de idêntico auxílio com vista à protecção do agregado familiar;
"Usando da faculdade conferida pela 1ª parte do nº 2 do artigo 109º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
"Artigo 1º - 1. São admitidos nos estabelecimentos oficiais não militares de ensino de todos os graus e ramos, com isenção de propinas de frequência e exame, os combatentes e antigos combatentes de operações militares ao serviço da Pátria, nas quais tenham obtido condecorações e louvores, constantes, pelo menos, de Ordem de Região Militar, Naval ou Aérea, ou que, por motivo de tais operações, tenham ficado incapacitados para o serviço militar ou diminuídos fisicamente. Esta isenção é extensiva aos filhos dos combatentes anteriormente citados.
"2. A isenção abrange o selo dos documentos necessários à matrícula e à apresentação a exame, bem como o dos diplomas de curso.
"3. As isenções a conceder nos termos deste artigo não serão tomadas em conta para o cálculo das percentagens dos alunos a beneficiar segundo a legislação relativa ao ensino a que respeitar a matrícula.
"4. A qualidade de combatente com as especificações referidas no nº 1 deste artigo é comprovada por documento passado pela respectiva unidade militar mobilizadora.
"Art. 2º - 1. Aos alunos combatentes ou antigos combatentes nas condições do nº 1 do artigo anterior, ou aos seus filhos, quando concorram a bolsas de estudo e provem satisfazer às condições legalmente exigidas para esse efeito, será concedido o benefício requerido, independentemente da graduação que lhes tenha cabido na ordenação dos candidatos.
"2. Nos anos em que, pela atribuição de bolsas de estudo nos termos do número anterior, seja excedido o contingente consentido pela correspondente dotação orçamental, esta será reforçada.
"Art. 3º. A concessão dos benefícios referidos nos artigos anteriores depende sempre do bom comportamento moral e civil, e para sua manutenção é exigido também o bom comportamento escolar dos interessados".
Sublinhe-se a diferença entre a isenção de propinas e a concessão de bolsas de estudos.
A isenção de propinas é conferida "incondicionalmente" - artigo 1º; já a concessão de bolsas de estudos dependia da satisfação das condições previstas na lei.
A diferença a este nível radica-se apenas na circunstância de, uma vez preenchidas as condições gerais, a bolsa ser concedida independentemente da graduação na ordenação geral de candidatos ou de com a sua atribuição se vir ou não a exceder o contingente consentido pela dotação orçamental - artigo 2º.
A Portaria nº 445/71, de 20 de Agosto, (7) veio regulamentar o Decreto-Lei nº 358/70, e, por isso, interessa conhecer algumas das suas disposições:
"...................................................................................
"2. O documento comprovativo a que alude o número anterior levará aposto o selo branco da unidade ou estabelecimento, salvo se não dispuserem dele, caso em que será o mesmo substituído pelo respectivo carimbo, com indicação expressa de que esta substituição se faz por motivo de carência daquele selo.
"3. É condição essencial para que possa ser passado o documento referido no nº 2 desta portaria que ao combatente tenha, no mínimo, sido conferido por comandante-chefe ou comandante-adjunto, comandante ou 2º comandante de região militar, naval ou aérea, comandante das forças terrestres, navais ou aéreas de teatro de operações e publicado, pelo menos, nas respectivas ordens de serviço, um louvor individual em razão da sua actuação em operações ou em acções de manutenção de ordem pública, ou que tenha sido condecorado com qualquer grau ou classe das seguintes medalhas:
a) Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito;
b) Medalha de valor militar;
c) Medalha de cruz de guerra;
d) Medalha de serviços distintos, com palma;
e) Medalha de mérito militar, quando concedida nos termos do artigo 52º e §§ únicos dos artigos 28º e 29º do Regulamento da Medalha Militar, com a redacção do artigo único do Decreto nº 45295;
f) Medalha dos mutilados de guerra;
g) Medalha dos promovidos por feitos distintos em combate.
"4. Também beneficiam da isenção de propinas de frequência e exame os filhos dos militares falecidos em combate.
"5. A oportuna entrega do documento comprovativo, elaborado nos termos já referidos e satisfazendo, portanto, às condições requeridas, no estabelecimento de ensino a que se destina, quando acompanhado da documentação a que se vai aludir nos números seguintes, se necessária, é bastante para conferir direito ao gozo das regalias discriminadas no Decreto-Lei nº 358/70". (sublinhado agora)
A documentação referida nos números seguintes da Portaria visa apenas o bom comportamento moral e civil e o bom comportamento escolar prevenidos no artigo 3º do Decreto-Lei nº 358/70.
Concluindo, e na parte que interessa à economia do parecer, poder-se-á afirmar tranquilamente que a isenção de propinas consagrada no Decreto-Lei nº 358/70 não estava condicionada à insuficiência de meios económicos do "aluno" ou da sua família.
 
6. No Parecer da Auditoria Jurídica afirma-se que o regime do Decreto-Lei nº 358/70 teria sido implicitamente revogado por força do artigo 4º do Decreto-Lei nº 132/80 e respectivas Portarias regulamentares.
O artigo 4º do Decreto-Lei nº 132/80 (8), dispõe:
"Os diversos tipos de auxílios económicos ou de serviços a prestar pelos serviços sociais serão regulamentados por portaria do Ministro da Educação, ouvido o Conselho de Acção Social do Ensino Superior".
Já antes o artigo 2º prevenia que os serviços sociais têm por fim promover a execução da política de acção social escolar no âmbito do ensino superior - nº 1.
Mais: o Decreto-Lei nº 132/80 propõe-se definir os princípios gerais delimitadores da estrutura dos Serviços Sociais do ensino superior, esclarecendo o nº 2 do seu artigo 2º que "a acção social escolar tem por objecto a concessão de auxílios económicos aos estudantes carecidos de recursos, bem como a prestação de outros serviços aos estudantes em geral".
Ou seja, no âmbito da acção social, como decorre da sua própria natureza, o auxílio económico pressupõe, exige, que o auxiliado seja carente de recursos económicos.
E, no que eventualmente possa interessar à economia do parecer, o nº 1 do artigo 3º do diploma estabelece que são atribuições dos serviços sociais, no âmbito da concessão de auxílios económicos aos estudantes carecidos de recursos:
"a) Conceder bolsas e subsídios de estudos;
"b) Conceder empréstimos;
"c) Propor à respectiva instituição de ensino superior a concessão de isenção ou redução de propinas" (sublinhado agora).
Ressalvada uma repartição e definição de tarefas, o Decreto-Lei nº 132/80 não inovou no que diz fundamentalmente respeito à isenção de propinas e à concessão de bolsas de estudo.
Aos serviços sociais são atribuídos os poderes de concessão de bolsas de estudo e, relativamente à concessão de isenção de propinas aos estudantes carecidos economicamente, foi-lhes cometido um poder meramente instrumental, ou seja , o de a propor.
Permanecem válidos os princípios anteriores que condicionavam a isenção de propinas e a concessão de bolsas de estudo à carência de recursos económicos.
Acontece, como se viu, que o Decreto-Lei nº 358/70, ao prever a isenção de propinas, não alude a qualquer situação económica daqueles que pretende beneficiar.
Os contemplados naquele diploma beneficiam da isenção de propinas ainda que não sejam carentes de recursos económicos.
O Decreto-Lei nº 132/80 preocupa-se com o processo de isenção de propinas de estudantes carecidos de recursos económicos; o Decreto-Lei nº 358/70 ocupa-se de situações diferentes, onde o fundamento para a isenção de propinas se radica, não na carência económica, mas antes na assumida obrigação de retribuir os serviços relevantes prestados à Pátria.
O benefício da isenção de propinas que o Decreto-Lei nº 358/70 veio conceder não tem, por isso, carácter social, ou melhor, é ditado por razões distintas daquelas que presidem à "acção social".
Visando diferentes realidades, os dois diplomas não conflituam, pelo que não se pode afirmar que o Decreto-Lei nº 132/80 revogou, por incompatibilidade, o Decreto-Lei nº 358/70; aliás, como se viu, aquele abarca apenas o ensino superior, enquanto este último atinge todos os graus e ramos de ensino.
 
7. Ainda antes de abordar a disciplina contida na Lei nº 20/92, importa aprofundar a análise do Decreto-Lei nº 358/70, ensaiando conhecer não só a verdadeira natureza dos direitos que consagra, mas também a correlação destes com um regime geral que condiciona a isenção de propinas à carência de recursos económicos.
 
7.1. O Decreto-Lei nº 358/70 apresenta as características que o fazem incluir no chamado "direito premial" (9).
São normas que têm por finalidade consagrar recompensas a acções humanas que pelo seu mérito acentuado devam ser assinaladas.
A sociedade organizada reconhece naturalmente os seus heróis; mas deverá também distinguir aqueles que com o seu comportamento ultrapassam ostensivamente a conduta do cidadão médio, tornando-se um exemplo positivo, a apontar e a seguir, apto a suscitar o reconhecimento, o apreço e a gratidão.
O reconhecimento, o apreço e a gratidão são traduzidos, na prática, por diversas formas; de entre as mais significativas, umas revestem carácter honorífico, como as veneras, outras são materializadas em prestações pecuniárias ou isenções de obrigações, algumas destas de carácter económico.
Nas prestações de feição predominantemente económica, avultam as pensões de preço de sangue e por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao País, actualmente definidas no Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro (10).
 
E, nas isenções de carácter económico, sobressaem as relativas às propinas devidas nos diversos graus e ramos de ensino.
Sem preocupação de exaustão, e para além da situação a que alude a consulta, recorde-se, desde logo, o "Estatuto dos Deficientes das Forças Armadas", incorporado no Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, (11), que no seu artigo 14º dispõe:
"1. A todos os DFA, se reconhecidos nos termos deste diploma, é concedido um conjunto de direitos de natureza social e económica, na dependência da sua percentagem de incapacidade, como suporte de condições familiares e sociais mais adequadas à sua situação, os quais, sendo pessoais e intransmissíveis, são os discriminados nos números seguintes.
.....................................................................................
"6. Isenção de selo de propinas de frequência e exame em estabelecimento de ensino oficial e uso gratuito de livros e material escolar:
a) Os DFA são admitidos nos estabelecimentos não militares de ensino oficial de todos os graus e ramos, com isenção de selo de propinas de frequência e exame;
b) Os DFA têm direito ao uso gratuito de livros e material escolar".
Por seu turno, o Decreto-Lei nº 314/90, de 13 de Outubro (12), veio estabelecer o regime de benefícios para os militares com grande deficiência, consagrando no seu artigo 4º:
 
"Direitos e regalias dos GDFAS
A todos os GDFAS reconhecidos nos termos deste diploma, e com a finalidade de melhor suportarem as suas deficientes condições familiares e sociais, é concedido o gozo dos direitos e regalias constantes das disposições aplicáveis do artigo 13º, dos nºs 3 a 9, do artigo 14º e do artigo 16º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro".
E, finalmente, o "Estatuto Social do Bombeiro", definido na Lei nº 21/87, de 20 de Junho, no seu artigo 9º, estabelece:
"Regalias
Os filhos dos bombeiros falecidos em serviço ou por doença contraída no desempenho das suas funções têm direito às seguintes regalias:
a) Isenção de propinas e taxas de inscrição da frequência do ensino secundário ou superior, oficial ou oficializado, devendo, para o efeito, comprovar documentalmente a qualidade de bombeiro do progenitor, bem como o aproveitamento do ano lectivo anterior, salvo quando se trate do início do curso respectivo;
b) Prioridade, em igualdade de condições e aptidões, no ingresso em jardins-escolas, infantários, estabelecimentos pré-primários e afins, oficiais ou oficializados;
c) Prioridade na atribuição de subsídios de estudo pelos serviços sociais dos diferentes graus e estabelecimentos de ensino que frequentem, desde que tenham aproveitamento do ano lectivo anterior, salvo se se tratar de início de curso;
.................................................................................".
O Decreto-Lei nº 241/89, de 3 de Agosto, veio regulamentar aquele diploma, explicitando:
"...................................................................................
"Artigo 17º
Isenção de propinas e taxas de inscrição
1- Têm direito a isenção de propinas e taxas de inscrição de frequência do ensino secundário ou superior, oficial ou oficializado:
a) Os filhos dos bombeiros falecidos em serviço ou por doença contraída no desempenho das suas funções:
b) Os filhos dos titulares dos corpos gerentes das associações de bombeiros falecidos em serviço ou por doença contraída quando em serviço comprovado da corporação de bombeiros;
c) Os cadetes com, pelo menos, seis meses de serviço no corpo de bombeiros.
2. .................................................................................
3. O benefício depende de aproveitamento no ano lectivo anterior, salvo quando se trate de início de curso ou quando o não aproveitamento seja devido a doença devidamente comprovada ou outras causas aceites como justificativas pelos órgãos responsáveis dos estabelecimentos de ensino.
4. O pedido de concessão do benefício deve ser formulado nos termos gerais previstos na legislação escolar e o respectivo processo deve ser acompanhado de documento comprovativo dos requisitos previstos nas alíneas do nº 1, a emitir pelo comandante, nos referidos nas alíneas a) e c), ou pela direcção da corporação em causa, no que respeita à alínea b)".
Em todas estas situações de isenção de propinas, aquelas regalias não estão condicionadas à situação de carência económica dos beneficiários; para a instrução do processo de concessão da regalia é dispensada a prova de uma tal situação de carência.
E, se nalgumas hipóteses se poderia argumentar que a falta de recursos económicos se deve presumir, a verdade é que se afigura ostensivo que o legislador pretende que a regalia seja concedida independentemente de uma tal condicionante.
Essa regalia é um prémio para uma conduta ou sacrifício exemplar, e, como tal, não pode ficar limitada ao requisito, exigido para os demais, da prova de insuficiência económica.
Dir-se-ia até que seria bizarro que o legislador concedesse essa regalia condicionada à verificação de uma situação que, uma vez verificada, já a possibilitaria nos termos gerais.
O legislador pretendeu distinguir para além das situações que o regime geral possa abarcar (13).
 
7.2. Convirá conhecer a relação existente entre as disposições do Decreto-Lei nº 358/70, que não condiciona, para as situações que acautela, a isenção de propinas à carência de recursos económicos, e o regime geral que existia quando o mesmo foi publicado e que se manteve até à Lei nº 20/92.
O Decreto-Lei nº 358/70 encontra-se numa relação de lei geral - lei especial, ou numa relação de lei geral - lei excepcional?
Permita-se que se remonte a Teixeira de Abreu (14):
"...................................................................................
"Dissemos que as leis, enquanto à maior ou menor extensão das relações jurídicas que tutelam, podem ser geraes, especiaes ou excepcionaes.
"As primeiras determinam ou fixam as condições e limites dentro dos quaes tem que desenvolver-se a actividade de cada um nas suas relações com os outros ou com a sociedade, devidamente representada, em todos os factos de idêntica natureza. A egualdade de todos perante a lei, e a conveniência de uniformizar o procedimento dos cidadãos em casos idênticos, dão às leis, ordinariamente, o caracter de generalidade, que as torna aplicáveis a todas as pessoas, a todos os bens, e a todos os actos, a respeito dos quaes possam verificar-se as relações jurídicas, a que as mesmas leis se referem.
"Algumas vezes, porém, em atenção a considerações de carácter político, ou económico, julga-se necessário estabelecer normas particulares para certas matérias especiaes, que só a estas normas, e não ao direito geral e comum, ficam sujeitas.
"As leis que regulam estas materias denominam-se leis especiaes.
....................................................................................
"Mas nem só as leis especiaes restringem a natural extensão das leis geraes; uma outra classe de leis ha, que tendem directamente ao mesmo fim: as chamadas leis excepcionaes, que são todas aquellas que regulam por modo contrario ou diverso do estabelecido na lei geral ou especial certos factos ou casos, que por sua propria natureza deviam comprehender-se nellas.
....................................................................................
"Como justamente observa BIANCHI, fallando-se de disposição de lei excepcional pressupõe-se necessariamente a existência d'outra lei ou princípio geral, cuja applicação foi por aquella limitada, subtrahindo-lhe casos que rigorosamente nella estariam comprehendidos".
A diferença essencial entre as normas especiais e as normas excepcionais assenta no facto de que as primeiras, "regulando um sector relativamente restrito de casos, consagram uma disciplina nova, mas que não está em directa oposição com a disciplina geral" (15).
Nesta conformidade, o Decreto-Lei nº 358/70 é uma "lei especial". Efectivamente, ele não toca com as situações visadas pela "lei geral" que concede isenção de propinas aos carecidos de recursos económicos.
A "lei geral" aplica-se a todas as situações que possam caber na sua previsão, sem qualquer excepção, apesar daquele diploma.
Acontece é que o Decreto-Lei nº 358/70 concede também o mesmo benefício previsto na "lei geral", a isenção de propinas, a situações distintas que particulariza.
 
8. Adquirido que o Decreto-Lei nº 358/70 é uma "lei especial" que permaneceu até à publicação da Lei nº 20/92, é chegado o momento de abordar a outra sub-questão, e verificar se esta Lei veio perturbar o que aquele diploma consagra.
Sublinhe-se que a Lei nº 20/92 se dirige apenas ao ensino superior, estabelecendo normas relativas ao sistema de propinas, pelo que a verificar-se interferência naquele regime especial, ela deixaria intocada a situação nos outros graus de ensino (16).
 
8.1. A exposição de motivos da proposta Lei nº 26/VI (17), que esteve na base da Lei nº 20/92, é muito precisa nos objectivos que pretende alcançar. Transcrevam-se, por isso, alguns dos seus passos:
"...................................................................................
"Esta revisão (do sistema de propinas) torna-se urgente considerando que nesta matéria a situação que, presentemente, se verifica em Portugal é profundamente inequitativa, na medida em que introduz uma discriminação negativa nas despesas das famílias portuguesas com a educação, resultando num maior benefício para as famílias de mais altos rendimentos, e contraria, por essa forma, a justiça distributiva visada pelo sistema fiscal.
"Acresce, ainda, que se trata de um valor igual para todos os alunos, independentemente da sua situação económica, o que introduz um outro factor de injustiça, uma vez que no ensino superior os benefícios revertem em parte para os próprios alunos.
"Por outro lado, o valor das actuais propinas no ensino superior foi fixado há mais de 50 anos, nunca tendo sido actualizado, pelo que se sobrevalorizou até ao valor simbólico actual.
....................................................................................
"Assim, o pagamento integral de propinas só será exigido aos alunos cujos rendimentos familiares sejam bastante elevados, que se situem acima de um valor actualizável por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Educação.
"Os alunos cujos rendimentos familiares sejam de nível médio ou mesmo superiores à média beneficiarão de uma redução no pagamento de propinas e os alunos cujos rendimentos familiares sejam de valores inferiores à média ficarão isentos" (sublinhado agora).
E, consequentemente, a Lei nº 20/92, estatui:
.....................................................................................
"Art. 2º- 1. Estão isentos do pagamento de propinas os alunos cujo rendimento familiar anual ilíquido per capita, rendimento familiar anual ilíquido ou nível de riqueza bruto não sejam superiores aos valores a fixar anualmente por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Educação ou, devido à especificidade do seu agregado familiar, se encontrem nos termos do artigo 3º.
"2. Para efeitos do presente diploma, considera-se rendimento familiar anual ilíquido per capita a soma de todos os rendimentos declarados pelo agregado familiar em sede de IRS no ano anterior àquele em que são devidas as propinas, antes dos descontos para determinação da matéria colectável, e incluindo os rendimentos não englobados, dividida pelo número de sujeitos passivos e dependentes do agregado familiar declarado para efeitos desse imposto.
"3. Podem ainda os alunos beneficiar de uma redução no pagamento de propinas de 60% ou de 30% do respectivo montante, de acordo com os níveis do respectivo rendimento familiar, capitado ou global, em termos a fixar na portaria referida no nº 1.
"Art. 3º - 1. Gozam dos benefícios previstos no número seguinte as famílias que tenham mais de um membro do seu agregado familiar a frequentar, simultaneamente, as instituições desde que os seus rendimentos e riqueza bruta não excedam os valores estabelecidos nos termos do artigo 4º.
"2................................................................................".
"Art. 4º - 1. Não beneficiam dos regimes de isenção ou de redução do pagamento de propinas os alunos cujo rendimento familiar anual ilíquido per capita e o rendimento familiar anual ilíquido ou cujos níveis de riqueza bruta sejam superiores aos valores anualmente fixados na portaria referida no artigo 2º.
"2. Para efeitos do número anterior, considera-se riqueza bruta o conjunto do património mobiliário e imobiliário nominalmente detido pelo conjunto dos membros do respectivo agregado familiar.
.....................................................................................
"Artigo 17º. São revogadas todas as disposições que contrariam o disposto na presente lei, e, nomeadamente, a alínea j) do nº 2 do artigo 7º da lei nº 54/90, de 5 de Setembro" (18).
Prima facie, o sistema instituído pela Lei nº 20/92 manteve, no essencial, o regime anterior, concedendo isenção de propinas aos alunos com mais débil rendimento familiar.
Dir-se-á que, se isto se mostra claro em tese geral, o artigo 4º, no seu nº 1, estabelece que não beneficiam dos regimes de isenção ou de redução de propinas os alunos cujo rendimento familiar anual seja superior a determinados limites a fixar por portaria (19), pelo que todos aqueles que estejam acima desses limites têm de pagar propinas.
 
8.2. A esta interpretação, que está subjacente ao Parecer da Auditoria Jurídica, atrás parcialmente transcrito, não se pode contrapor liminarmente que o Decreto-Lei nº 358/70 é uma "lei especial" inatingível por uma "lei geral" como a Lei nº 20/92.
Efectivamente, sabe-se que o princípio de que a lei geral não revoga a lei especial, lex posterior generalis non derogat legi priori speciali, apresenta--se contingente e falível (20).
O artigo 7º, nº 3, do Código Civil estatui:
"A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador".
Como refere VAZ SERRA, "o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior" (21).
Na fixação dessa intenção, dada a palavra "inequívoca" deve o intérprete ser particularmente exigente, atendendo ao texto da lei, sua conexão, evolução histórica, à história da formação legislativa, e sobretudo nortear-se pelo fim da disposição questionada e o resultado de uma ou outra interpretação (22).
Teoricamente é, pois, admissível que um diploma de carácter geral revogue outro especial; mister é que seja essa a sua intenção inequívoca.
E, a essa conclusão se deve chegar sempre que da lei nova (geral) se possa retirar a pretensão de regular totalmente a matéria, não deixando subsistir leis especiais (23); OLIVEIRA ASCENSÃO exige "circunstâncias relevantes, em termos de interpretação, que nos permitam concluir que a lei nova pretende afastar a lei especial antiga. Pode, por exemplo, a lei nova ter por objectivo, justamente, pôr termo a regimes especiais antigos que deixaram de se justificar. Se se puder chegar a esta conclusão a lei especial antiga será revogada pela lei geral" (24).
 
8.3. Com estas precisões e cuidados, veja-se qual o sentido que se deve retirar do artigo 4º da Lei nº 20/92, tendo presente o aviso de Francesco Ferrara (25):
"...mesmo quando o sentido é claro, não pode haver logo a segurança de que ele corresponda exactamente à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não reproduzam em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato que o real, assim como, por último, não é excluído o emprego de termos erróneos que falseiem abertamente a vontade legislativa".
O texto da lei é o ponto de partida da interpretação.
Sendo assim, "cabe-lhe desde logo uma função negativa; a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei" (26).
É o que resulta, afinal, do disposto no nº 2 do artigo 9º do Código Civil, ou seja, não poder o intérprete atender ao "pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal".
A interpretação não pode quedar-se na letra da lei; deve prescrutar o sentido que está por detrás da expressão e eleger, de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão, a verdadeira e decisiva.
Como se viu antes, da letra do nº 1 do artigo 4º da lei nº 20/92 deduz-se, com a necessária segurança, que se pretendeu que os que usufruíssem de um rendimento superior a determinado nível pagassem propinas, interpretação que não é prejudicada quando se apela para o sentido ou espírito da lei, a ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma ou ainda para os trabalhos preparatórios daquele diploma.
Mas, falta ao intérprete uma demonstração inequívoca no sentido de que se pretendeu com a Lei nº 20/92 abolir determinadas isenções que não se pautavam pelo critério geral, e que se encontravam dispersas em diplomas especiais.
Na falta de uma referência expressa, o intérprete carece de "circunstâncias relevantes" para poder concluir que a lei geral nova pretendeu afastar aqueles regimes especiais, alguns dos quais foram indicados ao longo do parecer; pelo contrário, as motivações para aqueles regimes, nomeadamente a vontade de recompensar quem se sacrifica pela Pátria ou pela Comunidade, continuam vivas e actuais como significativamente se demonstra com a recente definição do "Estatuto Social do Bombeiro".
Seria profundamente estranho que, sem uma clara, fundada e inequívoca manifestação de uma tal intenção, se tivesse de concluir que a Lei nº 20/92 retirou regalias previstas para situações merecedoras de tratamento especial, algumas recentemente acolhidas, tanto mais que os valores dominantes na sociedade que justificaram essas diferenças continuam actuais porque são perenes.
Acresce que, se assim não fosse, e sem que se descortinasse fundamento razoável, aquele regime especial continuaria em vigor para os restantes graus de ensino.
 
8.4. Atente-se, finalmente, numa eventual argumentação a retirar do facto de o artigo 17º da Lei nº 20/92 ter revogado toda a legislação em contrário.
Diga-se, antes de mais, que esta declaração genérica era supérflua, porquanto a lei posterior revoga a lei anterior que for com ela incompatível - nº 2 do artigo 7º do Código Civil.
Depois, e fundamentalmente, como se demonstrou supra (7.2.), aqueles regimes, porque contidos em leis especiais, não podem ser considerados contrários à Lei nº 20/92, mas sim e simplesmente diferentes.
 
Conclusão:
9. Pelo exposto, formulam-se as seguintes conclusões:
1ª - Aquando da publicação do Decreto-Lei nº 358/70, de 29 de Julho, a isenção de propinas e ou a concessão de bolsas de estudos estavam condicionadas em todos os graus e ramos de ensino, para além de outros requisitos, à carência de recursos económicos;
2ª - O Decreto-Lei nº 358/70 veio criar uma isenção de propinas em todos os graus e ramos de ensino ministrados nos estabelecimentos oficiais não militares para os combatentes e antigos combatentes de operações militares ao serviço da Pátria que se distinguissem de forma a merecerem determinadas condecorações ou louvores, ou ficassem incapacitados para o serviço militar ou diminuídos fisicamente, isenção extensiva aos filhos, regalia que não estava condicionada à insuficiência económica do aluno ou da sua família;
3ª - O Decreto-Lei nº 132/80, de 17 de Maio, que veio definir os princípios gerais da estrutura dos Serviços Sociais do ensino superior, não inovou no que diz respeito à isenção de propinas e à concessão de bolsas de estudo, não revogando expressa ou implicitamente o regime consagrado no Decreto-Lei nº 358/70;
4ª - O Decreto-Lei nº 358/70 apresenta-se, em relação ao regime geral que condicionava a isenção de propinas à carência de recursos económicos, como uma "lei especial";
5ª - A Lei nº 20/92, de 14 de Agosto, visa o ensino superior, estabelecendo normas relativas ao sistema de propinas e concedendo isenções apenas aos alunos com um rendimento familiar mais débil;
6ª - A Lei nº 20/92 é uma "lei geral" que deixou intocadas as situações especiais previstas em diplomas, como o Decreto-Lei nº 358/70, que consagram isenções de propinas independentemente da situação económica do beneficiado;
7ª - Na falta de uma inequívoca manifestação em tal sentido, não pode o intérprete concluir que a Lei nº 20/92 quis revogar o disposto no Decreto-Lei nº 358/70, tanto mais que os valores dominantes na sociedade que justificaram a diferença de tratamento aqui consagrada continuam actuais.


 
1) Trata-se de Parecer emitido pela Auditoria Jurídica do Ministério.
2) Cfr. as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 43363, de 28 de Julho de 1960, e 45681, de 25 de Abril de 1964.
3) O artigo 317º precisava os limites de rendimentos para se poder afirmar essa falta de recursos.
4) Cfr., nomeadamente, os Decretos-Leis nºs 78/71, de 30 de Abril (artigo 7º), e 609/71, de 30 de Dezembro.
5) Artigo 6º do Decreto-Lei nº 38968, de 27 de Outubro de 1952. Ver, também, o Decreto-Lei nº 40964, de 31 de Dezembro de 1956.
6) Artigo 8º do Decreto-Lei nº 538/79, de 31 de Dezembro. Cfr., ainda, os Decretos-Leis nºs 301/84, de 7 de Setembro, que englobou, no ensino básico, o ensino primário e o ensino preparatório, 243/87, de 15 de Junho, e 35/90, de 25 de Janeiro. Sobre a gratuitidade da escolaridade obrigatória e a acção social escolar, ver o Parecer nº 1/89, do Conselho Nacional de Educação, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Abril de 1989.
7) Ver também a Portaria nº 574/71, de 20 de Outubro,
8) Na redacção do Decreto-Lei nº 125/84, de 26 de Abril.
9) Cfr. NUNO SÁ GOMES, "Introdução ao Estudo do Direito", Lisboa, 1979-80, pág. 276; CASTRO MENDES, "Direito civil /Teoria geral", vol. III, 1973, pág. 642; e CARLOS GRAY, "Per un diritto premiale", in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 36(1959), págs. 8 e segs.
10) Cfr. as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 413/85, de 13 de Outubro, 43/88, de 8 de Fevereiro, 266/88, de 28 de Julho, 289/90, de 20 de Setembro, e 132/92, de 16 de Julho. Note-se, contudo, que a situação económica dos beneficiários é, por vezes, um elemento a ponderar no cálculo da pensão - Cfr. o artigo 9º do Decreto-Lei nº 404/82, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 266/88.
11) Tornado extensivo às Forças da GNR, Guarda Fiscal e PSP pelo Decreto-Lei nº 351/76, de 13 de Maio.
12) Alterado pelo Decreto-Lei nº 146/92, de 21 de Maio.
13) Ver, ainda, neste contexto, os benefícios fiscais concedidos a deficientes militares e civis pela Lei nº 11/78, de 20 de Março.
14) "Curso de Direito Civil", vol. I, Introdução, Coimbra, 1910, págs. 111 e segs.
15) PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Noções fundamentais de direito civil", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1965. Sobre a matéria, ver OLIVEIRA ASCENSÃO, "O Direito - Introdução e Teoria Geral", 4ª edição, Lisboa, 1987, pág. 377 e segs.: "A excepção é pois necessariamente de âmbito mais restrito que a regra, e contraria a valoração ínsita nesta, para prosseguir finalidades particulares". Ver, ainda, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, "Introdução ao estudo do direito", reimpressão, vol. 2º, 3ª tiragem, Lisboa 1990, págs. 456 e segs., NUNO SÁ GOMES, "Introdução ao Estudo de Direito", Lisboa, 1979/80, págs. 237 e segs., e BAPTISTA MACHADO, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", Lisboa, 1980, págs. 94 e segs..
16) Para os trabalhos preparatórios desta lei, sem especial interesse na economia do Parecer, ver os Diários da Assembleia da República, II Série - A, nºs 39, de 23 de Maio, 41, de 30 de Maio, 46, de 26 de Junho, e 49, de 9 de Julho, e, I Série, nºs 69, de 29 de Maio, 71, de 3 de Junho, e 80, de 26 de Junho, todos de 1992.
17) Publicado no Diário da Assembleia da República, II Série- A, nº 39, referido na nota anterior.
18) A alínea j) do nº 2 do artigo 7º da Lei nº 54/90 conferia ao membro do Governo com poderes de tutela a competência para fixar "as propinas devidas pelos alunos dos vários cursos ministrados nas escolas superiores, assim como as propinas suplementares relativas a inscrições, realização ou repetição de exames e outros actos de prestação de serviços aos alunos", competência transferida para as Universidades e Institutos Politécnicos pela Lei nº 20/92 (artigo 6º).
19) Para o ano lectivo 1992/93, cfr. a Portaria nº 203/92, de 28 de Outubro.
20) PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Noções Fundamentais do Direito Civil", 4ª éd., Coimbra, 1957, pág. 106. Acompanham-se os Pareceres nºs 173/80, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 305, págs. 164 e segs., e no Diário da República, II ª Série, de 21 de Fevereiro de 1981, e 35/90, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Julho de 1991.
21) "Revista de Legislação e de Jurisprudência", ano 99º, pág. 334.
22) Enneccerus, Kipp e Wolf, Tratado de Derecho Civil, Tomo I, pág. 226. Conferir o Parecer nº 150/79, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 224, págs. 113 e segs., e no Diário da República, II ª Série, de 24 de Abril de 1980.
23) Assim no Parecer nº 90/89, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1991.
24) Ob. cit., pág. 493.
25) "Interpretação e aplicação das leis", tradução de MANUEL DE ANDRADE, 3ª edição, Coimbra, 1978, pág. 140. Cfr. o Parecer nº 96/90, de 6 de Dezembro de 1990, que se passa a seguir de muito perto.
26) BAPTISTA MACHADO, ob. cit., págs. 188 e segs..
 
 
Anotações
Legislação: 
L 20/92 DE 1992/08/14 ART2 ART3 ART4 ART17.
DL 358/70 DE 1970/07/29 ART1 ART2 ART3. L 21/87 DE 1987/06/20 ART9.
PORT 445/71 DE 1971/08/20 N2 N3 N4 N5.
DL 31658 DE 1941/11/21 ART20 ART22 ART24.
DL 36508 DE 1947/09/17 ART312 ART324. DL 241/89 DE 1989/08/03 ART17.
DL 43363 DE 1960/07/28. DL 45681 DE 1964/04/25
DL 78/71 DE 1971/04/30 ART7. DL 609/71 DE 1971/12/30.
DL 38968 DE 1952/10/27 ART6. DL 40964 DE 1956/12/31.
L 538/79 DE 1979/12/31 ART8. DL 310/84 DE 1984/09/07.
DL 243/87 DE 1987/06/15. DL 35/90 DE 1990/01/25.
DL 132/80 DE 1980/05/17 ART2 ART3 ART4.
DL 125/84 DE 1984/04/26. DL 404/82 DE 1982/09/24.
DL 43/76 DE 1976/01/20 ART14. DL 314/90 DE 1990/10/13 ART4.
L 54/90 DE 1990/09/05 ART7 N2 J. CCIV66 ART7 N3 ART9 N2.
Referências Complementares: 
DIR ADM * ADM PUBL / DIR ENS / DIR CIV * TEORIA GERAL.
Divulgação
Número: 
DR245
Data: 
19-10-1993
Página: 
10934
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