SENHOR SECRETÁRIO DE ESTADO ADJUNTO DO MINISTRO DA DEFESA NACIONAL,
EXCELÊNCIA:
1
A fim de ser colhido o parecer do Conselho Consultivo, nos termos do n.º 4 do artigo 2ºdo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro, foi enviado o processo respeitante ao Guarda da P.S.P. n.º (...), (...), com vista à eventual qualificação como deficiente das Forças Armadas.
Cumpre, pois, emitir parecer.
2
É a seguinte a matéria de facto que resulta do processo:
- No dia 31 de Março de 1977, o referido guarda da P.S.P. encontrava-se em serviço, pelas dezassete horas e vinte minutos, junto da Esquadra de Odivelas;
- Ouvindo tiros e um alarme a tocar, deslocou-se, com alguns camaradas, para o local donde provinham os sons, tendo-se apercebido de que acabara de ocorrer um assalto à mão armada a uma ourivesaria, praticado por uma quadrilha;
- Um dos assaltantes descia a rua em correria, efectuando disparos de arma de fogo, tendo atingido alguns populares, motivo que levou o guarda sinistrado a correr em direcção a ele, a fim de o capturar, ripostando com a arma de serviço;
- Foi no decurso desta acção que o fugitivo o alvejou à queima-roupa, atingindo-o no braço esquerdo, com gravidade ainda nas costelas do mesmo lado;
- Mesmo depois de ferido, o sinistrado ajudou a capturar um outro componente da quadrilha, que também pretendia pôr-se em fuga;
- Viriam a ser capturados três dos quatro componentes do grupo de assaltantes, um dos quais viria a falecer no Hospital, em consequência dos disparos contra ele efectuados por um camarada do guarda sinistrado;
- No decurso dos factos relatados, três civis foram feridos, tendo sido conduzidos ao Hospital, onde ficaram internados;
- Foram ainda alvejados pelo assaltante que feriu o sinistrado, outros dois guardas da P.S.P. , um dos quais só não foi ferido, uma vez que o projéctil que o visava atingiu (e inutilizou) o carregador que tinha introduzido na espingarda G3;
-0 guarda (...) permaneceu hospitalizado desde 31 de Março a 15 de Abril de 1977, sendo-lhe concedidos 543 dias de licença para tratamento;
- Como consequência do disparo que sofreu; resultou uma ferida perfurante no braço esquerdo com destruição da artéria umeral e do nervo cubital;
- Em resultado dos ferimentos sofridos, a Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, reunida em 13 de Agosto de 1980, atribuiu-lhe o grau de desvalorização de 50,5% (cinquenta virgula cinco por cento);
- A Junta Superior de Saúde da P.S.P. , em sessão de 21 de Abril de 1988, considerou-o apto para serviços que dispensem plena validez, parecer que foi homologado por despacho de 28 de Abril do corrente ano;
- 0 acidente fora considerado, por despacho do General Comandante-Geral da P.S.P., de 15 de Abril de 1977, como ocorrido em serviço;
- A mesma entidade, por despacho de 10 de Maio de 1988 concordou com o parecer de que o acidente poderá ser identificável com o espirito do Decreto-Lei n.º 43/76 e conduzir à qualificação do guarda sinistrado como deficiente das Forças Armadas, tendo determinado o envio do processo ao Ministério da Defesa Nacional, "nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 43/88".
3.
3.1 -te corpo consultivo tem vindo a entender, uniformemente, em sucessivos pareceres (1) , que, na interpretação das disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 2, e 2º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro, tornado extensivo à P.S.P. pelo Decreto-Lei n.º 351/76, de 13 de Maio, para além das situações expressamente previstas na lei, o regime jurídico dos deficientes das Forças Armadas só é aplicável aos casos em que haja um risco agravado necessário, implicando uma actividade arriscada por sua própria natureza e que, pela sua índole e considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes, se identifiquem com o espírito da lei, equiparando-se às situações de campanha ou equivalente.
Salienta-se que o privilégio do regime dos deficientes das Forças Armadas tem, ínsita, a ideia de recompensar os que se sacrifiquem pela Pátria.
Não basta, por isso, o mero exercício de funções e deveres militares para que se estabeleça semelhante equiparação, tornando-se indispensável que no seu desempenho ocorra risco equiparável às situações de campanha ou equivalente, ou seja, às previstas nos três primeiros "itens" do n.º 2 do artigo 1º.
Exige-se uma actividade de risco agravado, superior ao risco genérico que toda a actividade militar encerra, risco a valorar em sede de objectividade, pois se mostra incompatível com circunstâncias meramente ocasionais e imprevisíveis.
3.2 - 0 Conselho Consultivo, até há algum tempo, excluiu a aplicação directa dos três primeiros itens do n.º 2 do artigo 1º a situações como a descrita, admitindo, no entanto, que elas podem consubstanciar uma actividade a que é inerente um risco agravado, idóneo para a equiparar a qualquer das referidas hipóteses.
3.2.1 - Para aqui chegar, o Conselho Consultivo partia da análise das funções policiais.
Um dos objectivos e missões da Polícia de Segurança Pública é "garantir a segurança das pessoas e dos seus bens", competindo-lhe, nomeadamente, "prestar pronto auxílio a todos aqueles que dele careçam" (artigos 1º, n.º 2, alínea c), e 6º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 151/85, de 9 de Maio).
No parecer n.º 51/85, já referido, recolhendo passos do parecer n.º 109/82, escreveu-se:
"... Trata-se de uma actividade que, como qualquer outra, envolve um risco específico que, relativamente ao de outras actividades profissionais, normalmente o excede mas que é o risco próprio da função policial. Não obstante esse excesso, trata-se, porém, de um risco que, em condições normais do exercício da função, não ameaça directa e imediatamente a vida ou a integridade física dos agentes que o suportam, dados os concretos meios de defesa de que dispõem e a normal evolução da vida em sociedade".
"Pode, porém, suceder que a rotina da função policial e o específico risco que lhe é próprio sofram alteração em termos objectivos que importem uma relevante agravação desse risco, como se entendeu verificar no caso analisado no referido parecer (o nº109/82): "a actividade de um guarda da P.S.P. que, encontrando-se em serviço de patrulha, enfrenta para o deter, um indivíduo em fuga como ladrão, munido de arma de fogo e dela fazendo uso, o persegue e consegue alcançá-lo e agarrá-lo, só não o dominando por ter sido por ele atingido por tiro da arma que empunhava".
3.2.2 - Para além desta situação, foram equiparados aos casos paradigmáticos dos três primeiros itens do n.º 2 do artigo 1º:
- "a actividade de um guarda da P.S.P. que, em serviço num carro de patrulha, às 4 horas da manhã, avista junto de um automóvel três indivíduos relativamente aos quais não é de excluir que empreguem meios vio lentos para se subtraírem à acção policial e, suspeitando tratar-se de uma quadrilha dedicada ao furto de automóveis, para eles se dirigiu, pondo-se estes imediatamente em fuga, ao mesmo tempo que disparavam as suas armas" (Parecer n.º 114/83, homologado por despacho de 13.9.83);
- "a actividade de um guarda da P.S.P. que enfrenta, para o deter, um perigoso cadastrado evadido de uma Colónia Penal, munido de arma de fogo e ameaçando dela fazer uso, o que veio a acontecer, mas não impediu a sua captura pelo guarda, atingido pelos tiros" (Parecer nº18/85);
- "a actividade de um Comissário da Polícia de Segurança Pública que enfrentou com a sua arma dois indivíduos que, empunhando pistolas, irromperam no interior do estabelecimento onde aquele se encontrava, para levarem a cabo um assalto em que perigavam a vida e os bens do proprietário, procurando com a sua atitude obstar à consumação do assalto, pelo que se seguiu uma troca de disparos e uma luta corpo a corpo, no decurso da qual atingiu um dos assaltantes e sendo, por sua vez, atingido na cabeça e no hemitorax direito por um projéctil" (Parecer n.º 51/85).
4.
4.1 - No caso dos autos, o guarda (...) enfrentou corajosamente um indivíduo armado que, com outros três, assaltara uma ourivesaria; sujeitou-se, conscientemente, a uma situação que, excedendo o risco específico próprio da função policial, envolvia um perigo directo e imediato da própria vida.
Por isso que, segundo a doutrina deste Conselho Consultivo, que tem sido homologada superiormente, se imporia concluir que o seu comportamento assume a dignidade do quid agravativo equiparável a qualquer das situações paradigmáticas descritas na lei e identificável, por outro lado, com o seu espírito: o guarda (...) deve ser considerado deficiente das Forças Armadas.
4.2 - Verificou-se, porém, uma reponderação desta problemática com o parecer n.º 79/86, de 4 de Dezembro, que, debruçando-se sobre uma situação de facto muito próxima da que está na génese desta consulta, constituí uma abordagem, de certo modo inovadora, que passaremos a acompanhar de perto (2).
Escreve-se o seguinte no referido parecer n.º 79/86:
"Releve-se, porém, que se prossiga o discurso, não no sentido de rever ou inverter a conclusão a que os pareceres anteriores chegaram, pois se afigura correcto que situações como as descritas devam ser tratadas no quadro do Decreto-Lei n.º 43/76, ou seja, os que as sofreram devem ser considerados deficientes das Forças Armadas, desde que reunidos os demais pressupostos, mas antes e tão só para ponderar se o enquadramento adequado dessas situações, ou pelo menos de algumas delas, não deve procurar-se antes nalgum dos itens anteriores, concretamente na "manutenção da ordem pública".
Trata-se não de um puro exercício intelectual de estilo, e, por isso dispensável numa perspectiva utilitária, mas de um esforço clarificador com importantes reflexos práticos".
4.2.1 - A primeira consequência prática que se desenhava com carácter inovador dizia respeito à entidade competente para qualificar como deficiente das Forças Armadas um elemento da P.S.P. que sofresse um acidente na "manutenção da ordem pública".
A entidade competente para decidir deveria ser, em face da legislação então em vigor, o Ministro da Administração Interna e não o Ministro da Defesa (3) .
Importa, todavia, constatar que, neste ponto, o regime legal foi modificado pelo Decreto-Lei n.º 43/88, de 8 de Fevereiro, cujo artigo 2º estabelece que "compete ao Ministro da Defesa Nacional, com faculdade de delegação, a apreciação e decisão dos processos instruídos com fundamento em qualquer dos factos previstos no n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro. Registe-se que, nestes casos, não se impõe a obtenção de parecer prévio da Procuradoria-Geral da República.
Isso mesmo, aliás, foi reconhecido pelo Senhor General Comandante-Geral da P.S.P. que, no seu despacho de 10 de Maio findo, determinou o envio do processo ao Ministério da Defesa Nacional "para apreciação e decisão de Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 43/88" - cfr. supra, ponto 2, in fine.
4.2.2 - Mas, como se reconhece no parecer n.º 79/86, que vínhamos acompanhando, um segundo motivo persiste.
Aí se pondera sobre a conveniência de interpretação e de possível tendencial) harmonização do conceito "manutenção da ordem pública" e, muito em especial, acer ca da necessidade de definição do, "item" traduzido naquela expressão, que o n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 43/76 contempla também para a P.S.P. por força do Decreto-Lei n.º 351/76, com o objectivo de averiguar, por fim, se a hipótese concreta lhe é subsumível. E só no caso negativo é que seria justificável encarar a possi bilidade de a situação só ser enquadrável no quarto "item" do n.º 2 (do referido artigo 1º), sabido como é que uma das missões da P.S.P. consiste em "assegurar o respeito pela legalidade, garantindo a manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas" - alínea c) do n.º 2 do artigo 1º do Estatuto da Polícia de Segurança Pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151/85, de 9 de Maio, explicitando o artigo 5º do Estatuto que "compete à P.S.P., para a realização dos objectivos referidos na lei: a) Manter ou repor a ordem e tranquilidade públicas".
5.
5.1 Não vamos, nesta sede, desenvolver a temática relativa ao conceito de "manutenção da ordem pública", largamente tratada no parecer n.º 79/86 (4), limitando-nos tão somente a retirar uma conclusão, acompanhando o que neste parecer se escreve: a Polícia de Segurança Pública actua na manutenção da ordem pública quando reage no âmbito do trinómio tranquilidade, segurança e salubridade.
Por isso, encontra-se no serviço de manutenção da ordem pública o guarda da P.S.P. que percorre as ruas da cidade, no seu giro habitual, pois a sua simples presença é factor dissuasor da desordem, intranquilidade ou insegurança. Actua ainda na manutenção da ordem pública o guarda da P.S.P. que põe termo a uma zaragata ou a uma agressão física, que persegue um delinquente ou que o conduz à prisão ... .
5.2 Serão, então, subsumíveis à previsão do n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 43/76 os acidentes que os membros da P.S.P. venham a sofrer no exercício da função de manutenção da ordem pública?
Como se escreve no referido parecer n.º 79/86, a resposta não pode ser globalizante, desde que "se recorde a razão de ser do diploma: recompensar os que se sacrificaram pela Pátria. Os que suportam um risco de tal modo agravado e anormal no exercício das suas funções merecem um regime de privilégio, como o que está contemplado no Decreto-Lei n.º 43/76.
56 que esta agravação de risco não pode ser apenas pensada para aqueles casos-limite , em que a tranquilidade e a segurança dificilmente podem ser contidas pelas forças policiais e militares.
Tão pouco se pensa ser de exigir as clássicas situações tumultuosas, de manifestações de rua, de aglomeração de pessoas contestatárias, etc., para invocar a aplicação do item "manutenção da ordem pública" previsto no diploma.
Difícil será teorizar e a casuística pode revelar-se perigosamente discricionária; pensa-se, no entanto, que a prudência máxima se contentará, pelo menos, com a inserção no conceito de "manutenção da ordem pública" previsto no Decreto-Lei n.º 43/76 das situações em que o agente da P.S.P. actua correndo potencialmente o risco da própria vida, revelando abnegação e coragem, motivadoras de um sentimento de gratidão por parte da comunidade".
Para o efeito, as regras da experiência são balizas e parâmetros que permitem julgar as realidades da vida. Ora, segundo elas, a acção de um guarda da P.S.P. que, ao enfrentar e tentar neutralizar um indivíduo armado e aos tiros, integrante de um grupo de quatro que efectuara um assalto a uma ourivesaria, foi por ele baleado, tendo ainda conseguido reagir corajosamente com a arma de serviço, ajudando a capturar um outro assaltante, corresponde a um tipo de actividade previsto no 2º "item" - manutenção da ordem pública - do nº2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 43/76.
5.2 De onde resulta que o guarda (...) deve ser considerado deficiente das Forças Armadas, por ter sofrido um acidente na manutenção da ordem pública - segundo "item" do n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 43/76, sendo competente para a qualificação o Senhor Ministro da Defesa Nacional ou Vossa Excelência, no exercício de delegação ministerial - artigo 2º do Decreto-Lei n.º 43/88, de 8 de Fevereiro.
6.
Pelo exposto, formulam-se as seguintes conclusões:
1º - A acção de um guarda da P.S.P. que, ao enfrentar e tentar dominar um indivíduo armado e aos tiros, integrante de um grupo de quatro, assaltante de uma ourivesaria, foi por ele baleado, tendo ainda conseguido corajosamente ripostar com a arma de serviço, corresponde a um tipo de actividade previsto no segundo "item" - manutenção da ordem pública - do nº 2 do artigo 1ºdo Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro;
2º - 0 acidente de que foi vítima o guarda da P.S.P. (...) ocorreu em circunstâncias subsumíveis ao quadro descrito na conclusão anterior;
3º - A competência para qualificar o guarda sinistrado como deficiente das Forças Armadas pertence, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 43/88, de 8 de Fevereiro, ao Senhor Ministro da Defesa Nacional, com faculdade de delegação.
(1) - Cfr., entre outros, os pareceres nºs 109/82, homologado por despacho de 17 de Agosto de 1982, 18/85, homologado por despacho de 26 de Abril de 1985, e 51/85, homologado por despacho de 10 de Julho de 1985.
(2) No parecer citado no texto, a aguardar homologação, apreciava-se a acção de um guarda da P.S.P. que, ao enfrentar e tentar dominar um indivíduo armado, integrando um grupo de três num assalto a um estabelecimento bancário, foi por ele baleado, tendo ainda conseguido ripostar com a arma de serviço.
(3) - Como se demonstra no parecer n.º 85/82, de 13 de Março de 1986, homologado e não publicado, onde se sustenta (e justifica) caber (então) tão só ao Ministro da Defesa Nacional "decidir da qualificação especialmente prevista no nº4 referido ao n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 43/76 ... ".
(4) - Cfr. acerca do assunto JORGE MIRANDA, in "Enciclopédia Verbo", vol. 14, pág. 736, MARCELLO CAETANO, "Manual de Direito Administrativo", 9ª edição, (reimpressão), 1983, pág. 1152 e JEAN RIVERO, "Direito Administrativo", Tradução, Coimbra, 1981, pág. 480.