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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
61/1994, de 27.10.1994
Data do Parecer: 
27-10-1994
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
PGR
Entidade: 
Procurador(a)-Geral da República
Relator: 
LOURENÇO MARTINS
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CÓDIGO DA ESTRADA
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
CRIME
CONTRAORDENAÇÃO
REVOGAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA
ÁLCOOL
Conclusões: 
1 - A condução de veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, sob influência do álcool, apresentando o condutor uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l é punida nos termos dos artigos 1 e 2 do Decreto-Lei n 124/90, de 14 de Abril;
2 - As disposições referidas não foram revogadas pelo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n 114/94, de 3 de Maio.
Texto Integral
Texto Integral: 
SENHOR SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA,
EXCELÊNCIA:


Dignou-se Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna solicitar a emissão de parecer, com carácter de urgência, por este Conselho Consultivo, sobre a vigência ou não do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, designadamente no que toca ao disposto nos seus artigos 1º e 2º, perante a entrada em vigor do novo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio.
Entendendo não serem pertinentes as dúvidas levantadas por alguns tribunais quanto à vigência daquele diploma, Vossa Excelência proferira, com data de 4.10.94, o Despacho nº 138, que se mostra útil transcrever na sua globalidade, e no qual se diz:
«Tendo-se suscitado dúvidas sobre se o novo Código da Estrada nomeadamente os seus artigos 148º, alínea m), e 149º, alínea i) aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, que entrou em vigor no passado dia 1 de Outubro, revogou, tacitamente, os tipos criminais previstos no Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, cumpre esclarecer:
1. Conforme resulta claramente da Lei de Autorização Legislativa nº 63/93, nomeadamente do seu artigo 2º, nº 2, o Governo só foi autorizado a legislar, no âmbito do novo Código da Estrada, sobre a previsão, processamento e punição de contra-ordenações;
2. No que concerne especificamente aos ilícitos criminais relaciona-dos com a condução de veículos sob a influência de álcool, a mencionada Lei nº 63/93 estabeleceu, expressamente, no nº 4 do seu artigo 2º, que os «tipos de crime: não poderiam ser alterados;
3. Aquela disposição refere-se, nomeadamente ao artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, que qualifica como «crime: a condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, apresentando uma TAS igual ou superior a 1,20g/l;
4. Por conseguinte, enquanto o referido tipo de crime não for alterado, nos termos do artigo 3º, alínea 147), da Lei de Autorização Legislativa nº 35/94, que autorizou a revisão do Código Penal, a condução sob influência do álcool, é sancionada nos seguintes termos:
Se a TAS for igual ou superior a 0,5g/l, constitui «contra-ordenação grave:, nos termos das disposições conjugadas do artigo 1º do Decreto-Lei nº 124/90, e do artigo 148º, alínea m) do novo Código da Estrada;
Se a TAS for igual ou superior a 0,80g/l, constitui «contra-ordenação muito grave:, nos termos das disposições conjugadas do artigo 1º do Decreto-Lei nº 124/90 e do artigo 149º, alínea i) do novo Código da Estrada;
Se a TAS for igual ou superior a 1,2g/l, continua a constituir «crime:, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/90.
5. Publique-se no Diário da República e comunique-se à Direcção-Geral de Viação e aos Comandos Gerais da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública:.
Entretanto, a solicitação do General Comandante-Geral da Guar-da Nacional Republicana (1) o mesmo tema havia sido objecto de pedido de esclarecimento a Sua Excelência o Procurador-Geral da República, ao mesmo tempo que se dava conhecimento de posições díspares de representantes do Ministério Público em diversos casos e de uma decisão do tribunal judicial de Setúbal.
Enquanto aqueles Magistrados teriam feito saber «de viva voz: que os condutores encontrados sob influência do álcool que revelassem taxa de álcool no sangue (TAS) superior a 1,2g/l, incorreriam em contra-ordenação e não na prática de crime, aquele tribunal havia julgado em sentido oposto.
Na opinião do Senhor General Comandante-Geral da GNR, não tendo ocorrido a revogação expressa do citado Decreto-Lei nº 124/90, só haveria que o considerar modificado na medida contrária ao disposto no Código da Estrada. Dos artigos 87º, 148º e 149º deste não se poderia concluir que a condução sob a influência do álcool com TAS igual ou superior a 1,2g/l tivesse deixado de ser sancionada criminalmente.
Sua Excelência o Procurador-Geral da República, por despacho de 4 de Outubro, determinou a emissão de parecer, em cujo processo posteriormente mandou incorporar a consulta de Vossa Excelência.
Cumpre, assim, emitir o parecer, com as limitações provenien-tes da urgência imprimida.

2

Precisemos desde já um ponto inicial.
Embora à primeira vista pareça estar em causa a vigência ou não do Decreto-Lei nº 124/90, na sua totalidade, a situação concretamente referenciada na consulta (o mesmo sucedendo com o Coman-do-Geral da Guarda Nacional Republicana) respeita apenas a saber se a condução sob a influência de álcool com TAS igual ou superior a 1,2g/l continua a constituir crime, de acordo com o artigo 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, ou passou, após a entrada em vigor do novo Código da Estrada, em 1 de Outubro de 1994 na matéria que ora importa (2) a mera contra-ordenação.
Daí que a resposta se cinja, tantum quantum, àquela dúvida principal.
Detenhamo-nos então nos textos.

2.1. Acentuando o combate à sinistralidade rodoviária provocada pelo abuso do álcool, e na esteira da Lei nº 3/82, de 29 de Março (3), pelo Decreto-Lei nº 124/90 cria-se «um novo ilícito de carácter penal, considerando-se crime a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l: (do preâmbulo).
Estipula-se assim:
«Artigo 1º
«Para efeitos do disposto no presente diploma considera-se es-tar sob a influência do álcool todo o condutor que apresentar uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 0,50g/l.
«Artigo 2º
(Crime)
«1.Quem conduzir veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, apresentando uma TAS igual ou superior a 1,20g/l será punido com pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias, se pena mais grave não for aplicável.
2.Se o facto for imputável a título de negligência, a pena será de prisão até seis meses ou multa até 100 dias.
«Artigo 3º
(Contravenção)
«1.Constituem contravenção os factos descritos no nº 1 do ar-tigo 2º quando o condutor apresentar uma TAS inferior a 1,20g/l e igual ou superior a 0,50g/l.
2.Sendo a TAS igual ou superior a 0,80g/l, a multa será de 30.000$ a 150.000$.
3.Sendo a TAS igual ou superior a 0,50g/l e inferior a 0,80g/l, a multa será de 15.000$ a 75.000$:.
Às penas previstas acresceria a inibição da faculdade de conduzir (artigo 4º).
À pesquisa de álcool no ar expirado e a outros exames necessários à sua detecção bem como aos requeridos «para efeitos de contraprova: aludem os artigos 6º, 8º e 9º.
Nos termos do artigo 20º do mesmo diploma, ficava sujeita a regulamentação de que dependeria a sua entrada em vigor o tipo de material a utilizar para determinação da presença de álcool e para recolha de sangue para determinação da taxa des-sa substância, os métodos a usar para a determinação do do-seamento do álcool no sangue, modelos de impressos, laborató-rios que podiam efectuar a análise do sangue e tabelas de preços (4).

2.2. A emissão do Código da Estrada foi objecto de preliminar autorização legislativa a Lei nº 63/93, de 21 de Agosto (5).
De acordo com o artigo 1º, o Governo ficou «autorizado a aprovar um novo Código da Estrada, a revogar a legislação vigente sobre essa matéria e a proceder à adaptação da legislação complementar:.
Concretizando o sentido e extensão da autorização legislativa esta deveria contemplar (artigo 2º, nº 2): a) A punição, como actos ilícitos de mera ordenação social, da violação das normas disciplinadoras do trânsito nas vias abertas ao trânsito público;
..........................................................................................
«bb) A obrigação de sujeição dos condutores a provas para detecção de intoxicação pelo álcool, estupefacientes ou substâncias equiparadas por legislação especial;
«cc) A imposição aos utentes da via pública, suspeitos de terem contribuído para acidentes de trânsito, do dever de sujeição a provas para detecção de possíveis intoxi-cações pelo álcool, estupefacientes ou substâncias legalmente equiparadas;
.................................................................................:.
De particular relevo se mostram os nºs 4 e 5 do aludido artigo 2º da Lei nº 63/93, que também se transcrevem:
«4.O Governo poderá proceder à revisão ou revogação das normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito, visando a sua adaptação às normas do Código da Estrada, desde que não sejam alte-rados os tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis.
5. O Governo poderá proceder à revisão das normas penais incriminadoras relativas à condução sobre (sic) influência do álcool constantes do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, podendo alargar os pressupostos de punição à condução sob influência de estupefacientes, psicotrópicos, estimulan-tes ou outras substâncias similares e do procedimento para a sua detecção e controlo, observando os limites máximos da punição estabelecidos nesse decreto-lei e assegurando aos suspeitos garantias de controlo dos testes de detecção da influência das referidas substâncias:.

2.3. Olhando agora sobre o Código da Estrada, logo no seu intróito se depara, ainda a benefício da segurança rodoviária e tendo em conta a evolução do trânsito, com a necessidade de «maior precisão e rigor nas regras de comportamento nas vias públicas, a fim de, por esse modo, contrabalançar os maiores perigos que a evolução das condições do trânsito trazem consigo:.
Posto que se trate de uma fórmula já algo tabelar desnecessária, acrescentam alguns no artigo 2º do Decreto-Lei nº 114/94, ordena-se a revogação do anterior Código da Estrada «bem como (d)a respectiva legislação complementar que se encontre em oposição às disposições do Código ... aprovado:.
Importante no contexto da consulta é o artigo 87º do Código da Estrada, que estipula, sob a epígrafe «Condução sob o efeito de álcool ou de estupefacientes::
«1.É proibido conduzir sob a influência do álcool, considerando-se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5g/l.
2.Quem conduzir sob a influência do álcool será punido com coima de 20.000$ a 100.000$, salvo se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,8g/l, caso em que a coima será de 40.000$ a 200.000$.
3.É proibido conduzir sob a influência de estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes ou outras substâncias similares, nos termos estabelecidos em diploma próprio.
4.A infracção ao disposto no número anterior será punida com coima de 40.000$ a 200.000$:.
A propósito da responsabilidade por violação das prescrições do Código Capítulo II , determina-se no artigo 135º, nº 1:
«As infracções às disposições deste Código e seus regulamen-tos têm a natureza de contra-ordenações, salvo se constituírem crimes, sendo então puníveis e processadas nos termos gerais das leis penais:.
Admitindo igualmente o concurso de infracções (criminal e contra-ordenacional), o artigo 138º afirma a sua punição a título de crime, sem prejuízo da sanção acessória prevista para a contra-ordenação (6).
Sendo as contra-ordenações hoje classificadas de leves, graves e muito graves (artigo 139º, nº 1), a condução sob influência do álcool recorde-se, entre 0,5g/l e 0,8g/l é considerada como contra-ordenação grave (alínea m) do artigo 148º), enquanto a condução com taxa de álcool no sangue superior a 0,8g/l é classificada de muito grave (artigo 149º, alínea i)).
Segundo o disposto nos artigos 150º e 151º, o tribunal pode ordenar a cassação da carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contra- ordenações praticadas e da personalidade do agente, deva ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado. Não será concedida nova carta ou licença sem que o visado seja aprovado em exame especial.
Neste excurso pelo Código da Estrada, atentemos finalmente no disposto nos artigos 158º e 159º.
No primeiro determina-se a obrigação de se submeterem às provas para detecção de possíveis intoxicações os condutores e demais utentes da via pública, estes se sujeitos de acidente de viação, podendo, a seu requerimento ou por ordem da autori-dade judicial, repetir-se as provas para efeito de contraprova, as quais podem consistir em análises de sangue, urina ou outras análogas.
No segundo diz-se:
«O procedimento de fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes ou outras substâncias similares é objecto de legislação especial:.
Acabamos assim de pôr em confronto o que a Assembleia da República autorizou e o modo como o Governo executou.

3

3.1. Voltando à lei de autorização repare-se que esta aponta para que a punição como actos ilícitos de mera ordenação social se reporte apenas à matéria do novo Código da Estrada. É o que advém do confronto entre o artigo 1º e o nº 2, alínea a), do artigo 2º da Lei nº 63/93.
Se assim é, então a revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de normas sobre o trânsito, tal como resulta do nº 4 do artigo 2º atrás transcrito, parece que haverá ou haveria de ocorrer em diplomas autónomos.
O mesmo se diga no que concerne à eventual revisão das normas penais incriminadoras constantes do Decreto-Lei nº 124/90, relativas à condução sob influência do álcool cujo alargamento à condução de estupefacientes e drogas similares também se prevê.
Destes dois números ressaltam, sem margem para dúvida, duas ilações.
Por um lado, está-se perante meras possibilidades de revisão, algo que só se fará se a adaptação ao novo Código da Estrada o revelar necessário.
Por outro lado, é visível o intuito de não afastar a caracterização dos tipos legais de crime no caso do nº 4, devendo observar-se, no caso do nº 5, os limites máximos de punição estabelecidos no Decreto-Lei nº 124/90. Remissão que só pode ser entendida como respeitante aos limites estabelecidos para o crime previsto no artigo 2º já que a matéria das contravenções desapareceu, sendo substituída pelas contra-ordenações.

3.2. A discussão da autorização legislativa na Assembleia da República fornece subsídios não despiciendos.
O Governo apresentou a Proposta de Lei nº 62/VI (7), acompanhada da «Exposição de motivos:. Em tal exposição destaca-se, desde logo, a matéria inovadora da transformação do ordena-mento vigente para o regime das contra-ordenações. E também se salienta que a submissão dos condutores a provas para detecção de intoxicação pelo álcool, estupefacientes e substâncias equiparadas, será objecto de legislação especial dado o carácter evolutivo dos métodos de detecção.
E acrescenta-se, sintomaticamente: «Neste domínio, há estados de intoxicação que, pela sua extraordinária perigosidade, deverão ser objecto de normas penais incriminadoras, como sucede já com a condução sob a influência do álcool. Por isso também que a matéria deva ser objecto de legislação especial, não obstante a consagração no Código do princípio da obrigação de submissão aos testes de detecção que venham a ser estabelecidos: (sublinhado agora).
Afigura-se claro que o legislador se reportava à distinção entre a condução sob a influência do álcool e a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou de substâncias de efeitos análogos. Não parecia duvidar-se de que no primeiro caso existia já lei penal incriminadora.
Na discussão da Proposta de Lei nº 62/VI na Assembleia da República (8) o tema da condução sob efeito do lcool é encarado expressis verbis.
Ao fazer a apresentação da Proposta de lei, o Governo, através do Ministro da Administração Interna, começou por sublinhar a gravidade do problema da segurança rodoviária em Portugal (9).
O nosso País estará na cauda de 22 países seleccionados adrede, nas estatísticas comparadas.
Disse a certa altura:
«Chamo ainda a atenção para o facto de termos mesmo elaborado alguma legislação, como a relativa à condução sob influência do álcool .. que nos pareceu urgentíssima. Surge agora a proposta do Código da Estrada:.
Adiante punha o acento tónico no seguinte: «O grande instrumento é constituído, sem dúvida, pelas sanções:.
Ao salientar os aspectos da velocidade e do álcool, disse sobre este:
«Outra grande questão é a condução sob o efeito do álcool. Prevemos que a taxa de 0,5 dê origem a uma coima e a de 0,8 a essa coima em dobro e que a taxa de 1,2, como aliás está previsto no Código Penal (10), constitua um crime, sujeito a outro tipo de penas para além das pecuniárias. Se consultarmos para este efeito ... os dados de 18 países, verificaremos que: em seis deles existe o limite de 0,5, como em Portugal, mas com a diferença de em quatro desses seis países, constituir crime o facto de um condutor ser detectado com uma taxa de 0,5; que em 11 países a taxa é de 0,8, com a diferença de em sete desses 11 a de 0,8 constituir crime; que num país a taxa é de 0,2, que já constitui crime. Penso, assim, que ficando onde ficámos, ou seja, nos 0,5 com coima, nos 0,8, com coima agravada e nos 1,2, com crime, situamo-nos claramente na tendência europeia nesta matéria:
(sublinhados agora).
Mais acrescentava dos resultados positivos das medidas recentes, de 1992 (11), contra a condução sob a influência do álcool, eventualmente credoras da descida da taxa de mortalidade na estrada, nesse ano e em 1993.
Praticamente sem alterações a Proposta de lei foi aprovada (12).

4

Para obter uma visão mais integrada importará conhecer o que dispõe, em matéria conexa, o Código Penal vigente e o Código da Estrada de 1954, bem como a lei de autorização legislativa respeitante à revisão do Código Penal.

4.1Como é sabido, de acordo com o artigo 58º do Código da Estrada de 1954, a responsabilidade pelos crimes cometidos nas vias públicas, no exercício da condução de veículos, é exercida nos termos gerais da lei penal, com as modificações constantes do seu Capítulo II, onde surgem algumas regras específicas sobre autoria moral, cumplicidade, medida da pena, enfim, sobre concorrência de culpas.
No artigo 59º é punido o homicídio negligente se verificado com culpa grave; no artigo 60º o abandono de sinistrados, vítimas de acidentes provocados pelo próprio condutor e a não prestação de socorros aos feridos encontrados nas vias públicas.
A condução em estado de embriaguez, ou a verificação de alcoolismo habitual tinham reflexos em termos de inibição temporária ou definitiva do direito de conduzir artigo 61º.
Sem embargo de uma relação congénita entre as formas gerais de exercício da responsabilidade criminal previstas no Código Penal e no Código da Estrada, até pela remissão global a que aludimos (13) , no preâmbulo daquele primeiro diploma (nº 24) disse-se expressamente:
«Deve ... afirmar-se que não se incluíram no Código os delitos antieconómicos, de carácter mais mutável, melhor enquadráveis em lei especial seguindo aliás, a tradição jurídica portuguesa e a ideia de que o direito penal tem uma natureza pragmática. Na mesma linha se devem colocar os delitos contra o ambiente.
Por idênticas razões não se incluíram as infracções previstas no Código da Estrada, cuja especificidade reclama tratamento próprio (sublinhado nosso). É claro que o combate a estes tipos de ilícito pode ser levado a cabo não só pelo direito penal secundário mas também pelo direito de mera ordenação social:.
O que não afasta de todo a eventual valia, no domínio estradal, de certas previsões do Código Penal, como a do homicídio por negligência (artigo 136º) ou de ofensas corporais por negligência (artigo 148º) (14).

4.2. Atentemos, de seguida, na Lei nº 35/94, de 15 de Setembro, que autorizou o Governo a rever o Código Penal. Percorrendo tal diploma atinamos com algumas disposições que ora interessa relevar.
Através da alínea d) do artigo 2º autoriza-se o Governo a «introduzir a pena acessória da proibição de conduzir e as medidas de segurança de cassação da licença de condução de veículo automóvel e da interdição de concessão de licença, particularmente adequadas à prevenção e repressão da criminalidade rodoviária:.
Consequentemente o novo artigo 69º do Código Penal «introduzirá a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, por um período fixado entre um mês e um ano: nº 34) do artigo 3º da Lei nº 35/94 para quem for condenado por crime cometido no exercício da condução com grave violação das regras de trânsito (15) ou por crime praticado com uso de veículo ou por este facilitada de modo relevante. Não se aplicará esta pena acessória se, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação da cassação ou da interdição da concessão de licença, a título de medida de segurança.
A medida de cassação da licença de condução de veículo motorizado suporá nº 65) da Lei de Autorização a condenação por crime praticado na condução de tal tipo de veículo ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, em caso de absolvição por falta de imputabilidade ou ainda quando, em face do facto e da personalidade do agente, houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie ou dever ser considerado inapto para a condução de veículos.
Evidentemente que a possibilidade de aplicação de tais medidas havia de encontrar reflexo na parte especial.
Vejamos o teor dos artigos 291º e 292º, tais como resultam do nº 147) da Lei nº 35/94:
«Artigo 291º
(Condução perigosa de veículo rodoviário)
1. Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva;
Ou b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária; e criar deste modo perigo para a vida ou a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3. Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
«Artigo 292º
(Condução de veículo em estado de embriaguez)
«Quem, pelo menos, por negligência, conduzir veículo com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal: (16).
No primeiro caso o tipo legal integra um crime de perigo concreto, no segundo o perigo é abstracto ou presumido.
Note-se que é incluída na previsão do futuro artigo 291º a condução sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou de efeito análogo, aspecto que há muito era preconizado.
Assinale-se ainda, tendo em conta esta fase evolutiva do direito criminal, que a «omissão de auxílio: é prevista do seguinte modo (17):
«1.Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2.Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3.A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou a integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível:.
Na «Exposição de motivos: que precede a Proposta de Lei nº 92/VI (18), apresentada à Assembleia da República, ainda se anotava: «Face à elevada sinistralidade rodoviária, entendeu-se conveniente agravar a pena do homicídio negligente, cujo máximo pode atingir os cinco anos, em caso de negligência grosseira: (19).
Da discussão havida no Parlamento (20) não resultaram outros subsídios dignos de realce para a matéria ora em apreço.

5

A questão suscitada pela consulta releva de saber se o Código da Estrada revogou (parcialmente) o Decreto-Lei nº 124/90, nomeadamente o artigo 2º deste.

5.1. Diz-se com alguma frequência que as normas jurídicas não são imortais, estando sujeitas a modificação ou extinção. Tal como na natureza, o mundo jurídico não é imóvel: o direito renova-se com os tempos (21). Tornar-se-á mesmo imprestável se não acompanhar o fluir da vida em sociedade, cristalizando ou ossificando, enfim, se perder, na expressão de LUHMANN, «a capacidade regeneradora da normatividade:(22).
Porém, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei afirma-se no artigo 7º do Código Civil.
Como se lê no nº 2 do mesmo preceito, «a revogação pode resultar ... da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a lei regular toda a matéria da lei anterior:.
E acrescenta-se no nº 3: «a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador:.
A revogação diz-se tácita quando deriva de «um conflito directo e substancial entre os preceitos das duas leis ou a circunstância de uma lei estabelecer um novo regime, completo, das relações em causa, regulando toda a matéria já disciplinada pela anterior, pois daqui se deduz a vontade do legislador de liquidar o passado, estabelecendo um novo sistema de princípios comple-to e autónomo (x).
Não é frequente a prática de o legislador proceder à revogação expressa. Bem pelo contrário.
Quando muito o legislador «revoga expressamente os preceitos que pretendia substituir, e quanto aos restantes deixa ao intérprete a verificação da sua incompatibilidade com os novos textos: (x1).
No fundo, o problema reconduz-se, por via de regra, a uma questão de interpretação, isto é, de descoberta da vontade legislativa. Pôr a claro o sentido e alcance da lei traduz-se não só em revelar o sentido que se abriga por detrás da expressão, como ainda eleger o verdadeiro de entre os vários que possam estar cobertos pela mesma.
A interpretação não pode ficar-se pelo sentido que de imediato resulta da lei, devendo socorrer-se dos diversos utensílios da hermenêutica, combinando-os e controlando-os numa tarefa de conjunto, de modo a descobrir o sentido legislativo da norma no todo do ordenamento jurídico.
A revogação pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei onde se manifesta uma vontade mais actual do legislador (lex posterior derogat priori).
Na revogação de sistema, embora não haja revogação nem expressa nem tácita (no sentido de as normas não serem incompatíveis), todavia, a intenção do legislador é a de erigir certo diploma no único e completo texto de regulamentação de certa matéria (23).
Pode a revogação ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação) consoante determinado diploma é substituído no seu conjunto ou apenas em parte.
Anote-se ainda que a revogação tácita apenas se verifica na medida da contraditoriedade: a lei precedente só é ab-rogada até onde for incompatível com a nova lei; onde tal contra-ditoriedade não tenha lugar é possível a coexistência e compenetração da lei anterior parcialmente revogada com a lei nova modificadora (24).

5.2. Mais uma referência ainda a propósito do nº 3 do artigo 7º do Código Civil.
Segundo VAZ SERRA, «o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior: (25).
Para OLIVEIRA ASCENSÃO, aquele nº 3 impõe uma presunção no sentido da subsistência da lei especial; isto é, se não houver uma interpretação segura no sentido da revogação, ou se uma conclusão neste sentido não for isenta de dúvidas, intervém a presunção e a lei especial não é revogada.
Este corpo consultivo (26) teve oportunidade de ponderar que na fixação da intenção do legislador, dada a palavra «inequívoca:, deve o intérprete ser particularmente exigente, atendendo ao texto da lei, sua conexão, evolução histórica, à história da formação legislativa, e sobretudo nortear-se pelo fim da disposição questionada e o resultado de uma e outra interpretação.
5.2. Extractemos, em breve síntese, do Parecer nº 61/91 (27) ainda no tocante às regras que devem balizar a interpretação das leis:
«O limite da interpretação é a letra, o texto da norma (...).
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal: (...).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático «compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o «lugar sistemático: que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico (...).
O elemento histórico compreende todas as matérias relaciona-das com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar:.

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Estamos agora em condições de enfrentar a questão posta.
Ao colocar em confronto o regime sancionatório da condução sob efeito do álcool, proveniente do Decreto-Lei nº 124/90, Decreto Regulamentar nº 12/90 e a Portaria nº 986/92 e as normas, sobre a matéria, agora incluídas no novo Código da Estrada, logo se alcança que não houve revogação de sistema ou por substituição.
No entanto, não oferece dúvida que a parte respeitante às anteriores contravenções (artigo 3º) ficou revogada no que toca à sua «transformação: em contra-ordenações e respectivos efeitos.
Por outro lado, o novo Código da Estrada afirma claramente a obrigação de os condutores de veículos e demais utentes acidentados se submeterem às provas para detecção de possíveis intoxicações pelo álcool, estupefacientes, psicotrópicos e similares.
Entendemos, porém, sem hesitação, que a condução de veículo com ou sem motor, em via pública ou equiparada, sob a influência do álcool, prevista nos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90, com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, continua a ser punível criminalmente, por não terem sido revogados esses preceitos.
O que procuraremos demonstrar.

6.1. Porque, como se frisou, saber se uma norma ou normas estão ou não revogadas se traduz numa mera questão de interpretação, arrimar-nos-emos aos respectivos cânones fixados pela doutrina e pela lei, atrás mencionados.
Começando pelo elemento literal, não poderemos minimizar, desde logo, o teor dos nºs 4 e 5 do artigo 2º da Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, a qual autorizou a aprovação de um novo Código da Estrada.
Nos termos do nº 2 do artigo 168º da CRP, «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido e a extensão:... da autorização.
A autorização afere-se segundo um princípio de especialidade. Embora, por via de regra, a pormenorização da extensão da autorização não vá ao ponto de consubstanciar um projecto de futuro decreto- lei, ela deve descer a uma orientação política suficientemente precisa nos seus traços essenciais. E será assim tanto mais quanto se trate, num diploma de disposições várias (algumas delas de conteúdo não abrangido pela reserva relativa de competência da AR), de matéria dessa reserva, como é o caso da definição de crimes, penas e medidas de segurança e respectivos pressupostos artigo 168º, nº 1, alínea c). Então, por exemplo, não basta que a AR autorize a modificação dos tipos legais de crimes e das penas mas tem de especificar o sentido, ampliativo ou restritivo, e se as penas devem aumentar ou diminuir (28).
O Governo estava sujeito à observância estrita daqueles nºs 4 e 5 do artigo 2º acabados de citar, correndo o risco de violação da lei de autorização se tivesse alterado as disposições incriminadoras aí mencionadas, de maneira não conforme àqueles preceitos.
Ora, segundo esse nº 4, o Governo ficou autorizado a proceder «poderá proceder: à revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de regras estradais, desde que não alterasse os tipos de crime nem agravasse os limites das sanções (redacção final resultante da proposta do PSD).
Atentando no nº 5 seguinte, tudo leva a crer que a AR se referia aos tipos legais de crimes previstos no Código da Estrada de 54, isto é, ao homicídio com culpa grave (artigo 59º) e ao abandono de sinistrados (artigo 60º).
Quiçá perante a revisão do Código Penal que se encontra em curso, o legislador terá acabado por não usar dessa faculdade (não era uma injunção).
Especificamente quanto às normas penais incriminadoras rela-tivas à condução sob influência do álcool constantes do Decre-to-Lei nº 124/90, aquele nº 5, usando a mesma fórmula «poderá proceder: igualmente autorizou o Governo a rever tais normas e a alargar os pressupostos de punição à condução sob influência de estupefacientes e similares, mas observando os limites máximos da punição estabelecidos nesse decreto-lei.
Como atrás anotámos, a redacção destes nºs 4 e 5 parecia apontar para diplomas autónomos «visando a sua (dos futuros diplomas, dizemos nós) adaptação às normas do Código da Estrada:.
No entanto, também no caso do nº 5, o Governo entendeu não usar a faculdade concedida pela AR, por certo baseado na mesma razão da reforma em curso do Código Penal onde tais normas criminais, numa feição alargada a situações que extravasam da própria circulação rodoviária, estavam previstas (29).
Logo, as disposições criminais do Decreto-Lei nº 124/90 não foram revogadas, pois que só se previa ou a sua revisão ou o alargamento dos pressupostos de punição à condução sob o efeito de estupefacientes, psicotrópicos ou similares. Uma vez que isso não sucedeu mantêm-se em vigor.
E do texto do artigo 2º do Decreto-Lei nº 114/94 (que aprovou o Código da Estrada) não se pode extrair o argumento de que foi revogada a legislação complementar (incluindo, portanto, aquele Decreto-Lei nº 124/90, que se opunha às disposições do novo Código pela simples razão de que nele não se prevê qualquer disposição de natureza criminal. Por outro lado, da
Lei (de autorização) nº 63/93 parece ressaltar com clareza que o novo Código da Estrada só absorveria a matéria das contra-ordenações artigo 2º, nº 2, alíneas a) e b) e que os ilícitos criminais atinentes
à violação das regras de trânsito ou à condução sob influência do álcool ou substâncias similares se mantinham enquanto não houvesse revisão ou substituição das normas vigentes.

6.2. Passemos ao elemento sistemático.
Assume aqui particular relevo a evolução que, entretanto, se perfila na área da legislação penal geral.
É comummente entendido que um Código Penal só deve inserir aquelas disposições ou tipos legais que se encontrem indiscutivelmente sedimentados no pulsar da comunidade social como infracções com um elevado grau de estabilidade e consenso. Para saber por onde passa a fronteira não é fácil encontrar sensores fidedignos para além do que pensam os representantes da comunidade no Parlamento.
Ora o futuro Código Penal, na sua versão revista, vai inserir os crimes de «omissão de auxílio: manifestamente mais amplo que o «abandono de sinistrados: , a «condução perigosa de veículo rodoviário: (a abranger a condução sob efeito do álcool, estupefacientes e substâncias similares) e a «condução de veículo em estado de embriaguez:.
Flagrante, sem dúvida, que nos encontramos numa fase evolutiva desta legislação; mas também que o legislador entende «consolidados: os perigos de certos comportamentos em termos tais que lhes vai conceder «dignidade: de inclusão numa compilação que, por sua natureza, demanda estabilidade, ou seja, garantia de não ficar sujeita a flutuações frequentes.
O momento temporal coetâneo em que se procede à discussão parlamentar do Código da Estrada e da revisão do Código Penal fazem naturalmente pressupor que se tinham presentes as disposições de um e outro, designadamente quando se entrelaçavam em certos domínios.
Por isso que se compreenda a moderação demonstrada pelo legislador do Código da Estrada em não ter usado da autorização legislativa no que toca aos nºs 4 e 5 do citado artigo 2º da Lei nº 63/93, sem que aliás daí adviesse prejuízo para os valores defendidos pelo sistema jurídico, na medida em que as leis vigentes não precludiam o essencial dos interesses em causa e podiam aguardar a sua revisão e substituição pelo Código Penal.
Se não fosse assim, deparar-se-ia com duas contradições insanáveis, na área estrita da matéria sob consulta.
Por um lado, enquanto se brandia a importância e valor da severidade das sanções como meio preventivo e repressivo de actuação contra a sinistralidade rodoviária da qual o nosso País sai como péssimo exemplo amolecia-se o tecido das sanções criminais num capítulo geralmente conhecido como dos mais perigosos (ainda que apenas pelo período que medeia entre a entrada em vigor do Código da Estrada e a próxima vigência do Código Penal).
Por outro, cair-se-ia num hiato legislativo para o qual não se vislumbra qualquer explicação plausível (se se pode dizer que resta a aplicação da contra- ordenação, uma vez que a TAS seja superior a 0,8g/l, não se podem esquecer as invocadas diferenças de natureza e efeitos jurídicos) (30).
6.3. Os trabalhos preparatórios da emissão do Código da Estrada e, em particular, a discussão havida na AR, apontam igual e decididamente no sentido da manutenção da vigência dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90.
Nemo discrepante sobre as afirmações do Ministro da Administração Interna quando reiterava a ideia de que a condução de veículos com TAS igual ou superior a 1,2g/l era sancionada continuava a ser sancionada criminalmente.
Discurso esse que, como já se salientou, se tornaria de todo incongruente ao advogar-se o tom de severidade e o seu reflexo na conduta dos condutores e, do mesmo passo, se diminuísse a sanção correspondente (ainda que por um período transitório).
Quebrar-se-ia a unidade e a coerência do sistema, no qual cada norma deve inserir-se harmoniosamente.
Se nos voltarmos para a ratio legis, para a finalidade a atingir com as normas, também por aqui se compreenderá que o legislador não desejasse aliviar o peso das sanções, numa altura em que o País apresenta uma taxa de acidentes de viação comparativamente «vergonhosa:, como se disse na AR.

6.4. Poderíamos seguir, ainda que com alguma dúvida metodoló-gica uma outra via de raciocínio: o Decreto-Lei nº 124/90, ao lidar no campo específico da condução relacionada com a ingestão de bebidas alcoólicas, configurar-se-ia como uma lei especial perante o Código da Estrada anterior. Sendo assim, a lei geral, o novo Código da Estrada, não revoga a lei especial a não ser que outra seja a intenção inequívoca do legislador.
Tal inequivocidade não se verifica. Bem pelo contrário, os sinais colhidos apontam para que as previsões e sanções criminais constantes daquela «lei especial: saíram intocadas da revisão operada pela lei geral.
6.5. Debrucemo-nos sobre mais.
Contraditar-se-á que muito simplesmente nos encontramos em presença de uma sucessão de leis no tempo: a condução sob influência de álcool numa TAS igual ou superior a 1,2g/l, antes considerada um crime passou agora a contra-ordenação abrangida pelo disposto no nº 2 do artigo 87º do Código da Estrada.
Sendo a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,8g/l a sanção (agravada), seria a mesma, independentemente de a TAS se situar acima da percentagem de 1,2g/l. Portanto, a descriminalização havida não significava a ausência de sanção pois subsistia a coima.
Aplicando-se o princípio da lei mais favorável nº 4 do artigo 2º do Código Penal, nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (para as coimas), e nº 4 do artigo 29º da Constituição havia que punir segundo a coima correspon-dente à contra-ordenação, porventura deixando insancionáveis as condutas levadas a cabo no domínio da lei anterior (31).
Só que esta visão passaria em claro por sobre toda a argumentação expendida no intuito de demonstrar que não existiu revogação dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90. E porque não houve sucessão de leis no tempo, nesta matéria em concreto, não há que aplicar qualquer princípio de lei mais favorável ou antever uma situação de descriminalização.

7

Do exposto se conclui:
1. A condução de veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, sob influência do álcool, apresentando o condutor uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l é punida nos termos dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril;
2. As disposições referidas não foram revogadas pelo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio.




(1)Ofício nº 75/GCC-Pº nº 14.4, de 3.10.94.
(2)Nos termos do artigo 8º do Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, a entrada em vigor do Código da Estrada, em 1 de Outubro de 1994, reporta-se somente aos artigos 1º a 3º. O artigo 4º refere-se à existência de um registo individual de condutores, organizado em sistema informático e dependente de diploma próprio. O artigo 5º respeita à fiscalização da condução sob influência do álcool, em termos de desinteresse para a consulta.
Dispõe o artigo 6º sobre regulamentação diversa a publicar pelo Governo a propósito de vários artigos que expressamente menciona. Acrescenta-se, porém, no artigo 7º seguinte que até à entrada em vigor dessa nova regulamentação «serão aplicáveis as disposições vigentes, na medida em que não contrariem o que nele (Código da Estrada) se dispõe:.
Dando sequência à regulamentação foi publicado o Decreto-Lei nº 190/94, de 18 de Julho, sobre sinalização, ordenamento e fiscalização do trânsito, habilitação para conduzir e homologação de veículos (para entrar em vigor também em 1 de Outubro), as Portarias nºs 851/94, 849/94, 850/94, todas de 22 de Setembro e Portaria nº 881-A/94, de 30 de Setembro (Suplemento). Destas, a primeira aprovou o uso do cinto de segurança pelo condutor e passageiros de veículos automóveis, a segunda, os limites de peso e dimensão dos veículos, a terceira, as características das luzes dos veículos, tendo entrado todas em vigor na mesma data do Código da Estrada, a última sobre normas punitivas do RCC e sinais de trânsito. Havia sido publicada anteriormente a Portaria nº 748/94, de 13 de Agosto, que aprovou o «Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros:.
(3)A Lei nº 3/82, de 29 de Março, sancionava os condutores que se apresentassem a conduzir veículos com e sem motor sob influência do álcool - alcoolemia igual ou superior a 0,8g/l mediante inibição da faculdade de conduzir e multa, o que apontava para a existência de uma contravenção.
(4)A regulamentação veio a ser vertida no Decreto Regulamentar nº 12/90, de 14 de Maio. Aí se consignou, no que ora concerne, que a detecção da presença de álcool no sangue se faz por meio de analisadores qualitativos ou quantitativos do ar expirado, sendo a taxa de álcool determinada ou por analisador quantitativo de ar expirado ou por métodos biológicos, isto é, por análises de sangue ou de urina (artigo 1º). O sujeito tem direito ao exame de contraprova, mais se determinando sobre custos, imobilização da viatura, e demais formalismo de garantia de segurança e rigor da prova.
Complementarmente, a Portaria nº 986/92, de 20 de Outubro, rectificada no DR, I Série-B, de 31.12.92 (9º Suplemento), especificou o método de medida do doseamento de álcool no sangue (oxidação electroquímica em célula de combustível), e em caso de recurso (cromatografia), quais os laboratórios hospitalares dos serviços de urgência autorizados a efectuar as análises, tabela de preços e impressos a utilizar.
(5)Concedida pelo período de 180 dias. Embora o Código da Estrada tenha sido publicado fora daquele prazo, a sua aprovação em Conselho de Ministros teve lugar dentro do mesmo (10 de Fevereiro de 1994).
Não é líquida a posição da doutrina sobre o momento em que se deve considerar perfeita, completa, a emissão do diploma objecto de autorização legislativa para efeito de contagem do prazo de duração a que se refere o nº 2 do artigo 168º da CRP: o da sua publicação, o da promulgação ou da referenda, ou o da aprovação (final) em Conselho de Ministros (porventura com mais rigor o da recepção pelo Presidente da República para efeito de promulgação) cfr. JORGE MIRANDA, Autorizações legislativas in «Revista de Direito Público:, Ano I, Maio de 1986, nº 2, pág, 18, maxime, nota (46) e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed.,
Coimbra, pág. 179.
Cfr. ponto 3.1. do Parecer nº 65/84, de 10.10.85, inédito.
(6)Também o artigo 147º registo individual do condutor aceita a existência de crimes e contra-ordenações relacionados com o trânsito rodoviário.
(7)Publicada no «Diário da República:, II Série-A, nº 38, de 5.06.93, pág. 699.
No DAR, II Série-A, nº 45, de 1.07.93, publica-se uma proposta de alteração (do PSD) ao nº 4 do artigo 2º, na sua parte final, que redundou na redacção actual.
Dizia-se na Proposta de lei: ... «desde que não sejam agravados os limites das sanções aplicáveis:, o que foi substituído, por força daquela proposta de alteração, por «... desde que não sejam alterados os tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis:.
(8)Cfr. DAR, I Série, nº 90, de 1.07.93, págs. 2923 e segs. V. ainda o Diário, I Série, nº 92, de 3.07.93 (votação na generalidade).
(9)No ano de 1992 terão ocorrido, em acidentes de viação, 2458 mortes, 11.500 casos de feridos graves, e 60.000 de feridos ligeiros.
(10)Seria uma referência ao projecto de revisão do Código Penal e não ao vigente Código Penal.
(11)De 1992 é, como vimos supra, nota (4) , a Portaria 986/92, que regulamentou alguns aspectos do regime sancionatório da condução influenciada pelo álcool.
(12)Com votos a favor do PSD e CDS-PP, abstenção do PS, do PCP, de Os Verdes e de um deputado Independente DAR, I Série, nº 92, de 3.07.93, pág. 3055.
(13)Nos termos do artigo 8º do Código Penal vigente, as suas disposições são de aplicação subsidiária aos factos puníveis pela legislação penal de carácter especial, salvo disposição em contrário.
Cfr. também os artigos 86º a 88º.
(14)Excede o âmbito da consulta saber em que medida permaneceram em vigor anteriores disposições penais do Código da Estrada já que a ausência de uma revogação expressa e a referida fórmula tabelar do artigo 2º do Decreto-Lei nº 114/94 deixam algum campo para a interpretação.
(15)Já vimos que a condução sob influência do álcool é classificada pelo novo Código da Estrada de infracção grave e muito grave.
(16)Aos factos ilícitos cometidos em estado de embriaguez, ou seja, sem relação com a condução de veículos continuará a referir-se uma disposição semelhante à do actual artigo 282º do Código Penal, mas com uma sensível agravação da pena hoje cominada.
(17)Trata-se do artigo 200º, inserido no nº 118), do artigo 3º da Lei de Autorização.
Disposição bem mais ampla que a do artigo 60º do Código da Estrada de 1954 (artigo 60º).
(18)Publicada no DAR, II Série-A, nº 24 (Suplemento), de 24.02.94.
(19)Correspondentemente, de acordo com o nº 91) do artigo
3º da Lei nº 35/94, deverá estabelecer-se no «diploma autorizado:, «em alternativa, a pena de prisão até 3 anos ou a pena de multa e elevar a pena de prisão até 5 anos para a negligência grosseira:.
(20)Cfr. DAR, I Série, nº 85, de 30.06.94; DAR, I Série, nº 97, de 14.07.94 aprovação da lei de autorização, em votação final global, após rejeição de requerimentos de avocação pelo Plenário, de vários tipos (votos a favor do PSD e PSN, votos contra do PS,
PCP, CDS-PP, Os Verdes e dois deputados Independentes; DAR, II Série-A, nº 53, de 14.07.94 relatório e texto final da CACDLG, propostas de alteração e declarações de voto.
(21)Seguiremos de perto a doutrina citada nos Pareceres nºs 12/91, de 24.04.91, 37/91, de 11.07.91 e 38/92, de 10.03.93, pendentes de homologação, e considerações neles produzidas.
(22)L'unité du système juridique, in «Archives de Philosophie du Droit:, Tome 31, SIREY, 1986, pág. 188.
(x)PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª ed. I vol., pág. 45. Ibidem, junto de F. FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, 3ª ed., Coimbra, 1978, pág. 194.
(x1) OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito Introdução e Teoria- Geral, 4ª edição, «Verbo:, 1987, págs. 237 e segs..
(23)CASTRO MENDES, in Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1984, págs. 114 e segs..
(24)FRANCESCO FERRARA, op. cit., pág. 193.
(25)«Revista de Legislação e de Jurisprudência:, ano 99º, pág. 334.
(26)Cfr. Parecer nº 173/80, de 9.04.81, publicado no «Boletim do Ministério da Justiça:, nº 305, pág. 164.
(27)De 15.05.92, publicado no «Diário da República:, II Série, nº 274, de 26.11.92 (pontos 5.2.1. e 5.2.2.).
(28)Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 678, ponto XXVIII.
(29)A Proposta de lei com vista à revisão do Código Penal é publicada no DAR, II Série, de 24.02.94, tendo a discussão da autorização legislativa do Código da Estrada ocorrido em meados de 1993. Todavia, já eram conhecidos os trabalhos de revisão do Código Penal, nessa parte. E a autorização relativa ao Código da Estrada só caducou em Fevereiro de 1994.
(30)Repare-se que nos termos do artigo 159º do CE se remete para «legislação especial: o procedimento de fiscalização de álcool, estupefacientes e similares.
No entanto, a condução de veículo sob influência de estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes (que não deixam de ser, pelo menos em parte, substâncias psicotrópicas) é enviada para «diploma próprio: nº 3 do artigo 87º. Não deixa de se notar, de um lado, a preocupação de equiparar a condução sob efeito de narcóticos ou substâncias psicotrópicas à condução sob influência do álcool mas, de outro lado, «desequipará- la:, de algum modo, em termos criminais cfr. a não inclusão no artigo 292º da revisão do CP e o nº 4 deste artigo 87º do CE..
(31)Numa linha em que se aceita que entre o ilícito penal de justiça e o ilícito de mera ordenação social existe uma diferença de natureza e não apenas de grau, à míngua de disposições de direito transitório e porque o legislador opta por um critério estritamente formal (artigo 1º, nº 1 e artigo 2º, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), consagrando «um princípio exasperado de legalidade que não se satisfaz com a punibilidade do facto à luz dos regimes sancionatórios previstos em leis anteriores mas, além desse pressuposto, exige a punição com sanção de determinada espécie (coima):, concluiu-se, em despacho de 1.10.94 de Sua Excelência o Procurador-Geral da República, não ser possível «punir como contra-ordenação o facto descrito e punido por contravenção ao tempo da sua prática:. Consequentemente foi determinado aos magistrados do Ministério Público que considerassem despenalizadas as contravenções previstas no Código (da Estrada) anterior e diplomas complementares, o que conduz à extinção do procedimento:.
Anotações
Legislação: 
DL 124/90 DE 1990/04/14 ART1 ART2 ART3.
L 63/93 DE 1993/08/21 ART1 ART2.
CE94 ART2 ART87 ART135 ART138 ART139 ART148 ART149 ART150 ART151 ART158 ART159.
CE54 ART58 ART59 ART60 ART61.
CP82 ART136 ART148.
L 35/94 DE 1994/09/15 ART2 ART3 N34 N65 N147.
CCIV66 ART7.
Referências Complementares: 
DIR CRIM * DIR ESTRAD.
Divulgação
Número: 
DR287
Data: 
14-12-1994
Página: 
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