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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
126/1990, de 24.04.1991
Data do Parecer: 
24-04-1991
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério do Plano e da Administração do Território
Relator: 
HENRIQUES GASPAR
Descritores e Conclusões
Descritores: 
AUTARCA
PRONUNCIA
PROCESSO PENAL
SUSPENSÃO DO EXERCICIO DE FUNÇÕES
AUTARQUIA LOCAL
ORGÃO
CARGO POLITICO
CRIME DE RESPONSABILIDADE
MANDATO POLITICO
HIERARQUIA
PERDA DE MANDATO
PODER DISCIPLINAR
TUTELA ADMINISTRATIVA
Conclusões: 
1 - O Estatuto Disciplinar dos Funcionarios e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n 24/84, de 16 de Janeiro, aplica-se nos termos do artigo 1, ns 1 e 2 aos funcionarios e agentes da administração que não tenham estatuto especial;
2 - O exercicio do poder disciplinar, em razão da competencia para a acção disciplinar e para a aplicação de sanções, pressupõe, nos termos do artigo 2, ns 1 e 2, 17 e 18 do Estatuto Disciplinar, a existencia de uma relação de hierarquia;
3 - Os titulares eleitos dos orgãos das autarquias locais exercem um mandato de natureza politica, constituido atraves de sufragio universal e directo, e no exercicio dos cargos são independentes, não dependem de outros orgãos, nem estão subordinados a quaisquer ordens ou instruções;
4 - Não se integram, no lado passivo, numa relação de hierarquia, não estando sujeitos a procedimento disciplinar;
5 - Os titulares dos orgãos das autarquias locais apenas estão sujeitos, por ilegalidades cometidas no exercicio dos respectivos cargos, a sanção de perda de mandato, prevista no artigo 9 da Lei n 87/89, de 9 de Setembro, aplicavel segundo processo proprio previsto no artigo 11 deste diploma;
6 - Não lhes e, pois, aplicavel a suspensão de funções prevista no artigo 6 do Estatuto Disciplinar em consequencia de pronuncia, transitada em julgado, em processo criminal;
7 - A suspensão de exercicio de funções de titular de orgão de autarquia local pode ser decretada, como medida de coacção nos termos do artigo 199, n 1 do Codigo de Processo Penal, quando se revele adequada e proporcionada as finalidades do processo, em caso de crime de responsabilidade previsto na Lei n 34/87, de 16 de Julho, punivel com prisão de maximo superior a 2 anos;
8 - A tutela administrativa sobre as autarquias locais apenas pode ser exercida nos quadros, nos termos e formas previstos directamente na lei;
9 - O Ministerio do Planeamento e da Administração do Territorio ou qualquer dos respectivos serviços designadamente a Inspecção-Geral da Administração do Territorio, não podem, por não se integrar na competencia tutelar, determinar quanto a titular de um orgão de uma autarquia a execução de uma decisão judicial que aplique medida de coação prevista no artigo 199, n 1 do CPP, ou que tenha julgado aplicavel a suspensão prevista no artigo 6 do Estatuto Disciplinar.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Secretário de Estado da
Administração Local e Ordenamento do Território,

Excelência:




I

O Senhor Inspector-Geral da Administração do Território, em exposição dirigida a Vossa Excelência, salientou alguns casos em que os Tribunais têm notificado a Inspecção-Geral ou solicitado ao Ministério da Tutela a execução da decisão de suspensão do exercício de funções públicas dos membros das autarquias locais como efeito da sua pronúncia proferida em processo crime, com fundamento no disposto no artigo 6º do Estatuto Disciplinar (1.

Tendo-se suscitado, porém, dúvidas sobre a matéria, e considerando o melindre das situações referidas na exposição, "e que irão surgir cada vez mais no futuro", o Senhor Inspector-Geral propôs que fosse solicitado parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no sentido de serem esclarecidos as seguintes questões:
1- "Poderão os titulares dos órgãos representativos das autarquias locais ser suspensos do exercício das suas funções de autarcas como efeito da sua pronúncia, transitada em julgado, proferida em processo crime, com fundamento nos artigos 378º do Código de Processo Penal de 1929, 6º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, ou 199º do actual Código de Processo Penal?"
2- "Em caso afirmativo, poderá a execução de tal suspensão ser solicitada pelo Tribunal competente à Inspecção-Geral da Administração do Território ou ao Ministro do Planeamento e da Administração do Território ou à entidade governativa em quem tiver delegado a sua competência da parte da tutela administrativa que detém sobre as autarquias locais?"
Vossa Excelência, concordando com a proposta, submeteu a questão a este Conselho, cumprindo, assim, emitir parecer.

II

1. A melhor compreensão das questões formuladas aconselha alguma referência breve às situações concretas invocadas.

Num caso, pronunciados vários arguidos, entre os quais o presidente e um vereador a tempo inteiro de uma câmara municipal além de vários funcionários da autarquia, determinou-se nesse despacho a "suspensão preventiva de funções públicas exercidas", nos termos e de acordo com o artigo 378º do Código de Processo Penal de 1929 (2(3.

Em outra hipótese, pronunciados vários arguidos, entre eles um presidente de câmara municipal, determinou-se em relação a este arguido, após o trânsito em julgado do despacho de pronúncia, o cumprimento do disposto no artigo 6º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (abreviadamente ED) - aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.

Impugnado o despacho de pronúncia com variada motivação, e designadamente quanto à inaplicabilidade ao presidente da Câmara do disposto no artigo 6º do ED, o Tribunal da Relação confirmou aquele despacho, nomeadamente no que respeita à aplicabilidade, no caso, de tal norma (4.

2. Dispõe o artigo 6º da ED, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro:
"1. O despacho de pronúncia em processo de querela com trânsito em julgado determina a suspensão de funções e do vencimento de exercício até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou à decisão final condenatória (5
2. Independentemente de forma de processo, o disposto no número anterior é aplicável nos casos de crimes conta o Estado.
3. Dentro de 24 horas após o trânsito em julgado do despacho de pronúncia ou equivalente, deve a secretaria do tribunal por onde corre o processo entregar por termo, nos autos, uma cópia ao ministério público a fim de este logo a remeter à competente administração, inspecção, direcção-geral ou autarquia local.
4. Os magistrados judicial e do ministério público respectivos devem velar pelo cumprimento de preceituado no número anterior.
5. A perda do vencimento do exercício será reparada em caso de absolvição ou de amnistia concedida antes da condenação, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar".

Determina-se, assim, nos nºs 1 e 3 desta disposição que a suspensão de funções é consequência necessária da pronúncia por crime punível com pena superior a três anos ou, nos casos do nº 2, por crime contra o Estado.

A razão de ser da norma e da consequência que prescreve costuma referir-se como ligada à defesa do prestígio do serviço público.

O fundamento desta suspensão do funcionário, como consequência do despacho de pronúncia consiste - tem-se entendido (6- "no princípio de interesse e ordem pública que, em defesa do prestígio dos serviços, impõem o afastamento dos serventuários atingidos por despacho de pronúncia, com trânsito em julgado, por certos crimes. Sendo um efeito que a lei faz derivar necessária, directa e imediatamente da pronúncia criminal, a sua aplicação, porque não traduz a efectivação de responsabilidade disciplinar, não está dependente da prévia instauração do procedimento disciplinar, nem de prévia audiência do arguido" (7.

Todavia, este fundamento tradicional da suspensão em consequência da pronúncia poderá ser questionado face a novas concepções vigentes em matéria de influência do desvalor ligado a certas penas ou crimes perante a relação funcional.

Na verdade (8, nenhum juízo de valor é feito, pelo juiz ou pelo superior hierárquico do funcionário pronunciado, acerca da conveniência ou inconveniência, para o processo ou para o serviço, da continuação do servidor no exercício de funções. E bem poderá acontecer que, não obstante a natureza automática da suspensão, com todos os prejuízos que pode produzir, o funcionário possa vir a ser absolvido ou, ainda que condenado, não demitido das suas funções.

Por outro lado, a medida não tem em conta os direitos e expectativas legítimas dos funcionários que podem ser gravemente efectados pelo impedimento do exercício de funções por tempo indeterminado.

A evolução da norma e a análise da respectiva disciplina no entendimento coordenado das mútuas relações entre as consequências penais de certos factos e a relação funcional, permitirá, porém, compreender melhor alguma aparente dissintonia na conformação actual de referido artigo 6º, nºs 1 e 2, do E.D.

A medida da suspensão automática de funcionário pronunciado em processo de querela vem já do Estatuto Disciplinar de 1943 (9- artigo 5º, no qual existia paralelismo entre as causas de suspensão e as causas de demissão do funcionário. O artigo 5º, com efeito, determinava a suspensão como consequência da pronúncia em processo de querela ou em processo correccional, pelos crimes previstos no § único do artigo 65º do Código Penal; a condenação por estes crimes ou em pena maior (a processar e julgar em processo de querela) implicava a demissão da função pública nos termos do § único do artigo 65º e do nº 1 do artigo 76º do Código Penal de 1886 (10.

O sistema manteve-se na vigência do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 191-D/79, de 25 de Junho (artigo 6º), com a diferença de que, no regime deste diploma, a suspensão deixou de acarretar a perda da totalidade do vencimento, limitando-se à perda ao vencimento de exercício.

Porém, a partir do Código Penal de 1982, a demissão da função pública não está ligada automaticamente à condenação em certa pena, nem decorre necessariamente da condenação por certo crime.
E, nesta medida, enquanto a suspensão face ao despacho de pronúncia, no sistema do vigente Estatuto Disciplinar, é determinada independentemente das consequências de nível penal que possam afectar a persistência do vínculo funcional que liga o agente do facto à Administração, o regime perdeu o equilíbrio na relação entre os efeitos provisórios e definitivos que justificava a suspensão no domínio dos Estatutos anteriores (11.

3. O artigo 378º do Código de Processo Penal de 1929 prescreve que "a pronúncia passada em julgado torna o acusado, que exercer funções públicas, inábil para as continuar exercendo até decisão final, salvo o direito de acesso".
Previa-se nesta disposição "um caso de suspensão preventiva do exercício e vencimentos, justamente como efeito disciplinar da pronúncia transitada em julgado em processo criminal" (12.
Esta disposição, todavia, perdeu espaço autónomo de aplicação perante o sistema de medidas provisórias dos Estatutos Disciplinares.
Com efeito, tanto no Estatuto de 1942 (artigo 5º), como nos diplomas de 1979 e 1984 (artigo 6º), a suspensão do funcionário ou agente em consequência do despacho de pronúncia, determinada nestas disposições posteriores, preenchia o possível espaço de aplicação da referida norma de processo, substituindo-se-lhe e reduzindo o respectivo âmbito: a suspensão não passou a ser consequência determinada em todos os casos de pronúncia, mas apenas em processo de querela e nos especificados casos de processo correccional.

De todo o modo, a disposição processual referida do CPP/29, como as normas sobre os efeitos de pronúncia contidas nos Estatutos Disciplinares, revestem um cunho disciplinar bem marcado e não relevam das finalidades do processo penal.

A 'inabilidade' para exercer funções públicas até decisão final, como a "suspensão de funções" até à decisão final absolutória, como resulta da própria natureza da medida (em que a nota saliente é colocada no domínio funcional), não está preordenada a satisfazer alguma necessidade ou exigência própria do processo penal - como o estão as medidas preventivas ligadas a necessidades de investigação, de prevenção de ausências, ou para assegurar a necessidade do comparecimento a actos do processo -, mas apenas se compreende por pressupostos ligados à própria relação funcional, podendo justificar-se, como aliás tem sido historicamente entendido (13, pela necessidade de preservar a dignidade e o prestígio dos serviços.
Relevando da situação funcional e das respectivas exigências em questões de dignidade e prestígio, a medida de suspensão em consequência da pronúncia assume a natureza de efeito disciplinar, operando no domínio desta relação (14.
O CPP/87 clarificou o campo de intervenção e aplicação da suspensão de funções como medida exigida no âmbito de processo penal, destinada a assegurar finalidades próprias deste domínio diverso do âmbito de actuação no domínio e na relação funcional e disciplinar.
Quando o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos - dispõe o artigo 199º, nº 1, do CPP/87 - o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se for caso disso, com qualquer outra medida legalmente cabida, a suspensão do exercício de função pública desde que a interdição do exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado. A suspensão é comunicada à autoridade administrativa normalmente competente para decretar a suspensão ou interdição respectivas.
A medida prevista nesta disposição - integrada no elenco das medidas de coacção - está subordinada aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, não podendo, assim, ser determinada senão quando se revele adequada, necessária e proporcionada na compatibilização dos interesses conflituantes da liberdade do indivíduo e das exigências decorrentes da eficácia da administração da justiça penal (15. Depende por isso de ponderação e decisão judicial na fase do processo em que se revele necessária e adequada.
A medida da suspensão prevista no Estatuto Disciplinar, diversamente, não depende de qualquer decisão judicial, tem a ver apenas com a formação da culpa resultando automaticamente do trânsito do despacho de pronúncia, à margem, por isso, de ponderação processual autónoma e fora das exigências pressupostas pelas necessidades ligadas à ponderação da eficácia da administração de justiça penal.
Separados, assim, os campos de intervenção, pode dizer-se que a suspensão prevista no artigo 6º do Estatuto Disciplinar, decorrendo embora como consequência de um acto relevante do processo penal, incide inteiramente no âmbito disciplinar e tem a ver com exigências funcionais e não com o processo penal.
Esta consideração assume natural relevo na definição e determinação do universo pessoal dos sujeitos aos quais, em razão da sua qualidade, a medida é susceptível de ser aplicada.

III

1. Num grupo social organizado (associação, município, Estado) há fins sociais a prosseguir que se distinguem dos fins individuais.

A prossecução dos fins do grupo social organizado é realizada por intermédio dos indivíduos que, segundo regras prefixadas em cada grupo, se diferenciam e que, em nome do grupo, praticam os actos necessários, próprios e adequados à realização dos fins colectivos.

Os indivíduos investidos nessas funções são titulares ou suportes dos órgãos do grupo social, estando funcionalmente encarregados de exprimir a vontade do grupo.

Segundo MARCELLO CAETANO (16, "o indivíduo chamado a exercer os poderes e deveres funcionais cujo complexo corresponde abstractamente a um órgão, sabe que se não confunde com este, que é seu mero suporte ou titular". O órgão é distinto dos indivíduos que o servem; existe independentemente deles, e "todos os servidores do mesmo órgão se empenham nos mesmos fins segundo regras ou normas de um estatuto que, embora possa sofrer algumas modificações formais através dos tempos, perdurará essencialmente idêntico enquanto o órgão subsistir".
"O órgão tende a transformar-se em instituição, ou seja num valor social despersonalizado e abstracto, representativo de uma ideia a realizar constantemente e traduzida em normas legais e costumeiras, que os indivíduos servem com as suas faculdades, vitalizando-o mas sem o absorver".
Numa pessoa colectiva é necessário distinguir entre os órgãos e as simples agentes.
Os órgãos tem por carácter específico competir-lhes manifestar uma vontade funcional imputável à pessoa colectiva; os agentes são meros colaboradores dos órgãos, executando trabalhos materiais (burocrata, técnico, operário, membro de força pública) ou preparando as suas decisões (17.
Segundo uma das classificações da teoria jurídico-orgânica, os órgãos podem ser hierarquizados e independentes.
"Chamam-se independentes (18os órgãos que manifestam a vontade funcional sem deverem obediência a ordens ou instruções de outros órgãos, regulando a sua conduta exclusivamente pelo interesse público ou pelos preceitos das leis. Chamam-se órgãos hierarquizados ou subordinados aqueles que estão sujeitos ao dever de acatar, na manifestação da vontade funcional, as ordens e instruções dadas por outros órgãos, que assim se afirmam seus superiores. A relação traduzida pelo poder de dar ordens e correspondente dever de obediência entre dois órgãos chama-se relação hierárquica".


2. A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais - artigo 237º, nº 1, da Constituição, que são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas - artigos 237º, 2º, da Constituição e artigo 1º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março.

No que respeita ao município, os órgãos representativos são a assembleia municipal, a câmara municipal e, facultativamente, o conselho municipal - artigo 30º do Decreto-Lei nº 100/84.

A câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, é o órgão executivo colegial do município e é eleito pelos cidadãos eleitores residentes na área do município - artigo 43º, nº 1 do Decreto-Lei nº 100/84.

Os titulares dos órgãos deliberativo e executivo das autarquias são eleitos por sufrágio directo pelo colégio eleitoral com a respectiva base territorial; a relação que se constitui nesta designação não releva de qualquer designação funcional, antes devendo ser considerada no âmbito da constituição e efeitos de um mandato político.
Esta relação constitui-se por acto eleitoral; o objecto do decorrente mandato político será o de atribuir àqueles que são investidos nessa relação na sequência da eleição (segundo trâmites processuais próprios) o direito de tomar, em nome de pessoa colectiva, as decisões necessárias à prossecução dos respectivos fins, sem necessidade de serem sancionadas por uma ratificação popular (19.
A eleição não constitui, porém, uma delegação de poderes, mas um modo de designação da titularidade dos órgãos; os poderes resultam da lei (das atribuições da pessoa colectiva e das competências dos órgãos fixadas na lei) e não dos eleitores, não recebendo, por isso, o titular eleito nem ordens nem instruções do colégio eleitoral (20.
A relação de mandato político constituída através da eleição tem, quanto aos titulares dos órgãos das autarquias, um conteúdo de inteira independência. Na prossecução das finalidades da pessoa colectiva apenas devem obediência aos imperativos legais, devendo proceder adequadamente à promoção dos interesses públicos que lhes são confiados.

3. Os titulares dos órgãos, designadamente do órgão executivo das autarquias, manifestam a vontade da pessoa colectiva e assumem, também, a superior direcção da respectiva estrutura administrativa.

Não dependem de qualquer outro órgão, no sentido em que não recebem ordens ou instruções, e não estão submetidos ao poder de direcção de outrém.
Conceitualmente, uma relação hierárquica pressupõe sempre, pelo menos, duas figuras: uma que chefia, comanda e dirige e outra (subalterna) que obedece (21.
A hierarquia pode, na verdade, conceber-se como modelo de organização dentro de cada pessoa colectiva, importando a estruturação desta em unidades e subunidades, por ordem decrescente de dimensão e competência em razão da matéria e do lugar (22.
Nos graus inferiores situam-se os serviços mais especializados, ou de âmbito territorial mais restrito, agindo sob a orientação e coordenação de organismos de nível superior, dotados de competências mais complexas.
a hierarquia dos serviços corresponde a das respectivas chefias, determinando uma correspondente hierarquização do pessoal e a superioridade hierárquica dos órgãos e agentes de grau superior sobre os de grau inferior.
O grau superior da hierarquia (onde está o superior que não é subalterno de ninguém) é ocupado pelo órgão da pessoa colectiva de direito público estruturado segundo o modelo hierárquico da organização vertical dos serviços.
O titular desse grau superior (o titular do órgão da pessoa colectiva) detém, consequentemente, todos os poderes típicos da relação de hierarquia, mas não está subordinado a qualquer dos correlativos deveras conceitualmente definidos no âmbito da relação desta natureza.
O poder típico da superioridade hierárquica é o poder de direcção, traduzindo-se na competência do superior para dar ordens e instruções tendentes a impor aos subordinados a prática dos actos necessários ao bom funcionamento do serviço ou à mais conveniente interpretação da lei, tendo por correlato passivo um dever de obediência (23.
Andam-lhe associados, em regra, outros poderes: de inspecção, de superintendência e disciplinar.

Este poder consiste na faculdade que o superior tem de punir os subalternos, por meio de sanções correctivas ou expulsivas, a fim de adequar a conduta dos agentes com o interesse dos serviços a que estão devotados (24.

4. O poder disciplinar, como o poder de inspecção e o poder de superintendência não são exclusivos da hierarquia (25(26. A lei, com efeito, atribui muitas vezes alguns deles independentemente de qualquer relação hierárquica. Por isso, o poder típico da relação hierárquica é o poder de direcção, e os restantes só serão hierárquicos quando atribuídos em conjunto com aquele (27.

Independentemente, porém, de considerações desta ordem, o âmbito pessoal, funcional e material da aplicação do Estatuto Disciplinar está directamente condicionado aos limites da relação de hierarquia: o poder disciplinar exercido no âmbito do Estatuto (a competência de acção e a competência de sanção) está directamente colimado aos limites funcionais e materiais próprios da relação hierárquica.

Com efeito, o artigo 1º, nº 1, logo afirma expressamente a aplicabilidade do Estatuto aos funcionários e agentes da Administração Central, Regional e Local, "pessoal" que é disciplinarmente responsável perante os superiores hierárquicos pelas infracções que cometa, conforme dispõe o artigo 2º, nº 1.

A concretização desta norma geral de competência fixada no quadro da relação de hierarquia consta dos artigos 17º do Estatuto, quanto aos funcionários e agentes da Administração Central e Regional, e 18º, quanto à Administração Local (28.
Esta definição do âmbito da aplicabilidade do Estatuto - universo dos sujeitos ao poder disciplinar e delimitação das competências respectivas - exclui, na vertente de sujeição, os titulares dos órgãos das autarquias locais.
Salientou-se que, pelo modo de designação e pela natureza do mandato eleitoral, esses titulares são independentes, estão apenas sujeitos à lei e à prossecução do interesse público, não estando subordinados no domínio do exercício das respectivas competências a directivas ou instruções de outrém.
Não estão, assim, sujeitos ao exercício de qualquer poder (direcção, superintendência, disciplinar) que pressuponha uma relação de hierarquia, como é o caso do exercício do poder disciplinar considerado e actuado no âmbito do Estatuto.
Nesta ordem de considerações, é-lhes inaplicável a medida prevista no artigo 6º do Estatuto Disciplinar.

IV

1. Os titulares dos órgãos das autarquias locais não estão, naturalmente, imunes à aplicação de sanções por actos ou omissões praticados no exercício do respectivo mandato.
A lei fixa, precisamente, um quadro tipificado de comportamentos, que determinam, na sequência de um processo definido, a aplicação de sanções materialmente apropriadas à natureza e especificidade de mandato que exercem.
Assim, nos termos do artigo 8º da Lei nº 87/89, de 9 de Setembro, (Tutela administrativa das autarquias locais e das associações de municípios de direito público), "a prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão autárquica pode determinar, nos termos previstos na lei, perda de mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos autárquicos, ou a dissolução do órgão, se forem resultado de acção ou omissão deste" (29.
Os titulares dos órgãos, podem, pois, estar sujeitos, nos termos definidos na lei, à perda de mandato.
A perda de mandato constitui o afastamento definitivo do exercício do cargo, resultante da violação de deveres inerentes ao exercício de cargo ou de facto ou situação a que a lei atribui esse efeito (30, e é expressamente qualificado na lei como sanção.

Diferencia-se tanto da suspensão de mandato - afastamento temporário do exercício de cargo, por período não superior a 365 dias no decurso do mandato, e sempre a pedido do interessado (artigo 72º do Decreto-Lei nº nº 100/84) , como da renúncia ao mandato - afastamento definitivo do exercício de cargo, mediante declaração escrita do interessado (artigo 71º do Decreto-Lei nº 100/84).
Aquela consequência, com semelhante conteúdo, constitui, assim, a única sanção prevista para os titulares dos órgãos eleitos das autarquias locais que afecta a consistência da relação de mandato constituída através de acto eleitoral pelo período de duração estabelecido na lei, assumindo-se como o ponto de convergência na ponderação dos interesses de liberdade e independência próprios de relação de mandato político, e da necessidade de prevenir a ocorrência de ilegalidades no âmbito da gestão autárquica e, igualmente, entre a autonomia das autarquias e as exigências a que procura responder o estabelecimento da relação de tutela.

2. Dispõe o artigo 9º da Lei nº 87/89, sobre a epígrafe de "perda de mandato":
"1- Perdem o mandato os membros dos órgãos autárquicos que:
a) Após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem conhecidos elementos supervenientes reveladores de uma situação de inelegibilidade já existente, mas não detectada previamente à eleição;
b) Sem motivo justificativo, deixem de comparecer a três sessões ou seis reuniões seguidas, ou a seis sessões ou doze reuniões interpoladas;
c) Incorram, por acção ou omissão, em ilegalidade grave ou numa prática continuada de irregularidades, verificadas em inspecção, inquérito, sindicância, e expressamente reconhecidas como tais pela entidade tutelar;
d) Pratiquem individualmente alguns dos actos previstos no artigo 13º da presente lei;
e) Após a eleição se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados ao sufrágio.
2- Perdem igualmente o mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções ou por causa delas, intervenham em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado quando:
a) Nele tenham interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa;
b) Por si, ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge; algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
c) Por si, ou como representante de outra pessoa, tenha interesse em questão semelhante à que deve ser decidida ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior;
d) Tenha intervindo como perito ou mandatário ou haja dado parecer sobre a questão a resolver;
e) Tenha intervindo no processo como mandatário o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
f) Contra ele, seu cônjuge ou parente em linha recta tenha sido proferida sentença condenatória transitada em julgado na acção judicial proposta por interessado ou pelo respectivo cônjuge;
g) Se trate de recurso de decisão proferido por si, ou com a sua intervenção, ou proferido por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas;
h) Não dê conhecimento ao órgão de que a matéria em apreciação lhe diz directamente respeito, ou aos seus parentes ou afins até ao 2º grau da linha colateral.
3- Constitui ainda causa de perda de mandato a verificação, em momento posterior ao da eleição, por inspecção, inquérito ou sindicância, de prática por acção ou omissão, de ilegalidade grave ou de prática continuada de irregularidades, em mandato imediatamente anterior exercido em qualquer órgão de qualquer autarquia.
4- (...)"
A competência para a decisão sobre a perda de mandato vem estabelecida no artigo 10º. Dispõe:
"Decisão de perda de mandato
1- A decisão de perda de mandato cabe aos tribunais administrativos de círculo, salvo o disposto no nº 3 do presente artigo.
2- O processo previsto no número anterior tem carácter urgente.
3- Nos casos referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo anterior a competência para decidir da perda de mandato cabe aos próprios órgãos autárquicos, sendo sempre a decisão precedida de audição do interessado, que deve pronunciar-se no prazo de 30 dias a contar da data em que lhe for notificado o resultado da acção inspectiva em que tal medida seja proposta."

O artigo 11º, por sua vez, define o regime de propositura (legitimidade e competência) e do processo das acções de perda de mandato. Interessa reter o conteúdo do nº 1:
"1- As acções para declaração de perda de mandato podem ser propostas a todo o tempo pelo Ministério Público, pelos ministros a que se refere o nº 1 do artigo 4º, por qualquer membro do órgão de que faz parte aquele contra quem for formulado o pedido e ainda por quem invoque um interesse directo, pessoal e legítimo em tal declaração, impendendo, porém, sobre o representante do Ministério Público competente o dever funcional de propor as acções no prazo máximo de dez dias após o conhecimento dos respectivos fundamentos." (31.

Finalmente, os membros de órgão autárquico que hajam perdido o mandato, não podem ser candidatos nos actos eleitorais destinados a completar o mandato interrompido, nem nos subsequentes que venham a ter lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo, em qualquer órgão autárquico. É uma consequência (inelegibilidade subsequente), prevista no artigo 14º, nº 1, da sanção de perda de mandato.

Retenha-se, neste momento, que o processo é judicial (salvo o caso do nº 3 do artigo 10º) e que não prevê qualquer suspensão de exercício do cargo.

3. A perda de mandato constitui, também, um efeito da condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das respectivas funções relativamente a titulares de cargos políticos, entre os quais se enumeram os membros de órgãos representativos de autarquia local - artigo 29º, alínea f), da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.

Nos termos do artigo 2º deste diploma, consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos nos artigos 7º a 27º, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.

A perda de mandato assume, assim, neste âmbito, diferente natureza. Não constitui uma sanção autónoma (nem estritamente política, nem especificamente disciplinar) aplicável consequencialmente no quadro da intervenção tutelar, onde se averiguem os factos que podem determinar o desencadeamento da respectiva acção, como no caso previstos no artigo 9º da Lei nº 87/89, mas antes se define como sanção penal acessória necessariamente ligada a uma condenação por crimes de responsabilidade como tal definidos na respectiva lei.

Nestes casos, a decisão é proferida em processo penal (aplicam-se as regras gerais de competência e de processo), sem especialidades - nomeadamente a previsão específica de qualquer suspensão - quanto aos membros de órgão representativo de autarquia local - artigo 32º da Lei nº 34/87.

Não se prevê, pois, como em relação a outros titulares, a possibilidade de suspensão em consequência de algum acto processual, nomeadamente o despacho de pronúncia ou equivalente, transitado em julgado.

Resta, quando for o caso, e perante ponderação judicial autónoma em face de exigências processuais adequadas a aplicação proporcionada das medidas de coacção definidas na lei de processo.

V

1. A natureza da relação de mandato político (cargo político) de que são titulares os membros dos órgãos eleitos das autarquias locais, a especificidade da natureza do cargo que exercem e a autonomia e independência que os subtraem a uma relação de hierarquia, afastam, como se salientou, os referidos titulares de âmbito pessoal e material de aplicação do Estatuto Disciplinar.

Em consequência, uma medida de feição funcionalmente disciplinar, ou cuja razão de ser se situa nessa área, como é a do artigo 6º do referido Estatuto, não será aplicável no âmbito do mandato autárquico.

A estes motivos de ordem sistemática, algumas considerações de natureza histórica e teleológica relevam no sentido da mesma conclusão.

O sentido de suspensão de funções prevista no Estatuto Disciplinar em consequência de pronúncia andava ligado, como se referiu, aos efeitos que, sobre a relação funcional, resultavam necessariamente da aplicação de penas de determinada natureza - a demissão. A suspensão era automaticamente determinada face à indicação de crimes cuja punição determinava a demissão ou suspensão do funcionário ou agente.

Desaparecida a produção de efeitos automáticos da condenação em certas penas, permanecem todavia os factos indiciados na pronúncia com trânsito em julgado por crimes de objectiva gravidade, que podem revelar a necessidade de apreciar autonomamente a repercussão sobre a relação funcional, no exercício do poder disciplinar (32.

Semelhante "ratio" do sistema não valerá inteiramente no caso de exercício de mandato de natureza política, em que não se prevê vinculação a um código típico de disciplina, com a previsão de comportamentos e uma escala de sanções, mas, fora do domínio dos crimes de responsabilidade, apenas a denominada sanção de perda de mandato, inserida sistematicamente nos quadros de uma relação de tutela, e dependendo de pressupostos (acções e omissões) tipicamente definidos.

2. O Decreto-Lei nº 371/87, de 6 de Outubro, alterou disposições penais relativas à punição do crime de corrupção, e corrigiu deficiências e preencheu lacunas do regime previsto, nesta matéria, no Código Penal.

Para os efeitos do diploma, e também para os efeitos dos crimes previstos nos artigos 420º a 423º do Código Penal, são, nos termos do artigo 4º, nº 2 do Decreto-Lei nº 371/83, equiparados a funcionários, entre outros, os titulares dos órgãos da administração autárquica regional e local.
A equiparação assim definida tem, todavia, o sentido e a amplitude que o diploma lhe define. É uma equiparação de contornos definidos, que não tem a ver com o estatuto, ou com o conteúdo da relação funcional, mas com a descrição típica de determinadas infracções penais em que a qualidade (determinada qualidade pessoal) do agente é elemento fundamental de tipo (crimes próprios) (33.

Não se poderá, pois, alargar a outros domínios que não sejam aqueles fixados no próprio diploma: considerar determinada qualidade para os efeitos de integração da qualidade pessoal exigida na descrição típica das infracções penais directamente referidas (34.

É certo que razões relevantes quanto à defesa do prestígio do cargo poderiam justificar, quanto aos titulares eleitos dos órgãos autárquicos, um regime semelhante ao referido artigo 6º do Estatuto Disciplinar.

Porém, os motivos já apontados afastam os referidos titulares do universo pessoal e material da aplicação do regime do Estatuto Disciplinar, e semelhante restrição não é concebível sem norma que directamente a imponha.

Sublinhe-se, ainda, neste ensejo, que, não se prevendo para os titulares dos órgãos autárquicos outra sanção por ilegalidades praticadas no exercício do mandato, além da perda de mandato, o processo correspondente tem natureza urgente (artigo 10º, nº 2 da Lei nº 87/89), assim se compatibilizando, na possível concordância prática, os valores inerentes ao prestígio de função e à máxima garantia imposta pela natureza do mandato que exercem.

Além de que, quando o crime tenha a ver com o exercício das funções, a ponderação autónoma de consequências perante a continuação do exercício do cargo deverá, como se salientou, ser feita no processo penal, no domínio da aplicabilidade das adequadas medidas de coacção.

VI

1. A administração pública autárquica encontra-se constitucionalmente prevista para ser estruturada segundo os princípios da autonomia e da descentralização (35.
Os artigos 6º, nº 1, 267º, nº 2, e 239º da Constituição estabelecem estes princípios, remetendo para a lei a fixação das atribuições e organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos.
A estas directivas fundamentais respondeu o legislador mediante um conjunto de diplomas, de que se destaca a "Lei das Autarquias Locais" com a mais recente expressão no Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, que tem como principal conteúdo a definição das atribuições das autarquias e da competência dos respectivos órgãos.
"Na delimitação do objecto e fins, como na imputação dos poderes indispensáveis à sua consecução, se buscou dar realização aos princípios da 'autonomia das autarquias locais e da descentralização da Administração Pública no quadro global da organização democrática do Estado' (do preâmbulo)".

"Não, portanto, a uma autonomia total ou a uma descentralização ilimitada que poderia redundar no caos administrativo ou, transmudando as autarquias como que em Estados dentro do próprio Estado, rapidamente degenerar na desagregação da unidade deste" (36.

A necessidade de impor limites ou correctivos à autonomia, visando atenuar os seus inconvenientes e harmonizar a actividade dos entes descentralizados com os interesses globais do Estado e da comunidade nacional é, por isso, uniformemente reconhecida.

Tais limites são de vária ordem e a própria Lei fundamental os prevê. Importa aqui aludir aos resultantes da tutela administrativa.

2. Entende-se por tutela administrativa "o poder conferido ao órgão de uma pessoa colectiva de intervir na gestão de outra pessoa colectiva autónoma - autorizando ou aprovando os seus actos ou, excepcionalmente, modificando-os, revogando-os ou suspendendo-os, fiscalizando os seus serviços ou suprindo a omissão dos seus deveres legais -, no intuito de coordenar os interesses próprios da tutela com os interesses mais amplos representados pelo órgão tutelar" (37.
Ou, noutra acepção, o "conjunto dos poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação" (38.
Segundo o critério do fim, concebe-se, pois, uma tutela que visa aferir da legalidade da decisão da entidade tutelada, da sua conformidade à lei (tutela de legalidade); ao lado de uma tutela que procura indagar do seu mérito, isto é, se a decisão, abstraindo da sua legalidade, é ou não conveniente ou oportuna, correcta ou incorrecta, dos pontos de vista administrativo, técnico e financeiro (39.
Segundo o conteúdo, interessa à economia do parecer referir a tutela inspectiva, traduzindo o poder de fiscalizar órgãos e serviços da pessoa colectiva tutelada, para o efeito de prescrever a aplicação de sanções por ilegalidade ou má gestão.
Princípio fundamental da relação tutelar traduz-se no princípio que não há tutela sem texto, nem tutela para além da lei, significando que toda a tutela há-de estar prevista na lei, designando a autoridade tutelar, definindo-lhe o conteúdo e a forma do respectivo exercício (40.

3. A tutela administrativa sobre as autarquias locais está, pois, prevista na lei, e nesta há-de estar concretamente definido o seu conteúdo e os modos e formas de exercício - princípio de tipicidade legal das medidas de tutela.
A Lei nº 87/89, de 9 de Setembro, concretiza o exercício da actividade tutelar sobre as autarquias locais, definindo-lhe um objecto de legalidade: verificação do cumprimento das leis e regulamentos por parte dos órgãos autárquicos e do funcionamento dos serviços das autarquias locais e associações de municípios, bem como na aplicação das medidas sancionatórias nos casos previstos nesse diploma - artigo 2º.
A verificação de cumprimento das leis e regulamentos realiza-se através de inspecções, inquéritos ou sindicâncias (artigos 3º e 4º), bem como através da recolha e análise de informações e esclarecimentos com interesse para a verificação do cumprimento das leis e regulamentos pelos órgãos e serviços das autarquias locais, e cabe ao Governo, sendo assegurada pelo Ministro das Finanças e pelo Ministro do Planeamento e da Administração do Território, no domínio das respectivas áreas de competência - artigo 5º, nº 1.
Nos termos do artigo 6º:
"Compete ao Governo determinar a realização de inspecções, inquéritos e sindicâncias aos órgãos e serviços das autarquias locais e associações de municípios, nos termos da lei, por sua iniciativa, sob proposta do governador civil, ou a solicitação dos órgãos autárquicos, entidades ou organismos oficiais ou em consequência de queixas fundamentadas de particulares devidamente identificados".

A aplicação de medidas sancionatórias concretiza-se através da promoção da decisão de perda de mandato dos titulares dos órgãos, nos termos já referidos, ou na dissolução dos próprios órgãos, por decreto do Governo, nos termos do artigo 13º (41.

Estando, assim, definidos na lei os modos e termos de exercício de tutela sobre as autarquias locais, neles não cabe a promoção directa, ou a determinação do cumprimento de qualquer ordem ou instrução dirigida aos órgãos autárquicos ou aos titulares desses órgãos por parte de um membro do Governo ou de qualquer órgão ou serviço dependente da administração central.

CONCLUSÃO:

VII

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões.
1ª - O Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, aplica-se nos termos do artigo 1º, nºs 1 e 2 aos funcionários e agentes da administração que não tenham estatuto especial;
2ª - O exercício do poder disciplinar, em razão da competência para a acção disciplinar e para a aplicação de sanções, pressupõe, nos termos do artigo 2º, nºs 1 e 2, 17º e 18º do Estatuto Disciplinar, a existência de uma relação de hierarquia;
3ª - Os titulares eleitos dos órgãos das autarquias locais exercem um mandato de natureza política, constituído através de sufrágio universal e directo, e no exercício dos cargos são independentes, não dependem de outros órgãos, nem estão subordinados a quaisquer ordens ou instruções;
4ª - Não se integram, no lado passivo, numa relação de hierarquia, não estando sujeitos a procedimento disciplinar;
5ª - Os titulares dos órgãos das autarquias locais apenas estão sujeitos, por ilegalidades cometidas no exercício dos respectivos cargos, à sanção de perda de mandato, prevista no artigo 9º da Lei nº 87/89, de 9 de Setembro, aplicável segundo processo próprio previsto no artigo 11º deste diploma;
6ª - Não lhes é, pois, aplicável a suspensão de funções prevista no artigo 6º do Estatuto Disciplinar em consequência de pronúncia, transitada em julgado, em processo criminal;
7ª - A suspensão de exercício de funções de titular de órgão de autarquia local pode ser decretada, como medida de coacção nos termos do artigo 199º, nº 1 do Código de Processo Penal, quando se revele adequada e proporcionada às finalidades do processo, em caso de crime de responsabilidade previsto na Lei nº 34/87, de 16 de Julho, punível com prisão de máximo superior a 2 anos;
8ª - A tutela administrativa sobre as autarquias locais apenas pode ser exercida nos quadros, nos termos e formas previstos directamente na lei;
9ª - O Ministério do Planeamento e da Administração do Território ou qualquer dos respectivos serviços designadamente a Inspecção-Geral da Administração do Território, não podem, por não se integrar na competência tutelar, determinar quanto a titular de um órgão de uma autarquia a execução de uma decisão judicial que aplique medida de coacção prevista no artigo 199º, nº 1, do CPP, ou que tenha julgado aplicável a suspensão prevista no artigo 6º do Estatuto Disciplinar.





_____________________________________________________
(1Exemplifica-se a situação através de duas decisões judiciais: despachos de pronúncia proferidos pelo Tribunal Judicial de Fronteira e do Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, este confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
(2Aplicável, por se tratar de processo iniciado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 87/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o novo Código de Processo Penal - artigo 7º, nº 1.
(3Transcreve-se, no ponto relevante, o teor do despacho:
"Após trânsito em julgado deste despacho e com fotocópia do mesmo, oficie à Inspecção-Geral da Administração Interna do Ministério da Administração Interna, ao qual os arguidos A..., B..., C..., D..., E..., este na qualidade de vereador a tempo inteiro da Câmara Municipal do concelho, F..., G..., H..., J..., L..., M... e N... se encontram vinculados por inerência do exercício de funções públicas que exercem nos serviços daquela autarquia, de que os mesmos são suspensos preventivamente de tais funções até decisão final, nos termos e de acordo com o disposto no artigo 378º do Código de Processo Penal."
"No mesmo sentido quanto à referida suspensão oficie-se ao Ex.mo. Presidente da Câmara Municipal de X."
(4Acórdão de 21 de Fevereiro de 1990 do Tribunal da Relação de Coimbra, junto com o expediente que acompanhou o pedido do parecer.
(5O nº 1 contém referências a categorias processuais entretanto desaparecidas com o Código de Processo Penal de 1987.
Processo de querela era aquele que correspondia aos crimes punidos com prisão por mais de três anos, ou demissão - artigo 63º do CPP/29, na redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro.
No CPP/87 existe apenas uma, única, forma de processo comum; o processo comum pode decorrer perante o juiz singular, o tribunal colectivo ou o tribunal do júri. O tribunal colectivo e o tribunal do júri intervêm em processos por crimes a que correspondam, em abstracto, pena de prisão superior a três anos (artigos 13º, 14º e 16º do CPP/87). Será a este tipo de processos que se aplicará, no domínio do CPP/87, o artigo 6º, nº 1 do ED. Cfr. VINICIO RIBEIRO, Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos, Direito Substantivo, Comentado, págs. 111-112.
(6Cfr. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de Abril de 1966, e MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, tomo II (reimpressão), 1980, pág. 843, e Parecer deste conselho nº 36/84, de 11 de Outubro de 1984.
(7Sobre a independência entre o procedimento disciplinar e o procedimento criminal, cfr., v.g., os pareceres deste Conselho nº 163/82, de 9 de Dezembro de 1982, publicado no 'Diário da República', II Série, nº 147, de 29 de Junho de 1983, e no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 328, pág. 237, e 123/87, de 11 de Março de 1988, publicado no 'Diário da República', II Série, nº 234, de 16 de Dezembro de 1988, e no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 380, pág. 100.
(8Acompanhou-se, neste ponto, o parecer deste Conselho nº 127/85, de 18 de Dezembro de 1985.
(9Aprovado pelo Decreto-Lei nº 32659, de 9 de Fevereiro de 1943.
(10Era também este o regime do Código Administrativo (artigo 562º) e do Estatuto do Funcionalismo Ultramarino. Cfr., o parecer nº 36/84, cit. na nota (6).
(11No parecer deste Conselho nº 127/85 apontam-se referências de direito comparado demonstrando que a ideia do autonomismo da suspensão do funcionário está hoje ultrapassada.
(12Cfr., MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 4ª ed. pág. 485.
(13Vide, o parecer deste Conselho nº 36/84, cit. nota (6).
(14Sobre a compatibilidade constitucional da medida prevista no artigo 6º do Estatuto Disciplinar, perante o princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32º, nº 2 da Constituição, v.g. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/87, de 4 de Novembro de 1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 371, pág. 171.
(15Cfr., v.g., JOÃO CASTRO E SOUSA, Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal, in "Jornadas de Direito Processual Penal", pág. 150-151.
(16Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6ª edição, tomo I, Coimbra, 1989, pág. 181-182.
(17Cfr., MARCELLO CAETANO, ibidem, pág. 183.
(18Cfr., idem, ibidem, pág. 185.
(19Cfr., GEORGES BURDEAU, Droit Constitutionnel, 21ª edição, 1988, pág. 103.
(20Cfr., ibidem, pág. 106.
(21Cfr., v.g., MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10ª ed., págs. 245 e segs., e JOÃO ALFAIA, Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico de Funcionalismo Público, vol. I, págs. 175 e 176.
(22Acompanha-se o parecer deste Conselho nº 90/85, de 12 de Janeiro de 1989, publicado no Diário da República, II Série, nº 69, de 23 de Março de 1990.
(23Cfr. parecer, cit., nº 90/85.
(24Cfr., MARCELLO CAETANO, Manual, cit., tomo I, 10ª ed., pág. 247.
(25Cfr., sobre estes conceitos, ibidem, págs. 246 e 247, e o parecer nº 90/85, cit.
(26Vide, contudo, o parecer nº 90/85, designadamente nota (15), onde se referem, sobre a questão, algumas opiniões doutrinais não inteiramente coincidentes.
(27Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual, cit. tomo I, pág. 246.
(28Artigo 18º, nº 1. "A competência disciplinar sobre os funcionários e agentes das autarquias locais e das associações e federações de municípios pertence aos respectivos órgãos executivos".
(29A Lei nº 87/89, revogou expressamente (artigo 97º) o artigo 70º do Decreto-Lei nº 100/84, que fixava o regime de perda de mandato dos membros eleitos dos órgãos autárquicos.
(30Cfr. Parecer deste Conselho nº 19/87, de 17 de Dezembro de 1987, que traça uma evolução histórica do regime de perda de mandato até ao Decreto-Lei nº 100/84.
(31Sobre a competência do Ministério Público prevista nesta disposição, veja-se, o Parecer deste Conselho nº 107/89, de 22 de Fevereiro de 1990.
(32Nomeadamente nos casos de crimes contra o Estado - artigos 334º a 436º do Código Penal.
(33Cfr. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. I, pág. 306.
(34Uma decisão judicial junta com o expediente enviado envereda pela via da equiparação ampla, para daí retirar efeitos quanto à aplicação do artigo 6º do Estatuto Disciplinar. Escreve-se: "assim, pelo menos em relação ao crime de corrupção, de que também está acusado, (...) está equiparado a funcionário, sendo-lhe aplicável o disposto no citado artigo 6º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84".
(35Acompanha-se, por momentos, o parecer nº 90/85. cit.
(36Citou-se do parecer nº 90/85.
(37Cfr., SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, 1982, pág. 202 e MARCELLO CAETANO, Manual, cit., I, pág. 230.
(38Cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, I, pág. 692.
(39Cfr., ibidem, pág. 695.
(40Para maior desenvolvimento sobre o tema, v.g. o Parecer cit. nº 90/85, que contém variadas referências doutrinais.
(41Que dispõe:
Dissolução dos órgãos autárquicos
"1- Qualquer órgão autárquico pode ser dissolvido pelo Governo.
a) Quando obste à realização de inspecção, inquérito ou sindicância ou se recuse a prestar aos agentes da inspecção informações ou esclarecimentos, ou a facultar-lhes o exame aos serviços e a consulta de documentos;
b) Quando não dê cumprimento às decisões definitivas dos tribunais;
c) Quando não tenha aprovado o orçamento de forma a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo ocorrência de facto julgado justificativo e não imputável ao órgão em causa;
d) Quando não apresente a julgamento, no prazo legal, as respectivas contas, salvo ocorrência de facto julgado justificativo;
e) Quando o nível de endividamento da autarquia ultrapasse os limites legais, salvo ocorrência de facto julgado justificativo;
f) Quando os encargos com pessoal ultrapassem os limites estipulados na lei;
g) Em consequência de quaisquer outras acções ou omissões ilegais graves que, nos termos da lei, constituam causa de dissolução.
2- A decisão de dissolução é objecto de decreto fundamentado, no qual é designada, sempre que seja dissolvido um órgão executivo, uma comissão administrativa.
3- A dissolução é sempre precedida de parecer do órgão autárquico deliberativo de nível imediatamente superior, a emitir no prazo de 30 dias a contar da data de recepção do pedido.
4- (...)
5- (...)
6- (...)".
Anotações
Legislação: 
EA43 ART5.
EA84 ART1 N1 ART6 ART17 ART18.
EA79 ART6.
CRP29 ART378.
CPP87 ART199.
LAL84 ART30 ART43 N1 ART71 ART72.
L 87/89 DE 1989/09/09 ART6 ART8 ART9 ART11.
L 34/87 DE 1987/07/16 ART2 ART29 F ART32.
DL 371/83 DE 1983/10/06.
Jurisprudência: 
AC TC 439/87.
Referências Complementares: 
DIR ADM * DISC FUNC / DIR CONST * ORG PODER POL.
Divulgação
Número: 
DR236
Data: 
14-10-1991
Página: 
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