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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
19/2023, de 10.08.2023
Data do Parecer: 
10-08-2023
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Maioria
Número de votos vencidos: 
1
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Presidência do Conselho de Ministros
Relator: 
José Joaquim Arrepia Ferreira
Votantes / Tipo de Voto / Declaração: 
Carlos Alberto Correia de Oliveira

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



Carlos Alberto Correia de Oliveira

Votou em conformidade



Eduardo André Folque da Costa Ferreira

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



Eduardo André Folque da Costa Ferreira

Votou em conformidade



João Conde Correia dos Santos

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



João Conde Correia dos Santos

Votou em conformidade



José Joaquim Arrepia Ferreira

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



José Joaquim Arrepia Ferreira

Votou em conformidade



Marta Cação Rodrigues Cavaleira

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



Marta Cação Rodrigues Cavaleira

Votou em conformidade



Ricardo Jorge Bragança de Matos

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



Ricardo Jorge Bragança de Matos

Votou em conformidade



Lucília Maria das Neves Franco Morgadinho Gago

Votou todas as conclusões sem reservas nem declarações



Lucília Maria das Neves Franco Morgadinho Gago

Votou em conformidade



Eduardo André Folque da Costa Ferreira

Votou vencido todas as conclusões



Eduardo André Folque da Costa Ferreira

Votou vencido

Descritores e Conclusões
Descritores: 
FUNDAÇÃO PRIVADA
INSTITUIDOR
PESSOA COLETIVA PÚBLICA
INFLUÊNCIA DOMINANTE
NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL
FIM SOCIAL
FIM NÃO LUCRATIVO
CLÁUSULA DE REVERSÃO
PATRIMÓNIO
EXTINÇÃO
SETOR SOCIAL
AUTONOMIA PRIVADA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRINCÍPIO DA BOA FÉ
 
Conclusões: 

1.ª - As fundações são pessoas coletivas, sem fim lucrativo, dotadas de um património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social (artigo 3.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Fundações);

2.ª - As fundações privadas são fundações criadas por uma ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei-Quadro das Fundações);

3.ª - No anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, propunha-se expressamente, em caso de extinção da fundação,  a proibição de reversão dos bens remanescentes desse património fundacional  para os seus instituidores ou familiares e a nulidade das cláusulas de reversão (conforme redações propostas para os artigos 12.º, n.º 4, e 39.º, n.ºs 2 e 3, da Lei-Quadro das Fundações, este último replicado no artigo 194.º-A, n.ºs 2 e 3,  do Código Civil); 

4.ª - Propostas que, tendo merecido várias críticas, não vieram a ser vertidas na Proposta de Lei n.º 42/XII/1.ª do Governo, nem acolhidas pelo legislador na Lei-Quadro das Fundações aprovada nem nas alterações introduzidas ao Código Civil, mostrando-se, assim, que foram abandonadas;

5.ª - Esse abandono constituiu opção do legislador que, por isso, nada incluiu no regime aprovado pela Lei n.º 24/2012, acerca de cláusulas de reversão qualquer norma impositiva, proibitiva, ou de validade ou invalidade;

6.ª - No regime instituído pela Lei Quadro das Fundações, aprovada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, e subsequentes alterações, como nos regimes que o antecederam – Código de Seabra e Código Civil, aprovado em 1966, até à entrada em vigor de tal Lei-Quadro -, inexiste normativo que especificamente proíba, em caso de extinção da fundação, a reversão do património fundacional remanescente para o instituidor ou familiares;

7.ª - Todavia, vários dispositivos da Lei-Quadro das Fundações - como os artigos 12.º, n.º 1, primeira parte, 18.º, n.º 1, e 60.º, n.º 3 -  e bem assim os artigos 166.º, n.º 2, e 186.º, n.º 2, do Código Civil, manifestam que o instituidor tem a liberdade de estabelecer o destino do património fundacional;

8.ª - Aliás, a trave mestra do regime legal das fundações que veio a ser aprovado pela Lei n.º 24/2012 «é, naturalmente, o primado do respeito pela vontade do fundador», pretendendo-se, com a Lei Quadro das Fundações «devolver o regime fundacional à sua original natureza altruísta», conforme consta da exposição de motivos da referida Proposta de Lei;

9.ª -  A irrevogabilidade do negócio jurídico de constituição da fundação não sustenta, para além da extinção desta, a irrevogabilidade da afetação patrimonial dos seus bens patrimoniais por constituir um atributo das fundações com vida;

10.ª - Assim, a fixação no ato institutivo ou nos estatutos de cláusula de reversão dos bens com que o fundador dota a fundação, em caso de extinção desta, não afronta tal irrevogabilidade nem é adequado a afrontá-la;

11.ª - O fundador tem a liberdade para destinar a dotação inicial patrimonial ou dos bens que por sub-rogação lhe sucedam, existentes aquando da extinção da fundação a seu favor ou dos seus sucessores em geral, legalmente admissível, a menos que se evidencie, atendendo designadamente ao teor dessas cláusulas, e a outros elementos de prova, designadamente extra-documentais, que a vontade real era a satisfação de interesses privados em detrimento do interesse social;

12.ª - Aliás, os modos de atuação, no exercício do direito de instituição de fundação, contrários aos princípios gerais do Direito, como ao princípio da proibição do enriquecimento indevido, aos ditames da boa-fé, à proibição do abuso de direito e da fraude à lei ou a atuação de má-fé, são inadmissíveis;

13.ª - Não é, assim, admissível que a reversão enriqueça o fundador com os subsídios e ajudas que a fundação recebeu ao longo da sua existência (do sector público), nem com os bens ou direitos que outras pessoas (do sector privado) tenham atribuído à fundação;

14.ª - Tem o fundador ainda a obrigação, por força dos artigos 12.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Lei-Quadro das Fundações e 186.º, n.º 2, do Código Civil, de escolher, entre entidades que servem o interesse social, como destinatários do restante do património remanescente, se o houver.

Texto Integral
Texto Integral: 

N.º 19/2023

JA

Senhor Secretário de Estado da Presidência do

Conselho de Ministros

Excelência:

Dignou-se Vossa Excelência submeter à Procuradoria-Geral da República pedido de parecer do Conselho Consultivo, ao abrigo do artigo 44.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público[1], «sobre a legalidade de cláusulas estatutárias de reversão de bens de fundações em caso de extinção das mesmas», por cumprir clarificar.

O pedido de parecer vinha acompanhado do anexo «Nota 57/2023, de 22 de junho» do respetivo Gabinete, datada de 22 de junho de 2023, bem como dos respetivos anexos, expendendo-se nessa Nota:

               «Do regime jurídico aplicável às fundações não resulta claro se é admissível a estipulação, nos respetivos estatutos, de que, em caso de extinção, os bens da fundação revertem para o fundador ou, caso este não esteja vivo, para os seus herdeiros.

               Em acórdão de 24.10.1996 (anexo I), o Supremo Tribunal de Justiça considerou que uma disposição estatutária nesse sentido não era ilegal.

               No mesmo sentido, o Conselho Consultivo das Fundações, no Parecer n.º 7/2013, de 23 de julho (anexo II), pronunciou-se a respeito de cláusula estatutária semelhante relativa à Fundação (…), concluindo pela sua legalidade.

               Por sua vez, no âmbito do processo 43/FUND/2013, da Fundação (…), instruído na Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM), o JurisAPP – Centro de Competências Jurídicas do Estado, em parecer de 20 de dezembro de 2021 (anexos III e IV), pronunciou-se também no sentido de este tipo de cláusula não ser, per se, ilegal.

              No entanto, no âmbito do mesmo Processo, a SGPCM veio, através da I/959/2023/SGPCM (anexo V) defender o entendimento contrário, de que semelhante cláusula estatutária é ilegal, invocando, nomeadamente, para o efeito, o Despacho de 7 de abril de 2021 da Procuradoria da República do Juízo Central Cível do Funchal, sob referência 49778622, Proc. 325/19.1.Y2FNC (anexo VI), que parece apontar nesse sentido contrário.».

Na documentação junta com o pedido de consulta consta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça  de 24 de outubro de 1996[2],  em que se considerou que «à dotação patrimonial inerente à instituição de uma fundação é, em princípio, aplicável o regime geral das liberalidades», razão porque o artigo 960.°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil tem aqui plena aplicação; e que «as regras ínsitas no art. 166.° do Código Civil (…) têm natureza meramente supletiva, em nada impedindo assim a estipulada reversão dos bens em causa, pois que se aplicam tão-somente aos bens da fundação que não tenham feito parte da dotação do fundador».

Consta também o parecer n.º 7/2013, de 23 de julho de 2013 do Conselho Consultivo das Fundações, em que se sustentou que, no nosso ordenamento jurídico, nada impede que, no próprio negócio jurídico de constituição do substrato da Fundação, o instituidor manifeste a vontade de, quando a Fundação se extinguir - seja porque lhe marcou um prazo fixo de existência, seja porque aconteceram eventos estranhos à sua vontade que a Lei reconhece como extintivos da Fundação -, regular o destino dos bens que atribuiu, em vez de deixar que essa destinação seja feita por uma entidade pública.

No Parecer, sob n.º «JURISAPP/P/2021/00117», de 20 de dezembro de 2021, do Centro de Competências Jurídicas do Estado, igualmente junto, conclui-se, além do mais que:

              «(I) Não existe disposição normativa específica – nem no regime atual, nem no Código de Seabra, em vigor à data da constituição da Fundação – que proíba a reversão dos bens do património fundacional do fundador ou aos doadores em caso de extinção da fundação;

               (II) No Anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, propôs-se a (a) imposição, dirigida ao fundador, para que este, querendo, destinasse os bens a uma pessoa coletiva de fins análogos aos da fundação, (b) a proibição de reversão desses bens, e (c) a nulidade das cláusulas de reversão;

               (III) Estas propostas mereceram críticas várias, tendo sido abandonadas pelo legislador (em particular, o abandono da proposta de artigo 194.º-A do Código Civil e do artigo 12.º da Lei-Quadro das Fundações);

              (IV) O elemento histórico da interpretação fornece razões para considerar que foi opção do legislador não integrar no regime positivo qualquer imposição, proibição e norma de (in)validade sobre cláusulas de reversão;

               (V) Vários preceitos do Código Civil e da Lei-Quadro das Fundações evidenciam «janelas de liberdade» do fundador na definição do destino do património fundacional;

               (VI) A atribuição de prevalência à autonomia da vontade na definição do destino do património de uma pessoa coletiva não é um critério exclusivo do regime das fundações;

               (VII) A pretensa irrevogabilidade da instituição da fundação não constitui argumento procedente contra a validade de cláusulas de reversão;

               (VIII) A irrevogabilidade da afetação dos bens da fundação também não constitui argumento procedente, porque esta é predicado das fundações «vivas»;

               (IX) As cláusulas de reversão são, em geral, admissíveis, salvo se delas se extrair que a fundação fica, por causa dela, funcionalizada à prossecução de interesses privados, tornando inidóneo o fim de interesse social definido estatutariamente; deve recorrer-se, para tal, a um conjunto de critérios indiciadores dessa funcionalização, articulados em sistema móvel;

               (…).»

Na «I/959/2023/SGPCM», de 10 de abril de 2023 da SGPCM, também integrante do expediente junto, pugnou-se por entendimento diverso, pois considerou, designadamente que a «cláusula de reversão» significa a revogabilidade dessa afetação do património à prossecução de um fim de interesse social»  e, assim, afronta ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, da LQF.

E a SGPCM, no desenvolvimento e fundamentação do seu entendimento, refere que «extinta a fundação, o património desta – da fundação e não do fundador – que adquiriu» «esse encargo - irrevogável – de afetação a um fim de interesse social», « precisamente, com o reconhecimento da fundação (cfr. art.º 20.º, n.º 2, LQF)»,  «continua irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social». Efetivamente, «o reconhecimento da fundação “importa a aquisição dos bens e direitos que o ato de instituição lhes atribui” conforme resulta do n.º 2 do artigo 20.º da Lei-Quadro das Fundações. Os bens passaram assim a ser (de pleno) da fundação e com isso são bens irrevogavelmente afetados à prossecução de um fim de interesse social (cfr. art.º 3.º, n.º 1, in fine, LQF). Este reconhecimento da fundação (cfr. art.º 20.º, LQF) traz, pois, um quid aos “bens e direitos” que, anteriormente, estavam apenas “afetos à fundação” (cfr. art.º 20.º, n.º 3.º, LQF) pelo instituidor. Ou seja, com o reconhecimento da fundação os “bens e direitos” deixam de estar meramente “afetos à fundação” – conforme sucede logo que “instituída a fundação e até à data do seu reconhecimento” (cfr. art.º 20.º, n.º 3.º, LQF) – para passarem a estar “irrevogavelmente afetado[s] à prossecução de um fim de interesse social” (cfr. art.º 3.º, n.º 1, in fine, LQF)».

Faz ainda parte dessa documentação o despacho de 7 de abril de 2021, proferido no processo administrativo n.º 325/19.1Y2FNC da Procuradoria do Juízo Central Cível do Funchal (Procuradoria da República da Comarca da Madeira), em cujo entendimento de inadmissibilidade da reversão foi considerado que a admissibilidade da cláusula de reversão dos bens afetos à Fundação pelo fundador, ou dos que estiverem no lugar deles, a favor do mesmo fundador ou dos seus descendentes «contende com as normas imperativas previstas nos artigos 166.º, n.º 1, 154.º, n.ºs 1 e 2, 192.º, n.º 1, alínea c), 184.º, 185.º, n.º 2, do Código Civil e 12.º da Lei-Quadro» das Fundações.

A apreciação da questão que nos é colocada,  acerca da admissibilidade legal de previsão em estatutos fundacionais de cláusula de reversão de bens para o fundador ou seus herdeiros, impõe que se efetue, em traços gerais, a apreciação do regime legal das fundações, quanto à sua criação e extinção, bem como ao consequente destino dos bens, não exigindo que se proceda a apreciação, relativamente à fundação indicada de concretos aspetos atinentes à sua criação, aos  seus fins, aos seus estatutos nem ao respetivo procedimento de reconhecimento, razão porque o expediente recebido se mostra bastante. E exige ainda que se atente à evolução histórica do regime das fundações e às soluções dadas no âmbito de algumas jurisdições estrangeiras.

Cumpre, assim, emitir parecer com a urgência pretendida por Vossa Excelência.

I

1 – O quadro legal atual das fundações encontra-se fixado na Lei Quadro das Fundações[3], publicada em anexo à Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, que igualmente procedeu a alterações  de dispositivos do Código Civil[4] quando, antes da publicação dessa Lei-Quadro, o respetivo regime jurídico constava principalmente do Código Civil (artigos 185.º a 194.º).

A Lei-Quadro das Fundações, regula as fundações de direito privado quer no Título I (artigos 1.º a 13.º-A), respeitante a Disposições Gerais (das fundações privadas e públicas) quer no Título II, Capítulo I, atinente ao Regime Geral das Fundações Privadas (artigos  14.º a 38.º. E no Título III (artigos 48.º a 61.º) estabelece sobre as fundações públicas, respeitando o Capítulo II (artigos 57.º a 61.º) às fundações públicas de direito privado.

O Código Civil, continuou, no entanto, a regular, na sua terminologia, o «Regime Geral das Fundações de interesse social», inserido na Secção III (artigos 185.º a 194.º) do Capítulo II (Pessoas coletivas), do Título II do Livro I [5], adaptado à LQF, aplicando-se o respetivo regime às fundações privadas como decorre do artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2012 de 9 de julho[6].  

A LQF no artigo 1.º estabelece os princípios e as normas por que se regem as fundações (n.º 1), bem como que estas normas são imperativas e prevalecentes ao determinar que são de aplicação imperativa, prevalecendo sobre as normas especiais vigentes aquando da sua entrada em vigor, salvo na medida em que o contrário resulte expressamente da mesma lei-quadro (n.º 2)[7].

 No artigo 3.º, n.º 1, é indicado o conceito de Fundação considerando-a «uma pessoa coletiva, sem fim lucrativo, dotada de um património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social». Interesse este que não se confunde com interesse público nem com  interesse de utilidade pública (cf. artigos 3.º, n.º 2, corpo, e 4.º da LQF)[8], devendo, sim, ser entendido como tendo natureza altruísta e sobretudo não lucrativa[9].

Especifica-se no n.º 2, corpo, do artigo 3.º da LQF, que são  fins de interesse social aqueles que se traduzem no benefício de uma ou mais categorias de pessoas distintas do fundador, seus parentes e afins, ou de pessoas ou entidades a ele ligadas por relações de amizade ou de negócios, indicando vários exemplos [alíneas a) a y) do mesmo n.º 2].

Face a esta definição, evidencia-se, no que respeita ao escopo,  que, sendo este de interesse social, se mostram, assim, impedidas as fundações de caráter familiar (com fins virados para o auxílio da família ou membros da família do fundador) ou pessoal (como a denominada “fundação do Fundador”, destinada a satisfação exclusiva de interesses privados)[10].

Numa Fundação impera necessariamente o interesse social, que, diga-se, não se confunde com o interesse geral ou com o interesse público, constituindo aliás o desiderato da sua génese como o exibem, de forma direta e expressa, designadamente os artigos 3.º da LQF e 185.º, n.º 1, do Código Civil.

E, no que concerne ao património destinado à realização do fim de interesse social, tem de ser para o efeito suficiente e fica «irrevogavelmente afetado à realização desse fim enquanto objeto da fundação» (artigo 3.º, n.º1, da LQF).

Nada se diz na definição legal de fundação quanto ao carácter «duradouro ou permanente» do escopo fundacional, pois o escopo da fundação não tem que ser perpétuo ou indefinido no tempo, como claramente resulta  do artigo 192.º, nº 1, alínea a), do Código Civil ao admitir claramente as fundações temporárias[11]

De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, da LQF, há três modalidades de fundações: as Fundações Privadas (de Regime Geral e de Solidariedade Social), as Fundações públicas de direito público[12] e as Fundações públicas de direito privado[13].

As Fundações privadas, que podem ser criadas por uma ou mais pessoas de direito privado ou por pessoas de direito privado com pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante, são pessoas coletivas de direito privado, sem fim lucrativo, dotadas dos bens e do suporte económico necessários à prossecução de fins de interesse social [cf. artigos 4.º, n.º 1, alínea a), 14.º, n.º 1, e  15.º, n.º 1, da LQF][14].

Na verdade, o artigo 14.º da mesma Lei procede a definição de «Fundações privadas» ao dispor:

              «1. As fundações privadas são pessoas coletivas de direito privado, sem fim lucrativo, dotadas de bens e de suporte económico necessários à prossecução de fins de interesse social;

              2. As fundações privadas podem visar a prossecução de qualquer fim de interesse social.»

Destarte, a fundação de direito privado constitui

               «uma pessoa coletiva de utilidade social, dotada de património próprio, específica e autonomamente afetado, por um ou vários instituidores, à realização de uma ou várias finalidades de interesse social, constituindo o exemplo típico e natural de pessoa colectiva de fim altruísta ou desinteressado e não lucrativo»[15].

A fundação é, assim, uma instituição criada a fim de levar a cabo uma determinada tarefa e dotada dos meios necessários para o seu cumprimento: determinado capital e uma administração própria[16].

Elemento caraterístico comum de tais modalidades de fundações é que «são pessoas colectivas que gerem patrimónios afectos a determinados fins», em que as fundações privadas são «patrimónios personalizados» que prosseguem um interesse social, as fundações públicas são institutos públicos que «assentam fundamentalmente num património»  afeto à prossecução «de fins públicos especiais» [17].

Destarte, só é admitida a constituição de fundações privadas, cujo fim seja de interesse social (por exemplo, educação, saúde, proteção da infância ou da terceira idade, desenvolvimento científico, das artes e das letras), como aliás dimana do disposto nos artigos 3.º, 14.º e 23.º, n.º 1, alínea b), da LQF [cf. ainda artigos 157.º, 188.º, n.º 3, alínea a), e 191.º, nº 2, alínea b), do Código Civil].

Têm, assim, estas fundações natureza de pessoas coletivas de direito privado, sendo despidas de fim lucrativo, mas com bens próprios necessários à prossecução do seu fim de interesse social, o qual constitui o interesse digno de proteção[18].

1.1 - Atentas as indicadas definições (de fundações e fundações privadas), denotam-se os traços caraterizadores que as identificam: a existência de um substrato de natureza patrimonial, pois a fundação, enquanto pessoa coletiva, caracteriza-se pela afetação de uma massa de bens à prossecução dos interesses para que foi instituída; e um escopo altruísta, pois o seu substrato não são as pessoas e o fim não é o lucro[19] .

Como já se entendia antes da reforma de 2012, «[o] conteúdo essencial do acto da fundação prende-se com os três seguintes elementos: a) a expressão da vontade de criar uma fundação; b) a definição do fim da fundação; c) a afectação de um património»[20] (cf. artigos 18.º, n.º 1, da LQF e 186.º, n.º 1, do Código Civil).

Ou seja, os traços característicos de uma fundação residem no ato unilateral do fundador de afetação de uma massa de bens – “universitas rerum” – a um escopo tipicamente altruístico, de relevante interesse social[21].

Assim:

              «O substracto, “o suporte de facto”, da fundação/pessoa jurídica é constituído por dois elementos: o património e uma finalidade especial de afectação. O património integra a massa de bens afectados pelo fundador à prossecução de obra que tem como intenção realizar; esta especificidade de afectação patrimonial, dirigida à finalidade concebida, é independente de qualquer substracto pessoal, tanto em relação à pessoa do fundador, que permanece de fora da instituição, como em relação ao universo dos possíveis beneficiários da obra que pretende realizar que, como tais, são estranhos à fundação, situando-se para além dela.
A finalidade constitui, além do património, elemento essencial do “substratum” da fundação. A massa de bens tem de ser afectada à prossecução da finalidade colectiva, lícita, possível, devidamente especificada (…), e de natureza altruísta (…). Erigida como pessoa jurídica de finalidade determinada, a fundação deve conter ínsita uma ideia de permanência, de durabilidade, de realização continuada da obra pretendida pelo fundador; porém, não pressupõe, como estrutura da noção conceitual, qualquer ideia de perpetuidade. A lei portuguesa admite claramente uma fundação temporária – artigo 192.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.»[22].

E para além dos elementos  patrimonial (a afetação pelo fundador de um complexo de bens patrimoniais existentes à consecução de tal escopo fundacional; ou seja, a dotação patrimonial) e teleológico («o interesse em função do qual a pessoa coletiva existe e é reconhecida», representando o escopo que se visa atingir através da sua atividade e devendo revestir determinadas características, para ser juridicamente atendido: deve ser determinado, comum ou coletivo, lícito, possível e duradouro[23].

São ainda apontados[24] como elementos e traços característicos do  substrato enquanto suporte do instituto em que se pode decompor: o animus personificandi (intenção ou vontade do instituidor de criar a fundação, como ente jurídico, para prosseguir os fins sociais altruísticos indicados) e o elemento organizatório da fundação, que se efetiva na indicação dos órgãos da pessoa coletiva,  da sua sede e funcionamento, bem como a regulação da transformação e extinção da fundação e destino de bens (cf. artigos 162.º do Código Civil e 26.º e 27.º da LQF).

Em suma, as fundações constituem organizações destinadas a prosseguir determinado fim de interesse social, ao qual esteja necessariamente afetado um património.

2 - Para o nascimento da fundação de direito privado é exigida:

              «a prática de dois atos jurídicos diferentes: o acto de instituição e o acto de reconhecimento.

               O acto de instituição constitui um acto jurídico de direito privado; o acto de reconhecimento releva da competência da autoridade pública, assumindo a natureza de acto administrativo.

              O acto de instituição (ou fundação), de direito privado, constituirá uma declaração de vontade, que disponha sobre a afectação de bens (da massa patrimonial, universitas rerum) à prossecução da finalidade determinada, e do qual se deduza a intenção do fundador, ou instituidor, de criar, erigir, um novo ente (a fundação) dotado de personalidade jurídica. A declaração de vontade tanto pode constituir acto entre vivos, como integrar uma disposição mortis causa.

               Assim caracterizado, o acto de instituição reveste a natureza de um negócio jurídico unilateral (de natureza gratuita)»[25].

O regime vigente, contrariamente ao entendimento tradicional, aproxima a “dotação patrimonial e o surgimento da nova pessoa coletiva (ato de fundação), os quais têm um alcance unitário: «o negócio fundacional, de tipo gratuito e com um papel constitutivo, em termos de personalidade coletiva»[26].

2.1 - O ato de instituição é, assim, a manifestação de vontade pela qual o instituidor afeta determinado património à realização de um certo fim de interesse social, definindo a lei como «instituição» (ou «criação»), «a atribuição de meios patrimoniais à futura pessoa coletiva fundacional» (artigo 3.º, n.º 3,  alínea a), da LQR), e «instituidor» ou «fundador» como a «entidade que realiza a atribuição de meios patrimoniais à futura pessoa coletiva fundacional» (artigo 3.º, n.º 3,  alínea b), da LQR).

Ato de instituição que se pode consubstanciar num ato inter vivos ou num ato mortis causa, pois as fundações privadas podem ser instituídas, atento o disposto nos artigos 17.º, n.º 1, da LQF[27] e 185.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil[28]) por testamento (ato mortis causa)[29] ou por ato entre vivos, que revestirá a forma de escritura pública (ou de documento particular autenticado)[30].

Ou seja, através do negócio jurídico unilateral que constitui a instituição da fundação, o instituidor (fundador) «afeta um património a uma pessoa coletiva a criar, com determinados objetivos de tipo social» e, assim, procede a uma dotação patrimonial (oferece-lhe um património), com que a dota de bens e/ou direitos; o que a distingue da deixa fiduciária[31], pois nesta, determinados bens são deixados, em propriedade, a uma pessoa (singular ou coletiva) já existente, para que os administre e, sendo o caso, deles disponha, com determinados fins[32].

E nesse ato constitutivo, o instituidor, como vimos, tem a obrigação atento o disposto nos artigos 18.º da LQF e 186.º do Código Civil[33] não só de estabelecer o fim da fundação e especificar os bens para o efeito destinados, como de, nesse ato institutivo ou nos estatutos, prover pela sua organização e funcionamento, regular os termos da sua transformação ou extinção e fixar o destino dos respetivos bens.

Constituindo o ato inter vivos de instituição de uma fundação um negócio jurídico unilateral gratuito, a emissão da declaração de vontade pelo instituidor é suficiente para vincular o instituidor a um dever de prestar, verificando-se, após o pedido de reconhecimento da fundação ou o início do respetivo processo oficioso[34], nos termos dos artigos 185.º do Código Civil e 17.º da LQF, a irrevogabilidade dessa vinculação.

Com efeito, segundo CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO[35], a lei confirma

              «a doutrina segundo a qual a instituição só se torna irrevogável quando for requerido o reconhecimento ou principiar o respectivo  processo gracioso. Portanto, até esse momento, pode o fundador revogar a disposição».

Deste modo, no caso de instituição por ato entre vivos, o momento da formalização do pedido de reconhecimento (que, de acordo com o artigo 21.º, n.º 2, da LQF, deve ocorrer no prazo máximo de 180 dias a contar do ato de instituição) ou o início do respetivo processo oficioso (pela entidade competente para o reconhecimento) assume especial relevância por ser a partir dessa altura que a instituição se torna irrevogável.

Também aos herdeiros do instituidor não é permitido revogar a instituição, sem prejuízo do disposto acerca da sucessão legitimária[36], como resulta do artigo 185.º, n.º 3, do Código Civil (e 17.º, n.º 3, da LQF), solução que se mostra conforme com a regra do artigo 226.º do Código Civil, pelo que a instituição da fundação não caduca se após a instituição e antes do reconhecimento ocorrer o decesso do fundador[37].

Em suma, é no momento em que a instituição por ato inter vivos se torna irrevogável que é retirada ao instituidor a disponibilidade sobre o conteúdo do ato institutivo, não podendo a partir dessa altura pôr fim ao negócio jurídico[38], pelo que, igualmente, não pode ser revogada a dotação de bens por constituir elemento essencial e conatural (ou um complemento necessário) do ato de instituição[39]. É que essa dotação tem obrigatoriamente de constar do negócio jurídico, ser adequada e suficiente, cumprindo um mínimo legal estabelecido, estando necessariamente ligada, de modo muito especial, aos fins fundacionais.

2.2 - O outro momento de formação da fundação é o do reconhecimento pelo Estado, através de ato público, do escopo que a fundação prossegue e da suficiência de bens afetados à prossecução do fim ou fins visados[40], evidenciando que a vontade do fundador não basta para a criação de um novo sujeito de direito.

Face ao disposto no Código Civil e na LQF não pode a fundação ser reconhecida e, assim, ser-lhe atribuída personalidade jurídica se o fim não for de interesse social, mas antes o mero interesse particular pessoal (propósitos individuais) ou familiar (para determinada família), pois tem de visar um interesse altruístico do fundador de natureza social[41].

Com o ato do reconhecimento, as fundações adquirem personalidade jurídica (ver artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 da LQF e 158.º, n.º 2, do Código Civil[42])[43], encontrando-se o procedimento de reconhecimento das fundações privadas expressamente previsto nos artigos 20.º a 23.º-A da mesma Lei[44].

O reconhecimento é, assim,

              «o acto administrativo através do qual o Estado atribui personalidade jurídica ao suporte de facto, ao “substratum” constituído por vontade privada, com essa finalidade. A entidade de facto criada por vontade de um particular transforma-se, por acto do Estado, em centro autónomo de relações jurídicas, sujeito a direitos e deveres.

               O reconhecimento, através do qual se atribui personalidade jurídica à fundação, constitui aqui um reconhecimento específico, feito caso a caso»[45].

              Como refere o Tribunal Constitucional[46],

              «seja qual for o entendimento que mereça primazia, o que fundamentalmente importa reter é que o reconhecimento constitui o ato através do qual as fundações adquirem personalidade jurídica e se convertem num centro autónomo de imputação jurídica. Por isso, como nota Blanco de Morais, “[o] reconhecimento constitui virtualmente o mais significativo de todos os atos jurídicos praticados pelas autoridades públicas no que respeita às fundações de direito privado”».

Por outras palavras, enquanto o ato de instituição corresponde à manifestação de vontade pela qual o instituidor afeta um património à realização de certo fim duradouro, o reconhecimento será concedido quando a fundação, efetivamente, tiver fim de interesse social e quando os bens afetados forem suficientes para a prossecução do fim da fundação, ou, sendo insuficientes, quando seja fundadamente previsível o suprimento da insuficiência, sendo a apreciação da verificação destes requisitos e a consequente concessão ou negação do reconhecimento por ato da administração pública; e, sendo o reconhecimento concedido, a fundação adquire, ipso facto, personalidade jurídica, reconhecimento que, todavia,  «não incide concretamente sobre o acto de instituição em si mesmo, incidindo sobre a própria fundação e não sana eventuais vícios daquele»[47].

Segundo o artigo 20.º, da LQF, o reconhecimento de fundações privadas é, sem prejuízo das competências das regiões autónomas, nos termos do disposto nos respetivos estatutos político-administrativos, da competência do Primeiro-Ministro, com a faculdade de delegação (n.º 1); e o reconhecimento de fundações importa a aquisição dos bens e direitos que o ato de instituição lhes atribui (n.º 2)[48], quando, desde a  instituição da fundação e até à data do seu reconhecimento, o instituidor, os seus herdeiros, os executores testamentários ou os administradores designados no ato de instituição têm legitimidade para praticar atos de administração ordinária relativamente aos bens e direitos afetos à fundação, desde que tais atos sejam indispensáveis para a sua conservação (n.º 3). E, nos termos do n.º 4, também até ao reconhecimento, o instituidor, os seus herdeiros os executores testamentários ou os administradores designados no ato de instituição respondem pessoal e solidariamente pelos atos praticados em nome da fundação.

Em sinopse, é pelo ato denominado «reconhecimento que se completa a formação da pessoa coletiva, a qual se converte de mera entidade social em sujeito de direito, passando a existir como centro autónomo de relações jurídicas»[49], advindo, por isso, para as fundações, desse reconhecimento por autoridade administrativa, personalidade jurídica.

Assim, é também pelo reconhecimento que as fundações adquirem os bens e direitos que o ato institutivo lhes atribuiu (artigo 188.°, n.º 2, do Código Civil e artigo 20.°, n.º 2, da LQF), pois a aquisição dos bens tão-só se efetiva quando a fundação adquire personalidade jurídica e, por isso, capacidade para ser titular de direitos, operando, por isso, o reconhecimento como «conditio juris».[50]

Reconhecimento que, de acordo com o artigo 185.º do Código Civil, na redação anterior à reforma de 2012, valia como aceitação dos bens a elas destinados[51], o que deixou de constar do preceito (ou de qualquer outro após a referida reforma), por se tornar desnecessário, dada a noção de fundação contemplada no artigo 3.º, n.º 1, da LQF e, especialmente, o disposto no artigo 20.º, n.º2 da LQF (e 188.º, nº2, do Código Civil na redação introduzida nessa reforma):

               «O reconhecimento importa a aquisição, pela fundação, dos bens e direitos que o ato de instituição lhe atribui».

É, na verdade, com o reconhecimento que a fundação adquire personalidade jurídica e, assim, capacidade para aquisição de direitos e, por isso, esse ato administrativo importa a aquisição pela fundação dos bens ou direitos que integram a dotação, constituindo o património originário oferecido pelo fundador.

2.2.1 - Todavia, o reconhecimento pode ser negado, e face a essa recusa o suporte de facto não adquire personalidade jurídica, ficando, por força da lei, a instituição sem efeito.

Caraterizando-se as fundações por terem necessariamente um património adequado adstrito ao fim  ou fins de utilidade social, surge como natural que as mesmas não nascerão juridicamente como pessoa coletiva se o fundador não a dotar de bens suficientes para alcançar o escopo social previsto. Mostra-se, destarte, que a dotação patrimonial adequada aos fins visados com a fundação constitui uma condição sine qua non  para a existência da fundação como pessoa coletiva com personalidade jurídica.

E apresentando-se o reconhecimento como filtro para a fundação adquirir personalidade jurídica, é nessa fase procedimental que se deve verificar se ocorrem os necessários requisitos formais e materiais, cabendo à entidade administrativa competente, além do mais, apreciar se se verifica a suficiência de meios, atentos os fins de utilidade social previstos e a amplitude da dotação patrimonial, tendo em conta os encargos e outras cláusulas manifestadas pelo fundador com relevo nesta matéria.

É, assim, através do reconhecimento que é permitido à entidade competente apreciar a suficiência e adequação da dotação para o preenchimento dos fins de utilidade social visados com a fundação, sendo, nesse processo de avaliação, que deve ser  ponderada a existência de encargos que comprometam a realização dos fins ou de concretos elementos indicativos de que o invocado fim de utilidade social, por exemplo, poderá apenas beneficiar um universo restrito de beneficiários relacionados com a família do fundador (artigos 23.°, n.º 1, alíneas b) e c), da LQF e 188.°, n.º 3, alíneas a) e b), do Código Civil).

Prevê a lei, não só as circunstâncias de recusa do reconhecimento (artigos 23.º, n.º 1, da LQF[52] e 188.º, n.º 3, do Código Civil), mas também as consequências dessa recusa, embora, de forma expressa, apenas no caso de negação do reconhecimento por insuficiência de meios (artigo 23.º, n.º 2, da LQF e 188.º, n.º 5, do Código Civil).

Integram tais circunstâncias de recusa de reconhecimento, designadamente a inidoneidade do fim [artigo 23.º, n.º 1, alínea b), da LQF e 188.º, n.º 3, alínea a), do Código Civil][53], referindo a lei que se verifica tal inidoneidade[54] se os fins da fundação designadamente «se aproveitarem ao instituidor ou sua família ou a um universo restrito de beneficiários com eles relacionados»; a insuficiência ou inadequação de património [artigos 23.º, n.º1, alínea c), da LQF e 188.º, n.º 3, alínea b), do Código Civil], exemplificando a lei com a oneração devido a «encargos que comprometam a realização dos fins estatutários ou se não gerarem rendimentos suficientes para garantir a realização daqueles fins»[55]; ou se os estatutos apresentarem alguma desconformidade com a lei [alínea d) do n.º 1 do artigo 23.º da LQF e alínea c) do n° 3 do artigo 188° do Código Civil] [56].

Assim, a desadequação dos bens e direitos destinados às fundações, atento o disposto no artigo 21.º, n.º 1, alínea c), da LQF constitui obstáculo impeditivo do reconhecimento (a menos que existam justificadas expetativas  de suprimento dessa insuficiência), o que necessariamente implica que se proceda a uma avaliação casuística, o mesmo acontecendo com as demais circunstâncias referidas[57].

Portanto, se as entidades candidatas que não revistam interesse social não podem ser reconhecidas como fundações, dada a tipicidade das pessoas coletivas, ou se reformulam para se integrar noutro tipo, ou não podem conseguir a personificação[58].

Sendo motivo de não reconhecimento a insuficiência de património afeto à prossecução do fim ou fins visados, de acordo com os artigos 23.º, n.º 2, da LQF e do n.º 5 do artigo 188.º do Código Civil [59], fica a instituição sem efeito, se o instituidor for vivo (ou o instituidor ou instituidores forem pessoas coletivas), ocorrendo, destarte, desafetação dos bens. Permite, assim, o legislador que o instituidor providencie sobre o destino a dar-lhes.

No caso de o instituidor ter falecido, os bens serão entregues a uma associação ou fundação de fins análogos, que a entidade competente designar, a menos que haja disposição do instituidor (no ato institutivo ou nos estatutos) em contrário. O legislador respeita, assim, a vontade manifestada do instituidor e, no caso de o não ter feito, procura dar aos bens o destino mais aproximado da vontade por ele expressa[60].

Como vimos, a lei apenas prevê as consequências da recusa do reconhecimento nos casos de negação do reconhecimento por insuficiência de meios. Todavia, entende-se que, no caso de a instituição ficar sem efeito, o património intencionadamente afetado permanece na disponibilidade do instituidor se vivo for[61].

Aliás, negado, o reconhecimento, por exemplo, devido a  inidoneidade do fim, deve considerar-se sem efeito a instituição por,  de todo em todo, não ser possível satisfazer a vontade da lei, não sendo justo reter os bens. «No silêncio da lei, é a solução que resulta de princípios gerais e do próprio artigo 188.º, n.º 3»[62].

Daí que, também, JOÃO DE CASTRO MENDES[63]considere que, resultando a negação do reconhecimento da ausência de interesse social do fim estabelecido, se o instituidor for vivo, fica a instituição sem efeito, pois «[n]ão se pode pensar, pelo menos sempre, em entregar os bens a uma entidade de fim análogo. Temos de distinguir consoante o fim, embora de interesse social, não é imoral ou ilícito, ou é. No primeiro caso, poderá pelo menos por vezes aplicar-se por analogia o artigo 188.º, n.º3»[ora, 188.º, n.º 5]. E desenvolve que «se o testador estabeleceu uma fundação com puros fins egoístas (…) ou com fins imorais, ilícitos ou até criminosos» a solução preferível é de «ter a deixa como sem efeito. (…) A circunstância de a vontade do testador ser objecto egoísta, imoral ou ilícito permite tê-la como sem efeito (cf. artigo 2230.º), mas não ir contra a vontade do testador» [64], acrescentando que:

               Assim, se A faz testamento nomeando herdeiro B, e criando uma fundação para ensinar jovens a roubar, esta instituição será nula e os bens respectivos reverterão para B. Não será lícito ao Governo (…) atribuir esses bens justamente a uma instituição reeducadora de delinquentes juvenis»[65]

Em suma, como se expende no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988, não sendo reconhecida a fundação, não chegou a nascer um ente jurídico; não se podendo, por isso, sequer falar em extinção e suas causas.

Do teor dos referidos preceitos da LQF e do Código Civil, resulta, nesta conformidade, que o legislador admitiu claramente a possibilidade de regresso dos bens à esfera patrimonial do instituidor: quando a fundação não tiver sido instituída (e, assim, esta não tenha chegado a existir), desde que o instituidor ou fundador esteja vivo ou tenha expressamente disposto nesse sentido.

Mas não só. Dimana também que, cabendo ao fundador dotar a fundação dos bens necessários para a realização do escopo de natureza social visado, ao fazê-lo está  igualmente, e de modo necessário, a exprimir os termos dessa afetação, constituindo, assim, a finalidade de interesse social visada, no âmbito dessa fundação, que determina a suficiência da dotação.

3 - As fundações, privadas ou públicas, têm, assim, um substrato que resulta da constituição do seu património, o qual, como  vimos, se encontra afeto à prossecução do seu fim de interesse social (artigos 3.º, n.º 1, da LQF), em que os portadores de tais interesses,          

              «sendo obviamente pessoas (os chamados beneficiários), assim como o são os seus instituidores e os titulares dos seus órgãos, não ocupam na sua estrutura a posição correspondente à dos associados na associação, o mesmo é dizer, não integram o substrato, qua tale, da fundação»[66].

E, embora o instituidor não integre esse substrato, o direito a ser ouvido acerca dos destinos da fundação é em determinadas fases da vida da fundação garantido, assim como a sua vontade manifestada no ato constitutivo tem de ser respeitada durante a vida da fundação.

Com efeito, no que concerne às fundações privadas, os estatutos destas podem a todo o tempo, sob proposta da respetiva administração, ser modificados pela autoridade competente para o reconhecimento, mas essa modificação, que, por regra, constitui um ajustamento dos meios e da estrutura orgânica da fundação, de modo a efetivar um mais adequado prosseguimento dos seus objetivos, tem dois limites: não pode haver alteração substancial do fim da instituição e não é admissível a contrariedade da vontade do fundador (cf. artigos 189.º do Código Civil, 31.º da LQF e 1.º, 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, da Portaria n.º 69/2008).

Por outras palavras, deverá ser observada a vontade real ou a vontade presumível do fundador[67].

Aliás, doutrinariamente, é considerado modificação tudo o que sobrevenha a alterar a organização ou o regime jurídico duma fundação sem afetar a sua identidade[68].

Assim, como se expende no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 163/1976, acerca do disposto no artigo 189.º do Código Civil:

              «Vê-se deste preceito que, em princípio, a modificabilidade dos estatutos é possível; mas, além do mais, não pode contrariar a vontade do fundador».

Vontade do fundador manifestada no ato constitutivo da fundação, pois as fundações são «governadas pela vontade inalterável do fundador, que deu o impulso à fundação».[69]

É ainda admitido que as fundações ampliem o seu fim ou o mudem nos termos previstos nos artigos 190.º do Código Civil e 32.º da Lei Quadro das Fundações. Segundo estes preceitos, que têm por epígrafe «Transformação»[70], o fim da fundação pode ser objeto de ampliação se a administração e o fundador vivo concordarem e se os meios disponíveis o aconselhem (n.º 1); e pode ainda a mesma entidade, após tais audições, atribuir à fundação um fim diferente quando o fim para que foi instituída já tiver sido inteiramente alcançado ou se tiver tornado impossível, quando deixar de revestir interesse social ou quando o património se tornar insuficiente para a realização do fim previsto (n.º 2), devendo, no entanto, o novo fim aproximar-se, no que for possível, do fim fixado pelo fundador (n.º 3). Todavia,  a mudança do fim já não é admissível se o ato de instituição o proibir ou prescrever a extinção da fundação, respeitando-se, assim, a vontade do fundador (n.º 4).

Evidencia-se, dessarte, que a transformação da fundação assenta ou na vontade real, se o fundador for vivo, ou na vontade presumível, no caso de ter falecido.

Acresce que as fundações, tal-qualmente a generalidade das pessoas coletivas, podem, também, fundir-se, exigindo-se como requisito que as fundações a fundir tenham fins análogos e a vontade do fundador não seja contrária à realização da fusão (ver artigo 190.º-A, do Código Civil e 33.º da Lei Quadro das Fundações). E o procedimento de fusão é espoletado pelas administrações das fundações a fundir com a apresentação de proposta, cabendo a competência para decretar a fusão também à entidade competente para o reconhecimento.

O fundador é igualmente ouvido no caso de cisão de duas ou mais fundações, de fins análogos, sendo a sua opinião vinculante, pois a cisão apenas pode ser determinada contanto que a tal não se oponha a vontade daquele  (artigos 33.º da LQF e 190.º-A do Código Civil).

Conectando os descritos preceitos, mostra-se que a lei indica situações com relevo para a vida da fundação em que se deve atender à sua vontade real, se for vivo, ouvindo-o

               «ainda que esta não seja vinculativa (…). Só é vinculativa a vontade expressa nos estatutos que expressamente afaste a possibilidade de modificação desses mesmo estatutos, de mudança dos fins ou de fusão»[71].

Por outras  palavras:

«Trata-se de uma vontade formulada ne variatur – como que cristalizada – no acto de constituição da pessoa colectiva (acto de fundação) e constante do respectivo documento (título ou tábuas de fundação)».[72]

Assim, a vontade do fundador que deu impulso inicial à fundação impera podendo esta apenas ser alterada com a sua anuência nas situações referidas e com os limites expressos, pelo que os órgãos de administração e de direção «são serventuários da vontade do fundador e do escopo por ele designado»[73].  

Indicativo do respeito da vontade dos instituidores, vertida no ato de instituição (e também nos estatutos), brota também das incumbências do órgão (facultativo) denominado conselho de fundadores ou de curadores, uma vez que a sua missão é, nos termos do artigo 26.º, n.º 2, da LQF, a de velar pelo cumprimento dos estatutos da fundação e pelo respeito da vontade do fundador ou fundadores. Assim, esse órgão, nas suas deliberações, poderá aclarar a vontade do fundador, mas já não lhe será permitido aditar ou inovar, indo além dos parâmetros que a circunscrevem.

3.1 - No caso de o fundador ter fixado encargos nos estatutos (por exemplo, a seu próprio favor ou a favor de outrem), o artigo 34.º da LQF (artigo 191.° do Código Civil) é bem claro, a propósito, ao preceituar no n.º 1 que, se os mesmos afetarem a fundação ou a alguns bens do património fundacional em termos tais que o seu cumprimento impossibilite ou dificulte gravemente o preenchimento do fim institucional, pode a entidade competente para o reconhecimento, sob proposta da administração, suprimir, reduzir ou comutar esses encargos, ouvido o fundador.

Ou seja, se a oneração constituída com os encargos dificultar ou tornar impossível o cumprimento do objetivo social, a solução de declaração de nulidade não se mostra apropriada mas, sim, a que (de entre a supressão, redução ou comutação) desses encargos for a  adequada, cingindo, assim, as consequências ao nível de afetação dos encargos.

E é o reconhecimento que permite à entidade administrativa competente apreciar a suficiência e adequação da dotação para a realização dos fins atribuídos à fundação, devendo nesse processo avaliativo ponderar a existência de encargos que comprometam o conseguimento dos fins de interesse social [cf. artigos 23.°, n.º 1, alínea c), da LQF e 188°, n.º 3, alínea b), do Código Civil].

Os encargos podem ser constituídos logo no ato constitutivo ou nos estatutos (como, por exemplo, prover ao pagamento de determinadas despesas efetuadas pelo fundador e cônjuge) ou sequentemente.

Não obstante a doutrina e a jurisprudência incluírem a cláusula reversiva nas fundações como integrando a disposição em que o fundador estabelece o destino dos bens remanescentes da fundação, há, porém, quem entenda que é enquadrável nesses encargos surgidos a denominada reversão de bens a favor do fundador e descendentes[74]. Segundo este entendimento, considera-se que a cláusula de reversão nas fundações e a disposição em que o fundador estabeleça qual deve ser a destinação dos bens remanescentes após a extinção da fundação são disposições diferentes; e, por isso, devem ser tratadas separadamente, em virtude de a cláusula de reversão fazer parte do ato de dotação, enquanto o dispositivo que regula a destinação do património decorrente da liquidação da fundação é disposição estatutária do fundador contido no ato de criação da entidade [75].

Todavia, do nosso Código Civil, resulta, atento o regime das doações, que a cláusula de reversão e a doação modal (isto é, com encargos) se apresentam como realidades jurídicas diferentes, nada impedindo, aliás, a existência de cláusula de reversão nas doações modais.

Efetivamente, a cláusula de reversão, que constitui uma condição resolutiva, e se carateriza por trazer o bem ao domínio do doador caso sobreviva ao donatário, ou a este e a todos os seus descendentes,  pode ser estipulada em qualquer um dos tipos de doação (pura ou com encargos).

A liberalidade com encargos, que se carateriza por conter uma cláusula acessória típica nas doações (e nas liberalidades testamentárias), denominada de «modal», em que o autor da liberalidade impõe ao respetivo beneficiário a obrigação (encargo) de adotar um certo comportamento, no interesse do próprio disponente ou no interesse de terceiro ou do próprio beneficiário, onera, deste modo, a doação (cf. artigo 963.º do Código Civil).

4 - No que concerne à extinção das Fundações, regem, em especial, em relação às fundações privadas, os artigos 192.º a 194.º, do Código Civil, e os artigos 12.º e 35.º a 38.º da LQF[76].

Os fundamentos ou causas de extinção das Fundações são, segundo o artigo 35.º da LQF[77] (que tem similar redação ao artigo 192.º do Código Civil)[78] , em primeiro lugar, o decurso do prazo (se tiverem sido constituídas por certo período); a verificação de uma qualquer outra causa extintiva prevista no ato de instituição; e o encerramento do processo de insolvência que não admitiu a continuidade da fundação (n.º 1); em segundo lugar, o esgotamento do fim ou impossibilidade superveniente do mesmo; o fim real deixa de coincidir com o fim previsto no ato de instituição; e a ausência de atividade relevante durante três anos (n.º 2); e, em terceiro lugar, o prosseguimento do fim por meios ilícitos ou imorais; ou a existência tornou-se contrária à ordem pública (n.º 3).

A extinção alicerçada nas causas ou fundamentos previstos nas alíneas do n.º 1 do referido artigo 35.º depende de uma proposta da administração da fundação; já, quanto às causas previstas no n.º 2, é desencadeada pela entidade competente para o reconhecimento e, no que concerne às do n.º 3, ocorre por decisão judicial proferida em ação intentada pelo Ministério Público ou pela entidade competente para o reconhecimento (cf. respetivamente, n.º 1 do artigo 36.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 35.º, todos, da antedita Lei Quadro e 192.º, n.ºs 1 e 2, e 193.º, n.º 1, do Código Civil[79]).

4.1 - A extinção, tal como a lei a concebe, e de acordo com o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 163/1976, de 2 de dezembro de 1976,

               «é o acto que precipita a morte próxima da fundação, a qual, daí para a frente, apenas vive com a finalidade de liquidar o seu património, cobrando os créditos e pagando as dívidas e, por fim, dando ao saldo, se o houver, a aplicação determinada nos estatutos ou imposta por lei. Durante a fase de liquidação, a pessoa colectiva subsiste, mas com personalidade por assim dizer reduzida, com o único objecto de  realizar e distribuir o património respectivo».

No âmbito dessa liquidação do património, compete à entidade competente para o reconhecimento tomar as providências necessárias para o efeito, como dimana do disposto no artigo 37.º da LQF, que, sob a epígrafe «Efeitos da extinção»[80], estabelece:

              «1 - A extinção da fundação desencadeia a abertura do processo de liquidação do seu património, competindo à entidade competente para o reconhecimento tomar as providências que julgue convenientes.
2 - Na falta de providências especiais em contrário, é aplicável o disposto no artigo 184.º.»[81].

Dessarte, perdida a suscetibilidade de ser titular de direitos e obrigações, a fundação não pode conservar o património, passando, sim, a ter uma «vitalidade afrouxada», restrita aos atos tendentes à liquidação e, assim, à cobrança dos créditos, ao pagamento das dívidas e à entrega do saldo ou dos bens em espécie aos destinatários previstos nos estatutos ou na lei (ver artigo 184.º do Código Civil, aplicável às fundações privadas ex vi artigos 194º, n.º 1, do Código Civil e 37.º, n.º 2 da LQF).

Em suma, com a extinção de uma fundação, a sua eliminação do número das pessoas coletivas vem acompanhada da liquidação do respetivo património, desencadeando-se, para o efeito, «a abertura do processo de liquidação do seu património»[82] (cf. artigo 37.º, n.º 1, da LQF), e sendo de determinar o destino ao património remanescente, após liquidação (artigo 12.º, n.º 1, da LQF), a menos que  exista, no ato de instituição, disposição expressa do instituidor sobre o destino dos bens em caso de extinção.

Processo de extinção da Fundação que, na verdade, é um processo complexo suscetível de ser composto de três fases (a dissolução, a liquidação e a partilha ou sucessão), sendo que a partilha ou sucessão constitui uma fase eventual que apenas ocorre se houver património líquido positivo[83].

Surge, assim, a questão de saber qual o destino a dar aos bens que integravam o património da fundação extinta que constituem o património remanescente (e assim, quanto aos sobrantes bens originariamente afetados pelo fundador, que advieram à fundação em resultado da sua atividade ou que foram recebidos de terceiros a título gratuito, bem como aos respetivos bens sub-rogados).

4.2 – Ora, a LQF dispõe sobre o concreto destino dos remanescentes bens em caso de extinção das fundações, o que faz no artigo 12.º da LQF, quanto às modalidades de fundações que versa, nos seguintes termos:

«Destino dos bens em caso de extinção

              1 - Na ausência de disposição expressa do instituidor sobre o destino dos bens em caso de extinção, no ato de instituição, o património remanescente após liquidação é entregue a uma associação ou fundação de fins análogos, designada de acordo com um critério de precedência fixado pelos órgãos da fundação ou pela entidade competente para o reconhecimento, por esta ordem.

               2 - Caso a entidade designada não aceite a doação, é designada uma outra de fins análogos, segundo o mesmo critério de procedência.

              3 - Esgotados os meios de atribuição do património remanescente previstos nos números anteriores sem que tenha havido aceitação, os bens revertem a favor do Estado.»

Este preceito, inserido nas disposições gerais da Lei Quadro, constitui norma imperativa aplicável às fundações privadas, bem como, por força do artigo 60.º, n.º 3, da mesma Lei, às fundações públicas de direito privado.

Já quanto às fundações privadas de solidariedade social, às fundações de cooperação para o desenvolvimento e às fundações para a criação de estabelecimentos de ensino superior privados aplicam-se-lhes, com as especificidades constantes da respetiva secção, ex vi, respetivamente, artigos 39.º, n.º 2, 42º, n.º 2, e 45.º, n.º 2, da mesma Lei, os artigos especificamente atinentes às fundações privadas (artigos 14.º a 38.º), bem como ainda os preceitos atinentes às disposições gerais sobre as fundações (artigos 1.º a 13-A.º também da LQF) e, assim, o referido artigo 12.º.

Sem prejuízo, no que concerne às fundações privadas de solidariedade social, constituídas como instituições particulares de solidariedade social[84], o artigo 39.º, n.º 3, da LQF manda aplicar o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro)[85], o qual designadamente regra sobre o destino dos bens das instituições extintas no artigo 27.º [86].

E o artigo 60.º da LQF, que sob a epígrafe «Extinção», estabelece que, havendo instituidores privados, a decisão de extinção de fundação pública de direito privado é precedida de audição desses instituidores (n.º 1) e no seu n.º 3, concernente ao destino dos bens, havendo esse tipo de instituidores, determina que se siga a norma imperativa que o artigo 12.º, n.º 1, da LQF constitui, quanto à parte do património que lhes corresponderia em caso de extinção.

Não havendo instituidores privados, estabelece o n.º 2 que:

              «[e]em caso de extinção de fundação pública de direito privado, o património remanescente após liquidação reverte para a pessoa coletiva de direito público que a tenha criado ou, tendo havido várias, para todas, na medida do seu contributo para o património inicial da fundação ou do número de membros dos órgãos de administração, de direção ou de fiscalização da fundação que podia designar» .

Ou seja, o património remanescente reverte para as pessoas coletivas de direito público fundadoras na medida do respetivo contributo para o seu património inicial[87]. E, havendo instituidores particulares, à parte do património que, pela extinção da fundação, lhes corresponderia, observa-se o disposto no artigo 12.º.

Por sua vez, no que concerne às fundações públicas, estabelece o artigo 56.º da LQF, no n.º 2, que a decisão de extinção é tomada pelas entidades instituidoras públicas, devendo ser acautelada, sempre que possível, a transferência do património da fundação pública para entidades públicas que prossigam fins análogos.

Afigura-se-nos ser assim intenção do legislador que o património remanescente (incluindo os direitos e obrigações que porventura subsistam após a liquidação) afeto a uma fundação pública, no caso de extinção, continue afeto a fins análogos, sendo, em vista a esta finalidade, transferido para entidades públicas que prossigam esses fins. O que apenas não acontecerá se tal for objetivamente impossível, quer quanto às pessoas quer quanto ao objeto por inexistirem entidades públicas que prossigam fins idênticos ou aproximados.

Já de acordo com o artigo 12.º da LQF, o património remanescente da fundação privada extinta pode  ter o destino previsto no ato de instituição ou nos estatutos, sendo estes que primeiramente fixam a destinação desse património.

4.3 – Por sua vez, o Código Civil, no que concerne ao destino dos bens das pessoas coletivas em caso de extinção, dispõe no artigo 166.º que:

             «1 - Extinta a pessoa coletiva, se existirem bens que lhe tenham sido doados ou deixados com qualquer encargo ou que estejam afetados a um certo fim, o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer associado ou interessado, ou ainda de herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, atribui-los-á, com o mesmo encargo ou afetação, a outra pessoa coletiva.

               2 - Os bens não abrangidos pelo número anterior têm o destino que lhes for fixado pelos estatutos ou por deliberação dos associados, sem prejuízo do disposto em leis especiais; na falta de fixação ou de lei especial, o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários ou de qualquer associado ou interessado, determinará que sejam atribuídos a outra pessoa coletiva ou ao Estado, assegurando, tanto quanto possível, a realização dos fins da pessoa extinta.»

 Atento o teor do preceito transcrito, releva, em primeiro lugar, o fixado nos estatutos quanto ao destino dos bens, com exceção apenas dos casos de bens que tenham sido doados ou deixados com qualquer encargo ou que estejam afetados a um certo fim.

Este preceito do Código Civil aprovado em 1966 e até à reforma de 2012, era o que regrava sobre o destino dos bens em caso de extinção das pessoas coletivas (associações e fundações) [88], com redação idêntica à vigente, inserido nas disposições atinentes à regulação das pessoas coletivas, não obstante as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro[89].

Assim, e considerando o disposto no artigo 12.º da LQF, as opiniões doutrinárias e jurisprudenciais têm sido divergentes acerca do destino dos bens em caso de extinção das fundações. Divergências que já existiam antes da entrada em vigor da LQF, altura em que apenas dispunha sobre a matéria o artigo 166.º do Código Civil.

E a divergência essencial ocorre quanto à admissibilidade legal ou não da reversão de bens a favor do fundador (ou dos seus descendentes ou doutrem) e quanto à amplitude dessa reversão.

4.3.1 - Divergência essa que se vem mantendo, em Portugal desde o Código de Seabra, mas não só.

JOAQUIM SOUSA RIBEIRO, em 2001, considera, de jure condendo,  que, no quadro da doação, «a reversão (de objecto predeterminado, pois correspondente ao da doação) depende da verificação de uma condição inteiramente casual (o predecesso do donatário), que não está nas mãos do doador influenciar, sendo, nestas condições, um meio de afirmação e suporte do carácter pessoal da liberalidade», já a «extinção da fundação pode ser predeterminada pelo fundador (al. a) do n.º 1 do art.° 192.°), correndo-se o risco, sobretudo neste caso, de a reversibilidade servir de travão ao cumprimento perfeito do programa fundacional, pois, quanto menos se despender na prossecução do fim, mais retornará à esfera do instituidor»[90].

RUI CHANCERELLE DE MACHETE e HENRIQUE SOUSA ANTUNES, em 2004, visando a reforma do regime das fundações, consideraram que jamais pode a fundação servir essencialmente interesses privados, devendo prever-se uma proibição estrita de distribuição, pelo que bens, rendimentos e lucros de uma fundação devem ser usados para prosseguir os fins de utilidade pública dessa fundação e não devem ser usados, direta ou indiretamente, para beneficiar qualquer fundador ou doador. E assim, segundo os mesmos autores[91]:

              «No caso de extinção, quaisquer bens restantes devem ser utilizados em fins de utilidade pública ou entregues a uma outra organização de utilidade pública com fins tão próximos quanto possível daqueles que a organização extinta prosseguia»[92].

Por sua vez, JOÃO DE CASTRO MENDES, considera que:

               «Quanto ao destino do património da fundação, pode encontrar-se fixado no acto da instituição ou nos estatutos (art.º 186.º, n.º 2) e então é esse regime que se segue. Na falta de fixação, aplica-se o artigo 166.º»[93].

E a seguir a essa consideração transcreve o «grande princípio» que, segundo MANUEL DE ANDRADE, «por interpretação e integração da nossa lei, se colige»:

              «É o de que a sorte do património das pessoas colectivas extintas está de acordo com o destino que lhe competia enquanto durou a pessoa colectiva, ou seja, com a finalidade específica para cuja prossecução ela se constituiria. Poderá dizer-se, portanto que a sucessão das pessoas colectivas é, essencialmente, uma sucessão teleológica». [94]

Para PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[95] haveria sempre que respeitar qualquer cláusula fideicomissária (cf. n.º 1 alínea c) do artigo 2295.º) ou o destino fixado pelo instituidor das fundações  (cf. n.º 2 do artigo 186.º).

Como vimos, o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996 considerou válida uma cláusula de reversão a favor do fundador e dos seus herdeiros no caso de extinção da «Fundação», respeitante aos bens que o fundador afetou ao património desta.

Acórdão que mereceu anotação por MANUEL HENRIQUE MESQUITA [96], em que expendeu que a cláusula de reversão apenas é válida se os bens versados forem os bens doados e os que, por sub-rogação, ocupem o lugar deles, pois só em relação aos mesmos é que o fundador pode estabelecer uma cláusula de reversão, por terem provindo do seu património através de uma liberalidade[97].

Também JORGE SINDE MONTEIRO e PAULO VIDEIRA HENRIQUES[98] entendem ser admissível que o instituidor disponha do património da fundação extinta a favor dos seus descendentes, naturalmente em relação aos bens que haja atribuído à Fundação, desde que essa faculdade tenha sido prevista nos estatutos.

MANUEL VILAR DE MACEDO, em 2008, refere que:

               «[n]ada parece obstar a que, aquando da declaração de extinção, os bens revertam a favor do doador. V., neste sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., vol. 1, pp. 308-309.»[99]

E entende que deve, também aqui,

              «ser aplicado o regime do artigo 166.º do Código Civil quanto aos bens onerados com encargos»[100].

Aliás, em abono desta tese (de admissibilidade da reversão) era (e é) invocado o disposto nos artigos 186.º, n.º 2,  e 960.º, n.º 1, do Código Civil e a natureza supletiva do artigo 166.º do mesmo Código [101].

E o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no referido Parecer n.º 163/1976, manifestou-se claramente a favor da reversão dos bens com que o fundador dotara a fundação, a favor deste ou dos seus herdeiros, em caso de extinção da fundação. Efetivamente, após aduzir que o § único do artigo 36.º do Código de Seabra expressamente admitia a reversão de bens no caso de extinção das fundações, considerou que «[o] respeito pela vontade do instituidor veio, porém, a obter consagração explícita no Código Civil (…) em vigor», artigos 186.º, n.º 2, e 166.º, nº, 2, concluindo pela validade da cláusula, na qual se estabelecia que, no

              «caso de a Fundação se extinguir ou se desviar dos seus fins, por motivos estranhos à vontade do fundador, os bens por ele doados voltarão à sua posse e propriedades e, se este tiver falecido, reverterão a favor dos herdeiros do mesmo».

Após a entrada em vigor da Lei-Quadro das Fundações, para CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA[102], a reversão dos bens para o património do fundador, mesmo não existindo uma norma geral que consagre a irreversibilidade dos bens afetados pelo fundador à fundação, nunca será admissível, já que vai manifestamente contra o princípio da irrevogabilidade da instituição da fundação. Assim, os bens que integravam o património da fundação extinta,

              «podem ter o destino que estiver previsto no acto de instituição ou nos estatutos (art. 186.º, n.º 2 do C.C., conjugado com o disposto no art. 188.º, n.º 5 do C.C. com as necessárias adaptações) desde que não esteja em causa a reversão desses bens para o património do fundador ou para o seu património hereditário e desde que esse destino implique a re-afetação dos bens a fins de interesse social.

              Já quanto aos bens que tenham sido doados ou deixados à fundação com qualquer encargo ou na condição de afectação a uma causa, o seu destino será determinado pelo tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer interessado, ou ainda, dos herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, que os atribuirá, como mesmo encargo ou afectação, a outra pessoa coletiva, prioritariamente a outra fundação ou associação de fins análogos. Parece-nos ser esta a melhor solução à luz do disposto no n.º 2 do art.º 191° do CC. que, neste caso, deverá ser invocado como princípio orientador em matéria de doações sujeitas a encargos, feitas à fundação extinta, por terceiros e que não integram o património inicial da fundação. Tendo ainda em conta o disposto na citada disposição legal, sempre será de ouvir a entidade competente para o reconhecimento na escolha da pessoa coletiva, preferencialmente uma fundação, que irá receber, por re-afetação, esses bens».

Na mesma senda, SUZANA CRISTINA SOUSA RODRIGUES[103] considera que:

              «De realçar que o importante é que o património da fundação não pode em caso algum reverter a favor do fundador ou herdeiros, visto que isso poria em causa o princípio da irrevogabilidade da instituição».       

E no Acórdão da Relação de Guimarães de 18 de janeiro de 2018 (processo n.º 301/12.5TCGMR.G2), referiu-se, acerca do destino dos bens no caso de extinção de fundação privada:

               «Esses bens podem ter o destino que estiver previsto no ato de instituição ou nos estatutos, se não estiver em causa a reversão desses bens para o património do fundador ou para o seu património hereditário e desde que esse destino implique a reafectação dos bens a fins de interesse social. Os bens doados à fundação com algum encargo ou condição de afectação a uma causa terão o seu destino determinado pelo tribunal.

              Por outro lado, é fundamental distinguir entre os bens afectos a determinado fim (bens vinculados) e os bens que não estão afectos a qualquer fim determinado (bens livres). Os primeiros são entregues a outra pessoa colectiva com um fim compatível.

               Os segundos terão o destino determinado nos estatutos, na deliberação de extinção, ou, em último recurso, em decisão de tribunal».

Por sua vez, HENRIQUE SOUSA ANTUNES, após a reforma de 2012, no concernente à reversão dos bens ou, de qualquer modo, à deixa a uma entidade sem fins de interesse social, refere que:

             «Segundo o Acórdão do STJ de 24.10.1996 (214) e a anotação subsequente de HENRIQUE MESQUITA (1997:141,142) é válida uma cláusula de reversão (assim, também, OLIVEIRA ASCENSÃO, 2000:338). Os art.ºs 166.°, n.º 2 (versão anterior à Lei-Quadro das Fundações), 186.°, n.º 2 e 960.°, n.º 1, do Código Civil, fundamentam a orientação. Sabendo que o regime das liberalidades é, também, aplicável à dotação patrimonial em benefício de uma fundação, o art.º 960.°, n.º 1, atribui, especificamente, ao doador a faculdade de estipular a reversão da coisa doada.»[104]

E igualmente aduz que [105]:

               «dispunha o art.º 166.° do Código Civil, sobre a extinção das pessoas coletivas em geral. Quanto às fundações, dispõe agora o art.º 12.° da respetiva Lei-Quadro (...). Solução idêntica encontra-se no art.º 23.°, n.º 2, al. b), da Lei-Quadro das Fundações, a respeito da recusa de reconhecimento da instituição por insuficiência dos bens. Note-se, porém, que a mesma lei que aprovou este regime, manteve o disposto no art.º 188°, n.º 3 [agora n.º 5] do Código Civil. (…)               

Para A. BARRETO MENEZES CORDEIRO,«[o] regime jurídico do destino dos bens em caso de extinção encontra-se hoje previsto no 12.º da LQF afastando consequentemente, o regime geral do 166.º. Extinta a fundação, os bens revertem para quem o instituidor expressamente determinar e, na ausência de qualquer indicação, para associação ou fundação de fins análogos»[106].

II

A fim de nos possibilitar dar resposta à questão formulada no pedido de consulta, não podemos deixar de efetuar, ainda, um breve enunciado do regime contemplado no Código de Seabra com especial enfoque no destino dos bens em caso de extinção das fundações, bem como acerca do anteprojeto e projetos do Código Civil de 1966 e, ainda do anteprojeto da Lei Quadro das Fundações. Seguir-se-á uma breve abordagem de outros ordenamentos jurídicos, relativamente ao regime das fundações, em especial no que concerne à admissibilidade ou não da reversão em caso de extinção das fundações.

1 - O Código Civil de 1867 (conhecido por Código de Seabra)[107], no que concerne às fundações[108], fazia-lhe acidentalmente referência no artigo 37.º e nada mais»[109], embora o Código dispusesse sobre as «Pessoas Morais» nos artigos 32.º a 39.º[110]

E sobre a extinção das pessoas coletivas estabelecia o artigo 36.º que:

               «Se alguma das corporações ou associações, a que se refere o artigo antecedente, por qualquer motivo se extinguir, os seus bens serão incorporados na Fazenda Nacional, quando lei especial lhes não tenha dado outra aplicação».

A propósito do referido artigo 36.º, e em anotação a este, JOSÉ DIAS FERREIRA, em 1870, expendia que:

                «[a] regra geral é que as cláusulas e condições impostas pelos testadores ou doadores que fazem qualquer donativo devem respeitar-se salvo se forem contrárias às leis ou aos bons costumes»[111].

E JOSÉ TAVARES [112], em 1928, considerava que:

               «O Princípio que deveria ser consignado na lei é o respeito pela vontade dos fundadores (…) e, na falta de manifestação dessa vontade, dar-se aos bens o destino mais harmónico com os fins da pessoa colectiva, como se determinou nas leis reguladoras das associações de classe e dos socorros mútuos, e como se dispõe nos códigos modernos.»

O Decreto n.º 19126, de 16 de dezembro de 1938, veio alterar o Código Civil , designadamente os artigos 36.º e 37.º [113], tendo aditado ao primeiro um  parágrafo único, com a seguinte redação:

              «§ único. São válidas, porém, as cláusulas em que os fundadores ou benfeitores de qualquer pessoa moral estipulem o destino a dar aos bens no caso de extinção»[114].

Face a este aditamento, é de salientar que estava assegurada a eficácia de qualquer cláusula estatutária que predispusesse para os bens da pessoa coletiva extinta destino diverso do fixado no corpo do artigo, solução que anteriormente era impugnada «com o fundamento de se tratar de uma norma de interesse e ordem pública, como tal inderrogável por estipulação negocial»[115].

Ou seja, com tal aditamento, veio o Código de Seabra claramente permitir, no caso de extinção da fundação, a aposição pelos fundadores ou doadores de cláusulas em que estipulassem o destino dos bens e, assim, por a lei o não impedir, a reversão de bens, designadamente a favor dos fundadores ou doadores e seus familiares. Reversão de coisas doadas[116], que o artigo 1473.º desse oitocentista Código Civil[117] previa, admitindo-a[118].

Na verdade, a validade da cláusula de reversão resultava claramente  do § único do artigo 36.º, havendo que observar para as pessoas coletivas de direito privado, antes de mais nada, o que acerca do destino dos respetivos bens, em caso de extinção, estiver determinado nos estatutos[119].

Com o indicado aditamento, precavia-se a possibilidade de existência de disposições legais que estabelecessem, relativamente a (determinadas) pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, em vista da sua extinção, outro destino para os bens, como era o caso dos artigos 371.º (no concernente a associações ou institutos) , 386.º (relativamente  aos institutos de utilidade local) e 382.º (quanto a Associações humanitárias) do Código Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27.424, de 31 de dezembro de 1936. Código Administrativo que viria a ser alterado pelo Decreto-Lei n.º 31.095, de 31 de dezembro de 1940, que passou a dispor sobre os efeitos da extinção de pessoas coletivas de utilidade pública administrativa no artigo 432.º[120], sobre os efeitos da extinção de outras associações de beneficência no artigo 443.º [121] e acerca dos efeitos de extinção das Associações Humanitárias no artigo 448.º[122]

2 – O anteprojeto de FERRER CORREIA tratava do destino de bens das pessoas coletivas de modo disperso, designadamente no que concerne às associações (artigo 50.º) e às fundações (artigo 74.º), tendo cada um destes preceitos a epígrafe «Destino de bens».

Na primeira revisão ministerial [projeto do Livro 1 (da 1.ª revisão ministerial)], foi mantido esse tratamento disperso (artigos 144.º a 146.º e 164.º. Este último respeitava às fundações e propunha que o destino dos bens fosse o previsto nos estatutos (n.º 1) e, na falta de previsão, o Governo tomaria as providências destinando os bens a outros estabelecimentos análogos (n.º 1, segundo parágrafo)[123].

MARCELLO CAETANO, pronunciando-se acerca destes preceitos considerou que tais dispositivos deviam ser incluídos nas disposições gerais e preconizava que nas fundações por tempo indeterminado o destino dos bens teria de ser sempre de utilidade pública[124], podendo o fundador acerca dos bens com que dota a fundação indicar o seu destino em caso de extinção desta: «outro fim de utilidade pública» (artigo «J» n.º 3»): já no artigo 148.º, n.º 2,  2.ª parte, do referido projeto (primeira Revisão Ministerial) se expendia que o fundador podia nos estatutos prover ainda acerca do destino do património»[125].

E ainda no referido artigo «J», n.º 4, previa-se que, no caso de fundações temporárias, podia estabelecer-se outro fim que não fosse o de utilidade pública, já que aí se dizia:

             «Só é permitida a instituição de fundações temporárias por prazo não inferior a trinta anos e não superior a sessenta anos e nelas é lícito prever o destino dos bens em caso de extinção a outro fim que não seja de utilidade pública».

O mesmo Autor [126], acerca das fundações a que fosse aplicável a lei civil, como as fundações privadas, questionando-se sobre se a vontade do seu instituidor seria de respeitar relativamente a todos os bens que restassem após a liquidação, depois de ter indicado que, «quanto àquelas fundações a que seja aplicável a lei civil, a vontade do instituidor será de respeitar relativamente a todos os bens que respeitarem após a liquidação», expressou que:

              «terá de fazer-se uma discriminação entre os bens do instituto correspondentes à dotação feita pelo instituidor, e os que posteriormente lhe tenham acrescido por doação, herança, legado ou compra, bem como as benfeitorias introduzidas na dotação inicial.

              O instituidor terá o direito de dispor dos bens da fundação, no caso da extinção desta, mas apenas daqueles que hajam entrado no património da pessoa por liberalidade sua e nos precisos termos desta, isto é, independentemente das benfeitorizações neles introduzidas».

E na proposta pessoal que apresentou, tratava do destino dos bens em dois artigos: «N»[127], incluído sistematicamente na secção das Disposições das Pessoas Coletivas e «R»[128], incluído sistematicamente na secção específica das Fundações.

Na segunda revisão ministerial, a matéria do destino dos bens passou a ser tratada em um único artigo (168.º) comum às diversas pessoas coletivas. Orientação que foi seguida no projeto de lei e mantido no Código Civil aprovado com ligeiras alterações [129].

3 – Por sua vez, o Anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, nas alterações ao Código Civil, na redação do artigo 194º-A, que se transcreve no Parecer do Centro de Competência Jurídicas do Estado (JurisAPP)[130], constante do expediente que acompanhou o pedido de parecer a este Conselho Consultivo, expressamente, de modo direto, claro e perentório, se impedia a reversão ao determinar que os bens remanescentes seriam «entregues a uma associação ou fundação de fins análogos, designada pelo instituidor no acto da instituição, pelos órgãos próprios da fundação ou pela entidade competente para o reconhecimento, por esta ordem» e que seria «nula qualquer disposição estatutária ou deliberação social» que o contrariasse[131].  

E no n.º 4 do artigo 12.º do mesmo anteprojeto, seguindo uma posição diametralmente oposta à vertida no § único do artigo 36.º do Código de Seabra, expressamente se consignava que, em caso algum, o património reverte, extinta a fundação, para os seus instituidores ou familiares.

O Centro Português de Fundações pronunciou-se acerca desse anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, a 30 de novembro de 2011 [132],  referindo que «[a]lgumas soluções jurídicas do anteprojecto (…) podem mesmo  traduzir limitações inconstitucionais à autonomia privada e à livre disposição do património». Entre essas soluções indica: «a proibição absoluta da possibilidade de reversão dos bens da fundação para o instituidor ou os seus familiares, revela uma pré-compreensão negativa sobre as fundações e a sua utilidade social».

E, o mesmo Centro Português de Fundações, em apreciação específica ao referido artigo 194.º-A expende que:

               «Este artigo constitui uma clara violação do princípio (constitucional) de livre disposição do património que não é justificável para entidades de natureza privada (…). Não se compreende, por exemplo, por que razão uma pessoa individual não pode instituir uma fundação temporária (…) e não possa dispor sobre o destino dos bens após a extinção da fundação».

 Entendimento que, em suma, reiterou relativamente ao artigo 12.º do anteprojeto da Lei-Quadro.

Todavia, o sentido de claro e assumido impedimento da reversão de bens a favor do fundador e dos seus familiares contemplado, no referido anteprojeto de Lei, não foi vertido na Proposta de Lei do Governo n.º 42/XII/1.ª[133] que, viria a dar causa à Lei n.º 24/2012, não obstante, no que especificamente respeita às fundações privadas (Título II da Lei-Quadro) claramente se afirmar, na exposição de motivos, que:

              «A lei-quadro obedece a uma preocupação central, que é a de devolver o regime fundacional à sua original natureza altruísta».

E, ainda na exposição de motivos da referida proposta de lei, também se expende que:

                «A trave mestra do regime é, naturalmente, o primado do respeito pela vontade do fundador».

Verifica-se, assim, que a opção plasmada no anteprojeto da LQF, em que expressamente se proibia a reversão, não mereceu acolhimento na proposta de lei nem foi contemplada na lei aprovada em 2012 nem nas subsequentes alterações efetuadas ao regime das fundações consignado na LQF e no Código Civil, mostrando-se, assim, que o legislador, pelo menos, abandonou a (ou não persistiu na) implantação de um regime em que expressa e diretamente se contemplasse que, em caso algum, o património da fundação extinta reverteria para os seus instituidores ou fundadores (como o fazia o artigo 12.º, n.º 4, desse anteprojeto[134]) e, deste modo, que o fundador, embora pudesse dispor sobre o destino dos bens remanescentes, em caso de extinção de fundação, em caso algum poderia destinar esse património para si ou para seus herdeiros.

A esse abandono não será alheia a crítica manifestada pelo Centro Português de Fundações, que a considerou, no que concerne aos referidos preceitos do anteprojeto, como sendo inconstitucional por ofensa ao princípio da livre disposição do património.

A isto acresce que, havendo várias fundações criadas aquando da vigência do Código de Seabra, em que se mostra contemplada a reversão de bens, esse abandono parece igualmente inculcar a conclusão (ou é suscetível de encaminhar para a solução) no sentido da não proibição dessas cláusulas e da sua validade e, assim, de não compressão da autonomia privada do fundador.

Como se diz no referido parecer do Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP) n.º «JURISAPP/P/2021/00117»:

              «O elemento histórico da interpretação fornece razões para considerar que foi opção do legislador não integrar no regime positivo qualquer imposição, proibição e norma de (in)validade sobre cláusulas de reversão».

4 - Os vários ordenamentos jurídicos da Europa[135], no que concerne às fundações privadas e em especial acerca do destino do património institucional, no caso de extinção dessas fundações, têm dado respostas diferentes[136], o que radicará consoante predomine, na estruturação de tal tipo de pessoas coletivas, a vontade e os direitos do Fundador (a denominada teoria da vontade),  como acontece na Alemanha, ou a teoria institucional ou funcional, do objetivo da fundação e da sua relevância para a realização do interesse comum[137], como acontece em França, em que as fundações são instituídas para prosseguir fins de interesse social e a vontade privada apenas se manifesta na fase da sua constituição, estando toda a sua atividade e fins sujeitos ao controlo administrativo do próprio Estado, havendo como que uma simples doação modal à Administração[138].

Certo é que quer os regimes legais  quer a doutrina (e a jurisprudência), por vezes no mesmo país[139], não são uniformes, sendo paradigmático o caso de Espanha como adiante veremos.

4.1 - Assim, na Alemanha, em que as fundações se mostram disciplinadas nos § 80 a 88 do BGB (Código Civil), dá-se relevância ao reificado no ato constitutivo, como o indica o disposto no § 87-C do BGB[140] ao dispor no n.º 1, acerca do destino dos bens em caso de extinção da fundação, que  

              «(1) Com a dissolução ou a extinção da fundação, o património da fundação transmite-se aos sucessores determinados nos estatutos. Os estatutos podem prever que os sucessores sejam determinados por um órgão da fundação. Se os estatutos não especificarem quem são os sucessores, os bens da fundação transmitem-se à fazenda pública do Estado («land») em que a fundação estava domiciliada. A legislação estadual pode designar outra pessoa de direito público como sucessora em lugar da fazenda pública.»[141] (tradução livre).

Face a tal normatividade, é admissível, para a maioria da doutrina, a reversão a favor do fundador[142].

4.2 – Por sua vez, em Itália, o Código Civil[143], que rege acerca das associações e das fundações nos artigos 14.º a 35.º (Capítulo II do Livro II, que tem por objeto as Pessoas Jurídicas, do Título I – Das Pessoas e da Família), estabelece acerca da transferência de ativos da fundação extinta no artigo 31.º que:

               «Os bens da pessoa coletiva, que subsistam após a liquidação, são devolvidos nos termos do ato constitutivo ou dos estatutos.

               Caso estes nada disponham, tratando-se de fundação, a autoridade governamental providencia, atribuindo o património a outras entidades com fins análogos; (…)»

 E no artigo seguinte, acerca da transferência de bens com destino determinado, regra:

              «Em caso de transformação ou extinção de entidade, à qual tenham sido doados ou deixados bens para finalidade diversa da própria entidade, a autoridade governativa cede esses bens, com igual ónus, a outras pessoas jurídicas com fins análogos».

Verifica-se, assim, que, na ausência de disposições no ato de fundação ou no estatuto, é o poder público que atribui os bens remanescentes a outras entidades que prossigam finalidades análogas às da fundação extinta. Devido à natureza de utilidade pública do âmbito da fundação e ao constrangimento de destinações ao património, foi excluída a possibilidade de a escritura de fundação prever a restituição de bens ao fundador (ou seus herdeiros) em caso de extinção da fundação[144].

Ou seja, «o ato constitutivo não pode prever que os bens remanescentes retornem ao fundador ou passem para os seus herdeiros, a menos que o próprio fundador seja (…) uma entidade com fins análogos»[145].

Com efeito, a doutrina (dominante), como realça MICHELLA MACARI[146], exclui a possibilidade de devolução a favor dos fundadores, argumentando que a autonomia dos particulares se limita à possibilidade de identificar uma entidade com fins análogos a que se destine o património remanescente. Além disso, nas fundações, as cláusulas que permitam a devolução do património ao fundador, ou aos seus herdeiros, seriam incompatíveis com a finalidade de utilidade pública das fundações.

4.3 - Na Bélgica, as fundações são regidas pela Lei de 27 de junho de 1921, modificada, designadamente pela Lei de 2 de maio de 2002.

De acordo com a referida Lei, o ato constitutivo mencionará, nomeadamente o destino dos bens da fundação em caso de dissolução (artigo 28.º, n.º 6). E o tribunal pode permitir, em caso de extinção, a atribuição de bens em conformidade com os estatutos (artigo 40.º, n.º 1), não podendo, porém, a afetação de bens, prejudicar os direitos dos credores (artigo 41.º).

Assim, o património da fundação em caso de dissolução[147] deverá ser destinado a um escopo desinteressado (previsto nos estatutos). No entanto, os estatutos podem prever que, no caso de extinção por o escopo desinteressado da fundação se ter realizado, o fundador ou seus sucessores podem recuperar uma quantia igual ao valor da propriedade ou da própria propriedade que tenha atribuído à realização desse fim pelo fundador (artigo 28.º, § 6.º).

Este destino é apenas legalmente previsto e admitido no caso de a extinção se dever à realização do objetivo da fundação (cf. artigo 39.º que versa as causas de extinção da fundação, prevendo no § 1.º como causa de extinção a realização dos fins).

A reversão de bens, introduzida pela Lei  de 2 de maio de 2002, encontra-se, assim, sujeita ao cumprimento de certas condições, sendo que esta

              «faculdade havia sido fornecida pelo legislador para os casos de fundações criadas pelos pais para atender às necessidades de filho deficiente. Em caso da morte deste último, a equidade exige que os fundadores possam recuperar os bens  com que contribuíram ou uma soma equivalente »[148].

Assim, a afetação de bens à fundação

              «é, em princípio, irrevogável. Os bens reportados não mais entrarão no património dos fundadores e, em princípio, nunca mais farão parte do património familiar, a menos que os fundadores o proponham, nos termos do artigo 28, 6°, in fine, da lei»[149].

4.4 -  O Código Civil Espanhol aprovado pelo Decreto Real de 24 de julho de 1889, que dispõe sobre as pessoas jurídicas nos artigos 35.º a 39.º, estabelece no artigo 35.º, n.º 1, que são pessoas jurídicas:

              «As corporações, associações e fundações de interesse público reconhecidas por lei.

               A sua personalidade começa desde o momento em que, de acordo com a lei, foram validamente constituídas.»

No que concerne à extinção das pessoas jurídicas estabelece o artigo 39.º  do Código Civil que:

              «Se, por decurso do prazo em que funcionaram legalmente ou por terem cumprido o fim para que foram constituídas, ou por já não ser possível o exercício da atividade e dos meios de que dispunham, as corporações, associações e fundações deixarem de funcionar, dar-se-á o destino aos seus bens que  as leis, os estatutos, ou as cláusulas fundadoras  lhes atribuam. Se nada tiver sido previamente estabelecido, esses bens serão destinados à realização de fins análogos, no interesse da região, província ou município que deva arrecadar principalmente os benefícios das instituições extintas.»

E a Lei das Fundações («Ley de Fundaciones») aprovada pela Lei n.º 50/2002, de 26 de dezembro, não permite a reversão dos bens das fundações para patrimónios privados, depois de terem estado vinculados a finalidades de interesse público prosseguidas por aquelas instituições de acordo com o artigo 33.º na redação vigente (dada pela Lei n.º 20/2022, de 19 de outubro)[150].

Aliás, a mesma lei determina, que «[e]m nenhuma hipótese, poderão ser constituídas fundações com a finalidade precípua de destinar os seus benefícios ao fundador ou aos empregadores, a seus cônjuges ou pessoas em relação afetiva análoga, ou a seus parentes até o quarto grau inclusive, bem como a pessoas jurídicas individuais que não prossigam fins de interesse geral» (artigo 3.º, n.º3) , determinando ainda de modo impositivo que: «[q]ualquer disposição dos estatutos da fundação ou manifestação da vontade do fundador que for contrário à Lei será considerado não constituído, a menos que afete a validade constitutivo dela. (…)» (artigo 11.º, n.º 2).

4.4.1 - Se na maior parte das Comunidades Autónomas, quanto ao destino de bens das respetivas fundações da respetiva Região, se seguiu essa opção, como por exemplo, na Comunidade Autónoma de La Rioja, na Catalunha, na região das ilhas Canárias, na Andaluzia, na Região de Castela e Leão e na Comunidade Valenciana[151], já nas regiões de Madrid, de Navarra[152] e da Galiza[153] foi admitida a possibilidade de reversão[154].

A Lei das Fundações da Comunidade de Madrid (aprovada pela Lei n.º 1/1998, de 2 de março, publicada in «BOE» número 192, de 12 de agosto de 1998), no artigo 27.º especifica que os bens e direitos resultantes da liquidação da fundação extinta terão o destino previsto pelo fundador (parágrafo 2).

Caso o fundador não o tenha previsto, será decidido, primeiramente, pelo Conselho de Curadores se esta faculdade for reconhecida pelo fundador; e, na sua falta, cabe ao Protetorado cumprir esta tarefa (parágrafo 3). Nestas situação, tais ativos serão atribuídos, em qualquer caso, a fundações, entidades privadas sem fins lucrativos ou entidades públicas que prossigam fins de interesse geral, que desenvolvam principalmente as suas atividades na Comunidade de Madrid, e cujos ativos sejam afetados, mesmo na hipótese de sua dissolução, para a consecução de tais fins (parágrafo 4).

Por sentença do Tribunal Constitucional de Espanha n.º 341/2005[155],  o parágrafo 2 do artigo 27.º foi declarado constitucional se interpretado no sentido de permitir a reversão de bens e direitos, expendendo-se na fundamentação:

               «se em casos concretos se manifestasse um desvio patológico na aplicação da Lei, de modo a que a liquidação produzisse lucro para o fundador (ou para as pessoas singulares ou coletivas por ele designadas), incompatível com o interesse geral que deve presidir o instituto da fundação, o Estado de Direito dispõe de instrumentos suficientes para arbitrar os controles oportunos que cada caso requer, tendo em vista a legislação civil e regulamentação específica sobre fundações. Nesse sentido, deve-se levar em conta que a caracterização das fundações como entidades sem fins lucrativos não seria compatível com eventuais cláusulas de reversão que afetem bens ou direitos diversos daqueles de que o próprio fundador dotou a fundação» (tradução livre)[156].

Ou seja, a reversão foi admitida relativamente aos bens ou direitos com que o próprio fundador dotou a fundação.

Verifica-se, assim, a coexistência de dois tipos de sistemas de distribuição do património remanescente das fundações  extintas: O que obriga a serem destinados a outras entidades sem fins lucrativos e o que permite que os bens tenham o destino que o fundador teria antecipado, seja qual for.

4.5 - No Brasil, as fundações, enquanto pessoas coletivas de direito privado, encontram-se reguladas nos artigos 62.º a 69.º do Código Civil[157].

De acordo com o regime legal, a fundação é constituída por negócio jurídico entre vivos, estando o instituidor obrigado a transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado judicial (artigo 64.º)[158]

Acerca das causas de extinção e do destino dos bens, dispõe o artigo 69.º, estabelecendo que, caso a finalidade que visa a fundação se torne ilícita, impossível ou inútil, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, promoverá a sua extinção, sendo o seu património incorporado, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se proponha a fim igual ou análogo.

III

1 - Nem o Código Civil atual (mesmo em qualquer das anteriores versões) nem a LQF tratam de forma explícita da reversão do património fundacional remanescente  (ou de parte deste) ao fundador ou a familiares. Mas, não só não tratam, de forma expressa, desta matéria como igualmente inexiste qualquer norma que expressamente a proíba ou condicione, ou sequer fixe quaisquer consequências legais para a sua existência.

Património remanescente que pode ou não ser constituído, total ou parcialmente, pelo património que integrara a dotação patrimonial inicial (ou pelos bens que estiverem no lugar dele)[159].

Assim, mostra-se que o património remanescente, a existir, pode ser constituído por bens ou direitos que integraram a dotação[160] ou que, por sub-rogação, ocupem o lugar deles, bem como por outros bens ou diretos adquiridos ou obtidos durante a sua atividade, incluindo frutos.

E é relativamente à legalidade da fixação estatutária do destino dessa plêiade de bens (e direitos) que integram o património das fundações em caso de extinção, que nos cabe emitir pronúncia.

1.1 – Neste trilho de dar resposta à questão colocada atentemos ao artigo 12.º da LQF.

Face ao disposto neste preceito, verifica-se que, quanto ao destino dos bens, em caso de extinção:

- Atende-se à disposição expressa do instituidor sobre o destino dos bens em caso de extinção, no ato de instituição (n.º1, primeira parte);

- Na ausência de tal disposição, é a parte do património remanescente entregue a uma associação ou fundação de fins análogos (indicada de acordo com um critério de precedência fixado pelos órgãos da fundação ou pela entidade competente para o reconhecimento, por esta ordem) (n.º1, 2.ª parte);

- Caso a entidade escolhida não aceite a doação, procede-se à designação de uma outra de fins análogos, de acordo com o mesmo critério de procedência (n.º 2); e

- Se essa entidade designada também não aceitar a doação, os bens revertem a favor do Estado (n.º 3).

Resulta assim, de tal preceito que, no caso de extinção das fundações, quanto ao destino do património remanescente, é de considerar, em primeiro lugar, a vontade do fundador manifestada em disposição expressa no ato de instituição (ou nos estatutos) e, só na sua ausência, é que se atende às regras subsidiárias que o mesmo contém.

 Ou seja, a sua vontade, expressamente manifestada no ato constitutivo ou nos estatutos sobre o destino do património remanescente da fundação no caso de extinção, prevalece sobre quaisquer outros critérios relativos à destinação desse património. Os demais critérios apenas se imporão no caso de não haver disposição expressa do fundador, sendo, nesse caso, os atendíveis[161].

E tanto assim é que o artigo 18.º, n.º 2, da LQF expressamente estabelece, quanto ao ato de instituição e estatutos, que

              «No ato de instituição ou nos estatutos deve o instituidor (...) regular os termos da sua transformação ou extinção e fixar o destino dos respetivos bens».

Preceito este que apresenta redação igual à do artigo 186.º, n.º 2, do Código Civil, na versão introduzida pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro, quando na redação primitiva, o instituidor tinha apenas a faculdade de, designadamente, fixar o destino dos bens, que o sintagma «pode» (em vez do atual «deve») ilustrava.

Com tal alteração legislativa, passou o instituidor a ter a obrigação de manifestar expressamente a sua vontade quanto ao destino dos bens, vertendo-a, de forma expressa, no ato de instituição ou nos estatutos, não constituindo tal alteração, como refere MANUEL PITA[162], uma mudança no espírito da norma.[163]

A propósito do artigo 186.º, n.º 2, do Código Civil, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, considerava no Parecer n.º 11/1988 que, no estrito campo de apreciação sub lege, de jure constituto,

               «admite (não restringe) a possibilidade de fixação dos termos (e, necessariamente das causas) de extinção no acto de instituição da fundação.

               Do mesmo modo quanto à determinação sobre o destino dos bens, no caso de extinção. Esta disposição, providenciando sobre destino dos bens, é expressamente admitida (…) pelo artigo 186.º, n.º 2, do Código Civil: o instituidor no acto de instituição ou nos estatutos, pode fixar o destino dos bens para as hipóteses em que se opere transformação ou ocorra extinção (...).»

E o fundador, na fixação do destino do património remanescente à liquidação, pode, dentro da sua autonomia, não atribuir a todo esse património o mesmo destino, designadamente tendo em conta a sua proveniência (se constitui a dotação inicial ou se está no lugar deste, ou se tem outra proveniência).

Certo é que não dizem os artigos  12.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, da LQF e 186.º, n.º 2, do Código Civil, atento o seu teor, qual tem de ser o destino a dar pelo fundador (nos atos institutivos ou nos estatutos) aos bens remanescentes da fundação em caso de extinção. Ou seja, não se estabelece aí qualquer limitação à disposição expressa do instituidor sobre o destino do património remanescente em caso de extinção da fundação, no ato de instituição, pois designadamente não aponta a obrigação de indicar a entidade ou entidades que prossigam finalidades análogas às da fundação extinta.

Assim, o artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, da LQF não impõe que a autonomia da vontade esteja circunscrita à mera designação de pessoa coletiva (fundação ou associação) de fins análogos ou porventura ao deferimento dessa decisão aos órgãos fundacionais. O mesmo acontece com os artigos 18.º, n.º 2, da LQF e 186.º, n.º 2, do Código Civil).

Mais: estes três dispositivos, que constituem manifestação da «trave mestra do regime» das fundações privadas, que é, como se expende na exposição de motivos da referida Proposta de Lei, «naturalmente, o primado do respeito pela vontade do fundador», não proíbem ou vedam, atento o seu teor, a afetação, ao fundador nem a terceiros (que não prossigam fins análogos aos da fundação), dos bens provenientes (ou não) da dotação inicial.

E, além do primado do respeito da vontade do fundador igualmente é de relevar que a preocupação central da Lei-Quadro é a de devolver o regime fundacional à sua original natureza altruísta.

2 – Existe, no entanto, outra norma que dispõe sobre o destino dos bens: o artigo 166.º do Código Civil, que se encontra sistematicamente inserido nas disposições gerais das pessoas coletivas, tratando-se, assim, de uma norma geral, válida quer para as associações quer para as fundações.

Rege sobre o destino de bens no caso de extinção das pessoas coletivas, em geral, o que já acontecia antes da LQF, considerando-se, então, tal preceito aplicável às fundações, uma vez que, na altura, inexistia na secção atinente às fundações qualquer normativo que regrasse o destino dos bens remanescentes em caso de extinção destas.

Este normativo[164], que, à partida, é aplicável a todas as pessoas coletivas,    prescreve que, extinta a pessoa coletiva, se existirem bens que lhe tenham sido doados ou deixados «com qualquer encargo» ou que estejam afetados a «um certo fim», o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer associado ou interessado, ou ainda de herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, «atribui-los-á», com o mesmo encargo ou afetação, a outra pessoa coletiva (n.º 1). E no n.º 2, relativamente aos bens não abrangidos no n.º 1, determina que têm o destino que lhes for fixado pelos estatutos ou por deliberação dos associados, sem prejuízo do disposto em leis especiais; na falta de fixação ou de lei especial, serão atribuídos pelo tribunal a outra pessoa coletiva ou ao Estado, assegurando, tanto quanto possível, a realização dos fins da pessoa extinta.

Ou seja, no n.º 1 é fixado o destino dos bens doados ou deixados a pessoa coletiva com encargos ou afetados a um certo fim[165], enquanto, no n.º 2, relativamente aos eventuais demais bens, se prescreve a prevalência da autonomia da vontade na fixação do destino dos bens.

E, em ambos os casos, cabe ao tribunal decidir, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer associado ou interessado, ou ainda de herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária.

Este preceito teve a sua redação alterada pelo Decreto-Lei n.º 496/77 de 25 de novembro [166], pela Lei n.º 24/2012 e pela Lei n.º 150/2015[167].

Com efeito, a Lei n.º 24/2012, que, para além de ter aprovado a LQF, com um preceito (artigo 12.º) a dispor sobre o destino dos bens no caso de extinção das fundações, procedeu, nas alterações que efetuou ao Código Civil, a uma nova redação ao artigo 166.º do Código Civil, deixando este de preceituar sobre o destino de bens em caso de extinção das pessoas coletivas e passando a dispor acerca da publicidade das pessoas coletivas.

E com as alterações da Lei n.º 150/2015 ao Código Civil e à LQF, foi reposta a redação do artigo 166.º anterior à Lei n.º 24/2012[168]. E, assim, a existência de regras elementares comuns, quanto ao destino dos bens em caso de extinção das pessoas coletivas, sem prejuízo das respetivas especificidades.

Verifica-se, por isso, que no período que mediou entre a data de entrada em vigor da Lei n.º 24/2012 e a data da entrada em vigor da Lei n.º 150/2015 (entre 14 de julho de 2012 e 9 de outubro de 2015)[169], para além de ter existido uma lacuna quanto ao destino dos bens no que concerne às associações[170], relativamente às fundações regrava apenas o artigo 12.º da LQF.

A Lei n.º 150/2015, ao repor a redação do artigo 166.º introduzida na reforma de 1977, veio assim reparar a lacuna no que concerne ao destino dos bens relativamente às associações[171], surgindo com essa reposição a necessidade de apurar qual o âmbito ou alcance da sua aplicação relativamente às fundações, atento o disposto no artigo 12.º da LQF.

2.1 – Antes da reforma de 2012, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996, considerara que o artigo 166.º do Código Civil tinha natureza meramente supletiva, acrescentando ainda que em nada «impede assim a estipulada reversão dos bens em causa, pois que se aplicam tão-somente aos bens da fundação que não tenham feito parte da dotação do fundador».

A natureza meramente supletiva radicará no facto de apenas ser aplicável quando, nos estatutos de uma fundação, não se encontrar previsto para os bens recebidos por via de liberalidades, em caso de extinção do ente coletivo, um destino diferente, inferindo-se esta supletividade do regime que a lei geral estabelece para as liberalidades e, além disso, das próprias regras relativas à constituição das fundações (cf. artigos 960.º, n.º 2, e 186.º, n.º 2, do Código Civil).

Não era (nem é) uniforme o entendimento acerca do âmbito de aplicação do artigo 166.º do Código Civil no que concerne às fundações, havendo quem entendesse aplicar-se o artigo 166.º do Código Civil à eventual distribuição do remanescente das fundações no caso de extinção[172], distinguindo-se entre bens doados ou deixados com qualquer encargo ou que estivessem afetados a um certo fim (n.º 1) e os demais bens (n.º 2), impondo-se o n.º 1 à vontade do instituidor se decidisse em sentido diferente do aí determinado[173]. Havendo ainda quem entendesse que, quanto ao destino do património da fundação, devia atender-se à fixação (no ato institutivo ou nos estatutos) e só na sua falta é que se aplicava o artigo 166.º[174].

Após a reforma de 2012, HENRIQUE SOUSA ANTUNES, em 2014, no que concerne ao destino de bens, considera que o artigo 12.° da LQF:

               «omite a referência aos bens deixados ou doados com qualquer encargo ou que estejam afetados a um certo fim. O art.º 166.° do Código Civil determinava a vinculação do destinatário ao encargo ou afetação. Outro não poderá ser o regime em face da lei vigente».[175]

E constituindo ainda o artigo 12.º da LQF norma especial face ao artigo 166.º do Código Civil, há também quem entenda, face à considerada supletividade deste, que, no que concerne às fundações, o artigo 166.º, n.º 2, se mostra afastado pelo artigo 12.º da LQF, sendo, todavia, aplicável o n.º 1[176] , como há quem considere que o regime jurídico do destino dos bens em caso de extinção se encontra hoje previsto no artigo 12.º da LQF afastando consequentemente, o regime geral do artigo 166.º[177].

2.1.1 - O n.º 1 do artigo 166.º do Código Civil dispunha (como ora dispõe) sobre o destino dos bens doados ou deixados, por negócio mortis causa, a pessoa coletiva com encargos e não sobre os bens que integram a dotação inicial.

A dotação, sendo uma liberalidade, não constitui doação (que é um contrato unilateral) nem meramente deixa testamentária a uma pessoa coletiva, apesar de a dotação poder ser feita através de deixa testamentária para constituir uma fundação com personalidade jurídica.

Só que a dotação patrimonial constitui ato necessário para a fundação adquirir personalidade jurídica e, assim, ser um ente jurídico, integrando-o.

Na verdade, a afetação de bens, constitutiva da fundação, não é doação, se por ato entre vivos, nem, se por ato mortis causa, instituição de herdeiro ou  de legatário, mas dotação, que se carateriza, por ter como fim especial criar ou dar vida a uma nova pessoa jurídica (fundação), consubstanciada nos bens que para esse efeito são afetados.

A vontade expressa em testamento, ou em ato entre vivos, visando a instituição de uma fundação destina-se principalmente a constituir uma pessoa coletiva, chamar à vida um novo sujeito de direitos. O negócio jurídico de fundação não é vocação de herdeiro, nem legado, nem contrato de doação, mas um negócio que, examinado em si, e nas finalidades a que se propõe, assume uma figura característica, embora sempre uma liberalidade, que lhe confere um conteúdo próprio e uma autonomia; é, assim, um negócio jurídico autónomo e sui generis[178].

Enquanto a instituição da fundação visa personalizar os próprios bens, ficando irrevogavelmente unidos à pessoa jurídica, já a nomeação de herdeiro, ou a instituição de legatário, pressupõe a existência, atual ou embrionária, do sujeito, a quem a liberalidade beneficia (cf. artigo 2033.º, n.º 2, do Código Civil), como similarmente acontece na doação (cf. artigos 950.º a 952.º).

Nesta conformidade, o disposto no artigo 166.º, n.º 1, do Código Civil não abrangerá os bens que constituem a dotação inicial, por versar especificamente as doações modais, previstas no artigo 963.º do Código Civil) ou as transmissões  por negócio mortis causa (instituição de herdeiro ou legatário com encargo prevista no artigo 2244.º do Código Civil), a pessoas coletivas, como as fundações.

2.1.2 - O legislador, com a retirada do sistema jurídico da norma que regrava o destino dos bens no caso de extinção das pessoas coletivas, determinou que, quanto ao destino dos bens das fundações, passasse a dispor apenas o artigo 12.º da LQF, evidenciando-se, portanto, ter sido considerado pelo legislador como desnecessário o concreto teor normativo do artigo 166.º do Código Civil.

Certo é também que com a reforma de 2012 deixou de haver normativo que regesse sobre o destino de bens no caso de extinção das associações.

Com efeito, na reforma de 2012, foi dada ao artigo 166.º do Código Civil uma redação atinente apenas à publicidade das fundações e das associações, deixando estas últimas sem normativo que regulasse o destino dos bens, criando uma lacuna quanto ao seu destino no caso de extinção das associações quando, como vimos, acerca das fundações ficou a regrar (apenas) o artigo 12.º da LQF, que mantém a mesma redação desde a sua entrada em vigor, apesar de a LQF já ter sido objeto de três alterações legislativas.

A alteração efetuada, em 2015, surge na sequência de alguma doutrina vir considerando que o artigo 12.º da LQF não dispunha acerca do destino dos bens doados ou deixados em testamento às fundações.

Ora, se atentarmos ao teor do artigo 12.º, n.º 1, da LQF, estabelece-se que o fundador pode dispor sobre o destino dos bens e, se o não fizer, terão o destino que aí se indica, sendo, como referimos, omissa sobre quais os bens de que deve dispor e qual o destino a dar-lhes.

O artigo 166.º do Código Civil, sendo uma norma geral das pessoas coletivas e constituindo as fundações pessoas coletivas é-lhes aplicável, por força do artigo 157.º do Código Civil, na medida em que o regime próprio das fundações for omisso.

Como o n.º 1 do artigo 166.º do Código Civil respeita ao destino dos bens doados ou deixados em testamento, a pessoas coletivas com qualquer encargo, conduz a que a pessoa coletiva, se aceitar a doação ou a deixa testamentária[179], fica adstrita ao cumprimento de uma ou mais prestações, assumindo a obrigação de adotar um determinado comportamento e, assim, de cumprir essa cláusula modal, afetando o objeto da doação (bem doado) a um certo fim, que efetivamente constitui o encargo. E determina ainda este preceito que o tribunal atribuirá tais bens, com o mesmo encargo ou afetação, a outra pessoa coletiva, em respeito da vontade do doador que, não só fez a doação como também  impôs um encargo, sendo a satisfação desse encargo, não só uma condição da doação, mas outrossim uma obrigação da fundação[180].

Aliás, CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA considera esta solução como a mais adequada à luz do disposto no n.º 2 do artigo 191° do Código Civil que, neste caso, como refere, deverá ser invocado como princípio orientador em matéria de doações sujeitas a encargos, feitas à fundação extinta[181].

Já o n.º 2 do artigo 166.º da LQF respeita a todos os demais bens que integravam o seu património, nada vindo a aditar de relevante no que concerne às fundações, uma vez que igualmente dá corpo à autonomia da vontade (do fundador), fixando supletivamente o destino dos bens em termos similares aos consignados no artigo 12.º da LQF.

2.1.2.1- Embora o artigo 166.º do Código Civil possa ser considerado uma norma que complementa (ou concretiza) o disposto no artigo 12.º da LQF e também por isso a “repristinação” da sua redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 24/2012 e a sua inserção sistemática na parte geral das pessoas coletivas, certo é que na única remissão existente para o dito artigo 12.º (artigo 60.º, n.º 3, da LQF)[182] não se remete também para o mencionado artigo 166.º do Código Civil.

Na LQF, não existe, deveras, qualquer remissão para o artigo 166.º do Código Civil e não se encontra nas disposições da LQF ou na secção do Código Civil, especificamente versando as fundações (ver em especial artigos 23.º, n.º 2, alínea b), e 12.º da LQF e 188.º, n.º 5, do Código Civil) qualquer distinção similar à constante no mencionado artigo 166.º do Código Civil quanto à destinação dos bens em caso de extinção.

Sendo as normas da LQF imperativas (artigo 1.º da LQF), impõem-se a outras normas que se apliquem, supletiva ou subsidiariamente, às fundações, a menos que o próprio regime das fundações para elas diretamente remeta.

Com efeito, a Lei-Quadro das Fundações, aprovada pelo disposto no artigo 2.º da Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, e posteriormente alterada, veio, atento o disposto no artigo 1.º,  estabelecer as normas e princípios que regem as fundações e cujas normas são de aplicação imperativa, prevalecendo sobre as normas especiais atualmente em vigor, salvo na medida em que o contrário resulte expressamente da lei-quadro. Determina, assim, o princípio da prevalência das normas que a integram sobre as normas especiais vigentes aquando da sua entrada em vigor (n.º 2 do artigo 1.º)[183], prevalência que igualmente dimana da própria natureza da Lei-Quadro[184].

Como nada se disciplina em concreto no artigo 12.º da LQF acerca do destino das doações ou deixas testamentárias a favor de fundação, será o artigo 166.º do Código Civil convocável para aplicação às fundações no sentido de abranger tais liberalidades.

E não podemos esquecer que o legislador, quando, em 2015, repôs a redação do artigo 166.º, anterior a 2012, igualmente procedeu a alteração de normas da LQF, mantendo a redação do artigo 12.º, da LQF, pelo que não se pode considerar que tenha havido ofensa à imperatividade desta, mas, quando muito, uma limitação dado o regrado no artigo 166.º, n.º 1, do Código Civil.

3 – Como aludimos, a admissibilidade da reversão das doações tem sido utilizada pela doutrina[185] (e jurisprudência[186]) como um dos argumentos para sustentar a validade das cláusulas de reversão do património fundacional a favor dos instituidores (e descendentes).

Não consta dos dispositivos atinentes ao regime das fundações qualquer normativo onde expressamente se indique que é aplicável o regime das doações ou determinados normativos deste regime, contrariamente ao que se expendia no artigo 154.º, n.º 1, do projeto do Livro 1 (da 1.ª revisão ministerial)[187].

MARCELLO CAETANO, na apreciação desse projeto, acerca das fundações, sustentou que o regime das fundações não devia ter uma regulamentação minuciosa, salvo no que respeita à tutela e à extinção por não ser vantajoso  e por poder dificultar as liberalidades e intimidar os beneméritos. E acrescenta: 

              «Muitos pontos há acerca dos quais convém ter ideias assentes na doutrina, mas não os cingir rapidamente pela legislação, de modo a deixar ao governo e à administração pública certa flexibilidade de procedimento sem recorrer a cada passo à lei especial.»[188]

Assim, a proposta pessoal de redação que apresentou acerca das pessoas coletivas e fundações é totalmente omissa sobre essa matéria[189]. E o mesmo sucedeu no Código Civil que viria a ser aprovado em 1966 e nas subsequentes alterações, bem como na LQF.

A esta solução não é alheio o facto de a doutrina e jurisprudência virem  mostrando, desde a vigência do Código de Seabra, que se considera aplicável  às fundações, embora não tout court, e, assim, com as necessárias adaptações, o regime das doações.

MANUEL DE ANDRADE, a propósito, considera que valerão «em regra as normas das doações»[190].

Também PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA [191], expendem que «[s]eja como for, constitua esta dotação, no plano doutrinário, um negócio a se, ou represente ela uma simples parte do negócio global de instituição da fundação, certo é que ela está, em princípio, sujeita às disposições legais aplicáveis às atribuições patrimoniais gratuitas», cabendo ao intérprete apurar quais sejam essas disposições legais, «à luz da ratio juris de cada um dos preceitos integrados no capítulo das doações e de harmonia com a natureza especial daquela dotação».

Para MANUEL PITA, constituindo o ato de instituição de uma fundação uma liberalidade, embora não um contrato de doação, mas um negócio jurídico gratuito,  é de lhe aplicar, com as devidas adaptações, as regras da doação[192]. É que a instituição de uma fundação comportaria inconvenientes de monta se se aplicassem, tout court, os regimes das liberalidades, pelo que a lei configura aquela instituição «como um negócio jurídico sui generis, estabelecendo importantes derrogações àqueles regimes, em especial quanto à aceitação e à revogação das liberalidades[193].

A nível jurisprudencial, segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996,  o artigo 186.º, n.º 2, do Código Civil  deve ser conjugado com o artigo 960.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código, pois

              «quer a jurisprudência quer a doutrina são pacíficas no sentido de que à dotação patrimonial inerente à instituição de uma fundação deverá, em princípio, estender-se a aplicação do regime das liberalidades»[194].

A razão dessa aplicação resulta de o regime das doações ser um «regime tendencialmente comum», aplicando-se supletivamente a todos os negócios e contratos gratuitos, sendo, assim, aplicável ao regime das fundações, bem como aos atos gratuitos para transmissão de direitos[195].

Na verdade, o negócio jurídico, pelo qual o instituidor afeta uma parte do seu património ao fim a prosseguir pela fundação, constitui, como vimos, uma liberalidade. E, sendo uma liberalidade, aplicam-se à transmissão dos bens, com as necessárias adaptações, os regimes da doação (artigos 954.º e seguintes do Código Civil) e das disposições testamentárias (artigos 2224.º e seguintes), conforme a fundação seja constituída, respetivamente por ato entre vivos ou mortis causa.[196].

3.1 - Nas doações é admissível a reversão, o que se encontra previsto nos artigos 960.º e 961.º do Código Civil[197].

De acordo com o artigo 960.º do Código Civil, o «doador pode estipular a reversão da coisa doada» (n.º 1)[198]. Reversão convencional que se dá «no caso de o doador sobreviver ao donatário, ou a este e a todos os seus descendentes; não havendo estipulação em contrário, entende-se que a reversão só se verifica neste último caso» (n.º 2), pretendendo-se, assim, evitar que os bens doados, passem em vida do doador, para terceiros em consequência do predecesso do donatário e de todos os seus descendentes[199].

Reversão dos bens doados, que é comummente considerada uma condição resolutiva da doação. Há, todavia, quem considere a doação com cláusula de reversão como um subtipo de doação[200]. Mostra-se, assim, que a reversão constitui uma condição legalmente admissível da doação comum (ou de qualquer outra modalidade de doação como a doação modal) ou então que  constitui um elemento da doação que a carateriza até ao ponto de ser considerada como um dos subtipos legais de tais liberalidades.

Deste modo, sendo o regime das doações aplicável, nos termos referidos, à dotação patrimonial inicial em benefício de uma fundação (e, necessariamente, às doações efetuadas à fundação), há, de entre as regras daquele regime das liberalidades, que atender às atinentes à atribuição específica ao doador da faculdade de estipular a reversão da coisa doada[201], a menos que resulte do regime legal das fundações a sua não admissão.

3.2 – O regime das fundações não contém norma que expressamente proíba/vede a afetação ao fundador, a descendentes ou a terceiros (que não prossigam fins análogos aos da fundação) dos bens que não os provenientes da dotação inicial, incluindo nesses os frutos da dotação, desde que tenha sido estabelecida cláusula reversiva nesse sentido.

Porém, tem sido invocado, a nível sistemático, como fundamento relevante para inadmissibilidade das cláusulas de reversão, a irrevogabilidade da instituição da fundação[202], o que nos conduz a que se tenha em consideração o disposto no artigo 3.º, n.º 1, da LQF[203], em que se procede à definição legal de fundação como pessoa coletiva, sem fim lucrativo, dotada de um património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social.

E, assim, mostra-se relevante saber se a vinculação do património a determinado fim de utilidade social (ou a fim análogo) se cinge ou não à vida da fundação ou se se prolonga após a extinção. Por outras palavras, se a vinculação do património a finalidade social que vigora durante a existência da fundação, com a extinção da fundação passa a servir apenas como critério supletivo de afetação, uma vez que, como dimana dos artigos 12.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da LQF, impera o destino dos bens fundacionais fixado pelo fundador, ou se essa vinculação se sobrepõe à destinação dos bens formulada pelo instituidor.

Da própria definição de fundação resulta que o património desta se encontra irrevogavelmente destinado ao objetivo de interesse social designado pelo fundador, não podendo assim o fim real não coincidir com o fim previsto no ato de instituição, pelo que, ocorrendo desvio desse escopo, e, assim, afetação a outro fim, se está perante a existência de causa extintiva da fundação (cf. artigo 35.º, n.º 2 alínea b), da LQF, que tem redação igual ao artigo 192.º, nº 2, alínea b), do Código Civil).

Deste modo, enquanto durar a fundação, não pode o fundador dispor (por morte ou entre vivos), dos bens que afetou à fundação (ou seja, dos bens que constituem a dotação patrimonial efetuada), como, aliás, entendeu o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996[204]. E, a fortiori, dos demais bens da fundação.

A eventual fixação de cláusula de reversão destinada a surtir efeito antes da extinção da fundação não é legalmente admissível, em virtude de consubstanciar violação da irrevogabilidade da dotação e, assim, também do negócio jurídico da fundação; por se estar a dispor dos bens com que dotou a fundação durante a vida desta e, por isso, a desrespeitar o limite da autonomia própria da fundação enquanto ente jurídico a se e dotado de personalidade jurídica a partir do reconhecimento. Em suma, com essa eventual cláusula ofender-se-ia o disposto nos artigos 17.º, n.º 2, e 26.º da LQF (artigos 162.º e 185.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil) e, por isso, seria tal cláusula afetada de nulidade.

Aliás, a disposição pelo fundador de bens da fundação, em vida desta, não se harmoniza com o regime legal das fundações, pois só ao órgão que administra a fundação compete o poder de dispor dos bens da pessoa coletiva -e o fundador fica fora da instituição, situa-se para além dela, não constitui qualquer órgão da fundação - nem «com o regime das doações, pois não pode o doador revogar unilateral e discricionariamente a liberalidade que efectuou» depois da aceitação[205].

Efetivamente, existe um relativo paralelismo entre o regime das doações e a instituição inter vivos de uma fundação. Se uma fundação se torna irrevogável com o reconhecimento, também as doações apenas são livremente revogáveis até serem aceites; e após a aceitação já não são livremente revogáveis, pois só excecionalmente o são: apenas por ingratidão do donatário (artigo 970.º do Código Civil).

Por outro lado, com a extinção da fundação, verifica-se que esta deixou de ser pessoa jurídica e assim, deixou de ser sujeito titular dos bens e direitos, pelo que as caraterísticas que ineriam ao concreto negócio jurídico constituído igualmente se evolam com essa extinção. Aquela unidade entre ato institutivo e dotação inicial que deu causa à fundação esboroou-se com a extinção desta.

Como a irrevogabilidade da afetação ao fim fundacional constitui uma caraterística ou elemento essencial da fundação, integra a própria definição de fundação, valendo, assim, para instituições constituídas em conformidade com a lei e enquanto estão vivas (isso é, até ao seu desaparecimento da ordem jurídica como pessoa jurídica).

Por isso, durante o período de vida da fundação, não é legalmente permitido ao fundador dispor dos bens doados e, assim, revogar a disposição de bens que efetuou, como resulta da definição de fundação.

Se porventura fosse permitido revogar apenas a disposição dos bens, permitir-se-ia deixar «uma concha vazia» («un guscio vuoto»), nas palavras de FRANCESCO FERRARA[206]. É que o negócio da fundação não pode existir sem a dotação[207] nem viver sem património (suficiente).

Na base deste regime parece estar a proteção das fundações, as quais não podem ter o seu funcionamento condicionado às oscilações da vontade de quem as instituiu.

Deste modo, a irrevogabilidade do negócio jurídico de constituição da fundação traz consigo a irrevogabilidade da dotação patrimonial afetada ao fim da utilidade social visado com a fundação e, assim, da afetação que essa dotação consubstancia. O que resulta de a dotação constituir parte daquele negócio ou, se, deste modo, não se entender, ser ela mesma um negócio umbilicalmente ligado ao da constituição da fundação, pois sem essa dotação, como referimos, a fundação não é suscetível de ser reconhecida e, assim, de existir. Não chega sequer a nascer como ente jurídico, fracassando o negócio jurídico de constituição legal da fundação.

A admitir-se a revogabilidade da atribuição patrimonial (destinada à realização pela fundação do concreto fim de utilidade social por si visado) durante a vida dessa pessoa coletiva, despir-se-ia a mesma do necessário substrato material como meio necessário para o alcance desse objetivo, o que conduziria (ou seria adequado a que conduzisse) à extinção da fundação por carência de meios.

Dessarte, o conceito de irrevogabilidade vertido no n.º 1 do artigo 3.º da LQF não qualifica a afetação do património após a extinção da fundação. Nem o pode fazer por extravasar do âmbito (e do conceito legal) da fundação e, assim, da vida desta. Mas diz-nos, sim, que durante a vida da fundação a atribuição patrimonial (dotação) é irrevogável.

Assim, a fixação no ato institutivo de cláusula de reversão dos bens com que o fundador dota a fundação, em caso de extinção desta, não afronta tal irrevogabilidade nem é adequada a afrontá-la.

Do regime legal das fundações ressalta o propósito do legislador de prover à continuidade da afetação dos bens, que integram a dotação, bem como do demais património das fundações, no caso de extinção destas, a fins de utilidade social (ver essencialmente artigos 12.º, e 23.º, n.º2, alínea b), da LQF). Todavia, resulta também do n.º 1, primeira parte do referido artigo 12.º, que, no caso de extinção da fundação, essa continuidade de afetação dos bens surge apenas na sequência de ausência de manifestação válida de vontade do instituidor acerca do destino de bens.

E, de forma aproximada, também no caso de recusa do reconhecimento se atende primeiramente à vontade manifestada pelo instituidor ou, se estiver vivo, à sua livre e autónoma vontade e, assim, à possibilidade de o mesmo proceder à correção dos vícios motivadores dessa recusa.

3.3 - Fundando-se a reversão também no artigo 960.º, n.º 1, do Código Civil, surge-nos, como natural que a mesma se deva cingir aos bens que o fundador transmitiu à fundação a título gratuito por ser esse o âmbito da reversão nas doações.

Assim, o instituidor, só em relação aos bens  remanescentes  dos que integraram a dotação inicial da fundação, é que poderia estabelecer uma cláusula de reversão, por terem estes provindo do seu património através de uma liberalidade[208].

Quanto aos demais bens remanescentes  da fundação – os bens adquiridos pela fundação, incluindo os provenientes de doação ou deixa testamentária por terceiros beneméritos, e frutos[209]  -, cabe igualmente ao fundador  a   fixação do seu destino, como resulta dos artigos  12.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da LQF e 186.º, n.º 2 do Código Civil.

Mas o destino a fixar-lhes não pode ser considerado no sentido de permitir fazer disposições, para depois da extinção da fundação, que afrontem  ou contrariem o fim de interesse social que não só inere como tem de naturalmente presidir à instituição  e à vida das fundações, o que a lei acautela e consagra (cf. artigos  166.º e 190.º, n.º3, do Código Civil e 3.º, n.º 1,  12.º, n.ºs 1, segunda parte, e 3,  14.º, 23.º, n.º 1, alínea b), 32.º, n.º3, e 33.º e 35.º, n.º2, alínea b), da LQF).

Desta forma, tem de ser especialmente atendido  que  as fundações  se caraterizam por serem pessoas coletivas despidas de fins lucrativos, o que não é compaginável com  eventuais cláusulas  reversivas  atinentes a bens ou direitos  diferentes dos que integraram a dotação patrimonial inicial do fundador,  tanto mais que  se os fins da fundação não forem considerados de interesse social, designadamente por aproveitarem ao instituidor ou sua família ou a um universo restrito nem sequer a fundação chega a ser reconhecida.

A isto acresce que,  aquando da instituição  da fundação, a vontade do fundador de visar a prossecução de interesse social com a criação da fundação   e simultaneamente destinar esses bens  a si, a seus familiares ou  a terceiros  que  não tenham por objeto interesses de utilidade social, é revelador de que verdadeiramente inexiste este interesse social mas um interesse de locupletamento indevido que tais  preceitos não permitem nem podem permitir.

Ademais, a reversão relativamente a esses bens, mostrar-se-ia inadmissível, o que  resulta «a contrario» do referido preceito (artigo 960.º), quer por se tratar, sim, de uma apropriação sem título justificativo.

Com efeito, faltar-lhe-ia cobertura normativa justificadora dessa passagem para a plena disponibilidade do fundador (ou até da intervenção do fundador nesse concreto sentido ou finalidade) pois considera-se haver enriquecimento indevido quando estamos perante uma deslocação (ou intervenção) patrimonial sem qualquer direito bastante que a justifique.

Aliás, no concernente ao património doado ou deixado à fundação  por terceiro trata-se de património entregue (afetado) para a consecução de fim social, não se mostrando, desde logo, admissível que o instituidor da fundação lhe possa dar destino diferente ao da satisfação de fim de utilidade social. Se o  doador ou testador o quisesse tê-lo-ia clausulado.  O fundador encontra-se vinculado  à satisfação de interesse social, sendo-lhe vedado que  possa utilizar a fundação como instrumento do seu locupletamento ou de terceiros em geral, pois ao se encontrar vinculado ao interesse social da fundação está igualmente vinculado  a que,  extinta esta, o interesse social não deixe de imperar. É no-lo dito pela lei, conjugando-se o artigo 12.º, n.ºs 1,   segunda parte, e 2, da LQF, ao indicar o destino dos bens e o artigo  23.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil ao determinar a recusa do reconhecimento de constituição da fundação se os fins da constituição da  fundação não forem considerados de interesse social por designadamente aproveitarem ao instituidor ou sua família ou a um universo restrito de beneficiários com eles relacionados. 

O princípio da proibição dos locupletamentos injustos à custa de outrem, que extravasa o instituto de enriquecimento sem causa (com consagração legal nos artigos 473.º a 482.º do Código Civil, como fonte das obrigações[210]), constitui um dos princípios gerais do direito (um dos princípios que dominam a ideia de justiça e é um dos mais gerais do sistema jurídico) [211], visando-se com este princípio preservar, designadamente os valores da equidade, da tutela da confiança e da boa fé. E impedir esse enriquecimento é uma das finalidades do Direito, em especial através do ramo do direito das obrigações, por este tender, no seu conjunto, a obter um equilíbrio na distribuição dos bens jurídicos nas relações intersociais[212].

3.3.1 - A estatuição em estatuto de Fundação de cláusula de reversão (de que, no caso de extinção da fundação a favor do fundador (ou até do último dos seus descendentes ou dos seus herdeiros), quanto aos bens afetos à fundação pelo fundador, ou aos que estejam no lugar deles, reverterão para o mesmo fundador ou seus descendentes) é, assim, em princípio, válida.

No regime legal das fundações, inexiste qualquer norma que impeça, em geral, a existência de cláusula de reversão a favor do fundador e herdeiros no que concerne aos bens que integraram a dotação ou dos que, por sub-rogação, lhes sucederam, remanescentes aquando da extinção das fundações.

Por isso, o património cujo destino fixado seja a afetação ao fundador ou aos seus herdeiros tem de ser exclusivamente cingido ao património e direitos remanescentes que faziam parte da dotação inicial do fundador (ou dos que, por sub-rogação, ocupem o lugar deles), não englobando, assim, outras doações de terceiros ou demais património.

É também por isso, que a destinação dos bens tem amplitudes diferentes, conforme se trata de bens que constituem a dotação inicial e os demais bens, e, nestes últimos, não se pode igualmente deixar de se ter em consideração, por exemplo, o facto de a sua proveniência ser de doações com cláusula reversiva.

A reversão faz, assim, regressar o bem (ou parte) à esfera jurídica de onde havia saído (ou dos seus herdeiros).[213]

3.4 - A fixação do destino dos bens pelo fundador não pode, assim, constituir um modo de o fundador se apoderar do património remanescente da fundação e, abusivamente, o distribuir ou afetar a quem lhe aprouver.

Seria, na verdade, claramente indicador de que a constituição da fundação não pode ser reconhecida. É aliás, o processo de reconhecimento das fundações um efetivo momento de triagem.

A fixação do destino dos bens é suscetível de indicar a vontade real do fundador. A atuação do fundador na fixação do destino dos bens, em caso de extinção da fundação, manifesta ou pode manifestar que os interesses privatísticos imperam em detrimento do objetivo de interesse social.

A satisfação de interesses sociais de modo altruístico que a  vontade do fundador deve acolher, a afetação do património da fundação ao interesse social, a falta de legitimidade do fundador para afetar os bens a interesses privados e, assim, mais uma vez as regras da boa fé, da proibição do enriquecimento indevido e do abuso de direito, conduzem necessariamente a que a fixação do destino destes bens ancore no critério material supletivo que a lei consagra: a associação ou fundação de fins análogo (ver designadamente artigo 12.º, n.º 1, 2.ª parte, da LQF). Critério este que, na verdade, constitui a indicação de que  a sucessão das fundações é, essencialmente, uma sucessão teleológica: o destino do património  das  fundações tem de ser harmónico  ou análogo com o destino  que lhes cabia[214].  

4 - A extinção da fundação, excetuando os casos em que o fim de interesse social foi atingido (quer pelo decurso do tempo quer pelo conseguimento dos fins sociais visados), foge (ou melhor, deve fugir) à vontade do fundador, pois se sua vontade é  de provocar a extinção da fundação, a fim de fazer atuar a reversão, indica que a finalidade de interesse social inexiste.

Assim, é necessário, em cada caso, apurar a real intenção do fundador para saber se a contribuição foi ou não efetivamente uma liberalidade, atendendo a elementos indicadores de determinadas circunstâncias que se mostrem capazes de revelar a vontade real do fundador (cf. artigos 236.º e 238.º do Código Civil).

Como acontece no caso de utilização da fundação como um meio (ou instrumento) para criação, através da dotação patrimonial, de um património autónomo, por natureza protegido, resguardando-o do risco que corria antes da dotação, não pode, assim, ser permitido. Neste caso, não se estará perante uma mera situação de irrevogabilidade da afetação patrimonial, mas, sim, perante «fraude à lei»[215],o que afeta a fundação a se[216].

Aliás, o artigo 34.º da LQF, que regra sobre os encargos que não satisfazem o escopo de interesse social, diz-nos que a conduta primeva é de acautelar este em detrimento dos encargos, suprimindo-os ou reduzindo-os ou comutando-os, conforme seja mais adequado. Apesar disso, são considerados fatores de desqualificação do interesse social a atribuição pela fundação de benefícios ou vantagens ao fundador (ou a familiares deste ou a amigos) se essa atuação se dedicar de forma exclusiva à satisfação de interesses privados, designadamente dessas pessoas em detrimento do concreto interesse social que deveria versar por força do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da LQF.

E, em princípio ou por regra geral, a reversão do património (que constituiu a dotação), em caso de extinção da fundação, não afeta a prossecução e satisfação do interesse social.

Todavia, há casos em que o aproveitamento de determinadas vantagens pelo fundador constitui a ratio essendi e finalidade da criação da fundação com cláusula de reversão, como acontece se a razão da sua conduta for a pretensão de evitar o pagamento de impostos, de temporariamente colocar património a salvo dos credores ou ainda de pretender proteger determinado património de iminente insolvência, entroncando aqui os casos em que a criação da fundação com cláusula de reversão [e, por vezes, com cláusulas estatutárias válidas que oneram a fundação com encargos] constitui o instrumento para salvaguardar o seu património, importando, nestes casos, proceder ao apuramento da vontade real do fundador. Trata-se de situações em que o fim de interesse social se encontra postergado ou nitidamente diluído, e, assim, não prosseguido, o que afeta a fundação pela inexistência do necessário escopo de natureza social.

A fundação não constitui nem pode constituir instrumento ou meio de que o instituidor usa para lograr conseguir com a extinção daquela, para si, para os seus herdeiros ou para outrem, a obtenção de benefícios patrimoniais indevidos.

Também «[a] insuficiência, ao menos superveniente, dos bens por ele [fundador] destacados para a consecução dos fins atribuídos à Fundação, de modo algum é de analisar como “motivo estranho à sua vontade”. Por aí se retirando, naturalmente eficácia à cláusula de reversão, já que não seria razoável  restituir-lhe os bens de que dispôs só porque, após algum tempo de vida da fundação, estes se revelaram insuficientes (…)»[217].

Quando a cláusula de reversão se sobrepõe aos indicados fins de interesse social, afetando-os necessariamente, sendo essa cláusula o centro causal dessa afetação, constituirá a razão pela qual é de considerá-la afetada de nulidade, ao abrigo do artigo 280.º,n.º 1, do Código Civil. Nulidade que se circunscreverá à respetiva cláusula, não se expandindo ao ato constitutivo da fundação e, assim, sem afetação da validade deste (fazendo, para o efeito, operar a redução prevista no artigo 292.º do Código, verificados os respetivos pressupostos legais)[218].

4.1 - A afetação dos bens patrimoniais da fundação a fins de interesse social tem de resultar primeiramente da vontade do fundador, manifestada na fixação do destino dos bens. Na ausência dessa manifestação é a própria lei quem o determina não resultando,«ipso jure» da irrevogabilidade da afetação, por esta apenas respeitar à vinculação do património aos fins da fundação durante a vida desta, mas do critério supletivo reificado no artigo 12.º da LQF.

Não existe qualquer normativo da LQF (ou do Código Civil) que, expressa e diretamente, imponha ao fundador, aquando da instituição, a obrigatoriedade de destinar os bens que constituem a dotação patrimonial inicial da fundação, no caso de extinção desta, a uma pessoa de fins análogos aos dessa fundação, nem que expressamente proíba o fundador de fixar a reversão  desses bens nos termos do artigo 960.º do Código Civil para si (ou para os seus descendentes) nem ainda que determine a consequente nulidade dessas cláusulas de reversão (vertidas no ato instituidor) por esta ser, em si, legalmente inadmissível.

E, sendo um dos elementos essenciais da fundação, o respeito pela vontade do fundador, como o é a prossecução dos concretos objetivos de interesse social visado (fim de interesse social da fundação), não se pode dizer que esta última essencialidade se mostra afrontada, no caso de extinção daquela, pelo mero facto de ter sido fixada  a reversão dos bens que integram a dotação inicial. O fundador, ao dispor dos bens para a fundação que instituiu, vinculando-os ao fim de utilidade social visado pela fundação e, assim, enquanto esta durar, salvaguarda, em concordância com a  sua vontade, os interesses dos beneficiários da fundação[219], a menos que o fim social visado não seja efetivado.  

Estamos no âmbito da prevalência da autonomia privada no direito de instituição fundacional, como o indica designadamente o artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, da LQF, mas, também,  no  da afetação  de património à realização  de interesse social de natureza altruísta.

Autonomia privada, que, por definição, assomou, no âmbito das normas permissivas, constitui uma permissão jurídico-privada da atuação jurígena por partir «da norma jurídica: é a permissão jurídico-privada de produção de efeitos jurídicos», enquanto a autonomia da vontade «parte da vontade humana: é a potencialidade jurígena do comportamento humano livre».[220]. Assim, a autonomia da vontade  é limitada pela lei, pela ordem pública, pela moral e pelos bons costumes (cf. artigos 280.º e 281.º do Código Civil).

Daí que, o exercício de qualquer direito ou o cumprimento de qualquer dever tem de estar de acordo e dentro dos termos da lei. Os direitos, mesmo tratando-se de direitos constitucionais, não são direitos ilimitados ou ilimitáveis (quer no seu âmbito de proteção quer no que respeita ao seu exercício). E, constituindo o ato de instituição de uma fundação um negócio jurídico, há ditames e princípios gerais de direito, a que qualquer negócio jurídico tem de atender, como a proibição do enriquecimento indevido ou o princípio da boa-fé[221] .

4.1.1 - Este princípio surge no direito civil desde as fontes do direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, bem como nas obrigações e na constituição dos direitos reais, informando claramente previsões normativas[222], merecendo, por isso, concretização em determinados normativos do Código Civil como, por exemplo, os artigos 227.º, n.º 1, 239.º, 275.º, n.º 2, e 762.º, n.º 2.

Constitui um «princípio-valor», pois «apenas refere um valor jurídico superior de onde podem brotar diversas normas jurídicas»[223]. Trata-se, assim, de um princípio de direito que se estendeu a todas as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas certas e determinadas[224].

E assume-se como um dos princípios gerais do Direito Civil que servem de fundamento ao ordenamento jurídico[225], revelando determinadas exigências objetivas de comportamento – de correção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação em relação, seja na fase pré-contratual, seja ao longo de toda a execução dos negócios jurídicos[226].

Em síntese, a boa-fé constitui uma exigência do direito, imposta pela necessidade de impedir que a obrigação sirva para a consecução de resultados intoleráveis para as pessoas de consciência razoável, agindo de acordo com os ditames da boa-fé quem o faz com diligência, zelo e lealdade, correspondentes aos legítimos interesses da contraparte (ou, em geral, dos destinatários da declaração negocial), por via de uma conduta honesta e conscienciosa, com correção e probidade, sem prejudicar os interesses legítimos daquela ou proceder de modo a alcançar resultados não toleráveis por uma consciência razoável[227].

Assim, a conduta que viola o princípio da boa-fé pode, em casos extremos, ser considerada ilícita[228].

Na verdade, em casos extremos e excecionais, pode, no exercício de um direito, a conduta ser considerada abusiva e, como tal, ilícita, o que nos leva a convocar o artigo 334.º do Código Civil que expressamente disciplina acerca do abuso de direito.

Este traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334.º do Código Civil), sendo considerados vários comportamentos típicos abusivos os denominados: venire contra factum proprium, exceptio doli , inalegabilidade, suppressio, tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas[229].

Manifesta, assim, a lei, no antedito preceito, que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito[230]. É, assim, necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores[231].

Proíbe, pois, este artigo «essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim que lhe inere», funcionando «como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica»[232].

Por outras palavras, e de outro modo, este instituto

              «traduz a contradição entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-axiologicamente constitui esse mesmo direito»[233] .

É, pois, sancionado o exercício inadmissível de um direito, verificados os respetivos pressupostos, designadamente nas situações em que, de forma intencional, por exemplo, o fundador provoca a extinção da fundação, visando que a cláusula de reversão dos bens opere.

Deste modo, o instituidor/fundador tem necessariamente, em todo o procedimento atinente à constituição da fundação, incluindo na sua dotação, na fixação do termo (no caso de fundações temporárias), dos fins, bem como do destino dos bens remanescentes, de agir em conformidade com a boa-fé, os bons costumes e com o seu fim social ou económico, não os excedendo. O mesmo se passando durante a vida da fundação, designadamente no exercício do seu direito de audição.

Como a ninguém deve ser lícito tirar proveito dos atos que pratique em afronta às regras da boa-fé (mormente, impedindo ou provocando a verificação da condição de reversão), deve, no que concerne às Fundações, nomeadamente o fundador agir na pendência da condição de acordo com esses ditames (cf. artigo 272.º do Código Civil), sendo, portanto, censurável que provoque a extinção da fundação a fim de poder operar a cláusula reversiva dos bens (cf. artigo 275.º, n.º 2, do Código Civil). O que pode acontecer, designadamente se a cláusula de reversão se mostrar limitada na sua aplicação aos casos de extinção ocorrida por motivos estranhos à vontade do fundador e a sua ocorrência tiver sido intencionalmente provocada por este.

Conclusões

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª - As fundações são pessoas coletivas, sem fim lucrativo, dotadas de um património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de um fim de interesse social (artigo 3.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Fundações);

2.ª - As fundações privadas são fundações criadas por uma ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei-Quadro das Fundações);

3.ª - No anteprojeto da Lei-Quadro das Fundações, propunha-se expressamente, em caso de extinção da fundação,  a proibição de reversão dos bens remanescentes desse património fundacional  para os seus instituidores ou familiares e a nulidade das cláusulas de reversão (conforme redações propostas para os artigos 12.º, n.º 4, e 39.º, n.ºs 2 e 3, da Lei-Quadro das Fundações, este último replicado no artigo 194.º-A, n.ºs 2 e 3,  do Código Civil); 

4.ª - Propostas que, tendo merecido várias críticas, não vieram a ser vertidas na Proposta de Lei n.º 42/XII/1.ª do Governo, nem acolhidas pelo legislador na Lei-Quadro das Fundações aprovada nem nas alterações introduzidas ao Código Civil, mostrando-se, assim, que foram abandonadas;

5.ª - Esse abandono constituiu opção do legislador que, por isso, nada incluiu no regime aprovado pela Lei n.º 24/2012, acerca de cláusulas de reversão qualquer norma impositiva, proibitiva, ou de validade ou invalidade;

6.ª - No regime instituído pela Lei Quadro das Fundações, aprovada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, e subsequentes alterações, como nos regimes que o antecederam – Código de Seabra e Código Civil, aprovado em 1966, até à entrada em vigor de tal Lei-Quadro -, inexiste normativo que especificamente proíba, em caso de extinção da fundação, a reversão do património fundacional remanescente para o instituidor ou familiares;

7.ª - Todavia, vários dispositivos da Lei-Quadro das Fundações - como os artigos 12.º, n.º 1, primeira parte, 18.º, n.º 1, e 60.º, n.º 3 -  e bem assim os artigos 166.º, n.º 2, e 186.º, n.º 2, do Código Civil, manifestam que o instituidor tem a liberdade de estabelecer o destino do património fundacional;

8.ª - Aliás, a trave mestra do regime legal das fundações que veio a ser aprovado pela Lei n.º 24/2012 «é, naturalmente, o primado do respeito pela vontade do fundador», pretendendo-se, com a Lei Quadro das Fundações «devolver o regime fundacional à sua original natureza altruísta», conforme consta da exposição de motivos da referida Proposta de Lei;

9.ª -  A irrevogabilidade do negócio jurídico de constituição da fundação não sustenta, para além da extinção desta, a irrevogabilidade da afetação patrimonial dos seus bens patrimoniais por constituir um atributo das fundações com vida;

10.ª - Assim, a fixação no ato institutivo ou nos estatutos de cláusula de reversão dos bens com que o fundador dota a fundação, em caso de extinção desta, não afronta tal irrevogabilidade nem é adequado a afrontá-la;

11.ª - O fundador tem a liberdade para destinar a dotação inicial patrimonial ou dos bens que por sub-rogação lhe sucedam, existentes aquando da extinção da fundação a seu favor ou dos seus sucessores em geral, legalmente admissível, a menos que se evidencie, atendendo designadamente ao teor dessas cláusulas, e a outros elementos de prova, designadamente extra-documentais, que a vontade real era a satisfação de interesses privados em detrimento do interesse social;

12.ª - Aliás, os modos de atuação, no exercício do direito de instituição de fundação, contrários aos princípios gerais do Direito, como ao princípio da proibição do enriquecimento indevido, aos ditames da boa-fé, à proibição do abuso de direito e da fraude à lei ou a atuação de má-fé, são inadmissíveis;

13.ª - Não é, assim, admissível que a reversão enriqueça o fundador com os subsídios e ajudas que a fundação recebeu ao longo da sua existência (do sector público), nem com os bens ou direitos que outras pessoas (do sector privado) tenham atribuído à fundação;

14.ª - Tem o fundador ainda a obrigação, por força dos artigos 12.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Lei-Quadro das Fundações e 186.º, n.º 2, do Código Civil, de escolher, entre entidades que servem o interesse social, como destinatários do restante do património remanescente, se o houver.

(Eduardo André Folque da Costa Ferreira)

VOTO DE VENCIDO

Não acompanhei as conclusões 10.ª e 11.ª, na parte em que admitem a estipulação de cláusulas de reversão, por extinção de fundações de vocação perpétua ou indeterminada, em termos próximos aos do regime previsto no artigo 960.º do Código Civil ou a título de substituição fideicomissária.

Assim, em meu entender, o património afetado a um escopo de interesse social, mediante a instituição de fundações privadas reconhecidas, é irreversível para o setor privado. A autonomia privada do fundador retrai-se por sua livre opção ao vincular a propriedade de todo ou parte do seu património ao setor social e à chamada economia social[234], subtraindo-o ao mercado.

Isto, pelas razões que passo a enunciar:

I. O ato de instituição de uma fundação não constitui uma doação nem pode prestar-se à instituição de herdeiros, apesar de o Código Civil consentir que tal ato integre o testamento (artigo 185.º, n.º 1) e não obstante a forma da instituição inter vivos (n.º 2) apresentar semelhanças com a de algumas doações (artigo 947.º, n.º 1).

Nem poderia ser de outro modo, pois o património afeto a um determinado fim de interesse social não é adquirido por um donatário, um herdeiro ou um legatário, antes será adquirido, a título gratuito, por uma pessoa coletiva sem substrato pessoal, criada para proporcionar utilidades a um conjunto indeterminado ou mesmo difuso de beneficiários. Em relação à fundação, não pode falar-se de um animus donandi. A liberalidade visa terceiros: os beneficiários diretos ou indiretos da atividade da fundação.

Trata-se, não de um contrato, como a doação, mas de um negócio jurídico unilateral, à semelhança da promessa e da oferta pública por concurso (artigo 457.º e seguintes do Código Civil) em que a autonomia privada se esgota na afetação de determinado património do autor a um fim de interesse social que, por isso, deixa de se encontrar na sua propriedade ou não chega a integrar a herança aberta por óbito do fundador.

Por meio do ato de instituição, o proprietário dispõe acerca da função social de uma parte do seu património, logo que dele se prive para tal efeito, contando com o Estado para garantir o cumprimento da sua vontade tanto quanto esta convirja com o interesse público.

Com efeito, o reconhecimento público[235], por ato administrativo, garante a vinculação do património afetado a um concreto interesse social pelo contributo que presta a um concreto interesse público.

Não é de estranhar, pois, que muitas fundações se apresentem como prestadoras de serviços públicos[236], de forma igual e universal, contínua e regular, em constante adaptação às necessidades[237].

Por isso, com o ato de instituição, o autor deve indicar, não apenas «o fim da fundação e especificar os bens que lhe são destinados» (artigo 186.º, n.º 1), como também deve indicar, eventualmente, nos estatutos, se forem da sua autoria, qual o destino dos bens respetivos, em caso de extinção da fundação (n.º 2).

O primado da vontade do autor da dotação encontra-se, principalmente, na destinação e não tanto na criação da fundação, a qual é apenas um instrumento ordenado a cumprir o seu propósito altruísta.

Entendo, por isso, que a margem de autonomia privada do instituidor, contida no artigo 186.º, n.º 2, do Código Civil, e no artigo 12.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Fundações, não pode prestar-se a veicular doações nem deixas testamentárias a terceiros, a título de substituição fideicomissária, pois do que se cuida é do destino, do uso, da utilidade social a que um património autónomo fica vinculado.

O Código Civil associa destino a um fim. Alguns exemplos: no artigo 913.º, a respeito da venda de coisas defeituosas; no artigo 925.º, n.º 1, a propósito da venda de coisa sujeita a prova; no artigo 951.º, a respeito dos lucros da sociedade; no artigo 1018.º, n.º 1, a propósito do ativo remanescente após extinção das dívidas sociais; nos artigos 1027.º, 1031.º, alínea b), 1032.º, 1038.º, alínea c), 1067.º, n.º 3, 1083.º, n.º 2, alínea c), quanto ao fim da coisa locada; no artigo 1135.º, alínea c), e no artigo 1136.º, n.º 2, com relação ao fim da coisa emprestada; nos artigos 1222.º, n.º 1, 1225.º, n.º 1, a respeito do fim da obra no contrato de empreitada; no artigo 1377.º, alínea a), relativamente ao fim do prédio para efeitos de fracionamento; no artigo 1381.º, a respeito do direito de preferência pelo proprietário de prédio confinante; no artigo 1384.º, relativamente aos atravessadouros subsistentes; nos artigos 1386.º, 1387.º, 1390.º, 1396.º e 1397.º, a respeito da utilização das águas; no artigo 1406.º, n.º 1, a propósito do uso de coisa comum; nos artigos 1418.º, n.º 2, alínea a), 1419.º, n.º 2, e 1422.º, para se referir à utilização de frações comuns em edifícios sob propriedade horizontal; outro tanto em relação ao uso de partes comuns, no artigo 1421.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea c); nos artigos 1446.º e 1450.º, para aludir ao destino económico da coisa ou direito sob usufruto; em matéria de constituição de servidões prediais (artigo 1549.º); a propósito da casa do menor (artigo 1887.º, n.º 1); a propósito da noção de recheio da casa de morada da família (artigo 2103.º-C); no artigo 2260.º, a respeito do legado a favor do credor.

Assim, tendencialmente, estipular o destino de um bem é estipular o modo de prosseguir um determinado fim pelo proveito das suas utilidades.

Pelo contrário, em matéria de substituição direta (artigo 2281.º e seguintes) ou fideicomissária (artigo 2286.º e seguintes), o Código nunca emprega nenhuma expressão análoga.

II. Ao analisarmos, ainda no Código Civil, o regime do contrato de doação, facilmente nos deparamos com a incompatibilidade do mesmo em face da afetação patrimonial a fins de interesse social, designadamente por instituição de fundações.

A dotação patrimonial com vista à criação de uma fundação, embora represente uma liberalidade, não é uma doação.

Desde logo, a doação é um contrato e ambas as partes gozam de liberdade de estipulação.

Até à aceitação, o donatário pode negociar os termos, condições e encargos modais que o doador pretende consignar no contrato.

Perante uma cláusula de reversão que lhe seja proposta, nos termos do artigo 960.º do Código Civil, e que o impeça de dispor dos bens doados, pelo menos até à morte do doador e de todos os seus descendentes (n.º 2), o donatário pode simplesmente recusar-se a aceitar a doação proposta (artigo 945.º).

Já no caso da dotação, a competente autoridade pública, nos termos do artigo 23.º da Lei-Quadro das Fundações, só pode recusar o reconhecimento com base, estritamente, nos motivos ali enunciados.

Ainda que lhe assista alguma margem de livre apreciação na aplicação de conceitos indeterminados, como o interesse social dos fins ou a suficiência do património, não pode recusar o reconhecimento discricionariamente.

A tendência para ver no reconhecimento um sucedâneo da aceitação pelo donatário decorre de uma ilusão e conduz o intérprete ao erro.

Um outro ponto que faz ressaltar a diferença entre o ato de dotação e o contrato de doação encontra-se nos artigos 970.º e seguintes do Código Civil: a doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, mas não a instituição da fundação, justamente por não haver donatário e por se mostrar juridicamente irrelevante a ingratidão do universo indeterminado dos beneficiários da fundação.

E se a instituição de fundação pode ser onerada com encargos, à semelhança do que se prevê relativamente às doações (artigo 963.º do Código Civil), tais encargos podem ser suprimidos, reduzidos ou comutados pela autoridade pública se o cumprimento impossibilitar ou dificultar gravemente o preenchimento do fim institucional da fundação (artigo 191.º, n.º 1 do Código Civil).

III. Por seu turno, a disposição de cláusulas fideicomissárias mostra-se perversa relativamente aos fins da fundação.

A fundação, enquanto fiduciária, encontrar-se-ia permanentemente condicionada por interesses alheios ao interesse social e á vontade do fundador, uma vez que o artigo 2295.º, n.º 3, do Código Civil, sujeita a disposição de bens, em tal caso, ao consentimento dos fideicomissários, se, nos termos do n.º 1, alínea c), o testador tiver chamado alguém aos bens deixados a uma pessoa coletiva, para o caso de esta se extinguir[238].

Muito menos podem tais disposições ser estipuladas nos estatutos lavrados pelos executores do testamento ou da autoridade competente para o reconhecimento da fundação, pois o testamento e a doação radicam na esfera estritamente pessoal do instituidor.

IV. A partir do momento em que a fundação adquire personalidade jurídica por efeito do reconhecimento e adquire os bens e direitos compreendidos na dotação (artigo 188.º, n.º 2), estes deixam de pertencer ao setor privado de propriedade e passam a integrar o setor social (artigo 82.º, n.º 4, da Constituição).

Ocorre, por assim dizer, uma socialização de tais bens. Transitam para uma forma de propriedade que se encontra especialmente vinculada pela função social a que se presta. Não se convertem em propriedade pública, mas ingressam na propriedade social e a cooperativa que incumbe ao Estado proteger (artigo 80.º, alínea f), da Constituição).

Nas palavras de MARCELLO CAETANO[239]:

              «Os instituidores ou benfeitores, ao afetarem os seus bens a fins de utilidade pública, dispuseram deles, repetimos, a favor da coletividade, transformando-os em objeto de propriedade coletiva».

O setor social, nos termos do artigo 82.º, n.º 4, da Constituição, compreende especificamente:

              «a) Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos, sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública, justificadas pela sua especial natureza;

                   b) Os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais;

                   c) Os meios de produção objeto de exploração coletiva por trabalhadores;

                   d) Os meios de produção possuídos e geridos por pessoas coletivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objetivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista.»

O destino que o instituidor pode estipular para o caso de extinção da fundação (artigo 186.º, n.º 1 do Código Civil e artigo 12.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Fundações) circunscreve-se a este setor, de modo a que os bens e direitos permaneçam vinculados a um interesse social e a uma utilidade social.

Por isso, nem o artigo 186.º, n.º 1, nem o artigo 12.º da Lei-Quadro das Fundações preveem a hipótese de o instituidor indicar senão o destino, o que é bem diferente de indicar alguém como adquirente, nomeadamente um fideicomissário.

A redução da margem de autonomia adquire ainda uma outra razão de ser no caso de universalidades de bens infungíveis, como é o caso das coleções artísticas ou de antiguidades, como é o caso das bibliotecas ou de acervos documentais, cuja divisão comprometeria irremediavelmente o fim da afetação.

Não podendo o instituidor dispor senão acerca do destino dos bens, em caso de extinção da fundação que o assegurava, a lei diz, embora sem igual clareza, o que dizia o artigo 1873.º do Código Civil de 1867: a indicação de outra instituição ou pessoa moral a cuja atividade confia a perpetuação do vínculo sobre o património autónomo.

V. É certo que a não receção de uma disposição expressamente proibitiva de tais fideicomissos irregulares na Lei-Quadro das Fundações, contrariamente à versão inicial da proposta de lei, representa um indicador histórico da vontade do legislador, mas não possuímos elementos que atestem, de modo suficiente, que o abandono da versão inicial da proposta de lei tenha ficado a dever-se ao repúdio da solução.

Pode o legislador ter simplesmente considerado desnecessário reforçar o entendimento de que os bens afetados pelo instituidor se encontram vinculados perpetuamente a um interesse social.

Isto, porque a fundação, não obstante proceder da vontade do instituidor não existe juridicamente sem o reconhecimento público[240], além de o ato de instituição ultrapassar sempre os interesses próprios do sujeito ou de terceiros individualizados, pois não há fundação sem o concurso do património afeto à satisfação de necessidades coletivas[241], em termos análogos aos serviços públicos.

Ao conservar no artigo 12.º uma aparente ambiguidade, o legislador terá evitado abrir portas a que se descortinasse na norma uma sucessão de regimes: um para as fundações anteriores à Lei-Quadro, outro para as fundações privadas instituídas posteriormente. Só quanto a estas se impediria a reversão a favor do antigo proprietário ou dos fideicomissários que designasse.

Em Espanha, a publicação da Ley 30/1994, de 24 de novembro[242], deu azo a este tipo de controvérsia, como nos dá conta FERNANDO MORILLO GONZÁLEZ[243], sendo plausível admitir que entre nós se tenha pretendido evitar um efeito semelhante

Deve notar-se a Lei-Quadro volta a referir-se a este regime, mas a propósito das fundações públicas de direito privado:

«Artigo 60.º

Extinção

                   1 — A decisão de extinção de fundação pública de direito privado é precedida de audição dos instituidores particulares, quando existam.

                   2 — Em caso de extinção de fundação pública de direito privado, o património remanescente após liquidação reverte para a pessoa coletiva de direito público que a tenha criado ou, tendo havido várias, para todas, na medida do seu contributo para o património inicial da fundação ou do número de membros dos órgãos de administração, de direção ou de fiscalização da fundação que podia designar.

                   3 — Se a fundação pública de direito privado tiver instituidores particulares, a parte do património que lhes corresponderia em caso de extinção segue o disposto no artigo 12.º.»

O n.º 3, não por acaso, usa o modo condicional — «que lhes corresponderia em caso de extinção» — sem determinar a reversão, como sucede com os instituidores públicos (n.º 2).

Quer isto dizer que a aplicação do artigo 12.º à extinção de tais fundações tem como pressuposto que dali não resulta a reversão, mas tão-só a destinação dos bens a que o instituidor particular teria direito se fosse um instituidor público. De outro modo, bastava ao legislador remeter para o artigo 12.º a reversão dos bens que correspondem aos instituidores particulares.

VI. Ao reconhecer a fundação, os competentes órgãos do Estado ou das regiões autónomas praticam um ato verdadeiramente constitutivo e, por isso, há quem descortine nas fundações privadas o exercício privado de funções públicas.

A esse reconhecimento pode acrescer, entre nós, o estatuto de utilidade pública, no pressuposto de a fundação prosseguir fins de interesse geral, regional ou local e de cooperar, nesse âmbito, com a administração central, regional ou local (artigos 4.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública[244]).

Tal estatuto significa uma relação de colaboração permanente com a Administração Pública (artigo 8.º, n.º 1, alínea c)) e, em certa medida, o desenvolvimento de atividade administrativa na satisfação de necessidades coletivas assumidas como tarefas ou incumbências do Estado e da economia social.

Com relação ao ordenamento espanhol, afirma PARADA VÁSQUEZ[245]:

              «Vale a pena recordar que os títulos que legitimam o exercício de funções e serviços públicos são, além da eleição, o mérito e a capacidade, assim como a participação cívica direta nos assuntos públicos, todos eles, insisto, modos, formas ou maneiras democráticas de se encontrar no público com absoluta e plena legitimação constitucional».

Tais formas de participação na satisfação de necessidades coletivas são particularmente caras à nossa Constituição, como o ilustram à saciedade, nas normas constitucionais votadas à democracia social participativa, o papel:

              — Das associações de consumidores e das cooperativas de consumo, ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores e investidas de legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos (artigo 60.º, n.º 3);

                   — Das instituições particulares de solidariedade social «e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social» (artigo 63.º, n.º 5);

                   — Das famílias, das escolas, das empresas, das organizações de moradores, das associações e fundações de fins culturais e das coletividades de cultura e recreio, assim como das organizações juvenis (artigo 70.º, n.º 3);

                   — Das organizações de cidadãos portadores de deficiência (artigo 71.º, n.º 3);

                   — Dos órgãos de comunicação social, das associações e fundações de fins culturais, das coletividades de cultura e recreio, das associações de defesa do património cultural, das organizações de moradores e de outros agentes culturais (artigo 73.º, n.º 3);

                   — Das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de carácter científico na definição da política de ensino (artigo 77.º, n.º 2);

                   — Dos agentes culturais (artigo 78.º, n.º 2);

                   — Das escolas e das associações e coletividades desportivas, na promoção, estímulo, orientação e apoio a prática e à difusão da cultura física e do desporto, bem como à prevenção da violência no desporto (artigo 79.º, n.º 2).

PARADA VÁSQUEZ[246] chega mesmo a advogar a natureza pública do património das fundações privadas, já que do ponto de vista do direito privado, «a fundação é unicamente um património sem dono, gerido ‘ad æternum’ por fiduciários que se não se podem fiscalizar adequadamente».

Entre nós, contudo, há uma clara diferença entre o interesse social que justifica o reconhecimento e o estatuto de utilidade pública que é reconhecido autonomamente. A garantia constitucional de um setor social, como vimos, acomoda claramente a propriedade deste tipo de bens, ao lado, por exemplo, dos baldios.

Por conseguinte, está fora de causa, na nossa ordem constitucional, considerar que os bens fundacionais ingressam no domínio público ou no património do Estado ou das regiões autónomas.

VII. Dir-se-á que este entendimento pode dissuadir alguns beneméritos de instituírem fundações e, por conseguinte, priva a economia social da instituição de importantes liberalidades.

Não cremos que seja assim, uma vez que os instituidores podem lançar mão da fundação temporária, ou melhor dizendo, da afetação temporária de um património autónomo, pois esta modalidade fundacional é inequivocamente admitida pelo Código Civil na alínea a) do artigo 192.º, n.º 1.

É para estas fundações — e só para estas fundações — que tem sentido dispor acerca da transmissão dos bens após a extinção da fundação. O fundador concebe a vinculação social do património afetado como sendo indissolúvel da fundação instituída e subordinada a um termo resolutivo.

Em tais casos, o instituidor pode até dotar a fundação com um usufruto sobre a massa patrimonial afetada com a duração máxima de trinta anos (artigo 1443.º do Código Civil), reservando a nua propriedade para si ou para terceiros. Extinto o usufruto, o proprietário é investido na posse plena, desvinculada da oneração.  

Por outro lado, como observa com inteira pertinência FERNANDO MORILLO GONZÁLEZ[247], a expetativa de reversão pode levar a uma «gestão mais conservadora do património fundacional, dedicando à realização dos fins o mínimo que a lei exige, e abrindo-se a possibilidade, nunca desejada, de que se utilize a figura da fundação com fins distintos daqueles a que se encontra chamada a cumprir segundo a sua especial natureza».

[1] Estatuto aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, e alterado pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março.

[2] Processo n.º 96B214,  publicado in  Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 130º, n.º 3877, de 1 de agosto, de 1997, páginas 111 a 117 , e  com sumário in «www.dgsi.pt».

[3] Doravante, «LQF».

[4] Com efeito, a Lei n.º 24/2012, para além de aprovar a LQF, procedeu a algumas alterações no regime fundacional do Código Civil [aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, e, neste âmbito, alterado pelo Decreto -Lei n.º 496/77, de 25 de novembro (reforma de 1977) e pela Lei n.º 40/2007, de 24 de agosto] vertidas nos artigos 158.º,162.º, 166.º,169.º, 185.º, 188.º, 190.º, 190.º-A, 191.º, 193.º e 194.º). Regime que viria a ser alterado  em 2015 , pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro (nos artigos 166.º, 185.º, 186.º, 188.º, 190.º-A e 191.º).

Por sua vez, a LQF foi alterada pelas Leis n.º 150/2015 (nos artigos 2.º a 9.º,10.º. 11.º, 13.º 15.º, 17.º, 20.º, 22.º a 24.º, 26.º, 33.º, 35.º , 36.º, 39.º, 41.º,43.º, 46.º, 53.º, 56.º a 58.º, 60.º e 61.º), 67/2021, de 25 de agosto (nos artigos 6.º, 7.º, 9.º,10.º, 11.º, 13.º, 17.º, 20.º, 22.º, 23.º, 35.º, 36.º, 50.º e 54.º, introduzindo os artigos 9.º A, 13.º-A e 23.º-A) e pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho ( nos artigos  10.º, 24.º e 25.º).

[5] Aliás, o artigo 157.º do Código Civil, sob a epígrafe «Campo de aplicação», estabelece que as disposições atinentes às pessoas coletivas de direito privado (artigos 157.º a 194.º) são aplicáveis às associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia das situações o justifique.

[6] Artigo 6º que, com a epígrafe «Normas transitórias e finais», preceitua nos n.ºs 1 e 2:
«1 - As alterações ao Código Civil e o disposto na lei-quadro das fundações, aprovada em anexo à presente lei, aplicam-se às fundações privadas já criadas, em processo de reconhecimento e reconhecidas, salvo na parte em que forem contrários à vontade do fundador, caso em que esta prevalece.

      2 - O disposto na lei-quadro das fundações, aprovada em anexo à presente lei, aplica-se às fundações públicas já criadas e reconhecidas.

      (…)».

[7] Lei-quadro que é aplicável às fundações portuguesas, às fundações estrangeiras que desenvolvam os seus fins em território nacional, e às fundações de solidariedade social abrangidas pelo Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (artigo 2.º n.ºs 1 e 2). Mas já não é aplicável às instituídas por confissões religiosas que têm um regime próprio -(artigo 2.º, n.º 3).

[8] Às fundações privadas pode ser atribuído o estatuto de utilidade pública  (cf. artigo  6.º, n.º 1, alínea b), da Lei-Quadro de Utilidade Pública  aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho), desde que verificados os requisitos legalmente exigidos, competindo essa atribuição ao Primeiro-Ministro (cf. artigos 8.º e 16.º, n.º 1, alínea a), da mesma Lei-Quadro). Com essa atribuição, passam as fundações a gozar de direitos e benefícios, designadamente isenções tributárias e a ser-lhes exigido determinados deveres (cf. artigo 11.º, n.º 1, alínea b),  e 12.º de tal Lei-Quadro), para além dos deveres que os artigos 9.º a 11.º da LQF contemplam.

[9] Cf. EMÍLIO RUI VILAR «Fundações – Legitimidade, Responsabilidade e (Auto-) Regulação», in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, páginas 535-550, a página 538.

Aliás, a expressão «interesse social»

      «não implica que o fim do ente, cujo reconhecimento se requer, seja de interesse geral ou de relevância pública, mas tão-só que seja desinteressado e que dela emana a título principal uma certa utilidade para a colectividade, estabelecendo-se necessariamente um nexo causal entre esta e os objectivos permanentes da fundação» (CARLOS BLANCO DE MATOS, «Da Relevância do Direito Público no Regime Jurídico das Fundações Privadas», in Estudos em Honra do Professor Castro Mendes, Lex, Lisboa, 1995, página 573.

Com efeito, nas palavras de FELICIANO BARREIRAS DUARTE, Regime Jurídico e Fiscal  das Fundações, 2008, Âncora Editora, página 36,

      «não se exige à fundação a prossecução de um interesse público, ligado, portanto às tarefas do Estado, bastando que a mesma tenha uma finalidade desinteressada e de interesse social, conceito juridicamente mais indeterminado, mas certamente desprovido de exigência comparável à necessária para o preenchimento do juízo de interesse público».

[10] Cf. mormente PEDRO PAIS DE VASCONCELOS e PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Almedina, 2019, página 202.

[11] Cf. Parecer do Conselho Consultivo n.º 611/2000, de 11 de janeiro de 2001, homologado por despacho de Sua Excelência o Ministro da Administração Interna, de 23 de janeiro de 2001, publicado no Diário da República, II Série n.º 55, de 6 de março de 2001, páginas. 4218 e seguintes e cf. ainda designadamente MANUEL DE ANDRADE, Teoria da Relação Jurídica, volume I, Coimbra Editora, 1987 (reimpressão), páginas 60 a 61.

[12] As «Fundações públicas de direito público» são, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da LQF, as «criadas exclusivamente por pessoas coletivas públicas, bem como os fundos personalizados criados exclusivamente por pessoas coletivas públicas nos termos da lei-quadro dos institutos públicos aprovada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro (e que foi objeto de várias alterações a última das quais pelo Decreto-Lei n.º  61/2022, de 23 de setembro).

E de acordo com o artigo 49.º, n.º 2, da LQF:

     «As fundações públicas podem ter por fim a promoção de quaisquer interesses públicos de natureza social, cultural, artística ou outra semelhante.».

Na verdade, as fundações de direito público são criadas por uma pessoa coletiva de direito público, regem a sua atividade pelo Direito Administrativo e prosseguem com autonomia os fins da pessoa coletiva que as cria, constituindo uma forma de administração indireta do Estado.

[13] Por sua vez, as fundações públicas de direito privado eram definidas, como as fundações criadas por iniciativa de uma pessoa coletiva pública, constituindo‐se e regendo a sua atividade pelo Direito Privado e cujo património é de origem exclusiva ou predominante pública (cf. MIGUEL LUCAS PIRES, Regime jurídico aplicável às fundações de direito privado e utilidade pública, cedipre/7, 2011, página 14, acessível in «https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/pdfs/co/public_ 7.pdf» (acedido a 28 de junho de 2023).

E a alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º da LQF veio considerar que as «Fundações públicas de direito privado»  são «as fundações criadas por uma ou mais pessoas coletivas públicas, em conjunto ou não com pessoas de direito privado, desde que aquelas, isolada ou conjuntamente, detenham uma influência dominante sobre a fundação»

[14] A pessoa de direito público colaborante na criação de fundações privadas depende, conforme  artigo 16.º, n.º 1, alíneas a) a e),  da LQF,  de autorização prévia, a qual é concedida, consoante a concreta entidade pública, por parte do Governo (no caso de participação do Estado), do Governo Regional (no caso da participação das regiões autónomas ou de entidades integradas na sua administração indireta), do Ministro das Finanças e da tutela (no caso da participação de entidades integradas na administração indireta do Estado), das assembleias municipais (no caso da participação de municípios, nos termos da alínea l) do n.º 2 do artigo 53.º da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro), ou do conselho geral, da assembleia geral ou órgão equivalente (no caso da participação de associações públicas ou de entidades integradas na administração autónoma, nos termos da lei-quadro dos institutos públicos).

De anotar que o mencionado preceito da Lei n.º 169/99 foi entrementes revogado pela Lei n° 75/2013, de 12 de setembro, que veio estabelecer o Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), não havendo no atual RJAL, apesar das várias alterações, norma equivalente quanto às competências das assembleias municipais. Assim, deve considerar-se que esta competência específica para a autorização prévia da participação do município em fundação privada, deve ser originariamente  atribuída pela LQF «e que, assim, se integra no âmbito do disposto no art.° 25.°, n.° 2, alínea k), do RJAL», segundo o qual cabe à Assembleia Municipal a competência para se pronunciar e deliberar sobre todos os assuntos que visem a prossecução das atribuições do município (cf. CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, As fundações no direito português, 2.ª edição, Coimbra, Almedina,2016, páginas 35 e 36.

[15] Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 40/2005, de 16 de fevereiro de 2006,  acessível, como os demais pareceres do Conselho Consultivo, no sítio «https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr» (com exceção dos pareceres «inéditos» ou «a aguardar edição»).

[16] CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, idem, página 29.

[17] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 48/2004, de 19 de janeiro de 2006 (a aguardar edição) e doutrina aí indicada.

[18] Não obstante, como refere FAUSTO QUADROS, «Fundação de Direito Público», in Polis- Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, volume 2, Verbo,1984, Lisboa, página 1624, o termo «fundação» tem sido usado em Direito com uma multiplicidade de sentidos destacando-se: « o património afecto à satisfação de um fim perpétuo ou de duração indeterminada (sentido substantivo), ou o conjunto de normas jurídicas que asseguram a afectação de um património àquele fim (sentido jurídico), ou o fim que com essa afectação se pretende atingir (sentido teleológico) ou (…) a pessoa colectiva que tem a cargo a administração desse património e a prossecução, através dele, do fim a alcançar» (sentido institucional).

[19] Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de dezembro de 2019, processo nº 18887/18.9T8LRS.L1-7, acessível in «www.dgsi.pt». Também os demais acórdãos abaixo indicados do Supremo Tribunal Administrativo (e dos Tribunais Centrais Administrativos), do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais das Relações, estão acessíveis in «www.dgsi.pt» ou com sumário acessível no referido sítio.

De anotar, porém, que uma fundação por, naturalmente,  não ter fins lucrativos não está impedida pelo princípio da especialidade consagrado no artigo 160.º do Código Civil, de praticar atos convenientes à prossecução dos seus fins, ainda que se afastem, quanto ao seu objeto, desses fins, podendo, assim, em termos pontuais e individualizados, celebrar negócios jurídicos de carácter oneroso, nomeadamente quando se destinam à obtenção de recursos para a prossecução dos seus fins, em que se preveja o recebimento duma determinada contrapartida monetária pela realização, da sua parte, duma prestação (cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume I, Coimbra Editora, 1982, Coimbra, 3.ª edição, página 164 (anotação 1 ao artigo 160.º) e Acórdão da Relação de Lisboa, de 17 de junho de 2008, processo nº 4688/2008.7 (bem como a doutrina e jurisprudência no mesmo referidos).

Com efeito, «[a] realização do fim de interesse social que a fundação deve, por natureza, prosseguir, não obsta à sua participação em instrumentos societários, se se reconhecer que, também por essa via, o seu escopo é eficazmente atingido» (Parecer do Conselho Consultivo n.º 40/2005, de 16 de fevereiro de 2005).

Aliás, a capacidade jurídica da fundação deve compreender a decisão autónoma de exercer uma atividade económica que facilite a prossecução do seu fim, seja diretamente, seja pela utilização do lucro obtido (cf. RUI CHANCERELLE DE MACHETE e HENRIQUE SOUSA ANTUNES, Direito das Fundações, Propostas de Reforma, 2004, Fundação Luso-Americana, Lisboa, página 19). Assim, «as fundações só titulam os direitos e obrigações que sejam necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, isto é, do seu objeto fundacional», pois «o fim traduz-se na prossecução do objeto e este deve revestir necessariamente interesse social» (MAFALDA MIRANDA BARBOSA, «Reflexões sobre o princípio da especialidade do fim», in Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, Volume 7, n.º 7, 2015, página 36, acessível in sítio «file:///C:/Users/MP00747/Downloads/5537-Texto/prct.20do/prct.20artigo-17736-1-10-20160801.pdf» (acedido a 28 de junho de 2023).

[20] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 13/1995, de 17 de abril de 1995.

[21] Cf. Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 22/1984, de 10 de maio de 1984, 11/1988, de 26 de maio de 1988, e 48/2004 de, 19 de janeiro de 2006 (a aguardar edição).

[22] Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988, de 26 de maio de 1988, e 48/2004.

[23] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 13/1995,  de 27 de abril de 1995.

[24] Cf. designadamente, MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume I…, página 61, CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, páginas 165 a 170, FERRER CORREIA e ALMENO DE SÁ, “Algumas Notas sobre as Fundações”, in Revista de Direito e Economia, Ano XV, 1989, Universidade de Coimbra, página 487; e referido Parecer nº 11/1988.

[25]  Cf. o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988, que, a propósito do ato de instituição, refere ainda:

     «O acto de instituição deve obedecer aos requisitos gerais do objecto dos actos jurídicos privados: licitude, possibilidade física e legal, não contraditoriedade com a ordem pública. A apreciação, dirigida ao reconhecimento, da verificação desses requisitos, não é uma actividade livre, mas vinculada pelos critérios e limites estritamente impostos por essas exigências».

[26] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «O Regime das Fundações», in Revista de Direito das Sociedades (RDS), ano V (2013), n.º 4, páginas 715-740, a páginas 731.

[27] Artigo 17.º que dispõe:

«Instituição e sua revogação

     1 - As fundações privadas podem ser instituídas por ato entre vivos ou por testamento.
2 - A instituição por ato entre vivos deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado, e torna-se irrevogável logo que seja requerido o reconhecimento ou principie o respetivo processo oficioso.

      3 - Aos herdeiros do instituidor não é permitido revogar a instituição, sem prejuízo do disposto acerca da sucessão legitimária.

      4 - O ato de instituição, bem como os seus estatutos e suas alterações devem ser publicitados nos termos legalmente previstos para as sociedades comerciais, não produzindo efeitos em relação a terceiros enquanto não o forem.»

Estatutos que podem ser lavrados por pessoa diversa do instituidor por testamento, conforme dispõem os artigos 19.º da mesma Lei Quadro e 187.º do Código Civil:

      «1 - Na falta de estatutos lavrados pelo instituidor ou na insuficiência deles, constando a instituição de testamento, é aos executores deste que compete elaborá-los ou completá-los.

      2 - A elaboração total ou parcial dos estatutos incumbe à própria entidade competente para o reconhecimento da fundação, quando o instituidor os não tenha feito e a instituição não conste de testamento, ou quando os executores testamentários os não lavrem dentro do ano posterior à abertura da sucessão.

      3 - Na elaboração dos estatutos ter-se-á em conta, na medida do possível, a vontade real ou presumível do fundador.».

[28] Artigo 185.º que (com a mesma epígrafe do artigo 17.º da LQF), atualmente (redação introduzida pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro) dispõe:

     «1 - As fundações visam a prossecução de fins de interesse social, podendo ser instituídas por ato entre vivos ou por testamento.

      2 - A instituição por atos entre vivos deve constar de escritura pública, salvo o disposto em lei especial, e torna-se irrevogável logo que seja requerido o reconhecimento ou principie o respetivo processo oficioso.

      3. Aos herdeiros do instituidor não é permitido revogar a instituição, sem prejuízo do disposto acerca da sucessão legitimária».

      4 - O ato de instituição, bem como os seus estatutos e suas alterações devem ser publicitados nos termos legalmente previstos para as sociedades comerciais, não produzindo efeitos em relação a terceiros enquanto não o forem».

E que, na redação originária, preceituava:

     «1. As fundações podem ser instituídas por acto entre vivos ou por testamento, valendo como aceitação dos bens a elas destinados, num caso ou noutro, o reconhecimento respectivo.

      2. O reconhecimento pode ser requerido pelo instituidor, seus herdeiros ou executores testamentários, ou ser oficiosamente promovido pela autoridade competente.

      3. A instituição por acto entre vivos deve constar de escritura pública e torna-se irrevogável logo que seja requerido o reconhecimento ou principie o respectivo processo oficioso.

      4. Aos herdeiros do instituidor não é permitido revogar a instituição, sem prejuízo do disposto acerca da sucessão legitimária.

      5. Ao acto de instituição da fundação, quando conste de escritura pública, bem como, em qualquer caso, aos estatutos e suas alterações, é aplicável o disposto na parte final do artigo 168.º.»

[29] Testamento que, segundo o artigo 2179º, n.º1 do Código Civil, é «o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles», pertencendo, de entre os negócios jurídicos,  à subespécie dos negócios jurídicos não recetícios (cf .RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1984, página 49, nota 53; e ainda mormente MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, páginas 38 e 42.

[30] Trata-se, assim, de negócio jurídico (gratuito) para o qual a lei exige determinada forma legal, cuja inobservância acarreta a nulidade, nos termos do artigo 220.º do Código Civil.

E os próprios herdeiros legitimários (ou sucessores) do instituidor, sendo inoficiosa a doação ou a deixa testamentária que está na base da fundação, só podem atingir esta através da redução ou revogação da liberalidade por inoficiosidade nos termos do artigo 2168.º, n.º 1, do Código Civil (cf. referido Parecer do Conselho Consultivo n.º 11/1988 e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, idem, 1982, página181 (anotação 2 ao artigo 185.º).

[31] A propriedade fiduciária constitui um caso de propriedade temporária previsto na lei (Cf. JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, 4.º edição, Coimbra Editora,1983, páginas 385 a 387; e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, página 94, Código Civil anotado, volume III, Coimbra Editora, 1972 (anotação 3 ao artigo 1307.º).

[32] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «O Regime das Fundações»…, páginas 729 a 730.

[33] Preceitos que, sob a epígrafe «Acto de instituição e Estatutos», determinam:

      «1 - No acto de instituição deve o instituidor indicar o fim da fundação e especificar os bens que lhe são destinados.

       2 - No ato de instituição ou nos estatutos deve o instituidor providenciar ainda sobre a sede, organização e funcionamento da fundação, regular os termos da sua transformação ou extinção e fixar o destino dos respetivos bens».

Acrescenta-se que a versão vigente do artigo 186.º foi introduzida pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro, constituindo a alteração na substituição significativa do termo verbal «pode» por «deve», ficando, assim, com redação igual ao artigo 18.º da LQF.

[34] O Procedimento de reconhecimento inicia-se com a apresentação do respetivo pedido, que se efetua apenas através do preenchimento de formulário eletrónico disponibilizado no portal da Presidência do Conselho de Ministros.

[35]Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora,1976, página 194; cf. também designadamente, CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, obra citada, 2016 páginas 31 e 40.

[36] Na verdade, a referida faculdade do instituidor de revogar a afetação de bens não se transmite aos herdeiros, nem no caso de morte superveniente do instituidor nem no de instituição mortis causa (cf. MANUEL VILAR DE MACEDO, Regime Geral das Pessoas Colectivas, Coimbra Editora, 2008, página 134).

[37] E resulta igualmente dos nºs 2 e 3 do artigo 185.º do Código Civil e do artigo 17.º da LQF (correspondentes aos n.ºs 3 e 4 do artigo 185.º do Código Civil aprovado em 1966, na redação originária) que ao ato de instituição de fundação não se aplicam as regras  das causas próprias de revogação das doações previstas nos artigos 969.º a 979.º do Código Civil (cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, obra citada, página 195).

[38] Enquanto que se a instituição for, por ato mortis causa. a irrevogabilidade ocorre com o decesso do instituidor, salvo se houver redução por inoficiosidade.

Com efeito, o ato instituidor (mortis causa) é livremente revogável até ao momento do decesso do testador (nos termos previstos nos artigos 2311.º a 2317.º do Código Civil), tornando-se, apenas irrevogável quando este faleça, tendo-se igualmente em devida consideração o disposto no n.º 3 dos artigos 185.º do Código Civil e do artigo 17.º da LQF.

[39] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988. Cf. ainda PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, idem,1982, página 181 (nota 2 ao artigo 185.º) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996.

[40] Pois a suficiência do património e fim de interesse social são, em sede de reconhecimento da fundação, os dois aspetos essenciais a considerar, encontrando-se ambos estritamente relacionados (cf. CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, obra citada, 2016, página 50.

[41] Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, obra citada, página 186,  JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2000, página 327.

[42] O artigo 158.º do Código Civil, que foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, viria, no seu n.º  2, a ser alterado pela  Lei n.º 40/2007, de 24 de agosto,  especificando-se  que são as  fundações referidas no artigo anterior ( fundações  de interesse social)  que  adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, «o qual é individual e da competência da autoridade administrativa».

Este preceito, na redação primitiva, sob a epígrafe «Aquisição da personalidade», dispunha:

     «1 – As associações fundações adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, salvo disposição especial da lei.

      2 – O reconhecimento é individual e da competência do Governo, ou do seu representante no distrito quando a actividade da associação ou fundação deva confinar-se na área dessa circunscrição territorial».

[43] Cf. ainda artigo 188.º do Código Civil, que , sob a epígrafe «Reconhecimento», na redação vigente (introduzida  pela Lei n.º 150/2015) preceitua:

     «1 - O reconhecimento deve ser requerido pelo instituidor, seus herdeiros ou executores testamentários, no prazo máximo de 180 dias a contar da data da instituição da fundação, ou ser oficiosamente promovido pela entidade competente.

      2 - O reconhecimento importa a aquisição, pela fundação, dos bens e direitos que o ato de instituição lhe atribui.

      3 - O reconhecimento pode ser negado:

      a) Se os fins da fundação não forem considerados de interesse social pela entidade competente, designadamente se aproveitarem ao instituidor ou sua família ou a um universo restrito de beneficiários com eles relacionados;

     b) Se o património afetado for insuficiente ou inadequado, designadamente se estiver onerado com encargos que comprometam a realização dos fins estatutários ou se não gerar rendimentos suficientes para garantir a realização daqueles fins;

      c) Se os estatutos apresentarem alguma desconformidade com a lei.

      4 - A entidade competente para o reconhecimento promove a publicação no jornal oficial da decisão de reconhecimento ou da sua recusa.

      5. Negado o reconhecimento por insuficiência do património, fica a instituição sem efeito, se o instituidor for vivo; mas, se já houver falecido, serão os bens entregues a uma associação ou fundação de fins análogos, que a entidade competente designar, salvo disposição do instituidor em contrário.»

[44] Pois os artigos 24.º e 25.º da Secção IV (atinente ao Reconhecimento) foram revogadas pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho.

[45] Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988. Cf. também mormente o Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de dezembro de 2019, processo n.º 18887/18.9T8LRS.L1-7.

[46] Acórdão n.º 534/2014, (processo n.º 555/2012), de 1 de julho de 2014, acessível no sítio da internet «https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos» Cf. igualmente PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, volume I…, página 162 ( anotação 1 ao artigo 158.º).

[47] Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de abril  de 2008, processo n.º 1803/2008-2.

[48] Cf.  n.º 2 do artigo 188.º do Código Civil.

[49] CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, As Fundações no Direito …, 2.ª edição, página 38.

[50] Cf. ibidem, página 47.

[51] Plasmando a doutrina designadamente de MANUEL DE ANDRADE, obra citada, volume I, página 29.

[52] Preceito que  estabelece:

«Recusa de reconhecimento

      1 - Constituem fundamento de recusa do reconhecimento as seguintes circunstâncias:

      a) A falta dos elementos referidos no artigo anterior;

      b) Os fins da fundação não sejam considerados de interesse social, designadamente se aproveitarem ao instituidor ou sua família ou a um universo restrito de beneficiários com eles relacionados;
c) A insuficiência dos bens afetados à prossecução do fim ou fins visados quando não existam fundadas expectativas de suprimento da insuficiência, designadamente se estiverem onerados com encargos que comprometam a realização dos fins estatutários ou se não gerarem rendimentos suficientes para garantir a realização daqueles fins;

      d) A desconformidade dos estatutos com a lei;

      e) A existência de omissões, de vícios ou de deficiências que afetem a formação e exteriorização da vontade dos intervenientes no ato de constituição ou nos documentos que o devam instruir;
f) A nulidade, anulabilidade ou ineficácia do ato de instituição;

      g) A existência de dúvidas ou litígios sobre os bens afetos à fundação.

     2 - A recusa de reconhecimento da fundação por insuficiência de meios prevista na alínea c) do número anterior determina:

      a) A ineficácia da instituição da fundação, se o instituidor for vivo ou o instituidor ou instituidores forem pessoas coletivas;

      b) A entrega, salvo se o instituidor for vivo ou se existir disposição estatutária em contrário, dos bens a uma associação ou fundação de fins análogos, a designar por esta ordem:

      i) Pelo instituidor no ato de instituição;

      ii) Pelos órgãos próprios da fundação;

      iii) Pela entidade competente para o reconhecimento.»

[53] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996

[54] O instituidor deve, necessariamente, indicar, no ato de instituição, o fim (escopo) da fundação e os bens e direitos que lhe são destinados (artigos 186°, n° 1, do Código Civil e 18°, n°1, da LQF), se faltar qualquer dos referidos dois elementos verifica-se a nulidade do ato por o objeto ser indeterminável (indeterminabilidade do objeto).

Aliás, o artigo 158.º-A do Código Civil dispõe ser aplicável à constituição de pessoas coletivas (e , assim, às fundações) a estatuição do artigo 280.º do Código Civil, impondo ao Ministério Público o dever de promover a respetiva ação de nulidade da pessoa coletiva

[55] A Portaria n.º 75/2013, de 18 de fevereiro, que regulamenta o disposto nos n.ºs 2 do artigo 9.º e 3 do artigo 22.º da LQF, estabelece um valor mínimo de dotação inicial para que se presuma a suficiência da dotação, incluindo o valor mínimo da parcela em numerário que deve integrar o acervo patrimonial dessa dotação (cf. artigos 2.º, n.º 1.  e 3.º). Acresce que, de acordo com o n,º 2 do artigo 2.º,  tratando-se de fundações a prazo (temporárias) «o valor da dotação patrimonial inicial exigível é estabelecido caso a caso, tendo em consideração a sua adequação ao objeto e fim da fundação».

[56] A LQF especifica determinados fundamentos para a recusa de reconhecimento no artigo 23.º, n.º 1, alíneas a) e e) a g).

[57] Ver neste sentido, designadamente, A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado I, Parte Geral, coordenação de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Almedina 2020, página 517 (anotação 11 ao artigo 185.º).

Aliás, e de todo o modo, o apuramento da matéria de facto e a consequente aplicação do direito constitui uma função judicial, baseada nas circunstâncias específicas de cada caso concreto, o que extravasa as competências deste Conselho Consultivo, como se refere no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 24/2019, de 8 de agosto de 2019 (a aguardar edição).

[58] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2000, página 327.

[59] N.º 5 do artigo 188.º que mantém a redação primitiva do anterior n.º 3 do artigo 188.º.

[60] Cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, página 183 (anotação ao artigo 188.º).

[61] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 11/1988.

[62] Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, IV, 5.ª edição, 2019, Coimbra, Almedina, página 875. No mesmo sentido, CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, obra citada, 2016, página 44.

[63] Teoria Geral do Direito Civil, volume I, AAFDL, Lisboa, 1988, páginas 302 e 303.

[64] O artigo 2230.º, sob a epígrafe «(Condições impossíveis, contrárias à lei ou à ordem pública, ou ofensivas dos bons costumes)», dispõe:

      «1. A condição física ou legalmente impossível considera-se não escrita e não prejudica o herdeiro ou legatário, salvo declaração do testador em contrário.

      2. A condição contrária à lei ou à ordem pública, ou ofensiva dos bons costumes, tem-se igualmente por não escrita, ainda que o testador haja declarado o contrário, salvo o disposto no artigo 2186.º » .

[65] Aliás, o negócio será sempre nulo por impossibilidade legal do objeto (artigo 280.º do Código Civil), «sendo, contudo, viável a sua conversão, mediante a atribuição à fundação, de um fim diverso do previsto no acto de instituição, desde que ajustado ao fim prático visado pelo instituidor». (cf. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, volume I, Universidade Católica Editora, 6.º edição, 2012, página 577)

[66] Acórdão da Relação de Lisboa,  de 11 de dezembro de 2019, processo n.º 18887/18.9T8LRS.L1-7.

[67] Cf. HEINRICH EWARLD HÓ¦RSTER e EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2022, página 448.

[68] Cf. MARCELLO CAETANO, Das Fundações, Subsídios para a interpretação e reforma da legislação portuguesa, Coleção Jurídica Portuguesa, Edições Ática, 1962, página 134.

[69] Cf. MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral…, volume I, página 69.

[70] A transformação do fim das fundações surge como alternativa à sua extinção, visando evitar que esta ocorra, constituindo, assim, o último recurso para que a fundação não seja extinta (cf. CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, As fundações no direito..., 2006, página 57.

[71] JOSÉ FERREIRA GOMES, «Administração das Fundações», in Direito das Fundações em Debate, Perspetivas de reforma, Coordenação de DIOGO COSTA GONÇALVES e de RUI SOARES PEREIRA, Princípia, 2020, página 160.

[72] Cf. MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral…, volume I, página 56.

[73] Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, obra citada, página177, citando MANUEL DE ANDRADE.

[74] MARIA EUGENIA SERRANO CHAMORRO, Es posible hablar de la reversión de los bienes fundacionales?, 2020, página 3, acessível in:

      «https://parlamento-cantabria.es/sites/default/files/dossieres-legislativos/Serrano/prct.20Chamorro.pdf».

[75] Neste sentido, MARIA EUGENIA SERRANO CHAMORRO, ibidem.

Aliás, a mesma Autora acrescenta que nada impede que o fundador determine que o destino dos bens remanescentes seja fixado pelos administradores da fundação, o que já não acontece com a cláusula da reversão por esta surgir como um encargo e, assim, deverá ser levada em conta na liquidação da fundação. Em seu entendimento, deve esse passivo ser entregue a quem for indicado pelo fundador, como se fosse um direito de usufruto que é entregue ao titular da nua propriedade.

[76] E os artigos 3.º, 4.º e 5.º, da Portaria n.º 69/2008.

[77]  Que , na versão dada pela Lei  n.º  67/2021, de 25 de agosto, dispõe:

«Causas de extinção

     1 - As fundações extinguem-se:

      a) Pelo decurso do prazo, se tiverem sido constituídas temporariamente;

      b) Pela verificação de qualquer outra causa extintiva prevista no ato de instituição;

      c) Com o encerramento do processo de insolvência, se não for admissível a continuidade da fundação.
2 - As fundações podem ser extintas pela entidade competente para o reconhecimento, ouvido o Conselho Consultivo:

      a) Quando o seu fim se tenha esgotado ou se haja tornado impossível;

      b) Quando as atividades desenvolvidas demonstrem que o fim real não coincide com o fim previsto no ato de instituição;

      c) Quando não tiverem desenvolvido qualquer atividade relevante nos três anos precedentes.
3 - As fundações podem ainda ser extintas por decisão judicial, em ação intentada pelo Ministério Público ou pela entidade competente para o reconhecimento:
a) Quando o seu fim seja sistematicamente prosseguido por meios ilícitos ou imorais;
b) Quando a sua existência se torne contrária à ordem pública.»

[78] Na versão introduzida pela Lei n.º 24/2012, de 09 de julho. A redação deste preceito  apenas não coincide com a do artigo 35.º no que concerne ao aditamento introduzido  ao n.º 2 deste preceito pela Lei n.º 67/2021, «ouvido o Conselho Consultivo».

[79] Artigo 193.º, na versão dada pela Lei n.º 150/2015, de 10, de setembro, quando a redação originária era a seguinte:

     «Quando ocorra alguma das causas extintivas previstas no n.º 1 do artigo anterior, a administração da fundação comunica o facto à entidade competente para o reconhecimento, a fim de esta declarar a extinção e tomar as providências que julgue convenientes para a liquidação do património».

[80] Cf. ainda artigo 194.º do Código Civil, que, tendo a mesma epígrafe «Efeitos da extinção», possui a mesma redação (que o artigo 37.º da LQF) na versão dada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de julho.

Este Preceito, com a mesma epígrafe dispunha na versão originária que:

       «Extinta a fundação, na falta de providências especiais em contrário tomadas pela autoridade competente, é aplicável o disposto no artigo 184.º»

[81] E o artigo 184.º do Código Civil, respeitando aos efeitos da extinção das Associações, sob idêntica epígrafe,  preceitua:

      «1. Extinta a associação, os poderes dos seus órgãos ficam limitados à prática dos actos meramente conservatórios e dos necessários, quer à liquidação do património social, quer à ultimação dos negócios pendentes; pelos actos restantes e pelos danos que deles advenham à associação respondem solidariamente os administradores que os praticarem.

      2. Pelas obrigações que os administradores contraírem, a associação só responde perante terceiros se estes estavam de boa-fé e à extinção não tiver sido dada a devida publicidade.»

[82] A liquidação da pessoa jurídica é o conjunto de atos (preparatórios da extinção) destinados a realizar o ativo, pagar o passivo e destinar o saldo que houver (líquido), respetivamente, ao titular ou, mediante partilha, aos componentes da sociedade, na forma da lei, do estatuto ou do contrato social. E a pessoa jurídica dissolvida conserva a personalidade até a extinção, com o fim de proceder à liquidação.

[83] Cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 18 de janeiro de 2018, processo  n.º 301/12.5TCGMR.G2.

[84] Para J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 421.

      «as instituições particulares de solidariedade social são organizações privadas inseridas no sector cooperativo e social, ainda que submetidas a fiscalização estadual».

[85] Alterado por:  Decretos-Leis n.ºs 9/85, de 9 de janeiro, 89/85, de 1 de abril, 402/85, de 11 de outubro, 29/86, de 19 de fevereiro, e 172-A/2014, de 14 de novembro , e Lei n.º 75/2016, de 28 de julho.

[86]Preceito que, na versão atual (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014, estabelece:

      1 - Os bens das instituições extintas revertem para outras instituições particulares de solidariedade social ou para entidades de direito público que prossigam idênticas finalidades, nos termos das disposições estatutárias, ou, na sua falta, mediante deliberação dos órgãos competentes.

      2 - Não havendo disposição estatutária aplicável, nem deliberação dos órgãos competentes, os bens são atribuídos, por decisão do membro do Governo responsável pela área da segurança social, a instituições particulares de solidariedade social com sede ou estabelecimento no concelho da localização dos bens, ou em concelhos limítrofes, preferindo as que prossigam ações do tipo das exercidas pelas instituições extintas, ou, na sua falta, para entidades de direito público que prossigam essas ações.

      3 - Aos bens deixados ou doados com qualquer encargo ou afectados a determinados fins será dado destino de acordo com os números anteriores, respeitando quanto possível a intenção do encargo ou da afectação.

      4 - No caso de a instituição extinta ser católica, na atribuição dos bens é dada preferência a outra instituição católica.

      5 - O disposto no número anterior não se aplica aos bens afetos a fim especificamente religioso, cuja atribuição é feita nos termos da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 18 de maio de 2004».

[87] Cf. Acórdãos da Relação de Guimarães de 5 de dezembro de 2019, processo n.º 6925/18.0T8GMR-A.G1 e de 18.01.2018, processo nº 301/12.5TCGMR.G2.

[88] Cuja redação originária era:

« 1. Extinta a pessoa colectiva, se existirem bens que lhe tenham sido doados ou deixados com qualquer encargo ou estejam afectados a certo fim, a entidade competente para o reconhecimento atribuí-los-á, com o mesmo encargo ou afectação, a outra pessoa colectiva.

2. Os bens não abrangidos pelo número anterior têm o destino que lhes for fixado pelos estatutos ou por deliberação dos associados, sem prejuízo do disposto em leis especiais; na falta de fixação ou de lei especial, a entidade competente determinará que sejam atribuídos a outra pessoa colectiva ou ao Estado, assegurando, tanto quanto possível, a realização dos fins da pessoa extinta.»

[89] Passando o artigo 166.º a estabelecer:

« 1. Extinta a pessoa colectiva, se existirem bens que lhe tenham sido doados ou deixados com qualquer encargo ou que estejam afectados a um certo fim, o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer associado ou interessado, ou ainda de herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, atribuí-los-á, com o mesmo encargo ou afectação, a outra pessoa colectiva.

2. Os bens não abrangidos pelo número anterior têm o destino que lhes for fixado pelos estatutos ou por deliberação dos associados, sem prejuízo do disposto em leis especiais; na falta de fixação ou de lei especial, o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários ou de qualquer associado ou interessado, determinará que sejam atribuídos a outra pessoa colectiva ou ao Estado, assegurando, tanto quanto possível, a realização dos fins da pessoa extinta.»

[90] «As Fundações no Código Civil: Regime Atual e Projeto de Reforma», in Lusíada, Revista de Ciências e Cultura, n°l-2, Ano 2001 (páginas 59 a 85), 2001,a página 78.

[91] Direito das Fundações, Propostas de Reforma, 2004, Fundação Luso-Americana, Lisboa, página 48.

[92] Também no sentido de  inadmissibilidade da reversão na vigência do Código Civil de 1967, antes da reforma de 2012,  CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, obra citada , 2006 (1.ª edição) , páginas 61 e 62.

Com efeito, esta Autora, acerca do «destino a dar aos bens que integravam o património da fundação extinta («os bens originadamente afectados pelo fundador; os bens sub-rogados; os bens que advieram à fundação directamente em resultado das suas actividades; e os bens recebidos de terceiros a título gratuito» expende que: «Todos estes bens podem ter o destino que estiver previsto no acto de instituição ou nos estatutos (art. 186.°, n.° 2 do C.C. conjugado com o disposto no art. 166.°, n.° 2 do C.C. com as necessárias adaptações) desde que não esteja em causa a reversão desses bens para o património do fundador ou para o seu património hereditário e desde que esse destino implique a reafectação dos bens a fins de interesse social»

E relativamente aos bens que tivessem sido doados ou deixados à fundação com qualquer encargo ou na condição de afetação a uma causa, o seu destino seria determinado pelo tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer interessado, ou ainda, dos herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, que os atribuiria, «com o mesmo encargo ou afectação, a outra pessoa coletiva, prioritariamente a outra fundação ou associação de fins análogos (art. 166.°, n.° 2 do C.C.)».

[93] Teoria Geral do Direito Civil, volume I, AAFDL, Lisboa, 1988, página 307.

[94] Cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral …, volume I, página 178, e JOÃO DE CASTRO MENDES, obra citada, página 307.

[95] Obra citada, 1982, página 168 ( anotação 2 ao texto primitivo do artigo 166.º)

[96] Cf. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, in Revista de Legislação e Jurisprudência,  ano 130.º, n.º 3978,  páginas  141 a 143, a página 141.

[97] O entendimento de admissibilidade de reversão também é sufragado mormente por JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2000, páginas 338.

[98] Stiftungen im Portugiesischen Recht”, in Hopt / Reuter, Stiftungsrecht in Europa [Fundações no Direito Português”, in Hopt/Reuter, Direito das Fundações na Europa], Munique, 2001, página 452.

[99] Regime civil das pessoas colectivas , Coimbra,  Coimbra Editora, 2008, página 152 (nota 2 ao artigo 194.º).

[100] Regime civil das pessoas colectivas , Coimbra,  Coimbra Editora, 2008, página 152 (nota 4 ao artigo 194.º).

[101] Cf.  ainda designadamente MANUEL HENRIQUE MESQUITA, ibidem, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996.

[102] Obra citada, 2016, páginas 70 e 71.

Posição que mantinha antes da reforma de 2012 (cf. obra citada …, 2006, páginas 61 e 62).

[103] Fundações, Novo regime jurídico das fundações, Lisboa, UAL, 2013, página  30, acessível in «https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/327/1/Disserta/prct.C3/prct.A7/prct.C3/prct.A3o/prct.20Final.pdf», (acedido a 25 de junho de 2023).

[104] HENRIQUE SOUSA ANTUNES, Comentário aos artigos 185.º a 194.º do Código Civil – Fundações, 2014, Lisboa, Universidade Católica Editora, página 109 (anotação IV ao artigo 194.º).

[105] Comentário aos artigos 185.º a 194.º do Código Civil – Fundações, 2014, Lisboa, Universidade Católica Editora, páginas  107 a 109 (anotação artigo 194º).

[106]  Código Civil Comentado I, Parte Geral…, páginas 538 e 539 (anotação 5 ao artigo 194.º).

[107] Aprovado por Carta de Lei de 1 de junho de 1867.

[108] Estas tiveram origem em diversos institutos e, designadamente, em deixas mortis causa de bens a instituições da Igreja,  com fins filantrópicos (Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I , Parte Geral, Tomo III, 2.ª edição, Almedina, 2007, página 769). 

[109] MARCELLO CAETANO «As Pessoas Colectivas no Novo Código Civil Português», Estudos de Direito Administrativo, Edições Ática, 1974, página 389. Também, designadamente ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «O Regime das Fundações»…, página 717, apodou-o de «muito insuficiente».

[110] No artigo 32.º, definia pessoas morais, preceituando:

 Dizem-se pessoas moraes as associações ou corporações temporárias ou perpétuas, fundadas com algum fim ou por algum motivo de utilidade púbica, ou de utilidade pública e particular conjuntamente, que nas suas relações civis representam uma  individualidade jurídica».

[111]JOSÉ DIAS FERREIRA, idem, página 72. E a página 70, no mesmo sentido expende:

     «É de direito que se respeite a vontade do doador, ainda que o Código não previna expressamente esta hypotese no texto da lei, devia julgar-se compreendida no espírito da mesma lei como consequência do direito de dispor inter vivos  e mortis causa, ou a doação tivesse sido feita antes ou depois da publicação do código, e por acto entre vivos ou causa mortis».

[112] Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, Volume II, 1928, Coimbra Editora, acessível também em «https://fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1238.pdf», página 239 (acedido a 03 de julho de 2023)

[113] Que, alterando  a redação dada pela Lei n.º 420, de 11 de setembro de 2015, passou a dispor:

      «O Estado, as colónias, as províncias, os concelhos, as freguesias e quaisquer corporações administrativas e fundações ou estabelecimentos de beneficência, bem assim as associações ou instituições das igrejas, são havidas, quanto ao exercício dos direitos civis respectivos, como pessoas morais ou colectivas, salvo na parte em que a lei ordenar o contrário».

Primitivamente, dispunha:

     «O estado, a igreja, as câmaras municipais, as juntas de paróquia e quaisquer fundações ou estabelecimentos de beneficência, piedade ou instrução pública, são havidas como pessoas morais.».

[114] A alteração cingiu-se ao aditamento do número único que, segundo MANUEL DE ANDRADE, parece inspirado num passo de GUILHERME ALVES MOREIRA, Instituições do Direito Civil Português, Parte Geral,  volume I, Coimbra Imprensa da Universidade, 1907, página 326, «que, explicitamente, visa também as fundações» (cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral …, volume I, página 181, nota 2).

Com efeito, expende-se, a página 326, de Instituições do Direito Civil Português (acessível in «https://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1228.pdf», acedido a 26 de junho de 2023):

      «Em relação às fundações e às Corporações de direito privado que se proponham fins desinteressados ou de mera utilidade pública intendemos que aos seus fundadores ou aos seus benfeitores é permitido estabelecer quaisquer cláusulas, em virtude das quaes, quando se verifique a extinção da fundação ou corporação, ou estas não cumpram as obrigações que lhes hajam sido impostas, os seus bens devem passar para outra entidade.»

[115] Cf. MANUEL DE ANDRADE, obra citada,  volume I, página 182. Aliás, segundo JOSÉ TAVARES,  obra citada, página 238 considerava

      «ser a cláusula contrária a um preceito legal de interesse e ordem pública e, em princípio tais cláusulas são nulas (artigos 10.º, 672.º e 1743.º)»

[116] Reversão que tinha por efeito o regresso ao património do doador dos bens doados  livres dos encargos que lhes tenham sido impostos enquanto estiveram em poder do donatário (cf. artigo 1475.º do Código Civil de Seabra e o vigente artigo 963.º do Código Civil de 1966)

[117] Que dispunha:

      «O doador pode estipular a reversão de coisa doada com tanto que seja a seu favor e não de outras pessoas, salvo nos casos de substituição testamentária permitida.»

[118]O próprio regime legal não previa outro tipo de disposições gratuitas entre vivos para além das doações, MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da relação…, volume I, página 101.

Aliás, JOSÉ TAVARES, obra citada , página 188,  igualmente considerava o ato entre vivos de instituição de uma fundação como um «contrato entre o fundador e o Estado», pois « a verdade, a fundação, no fundo, não é senão uma doação feita à sociedade em geral». 

[119] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 163/1976, de  2 de dezembro de 1976 , e MANUEL ANDRADE, obra citada, volume I, página 179.

[120] Que dispunha:

      «Os bens e valores das associações ou institutos extintos serão arrolados e reverterão para o Estado.

      § único A Direcção Geral da Assistência tomará conta dos bens, entregá-los-á seguidamente à Misericórdia do lugar onde tenha tido a sua sede a associação ou instituto extinto ou, não a havendo, a da sede do concelho ou, na falta desta, a qualquer obra de assistência pública ou particular existente na circunscrição».

[121] Que preceituava:

      «Os haveres das associações extintas reverterão para o município que os aplicará em serviços que prossigam o mesmo fim. Se estes não existirem, seguirão destino no artigo 432.º».

[122] Que  estabelecia:

      «Os haveres dos institutos de utilidade local que sejam extintos reverterão para o Estado, que, pela Direção Geral da Assistência lhes dará o destino tanto quanto possível conforme com a vontade do fundador.».

[123] «Cf. MARCELLO CAETANO, Das Fundações…, páginas 194 e 195.

[124] Idem página 195.

[125] Idem, respetivamente folhas  201 e 177). Aliás, nessa proposta , expressamente verte que o fundador nos estatutos podia incluir disposição «sobre o destino a outro fim de utilidade pública, em caso de transformação ou extinção da Fundação, dos bens por ele afectados, sem embargo da competência da autoridade administrativa  e observados os preceitos legais (artigo « J», n.º 3).

[126] Das Fundações…, páginas 160 a 161.

[127]  Com a seguinte Redação:

« Destino dos bens onerados por encargo especial em caso de extinção

      Quando a uma pessoa colectiva tenham sido doados ou deixados bens onerados por algum encargo especial, deverá o Governo, no caso de extinção da pessoa colectiva, atribuir os bens, com o mesmo encargo, a outra pessoa colectiva».

[128] Neste proposto preceito estabelece-se no n.º 2 o destino dos encargos enquanto no n.º 3  consigna-se que se entre os bens remanescente houver alguns que, pelo título de incorporação deverem ter destino especial, ser-lhes-á dado se possível. E no n.º 4 diz-se que, quanto aos restantes bens da fundação extinta, o Governo dará destino, fazendo verter para pessoa coletiva de fins análogos ou para a Fazenda Nacional (cf. Das Fundações, página 206).

[129] Cf. ANÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado…, página 473.

[130] E igualmente transcreve o artigo 12.º da Lei-Quadro das Fundações constante desse anteprojeto, com o seguinte teor:

« Destino dos bens no caso de extinção

     1 – Sem prejuízo do número seguinte, extinta a fundação, o património remanescente após liquidação, é entregue, na ausência de disposição testamentária sobre o seu destino, a uma associação ou fundação de fins análogos, designada de acordo com o respectivo critério de precedência.

      2 - Caso a entidade designada não aceite a doação, é designada uma outra de  fins análogos, segundo o mesmo critério de precedência.

      3 – Esgotados os meios de atribuição do património remanescente previstos nos números anteriores sem que tenha havido aceitação, os bens revertem a favor do Estado.

      4 - Em caso algum, o património reverte, extinta a fundação, para os seus instituidores ou familiares.»

[131] Esse artigo 194.º-A tinha o seguinte teor:

«Destino dos bens no caso de extinção

      1 – Extinta a fundação e efectuada a liquidação do seu património, os bens remanescentes são entregues a uma associação ou fundação de fins análogos, designada pelo instituidor no acto da instituição, pelos órgãos próprios da fundação ou pela entidade competente para o reconhecimento, por esta ordem.

       2 – É nula qualquer disposição estatutária ou deliberação social que contrarie o disposto no número anterior.

      3 – A nulidade não prejudica a instituição da fundação.»

Ainda de referir que o artigo 39.º do anteprojeto da LQF tinha a mesma redação.

[132] Acessível in:

«https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c6379395953556c4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d45765a6a59795a5451794e5449744f5456684d7930304e7a59354c546b334d324d744d546c6d4e545a6d4f4745354d5459784c6e426b5a673d3d&fich=f62e4252-95a3-4769-973c-19f56f8a9161.pdf&Inline=true».

[133] Acessível in:

 «https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=36735».

[134] Em que se determinava que: «4 – Em caso algum, o património reverte, extinta a fundação para os seus instituidores ou familiares».

Aliás, esta pretendida norma igualmente reforçava a ideia de proibição de fundações familiares.

[135] Aliás, não podemos deixar de atender a que o Código Civil de 1966 teve por modelo o Código Civil alemão (BGB), mas recebeu também largos contributos do Código Civil italiano de 1942.

[136] Para uma visão global  ver «Comunicação da Comissão sobre a promoção do papel das fundações na Europa» (no que concerne aos países que integram a União Europeia), acessível in sítio « https://ec.europa.eu › translations › renditions».

[137] Cf. designadamente, Jacob, “Internationales Stiftungsrecht” in Münchener Handbuch des  Gesellschaftsrechts, Vol. V, Munique, 2009, pág. 1735 e seguintes; H. D. Weger e Magda Weger, “Errichtung von Stiftungen des privaten Rechts”, in Handbuch Stiftungen, editado pela Fundação Bertelsman, Wiesbaden, 1998, págs. 995 a 996.

[138] Na França,  o regime legal das fundações encontra-se consagrado na Lei n.º 87-571, de 23 julho de  1987 (Lei sobre o desenvolvimento do mecenato),  alterada mormente pela Lei n.º 2021-1109 de 24  de agosto de 2021 (Cf. mormente artigos  18,  e 19-12, com referência ao artigo 19-6 do referido regime legal).

[139] Cf., por exemplo, acerca do caso espanhol, FERNANDO MORILLO GONZÁLEZ, «La Ausencia de ánimo de lucro y la reversión  de los bienes fundamentales a la extincion de fundación», in Derecho Privado y Constitución, n.º 20, janeiro-dezembro, 2006, páginas 255-281, acessível in «https://www.google.com/search?q=La+reversi/prct.C3/prct.B3n+de+los+bienes+de+la+fundaci/prct.C3/prct.B3n+extinta+al+fundador+es+admisible+en+Espa/prct.C3/prct.B1a .»

[140] Código Civil (BGB) que, na última versão introduzida pela Lei de 16 de julho de 2021 (publicada in BEBL, I, S.2947).

Anteriormente, dispunha acerca da matéria o §88 , na redação dada pela Lei de Modernização do Direito Fundacional de 15 de julho de 2002 (BEBL I S. 2.634), que havia aditado ao corpo do preceito um outro parágrafo. Estabelecia-se nesse preceito, que quando a fundação se extinguisse o património seria transferido  para as pessoas especificadas no ato constitutivo, regrando ainda  quanto à ausência de especificação acerca do destino de bens que os bens pertencem às autoridades fiscais  nos termos aí determinados.

[141] Este normativo, como os demais normativos infra referidos, atinentes a legislação estrangeira, a redação transcrita constitui tradução livre, tal-qualmente a de doutrina ou jurisprudência indicadas .

[142] Ou a terceiro por ele indicado, «com apelo à liberdade jurígena do fundador» (cf. o referido Parecer da JurisAPP com referência a PIEERE PLOTTEK, Vermogensuanfall bei verein und stiftung, PL Academie Research, Peter Lang, 2014, páginas 159 e seguintes).

[143] Aprovado pelo Decreto Régio n.º 262 de 16 de março de 1942, com últimas alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo n.º. 149, de 10 de outubro de 2022, e Lei n.º. 197 de 29 de dezembro de 2022.

[144] MICHELLA MACARI, Le Personne Giuridiche, Editore Key, Milão, 2019, página 118 (anotação 1  ao artigo 31º)

[145] FRANCESCO. GALGANO, «Delle persone giuridiche», in Commentario del Codice Civile.  coordenação de («a cura de») ANTONIO SCALOJA BRANCA e GIUSEPPE BRANCA, Nicola Zanichelii Editores, Bolohna,1969, página 367.

[146] Obra citada, página 119 (anotação 3 ao artigo 31.º).

[147] A extinção das fundações, atento o disposto no artigo 40.º é obrigatoriamente judicial. E só pode ter lugar nos casos aí expressamente previstos (cf. ANTOINE VANDENBULKE,Fondations, philanthropie et mécénat, in La Revue pratique des sociétés - Tijdschrift voor Rechtspersoon en Vennootschap (RPS-TRV) edição 16/7, 2016, páginas 847 a 867, a página 861, acessível in:

«https://orbi.uliege.be/bitstream/2268/204109/1/Fondations/prct.2C/prct.20philanthropie/prct.20et/prct.20m/prct.C3/prct.A9c/prct.C3/prct.A9nat/prct.20-/prct.20RPS-TRV-2016/prct.3A7.pdf.pdf » ( acedido a 12.07.2023).

[148] GABRIELA DE PIERPONT, «Planification Patrimoniale: La Fondation Privée Belrge Régime Civil»  in Les personnes morales. Dissolution, Coll. Manuel de Planification patrimoniale, Bruxelles, Larcier, 2011, páginas 155 a 173, a página 162.

[149] GABRIELA DE PIERPONT, idem , página 166.

[150] Que nos n.ºs 2 e 3 , estabelece:

     «2. Os bens e direitos resultantes da liquidação serão afetados a fundações ou entidades privadas sem fins lucrativos que prossigam fins de interesse geral e cujo património seja afetado, mesmo em caso de dissolução, à realização daqueles, e que tenham sido designados no negócio fundador ou nos Estatutos da fundação extinta. Não sendo, assim, esta destinação poderá ser decidida, em favor das referidas fundações e entidades, pelo Conselho de Curadores, quando este poder for reconhecido pelo fundador, e, na falta deste poder, caberá ao Protetorado cumprir esta tarefa.

      3. Sem prejuízo do disposto no número anterior, as fundações podem prever nos seus estatutos ou nas cláusulas constitutivas que os bens e direitos resultantes da liquidação sejam atribuídos a entidades públicas, de carácter não fundacional, que prossigam fins de interesse geral.».

[151] Na Comunidade Autónoma de La Rioja, de acordo com o artigo 40.º, n.º4, da Lei das Fundações de tal Região (aprovada pela Lei n.º 1/2007 , de 12 de fevereiro, publicada in «Boletín Oficial del Estado», «doravante, BOE», (número 59, de 9 de março de 2007, páginas 10111 a 10123), os bens resultantes da liquidação serão atribuídos às fundações ou entidades privadas sem fins lucrativos que o fundador tenha designado ou o Conselho de Curadores determine se o fundador lhe concedeu tal poder e, na falta de estipulação do fundador, a decisão caberá ao Protetorado.

Em sentido similar:

-  a Lei das Fundações da Região da Catalunha, (Lei n.º 4/2008, de 24 de abril, do Livro Terceiro do Código Civil de Catalunha relativo às Pessoas Jurídicas, publicado in «BOE» número 131, de 30 de maio de 2008), artigos 335.º-6 e 334.º-7;

- a Lei das Fundações das ilhas Canárias (Lei n.º 2/1998, de 6 de abril, publicada in «BOE», número 108, de 06 de maio de 1998), artigo 33.º, n.ºs 2 e 3;

- a Lei das Fundações da Andaluzia (aprovada pela Lei n.º 10/2005, de 31 de maio, publicada in «BOE» número 156, de 1 de julho de 2005, páginas 23460 a 23473), artigo  43.º, n.º 3;

- a Lei das Fundações da Região de Castela e Leão (Lei n.º 13/2002, de 15 de julho, publicada in «BOE»  número 183, de 1 de agosto de 2002, páginas 28494 a 28502), artigo 31.º, n.º 4; e

-  a Lei das Fundações da Comunidade Valenciana (Lei n.º 8/1998, de 9 de dezembro, publicada in «BOE» n.º. 18, de 21 de janeiro de 1999, páginas 2885 a 2894), artigo 26.º, n.º 2

[152] No que respeita à Comunidade Foral de Navarra, a Lei Foral n.º 13/2021, de 30 de junho, (Lei das Fundações de Navarra), publicada in «BOE» número 181, de 30 de julho de 2021, páginas 92137 a 92167, estabelece no artigo 21.º que:

      «O Conselho de Curadores, ao concordar com a extinção, acordará a destinação dos bens e direitos decorrentes da liquidação. O património excedente terá a destinação prevista pelos fundadores nos estatutos ou no documento constitutivo, desde que esta destinação seja a favor de entidades públicas ou entidades privadas sem fins lucrativos que exerçam fins de interesse geral análogo aos próprios da Fundação».

[153]   O regime das fundações de interesse galego, nos artigos 45.º e 46.º da Lei n.º 12/2006 de 1 de dezembro (publicada in «BOE» número 14, de 16 de janeiro de 2007) estabelece que o destino dos bens e direitos resultantes da liquidação da fundação extinta será o dado pelo fundador ou decidida pelo Conselho de Curadores quando esta faculdade for reconhecida no ato constitutivo e não existindo previsão do fundador ou poder do conselho de curadores será o Protetorado quem atribuirá os bens e direitos a fundações, entidades privadas sem fins lucrativos ou entidades públicas que prossigam fins de interesse geral, que prossigam principalmente a sua atividade na Galiza.

[154] Cf. FERNANDO MORILLO GONZALEZ, «La Ausencia de ánimo de lucro y la reversión  de los bienes fundamentales a la extincion de fundación», in Derecho Privado y Constitución , n.º  20, janeiro-dezembro, 2006, páginas 255 a 281 (a página 277), acessível in:

«https://www.google.com/search?q=La+reversi/prct.C3/prct.B3n+de+los+bienes+de+la+fundaci/prct.C3/prct.B3n+extinta+al+fundador+es+admisible+en+Espa/prct.C3/prct.B1a».

[155]  Datada de  21 de dezembro de 2005 e publicada in «BOE» núm. 17, de 20 de janeiro de 2006, páginas 40 a 54 (acessível in «Ref. BOE-T-2006-837».

[156] Decisão judicial que teve um voto de vencido por considerar plenamente constitucional o artigo 27.º, parágrafo 2 da Lei das Fundações  da Comunidade de Madrid tal como está escrito.

Aliás, em Espanha, a doutrina igualmente se encontra dividida sobre se a reversão se cinge à dotação inicial ou se abrange igualmente doações efetuadas por terceiros à fundação (cf. JOSÉ MANUEL GONZÁLEZ PORRAS, «La Aportación Dotacional y su Possible Reversión a los Herrederos del Fundador (II)», in Boletín de la Real Academia de Córdoba de Ciencias, Bellas Letras y Nobles Artes n.º 160, 2011, páginas 305 a 315, a página 310, acessível in:

https://helvia.uco.es/bitstream/handle/10396/9276/braco160.4.pdf?sequence=1&isAllowed=y».

Segundo este Autor, o critério do Supremo Tribunal tem sido, por via de regra, admitir a reversão dos bens da fundação aos herdeiros do fundador, se tal tivesse sido previsto na escritura constitutiva ou no testamento e a extinção da Fundação ocorrer devido a impossibilidade de atingir os seus fins fundacionais (idem, página 311).

Por sua vez, FERNANDO MORILLO GONZALEZ, obra citada,  a páginas 276 e 277 que não partilha tal solução do Tribunal Constitucional,   considera que afirmar que o fundador por recuperar os bens ou direitos  com que dotou a fundação  não existe lucro, constitui uma visão muito simplista da questão; em segundo lugar, ainda  que a reversão se limite exclusivamente  aos bens e direitos  com que o fundador dotou a fundação, este pode decidir que não revertem para si mas para um terceiro, o que é, sem dúvida, incompatível com a ausência da motivação do lucro que preside ao direito das fundações; e , em terceiro lugar, afirmar que o Estado dispõe de instrumentos suficientes pra controlar  a reversão não gere lucro é uma afirmação vaga e imprecisa.

[157] Instituído pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 e alterado mormente pelas Leis n.º  13.146, de 6 de julho de 2015, 13.874, de 20 de setembro de 2019, e 14.382, de 27 de junho de 2022.

[158] E no caso de os bens destinados à Fundação serem insuficientes para a constituir, se de outro modo não dispuser o instituidor, serão incorporados em outra fundação que se proponha a  igual fim ou a fim análogo (artigo 63.º).Todavia, não existe um valor mínimo para se constituir a fundação, de modo que o critério se mostra discricionário; assim, se a fundação for criada por ato entre vivos, cabe ao Ministério Público analisar a suficiência dos bens (cf. artigos 65.º,§único, 66.º e 67.º, III, 68.º e 69.º), mas se for por ato mortis causa (testamento), será o juiz que avaliará, em sede de inventário (Cf. AIRTON GRAZZIOLI, Fundações privadas: das relações de poder à responsabilidade dos dirigentes, São Paulo, Atlas, 2011, páginas 45 a 52.

[159] A dotação patrimonial inicial  (que se pode equiparar ao capital de uma sociedade anónima e que constitui condição necessária para a criação da fundação), não se confunde com o denominado património da fundação, enquanto conjunto de bens da fundação, que ao longo da sua vida, está sujeito a flutuações (resultantes da obtenção de proventos (doações, heranças, legados, juros de capital, bem como de renda do desempenho de sua propriedade e de rendimentos de direitos de propriedade intelectual ou industrial) como pode ter constituído dívidas (passivo).

 Acerca da diferença entre dotação e património, cf. MARIA EUGENIA SERRANO CHAMORRO, Las fundaciones: dotación y patrimonio, Civitas/ Thomson Reuters, Madrid, 2003, páginas 111 e seguintes.

[160] A dotação patrimonial pode consistir num quinhão hereditário do fundador em herança indivisa (cf. parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 72/1991 de 1 de abril de 1993, publicado in Diário da República,  II Série, n.º 254, de 29 de outubro de 1993).

[161] Idêntica solução, de prevalência da vontade, mostra-se consagrada no artigo 201.º do Código  Civil  ao determinar, relativamente às comissões especiais, que se restar algum saldo depois de satisfeito o fim da comissão (ou se  os fundos angariados forem insuficientes para o fim anunciado, ou este se mostrar impossível), os bens terão a aplicação prevista no ato constitutivo da comissão ou no programa anunciado (n.º1), e, subsidiariamente (por não se indicar destino  no ato constitutivo  do património excedente), cabe à autoridade administrativa prover sobre o seu destino, respeitando na medida do possível a intenção dos subscritores (n.º 2), prevalecendo, assim, a vontade a propósito manifestada no ato constitutivo ou no programa anunciado, quanto ao destino desse património. Prevalência da autonomia da vontade que, no que concerne às pessoas coletivas, o n.º 2 do artigo 166.º do Código Civil, igualmente consagra de forma expressa, sem prejuízo do disposto no n.º1 do mesmo artigo.

[162] Código Civil Anotado, volume I, Coordenação de ANA PRATA, Almedina, 2.ª edição, 2019, reimpressão 2021, página 245, anotação 6 ao artigo 186.º).

[163]  Aliás, no artigo 19.º, n.º 2, no que concerne à instituição mortis causa, estabelece-se que, quando o instituidor não tenha lavrado os estatutos e a instituição não conste de testamento, ou quando os executores testamentários os não lavrem dentro do ano posterior à abertura da sucessão a elaboração total ou parcial dos mesmos incumbe à própria entidade competente para o reconhecimento da fundação ( n.º2), tendo em conta, nessa elaboração, na medida do possível, a vontade real ou presumível do fundador (n.º 3).

[164] Redação dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 150/2015 , de 10 de setembro , que veio reintroduzir (retomar ou repristinar) a redação que lhe havia sido dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro. e fora afastada pelo artigo 3.º da Lei n.º 24/2012, de 14 de julho.

O artigo 166.º , na redação dada por esta Lei de 2012, dispunha, sob a epígrafe «Publicidade»:

      «1 - São aplicáveis às pessoas coletivas reguladas neste capítulo as disposições legais referentes às sociedades comerciais, no tocante à publicação da respetiva constituição, sede, estatutos, composição dos órgãos sociais e ainda relatórios e contas anuais, devidamente aprovados, bem como os pareceres dos respetivos órgãos de fiscalização.

      2 - O ato de constituição, os estatutos e as suas alterações não produzem efeitos em relação a terceiros enquanto não forem publicados nos termos do número anterior.»

[165] De anotar que, no que concerne às doações modais, tanto o doador, ou os seus herdeiros, como quaisquer interessados têm legitimidade para exigir do donatário, ou dos seus herdeiros, o cumprimento dos encargos (artigo 965.º do Código Civil).

[166] A principal alteração (quanto à destinação dos bens da pessoa coletiva no caso da sua extinção) está relacionada com a abolição do sistema do reconhecimento das associações por concessão por o reconhecimento ter passado a competir ao tribunal.

E, no n.º 1 do artigo 166.º, na redação que a reforma de 1977 implantou, segundo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, página 169 (anotação ao artigo 166.º, reforma de 1977, substituiu-se:

      «sem razão a expressão afectados a certo fim (no sentido de adstrictos a fim determinado) pelos dizeres afectados a um certo fim (que inculca a ideia de fim indeterminado)».

[167] Acerca destas «flutuações legislativas deste tipo», ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado I, Parte Geral, Almedina 2020, página 474 (anotação 8 ao artigo 166.º). considera-as «sem estudos prévios e sem opções de fundo», pelo que «devem ser evitadas: «só complicam o conhecimento e a exposição do direito vigente».

[168] Aliás de acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei (n.º 342/XII/4.ª, publicada in Diário da Assembleia da República, II.ª Série, n.º 143, páginas 14 a 25) que viria dar causa à Lei n.º 150/2015 , nas alterações propostas, quanto às fundações privadas,

      «foram efetuadas diversas alterações motivadas pela necessidade de tornar mais claro o regime que lhes é aplicável (nomeadamente, no que se refere ao limite de despesas) e de acentuar o respeito pela vontade do fundador e pela autonomia das fundações na sua organização», expendendo-se, ainda, que se aproveitou «para corrigir normas do Código Civil e da lei quadro das fundações que têm vindo a suscitar dúvidas ou dificuldades na sua interpretação e aplicação ou que contêm lapsos que importa corrigir», acessível no seguinte sítio da internet: «https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/12/04/143/2015-06-04/25?pgs=14-25&org=PLC&plcdf=true».

[169] Cf. artigos  2,º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro (alterada pelas Leis n.º: 2/2005, de 24 de janeiro; 26/2006, de 30 de junho; 42/2007, de 24 de agosto; e 43/2014, de 11 de julho) e 6.º da Lei n.º 150/2015.

[170] Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado I, Parte Geral, Almedina 2020, página 474 (anotação  5 ao artigo 166.º).

[171]  E  quanto à publicidade das fundações passou a dispor o artigo 185.º do Código Civil.  Aliás, a propósito aduz ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO , ibidem,  na anotação 6 ao mesmo preceito que: « Flutuações legislativas deste tipo, sem estudo prévio e sem corresponder a opções de fundo, devem ser evitadas: só complicam o conhecimento e a exposição do Direito vigente.»

[172] JOSÉ ALBERTO RODRÍGUEZ LORENZO GONZÁLEZ, Código Civil Anotado, Parte geral, volume I, Quid Juris, 2011,  página 227 (anotação 2 ao artigo 194.º).

[173] Cf. nomeadamente CRISTINA PAULA CASAL BAPTISTA, obra citada, 2006, páginas 61 e 62;e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS e PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, Almedina, 2019, páginas 208 e 209.

[174] Neste sentido, JOÃO DE CASTRO MENDES, idem, página 307.

[175] Comentário aos artigos 185.º a 194.º do Código Civil – Fundações, 2014, Lisboa, Universidade Católica Editora, página 101 (anotação IV ao artigo 194.º).

[176] Neste sentido, MANUEL PITA, obra citada, página 259 ( anotação 4 ao artigo 194.º).

[177] A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado I, Parte Geral, coordenação de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Almedina 2020, página  538 (anotação 5 ao artigo 194.º).

[178] Cf. designadamente, MANUEL PITA, Código Civil Anotado, volume I, Coordenação de ANA PRATA, Almedina, 2.ª edição, 2019, reimpressão 2021, Almedina, página 245 (anotação 5 ao artigo 186.º) .e VICENZO MARIA ROMANELLI, II Negozio di Fondazione, Jovene,  Napolés, 1935, página 12.

[179] No que respeita aos bens que advierem à Fundação por doação ou testamento, exige a lei, no primeiro caso, aceitação, nos termos gerais, conforme artigo 945.º do Código Civil, e , no segundo caso, aceitação a benefício de inventário (artigos 34.º, n.º 3, da LQF e 191.º, n.º 3, 2052.º, n.º 2, 2053.º e 2071.º, n.º 1, do Código Civil).

[180] É que a doação modal (ou com cláusula modal) caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações, e, assim, vinculado  ao cumprimento de determinado dever, que pode ser no interesse do doador, ou de terceiro, ou do próprio beneficiário, constituindo, deste modo, limitação da doação

O Supremo Tribunal de Justiça, pelo Acórdão n.º 7/97, de 25 de fevereiro de 1997, uniformizou jurisprudência no sentido de a cláusula modal, a que se refere o artigo 963.º do Código Civil, abranger todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efetuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património (publicado in Diário da República, I Série-A, n.º 83, de 9 de abril de 1997, páginas 1598 a1602).

[181] Obra citada, 2016, páginas 70 e 71.

[182] No caso de extinção de fundação pública de direito privado, o património remanescente após liquidação reverte para a pessoa coletiva de direito público que a tenha criado ou, tendo havido várias, para todas, na medida do seu contributo para o património inicial da fundação ou do número de membros dos órgãos de administração, de direção ou de fiscalização da fundação que podia designar e quanto ao património. E se «tiver instituidores particulares, a parte do património que lhes corresponderia em caso de extinção segue o disposto no artigo 12.º» (respetivamente n.ºs 1 e 2 do artigo 60.º da LQF).

Já no caso de extinção de fundações públicas deve ser acautelada, sempre que possível, a transferência do património da fundação pública para entidades públicas que prossigam fins análogos (artigo 56.º, n.º 2 da LQF).

[183] Ora, «as normas de direito especial não consagram uma disciplina diametralmente oposta à do direito comum, mas uma disciplina diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações»(MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Introdução ao Estudo do Direito, 3.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2022, página 469).

Na verdade, «[t]oda a norma especial se inclui numa norma geral cujo regime particulariza ou adapta, como a espécie se inclui no género», pois «as normas gerais serão aquelas que se aplicam a todo um género ou classe de relações jurídicas; as especiais, as que se aplicam apenas a certos tipos de relações jurídicas, incluídas naquelas» (ver NUNO SÁ GOMES, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, página 234).

Assim, se as normas especiais «conservam continuidade e homogeneidade com a norma geral, limitando-se a efetuar adaptações, cuja falta criaria o privilégio de uns e a discriminação de outros», já as normas excecionais «encerram uma contradição, uma rutura com a norma geral, a ponto de a aplicação de uma excluir a aplicação da outra» [cf. Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 16/2021 de  19 de maio de 2022, e  (a aguardar edição)  e 7/2023, de 12 de abril de 2023].

[184] É que as Leis-Quadro ou de enquadramento caraterizam-se por estabelecer «os parâmetros jurídico-materiais estruturantes de um determinado setor da vida económica, social e cultural», fixando «um regime jurídico global de regras e princípios para grandes espaços jurídico-materiais carecidos de ulteriores concretizações, mas sem que essas concretizações se identifiquem com o esquema de atos legislativos de desenvolvimento». São Leis que, equivalendo às leis de bases, vão mais longe que estas pois «fixam mais ou menos pormenorizadamente um regime estruturante que deverá ser respeitado pelos atos legislativos concretizadores desse regime» Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, Almedina, página 786.

[185] Cf. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, idem, página 142.

[186] Cf. referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de outubro de 1996.

[187] Artigo cuja redação era:

     « 1- A fundação por acto entre vivos fica sujeita às regras das doações em tudo quanto não seja excluído pela natureza do caso, assim no que respeita ao fundador, aos seus herdeiros e aos seus credores».

[188]  Obra citada, 1962, páginas 166 e 167.

[189]  Cf. MARCELO CAETANO, obra citada, 1962, páginas 197 a 206

[190] Obra citada, 1.º volume, 1987, páginas 102 a 103.

[191] Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 3.ª edição,  1982, página 181 (anotação 3 ao artigo 185.º).

[192] Código Civil Anotado, volume I, Coordenação de ANA PRATA, Almedina, 2.ª edição, 2019, reimpressão 2021, Almedina, página 245 (anotação 5 ao artigo 186.º).

[193] Ibidem.

[194] Cf. no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 1995, processo n.º 0500, segundo o qual:

     «Às dotações patrimoniais em benefício de uma fundação aplica-se o princípio das liberalidades».

[195] Cf. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos III, Almedina, 2020, reimpressão, páginas 24 a 26.

[196] Ver neste sentido MANUEL VILAR DE MACEDO, Regime Geral das Pessoas Colectivas, Coimbra Editora, 2008, página 129 (anotação 6 ao artigo 185.º), acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 1995, processo n.º 500».

[197] Cláusula reversiva que nas doações inter vivos  apenas pode ser revogada por acordo entre  o doador e o donatário nos termos  do artigo 406.º do Código Civil , enquanto nas doações mortis causa pode ser revogada unilateralmente (cf. artigo 1707.º do Código Civil). E nos atos mortis causa é admissível a substituição fideicomissária, ou fideicomisso (cf. artigos 2286.º e seguintes do Código Civil).

[198] De anotar que no projeto do Código Civil expendia-se que o doador podia estipular a reversão da coisa doada tanto em seu benefício como de terceiros (cf. Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em especial, UCP Editora, 2023 página 272 (anotação ao artigo 960.º).

São também admissíveis as substituições fideicomissárias  das doações (cf. artigo 963.º do Código Civil) , sendo, todavia, nulas as substituições fideicomissárias em mais de um grau, ainda que a reversão da herança para o fideicomissário esteja subordinada a um acontecimento futuro e incerto (artigo 2288.º do Código  Civil ex vi n.º 2 do referido artigo 963.º). E nos termos do artigo 2295.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, são havidas como fideicomissos irregulares as disposições pelas quais o testador chame alguém aos bens deixados a uma pessoa coletiva, para o caso de esta se extinguir.

No âmbito do Código de Seabra, dispunha o artigo 1473.º que o doador podia estipular a reversão da coisa doada, tanto a seu favor, e não de outras pessoas, salvo nos casos em que a substituição testamentária fosse permitida,  tendo com a reforma introduzida pelo Decreto n.º 19.126, de 19 de dezembro de 1930, passado a dispor que o doador podia estipular a reversão da coisa doada, contanto que fosse a seu favor, como para outras pessoas, nos termos do artigo 1867.º e seguintes (normativos  atinentes às substituições fideicomissárias). E no artigo 1474.º no mesmo Código Civil de 1867 rezava-se que: «A reversão estipulada pelo doador a favor de terceiros, com quebra da disposição do artigo antecedente, é nula mas não produz a nulidade da doação».

[199] Cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1981, página 255 (anotação 2 ao artigo 960.º), que acrescentam, referindo-se ao mesmo artigo:

      «É uma norma supletiva, que além de fixar a solução correspondente à vontade presumível mais frequente do doador, se não desinteressa da conservação ou manutenção da liberalidade».

[200] BIONDO BIONDI, Le Donazioni in Tratatto di Diritto Civile italiano, Volume XII, T.IV, UTET, Torino 1961 ( Coordenação de Filippo Vassali), página 823, conforme referido na anotação ao artigo 960.º ,página 272, do Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em especial, UCP Editora, 2023.

[201] HENRIQUE SOUSA ANTUNES, Comentário aos artigos 185.º a 194.º do Código Civil – Fundações, 2014, Lisboa, Universidade Católica Editora, página 109 (anotação IV ao artigo 194.º).

[202] Cf. CRISTINA CASAL BAPTISTA, obra citada, 2016, página 70.

[203]  No artigo 17.º, n.ºs 2 e 3, da LFQ (que tem redação igual ao artigo 185.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil, na redação vigente), alude-se respetivamente à irrevogabilidade da declaração negocial  que integra o ato de instituição inter vivos (logo que requerido o reconhecimento ou se inicie o respetivo processo oficioso)  ou  à irrevogabilidade  da declaração negocial mortis causa após o decesso do instituidor, mas a irrevogabilidade dos atos de instituição da fundação não constitui fundamento ou razão justificadora na afetação dos bens ao objetivo de interesse social que inere à fundação.

Este regime afasta assim as regras estalecidas no artigo 230.º do Código Civil (relativamente à irrevogabilidade da proposta) bem como a dos artigos 969.º, n.º 1, e 970.º do Código Civil respeitantes à revogação da doação (cf., a propósito, MANUEL PITA, obra citada, página 241, na anotação 6 ao artigo 185.º).

[204]  Na medida em que considerou:

«É nula a disposição estatutária que disponha que “o fundador reserva para si o direito de dispor por morte, ou por acto entre os vivos, dos bens que afectar à Fundação”».

[205] Cf.  MANUEL HENRIQUE MESQUITA, idem, página 141.

[206] Le persone giuridiche, Torino, UTET, 1956, página, 335, nota. 5.

[207] Cf. mormente MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da relação Jurídica , volume I, Coimbra, Almedina, 1987, página 102

[208] Cf. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, in Revista de Legislação e Jurisprudência,  ano 130.º, n.º 3978,  páginas 141 a 143, a página 141.

[209] Aliás, os frutos e rendimentos (ou seja, os frutos naturais e os frutos civis) «dos bens doados  (…) pertencem ao donatário e não têm que ser restituídos e os herdeiros do donatário só terão de restituir os frutos posteriores á morte do donatário» (DOMINGOS SIMÕES TRINCÃO, Das doações no Direito Civil Português, 1951, Livraria Gonçalves, página 37, apud MANUEL BAPTISTA LOPES, obra citada, página 102).

[210] Também é fundamento de outras normas do direito civil [como acontece, no que concerne aos efeitos da nulidade e da anulabilidade, na medida em que se determina, salvo regime especial, no artigo 289.º do Código Civil que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (n.º1) e que tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efetiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento (n.º 2)] .

[211] Cf. designadamente DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS, «Enriquecimento sem Causa e responsabilidade civil, in «Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, Janeiro a abril de 1982, páginas 39 a 55 (a página 40), ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º volume, 1988, AAFDL, Lisboa, página 46, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4.ª edição, página 269, e Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo  de 18 de fevereiro de 2021, processo n.º 01286/12.3BEBRG, de 11 de fevereiro de 1999, processo n.º 038962.

Segundo designadamente, tais acórdãos e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS FERNANDES CADILHA, ibidem, este princípio também é aplicável à atividade da Administração Pública, por esta estar sujeita à ordem jurídica no seu todo e, assim, também se encontra vinculada ao princípio da proibição do enriquecimento sem causa.

Cf. ainda MANUEL REBOLLO  PUIG, El Enriquecimiento lniusto de la Administracion Pública (com prólogo de FRANCK MODERNE),  Monografias Jurídicas, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, S.A., Madrid, 1995, em que considera o enriquecimento injusto como princípio geral do Direito Administrativo.

[212] DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS, «Enriquecimento sem Causa e responsabilidade civil, in «Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, janeiro a abril de 1982, páginas 39 a 55 ( a página 40). Que, a propósito acrescenta: «Sendo, assim, as deslocações patrimoniais encontram frequentemente dois tipos de normas arrogando-se a sua tutela jurídica – as regras do enriquecimento sem causa e as de outro instituto (responsabilidade civil, gestão de negócios, mandato, nulidade, etc.).»

[213] Cf. Acórdão da Relação de Évora, de 2 de outubro de 2008, processo n.º 1648/08-3.

[214] Cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral …, volume I, página 178.

[215] A fraude à lei, na medida em que consubstancia um comportamento que, mantendo a aparência de conformidade com a lei, obtém algo que se entende ser proibido por ela, é uma forma de ilicitude que causa a nulidade do negócio jurídico (cf. mormente acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2009, processo n.º 115/09.0TBPTL.S, e de 17 de novembro de 2021, processo n.º 700/10.7TBABF.E3.S1», e Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, volume II, 1979, AAFDL, página 334), indicando Carlos Ferreira de Almeida (Contratos V - invalidade, 2017, Almedina, Coimbra, página 195) que

      «o esquema da fraude à lei tem semelhança com o esquema da simulação relativa – em direito civil, as situações de partida, que se pretenderam deformar pela fraude à lei (aqui equivalente ao pacto simulatório), resolvem-se como se não tivesse havido fraude, segundo um regime semelhante ao do contrato dissimulado».

A “fraude à lei” permite, assim, referenciar as situações em que o agente usa a «pessoa coletiva — forma lícita — para prosseguir efeitos proibidos» (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I , Parte Geral, Tomo III, 2.ª edição, Almedina, 2007, página 701).

[216] Há todavia outras situações em que a eventual cláusula de reversão se mostra cabalmente irrelevante para afetar a existência da fundação como acontece nos casos em que do ato instituidor (ou dos estatutos) não dimana qual o escopo de interesse social visado pela fundação (ou se, na verdade, os fins são de interesse exclusivamente privado ou egoístico), porquanto falta ao negócio de constituição da fundação um elemento que integra a essencialidade da fundação: o imprescindível escopo de interesse social, o que acarreta a nulidade do negócio jurídico ( artigos 280.º, n.º1 e 158.º-A do Código Civil). Aliás, em tal tipo de situações tem o reconhecimento de ser recusado ao abrigo dos artigos 23.º, n.º 1, alíneas b), d) e f) da LQF [e 188.º, n.ºs, 3, alíneas a) e c), do Código Civil] e, em consequência dessa recusa, como vimos, o património deve regressar à esfera do instituidor se estiver vivo ou houver cláusula nesse sentido.

[217] Parecer n.º 163/1976 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República

Nesse mesmo parecer considera-se ainda que, face à insuficiência do património para a consecução dos fins visados pela fundação, se tornou  necessário recurso ao crédito endémico, o qual era  concedido por instituição a que o fundador estava ligado,  seria difícil  aceitar, nestas condições, que, em caso de extinção da fundação por insolvência, «tal motivo fosse estranho à vontade do fundador».

[218] Segundo o artigo 292.º do Código Civil: «A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada».

Quanto à nulidade de uma cláusula do negócio fundacional, há que ter em atenção que a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se se vier a provar que que sem tal cláusula o negócio não se teria realizado [cf. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 130.º, n.ºs 3977, páginas 116 a 117, e  3978, páginas 141 a 143, a página 142 (Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 1996].

Assim, a redução dos negócios jurídicos só se justifica quando uma das partes do seu objeto é nula e não quando a nulidade é total, não havendo lugar a redução quando se mostrar que, sem a parte viciada, não teriam sido concluídos. Com a redução, a nulidade circunscreve-se a uma parte do conteúdo do negócio jurídico, ficando a valer a parte restante, havendo, assim, uma alteração quantitativa do negócio, e não uma alteração qualitativa, pelo que fica a vigorar o mesmo negócio, ainda que amputado, e não um negócio novo (Cf. designadamente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de novembro de 2009, processo n.º 368/2002, com sumário acessível in «www.dgsi.pt»).

[219] Cf. referida sentença do Tribunal Constitucional de Espanha n.º 341/2005 (publicada in «BOE -T-2006-837».

[220] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 1.º volume, 1988, AAFDL, Lisboa, página 57.

[221] Acerca do princípio da boa-fé, ver, entre outros, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa-fé no direito civil. Coimbra, Almedina, 1997, em especial, a páginas 527 e seguintes.

[222]  Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º volume, 1988, AAFDL, Lisboa, página 117.

[223] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Manual de Introdução ao Direito, volume I, Almedina, reimpressão 2020, página 503.

[224] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições da Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, 2022, Gestelegal, página 60.

[225] Cf.  designadamente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de18 de junho 2003, processo n.º 01188/02, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º volume, 1988, AAFDL, Lisboa, página 117, e, do mesmo autor, Da Boa Fé no Direito Civil, Volume 1, 1984 página 17.

[226] Cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de abril de 2017, processo n.º 896/13.6TBCTB.C1.

[227] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de novembro de 2007, processo n.º 07B393.

[228] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 24/2019, de 8 de agosto de 2019 (a aguardar edição).

[229]  Para maior desenvolvimento acerca destas tipologias ver designadamente ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, págs. 249-269, e Da Boa Fé no Direito Civil, volume II; 1984, páginas 719 a 901; e BAPTISTA MACHADO, «Tutela de confiança e Venire Contra Factum Proprium», in Obra Dispersa, volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, páginas 345 e seguintes. No âmbito jurisprudencial, mormente os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de setembro de 2017, processo n.º 7471/15.9T8CBR.C1, e da Relação do Porto de 27 de abril de 2015, processo 1336/13.6TTVNG.P1.

[230] Cf. mormente acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de março de 2019, processo n. 499/14.8T8EVR.E1.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de setembro de 2017, processo n.º 7471/15.9T8CBR.C1, da Relação de Lisboa, de 24 de abril de 2008, processo n.º 2889/2008-6.

[231] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de junho de 2007, processo n.º 07B1964.

[232] Cf. referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de novembro de 2007.

[233] CASTANHEIRA NEVES, Questão-de-facto – Questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade I, Coimbra, 1967, Almedina, páginas 524 a 525.

[234] A Lei n.º 30/2013, de 8 de maio, estabeleceu, no desenvolvimento do disposto na Constituição quanto ao sector cooperativo e social, as bases gerais do regime jurídico da economia social, bem como as medidas de incentivo à sua atividade em função dos princípios e dos fins que lhe são próprios (artigo 1.º). Compreende as atividades que «têm por finalidade prosseguir o interesse geral da sociedade, quer diretamente quer através da prossecução dos interesses dos seus membros, utilizadores e beneficiários, quando socialmente relevantes.» (artigo 2.º, n.º 2). As fundações são, nos termos do artigo 4.º, alínea d), entidades que integram a economia social.

[235] Cf. Artigo 20.º e seguintes da Lei-Quadro das Fundações, aprovada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de julho, na redação sucessivamente modificada pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 157/2019, de 22 de outubro, pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, e pela Lei n.º 67/2021, de 25 de agosto.

[236] Nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 30/2013, de 8 de maio, as fundações que constem da base de dados prevista no artigo 6.º, «estão sujeitas às normas nacionais e comunitárias dos serviços sociais de interesse geral no âmbito das suas atividades, sem prejuízo do princípio constitucional de proteção do setor cooperativo e social.»

[237] Cf. Artigo 429.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos. Referimo-nos ao Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, amplamente revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, e posteriormente modificado pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto (com duas retificações na redação: declaração de retificação n.º 36-A/2017, de 30 de outubro, e declaração de retificação n.º 42/2017, de 30 de novembro) pelo Decreto-Lei n.º 33/2018, de 15 de maio, e pelo Decreto-Lei n.º 170/2019, de 4 de dezembro. Note-se porém que a Resolução da Assembleia da República n.º 16/2020, de 19 de março, fez cessar a vigência deste último e repristinar a redação imediatamente precedente. Seria alterado posteriormente pela Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 54/2023, de 14 de julho.

[238] Acerca deste fideicomisso irregular, v. DANIEL MORAIS, in Código Civil Anotado, Livro V — Direito das Sucessões (coordenação: Cristina Araújo Dias), Ed. Almedina, Coimbra, 2018, p. 452. O Autor chama a estas modalidades fideicomissárias fideicomissos de resíduo e informa-nos acerca da controvérsia surgida no Código Civil de 1867 quanto a saber se podia o testador afastar os poderes do fideicomissário relativamente à alienação de bens pela pessoa coletiva fiduciária. Questão que terá sido objeto de Acórdão da Relação de Coimbra, de 18 de maio de 2010 (processo 551/03.5TBTND.C1), no sentido da prevalência dos poderes do fideicomissário.

[239] Das Fundações: Subsídios para a Interpretação e Reforma da Legislação Portuguesa, Edições Ática, Lisboa, 1961, p. 160.

[240] FRANÇOISE ROQUES, La fondation d’utilité publique au croisement du public et du prive, Révue du droit public, n.º 6, 1990, p. 1767.

[241] Ibidem.

[242] Boletín Oficial de España, n.º 282, de 25 de novembro de 1994. Seria revogada pela Ley 50/2002, de 26 de dezembro, que se mostra ainda mais perentória em sentido contrário à reversão.

[243] La ausencia de ánimo de lucro y la reversión de los bienes fundacionales a la extinción de la fundación, in Derecho Privado y Constitución, n.º 20, 2006, p. 255 e seguintes.

[244] Aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho (cf. Declaração de Retificação n.º 22/2021, de 9 de julho)

[245] Las Fundaciones desde el Derecho Público, in Boletín de la Facultad de Derecho da Universidade Nacional de Educación a Distancia, n.º 4, 1993, p. 145.

[246] Idem, p. 147.

[247] Citado, p. 278 e seguinte.

Anotações
Legislação: 
CC66 ART194-A ART186 ART166 ART190-A ART960; L 24/2012 DE 2012/07/08 ART3 ART4 ART12 ART18 ART60; L 150/2015 DE 2015/09/10; L 67/2021 DE 2021/08/25; L 75/2016 DE 2016/07/28;
 
Jurisprudência: 
AC STJ de 1996/10/24; AC TRIB REL DE LX DE 2019/12/11; AC TRIB REL LX DE 2008/04/24; AC TRIB GUIMARÃES DE 2018/01/18; AC TRIB CONST 534/2014 DE 2014/07/01;
 
Referências Complementares: 
DIR ADM; DIR PUBLICO;
PROP LEI N 42/XII/1
AC TRIB CONST ESPANHA 324/2005
DIR COMPARADO
BDB 80 A 88
DECRETO RÉGIO ITALIANO DE 1889/07/24 ART35
LEY DE FUNDACIONES DE MADRID LEY 30/1994 DE 19994/11/24
 
Divulgação
Número: 
189
Data: 
28-09-2023
Página: 
99
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