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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
36/1999, de 30.08.2002
Data de Assinatura: 
30-08-2002
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
CONVENÇÃO EUROPEIA SOBRE O RECONHECIMENTO E A EXECUÇÃO DAS DECISÕES RELATIVAS À GUARDA DE MENORES E SOBRE O RESTABELECIMENTO DA GUARDA DE MENORES
CRIANÇA
DIREITO DE VISITA
DIREITO DE GUARDA DE MENORES
DESLOCAÇÃO ILÍCITA DE MENORES
RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
HIERARQUIA DAS FONTES DE DIREITO
RECEPÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
NORMAS SELF-EXECUTING
RECONHECIMENTO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
Conclusões: 
1. As normas constantes de convenções internacionais, em conformidade com o nº 2 do artigo 8º da Constituição, são objecto de recepção plena, vigorando na ordem interna nos mesmos termos das normas criadas internamente, como fontes autónomas, sem necessidade de serem transpostas ou transformadas em direito interno mediante uma lei;

2. O direito internacional convencional recebido a que alude a conclusão anterior possui valor supra-legislativo, prevalecendo, em princípio, sobre o direito interno infraconstitucional anterior ou posterior que o contrarie;

3. A Convenção sobre aos Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980, e a Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das Decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores, feita no Luxemburgo em 20 de Maio de 1980, de que Portugal é Estado Parte, constituem direito internacional partícipe, na ordem jurídica portuguesa, da natureza e caracteres delineados nas anteriores conclusões 1. e 2.;

4. A proposta de lei constante da consulta não se configura como instrumento de recepção ou transposição para a nossa ordem jurídica das Convenções aludidas na anterior conclusão 3., em desarmonia com o sistema de recepção plena ou automática constitucionalmente consagrado, mas como diploma visando tão-somente clarificar e facilitar a sua interpretação e aplicação interna;

5. Nesta sua veste, a proposta sub iudicio mostra-se em geral conforme à Constituição e às Convenções mencionadas na conclusão 3., relevando, no entanto, as soluções normativas nela consubstanciadas, em larga medida, de opções de política legislativa;

6. Na tónica da juridicidade, as normas do mesmo diploma são susceptíveis das observações constantes, nomeadamente, dos pontos IV, 3., 4., e V do parecer.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:




I

Pelo Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Justiça do XIV Governo Constitucional foi remetido ao Gabinete de Sua Excelência o Conselheiro Procurador-Geral da República, para parecer ([1]), um anteprojecto de proposta de lei de execução interna das duas Convenções seguintes:

1. Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980 ([2]);

2. Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das Decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores, feita no Luxemburgo em 20 de Maio de 1980 ([3]).

Dignando-se Sua Excelência o Procurador-Geral da República solicitar o parecer do Conselho Consultivo, cumpre emiti-lo.
II

Previamente ao exame do articulado projectado interessa conhecer os aspectos fundamentais de conteúdo dos tratados em questão nele implicados.

1. Considere-se, pois, em primeiro lugar, a Convenção da Haia ([4]).

1.1. A nota preambular acentua os objectivos que presidiram à sua celebração, registando precisamente a firme convicção dos Estados signatários «de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia» e, por isso mesmo, o intuito que os move no sentido de a proteger, «no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas», e de «estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a protecção do direito de visita».

E os 5 capítulos da Convenção procuram em 45 artigos dar tradução normativa à intencionalidade assim esboçada.


1.2. Assim, o Capítulo I (Âmbito da Convenção; artigos 1º a 5º) precisa, em sintonia com o mesmo escopo, o objecto do convénio nas suas principais projecções.

Dispõe o artigo 1º:
«Artigo 1º

A presente Convenção tem por objecto:
a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;

b) Fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.»

O artigo 2º define em geral os deveres dos Estados com vista à consecução destes fins:

«Artigo 2º

Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respectivos territórios, a concretização dos objectivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência.»

O artigo 3º, por seu turno, circunscreve as condições em que a deslocação ou retenção de uma criança é considerada ilícita: em resumo, quando o direito de custódia (de guarda) ou de visita – na acepção que deles fornece o artigo 5º -, atribuídos de pleno direito, mediante decisão judicial ou administrativa e, ainda, por acordo ao abrigo do direito estadual, tenham sido violados.

Segundo o artigo 4º, todavia, a Convenção deixa de se aplicar às crianças que atinjam 16 anos de idade.

O Capítulo II (Autoridades centrais; artigos 6º e 7º) regula a designação por cada Estado Contratante de uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações impostas pelo tratado (artigo 6º), detalhando as tarefas de cooperação e operacionais que a estas incumbem (artigo 7º).

O Capítulo III (Regresso da criança; artigos 8º a 20º) disciplina aspectos processuais relativos à reposição da situação da criança deslocada ou retirada em violação do direito de custódia, tais como os seguintes:
- iniciativa do procedimento mediante requerimento a qualquer autoridade central, termos do pedido e documentos instrutórios (artigo 8º);
- intervenção da autoridade central do Estado em que se encontra a criança (artigo 9º e 10º);
- adopção de procedimentos urgentes pelas autoridades judiciais e administrativas dos Estados Contratantes, e demora na decisão (artigo 11º);
- ordem judicial ou administrativa de regresso da criança ilicitamente transferida ou retirada (artigo 12º);
- contraditório, oposição ao pedido, audição da criança e outras informações, recusa da ordem de regresso (artigo 13º);
- instrução documental complementar (artigos 14º e 15º);
- proibição, como regra, de as autoridades judiciais ou administra-tivas do Estado de localização da criança decidirem sobre o fundo do direito de custódia (artigo 16º);
- amplitude dos poderes destas autoridades (artigos 17º, 18º e 19º), maxime o de recusa do regresso não consentâneo com «princípios fundamentais do Estado requerido relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais» (artigo 20º).

O Capítulo IV rege, correspectivamente, no seu único artigo, sob esta mesma epígrafe, quanto ao Direito de visita (artigo 21º).

E o Capítulo V (Disposições gerais; artigos 22º a 36º) compendia uma série de preceitos aplicáveis em geral no funcionamento dos mecanismos da Convenção, entre os quais se destacam os seguintes.

Fica excluída a imposição de qualquer cautio iudicatum solvi (artigo 22º) e nenhuma «legalização» ou «formalidade similar» são exigíveis no contexto do convénio (artigo 23º).

Os requerimentos, comunicações e outros documentos são enviados à autoridade central do Estado requerido na língua original, e acompanhados de tradução na língua ou numa das línguas oficiais deste Estado, ou, sendo tal tradução dificilmente realizável, de tradução em francês ou inglês (artigo 24º) ([5]).

Quanto às despesas originadas pela aplicação da Convenção vigoram as regras estatuídas nos artigos 25º e 26º.

Aos nacionais de um Estado Contratante e, bem assim, às pessoas que nele habitualmente residam é reconhecido o direito à assistência judiciária e jurídica em qualquer outro Estado Contratante nas mesmas condições dos nacionais e das pessoas que habitualmente residam neste Estado (artigo 25º).

Cada autoridade central suporta os respectivos encargos (artigo 26º, primeiro parágrafo).

A autoridade central e outros serviços públicos dos Estados Contratantes não exigirão o pagamento de quaisquer custas ou despesas efectuadas com o processo e a eventual participação de advogado (segundo parágrafo).

Mas podem exigir o pagamento das despesas ocasionadas pelo regresso da criança (idem).

Ficou ademais aberta aos Estados a possibilidade, formulando uma reserva, de se desobrigarem do pagamento de encargos referentes à intervenção de advogado ou consultor jurídico e a custas judiciais, excepto se os mesmos puderem ser cobertos pelo seu sistema de assistência judiciária e jurídica (terceiro parágrafo do artigo 26º e artigo 42º).

Acresce que as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido podem ainda impor ao responsável pela deslocação ou retenção ilícita o pagamento de todas as despesas necessárias efectuadas pelo requerente ou em seu nome – incluindo despesas de viagem, de representação judiciária e de regresso da criança – e de todas as custas e despesas realizadas na localização desta (quarto parágrafo).

Dois princípios estruturais de funcionamento da Convenção interessa por último salientar.

Em primeiro lugar, os tribunais e autoridades administrativas dos Estados Contratantes agem não só por iniciativa das autoridades centrais, mas igualmente em face de pedidos que ao abrigo da Convenção lhes sejam directamente apresentados (artigo 30º).

Segundo. A Convenção da Haia não impede «que outro instrumento internacional vigore entre o Estado de origem e o Estado requerido, nem que o direito não convencional do Estado requerido seja invocado para obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida, ou para organizar o direito de visita» (artigo 34º, segunda parte).

Finalmente o derradeiro Capítulo VI (artigos 37º a 45º) contém o repositório das Cláusulas finais, preceitos de estilo concernentes à assinatura, aceitação, aprovação, adesão, ratificação – e depósito dos respectivos instrumentos –, admissibilidade e tempo das reservas, entrada em vigor, duração do tratado.


2. Passe-se seguidamente à Convenção Europeia.


2.1. Os considerandos preambulares deste outro instrumento internacional implicado na consulta são assaz elucidativos da filosofia e objectivos que lhe subjazem, pelo que convém exarar sucinto registo do seu conteúdo.

O tópico axial que mobiliza os Estados membros do Conselho da Europa em torno do documento reside na ideia de que o «interesse do menor é de uma importância fundamental em matéria de decisões relativas à sua guarda», resultando a sua melhor protecção garantida pela «instituição de medidas destinadas a facilitar o reconhecimento e a execução das decisões referentes à guarda» – sem olvidar também que «o direito de visita dos pais é o corolário normal do direito de guarda».

Isto por um lado.

Por outro lado, a verificação de um «número crescente de casos em que os menores foram ilicitamente deslocados por uma fronteira internacional», e «as dificuldades encontradas para resolver de forma adequada os problemas suscitados» nessas situações fizeram avultar a oportunidade de «introduzir disposições apropriadas – e de adoptar «medidas adaptadas às diferentes necessidades e circunstâncias» – que permitam o restabelecimento da guarda» quando esta tenha sido «arbitrariamente interrompida».

Em suma. Favor ao reconhecimento e execução das decisões respeitantes ao direito de guarda – e de visita – dos menores e, bem assim, adopção de medidas apropriadas à reintegração das situações jurídicas violadas.

Tal o escopo que num quadro de «relações de cooperação judiciária» internacional entre as autoridades dos Estados Contratantes presidiu à celebração da Convenção Europeia.


2.2. Neste conspecto se deve, pois, compreender o articulado, composto de 30 artigos agregados em 6 títulos, seguidamente passado em revista nos aspectos essenciais à elucidação da consulta ([6]) ([7]).

O Título I (Autoridades centrais; artigos 2º a 6º) provê acerca da designação, competências e funcionamento destas entidades verdadeiramente nucleares na mecânica da Convenção.

Cada Estado Contratante designará por isso uma autoridade central, salvo tratando-se de Estados federais ou de Estados onde estejam em vigor diversos sistemas legais que têm a faculdade de designar várias, determinando as suas competências (artigo 2º, nºs 1 e 2).

Em geral, as autoridades centrais cooperam entre si e promovem a actuação concertada das autoridades competentes dos respectivos Estados, agindo com toda a diligência necessária (artigo 3º, nº 1): asseguram a transmissão de pedidos de informação das autoridades competentes que respeitem a questões de direito ou de facto relacionadas com processos em curso; comunicam-se informações sobre o direito concernente à guarda de menores; mantêm-se informadas e actuantes sobre as dificuldades suscitadas na aplicação da Convenção [nº 2, alíneas a), b) e c)].

O sistema de autoridades centrais funciona basicamente da seguinte forma.

Qualquer pessoa que tenha obtido num Estado Contratante decisão relativa à guarda de um menor e pretenda o seu reconhecimento ou execução noutro Estado Contratante, pode dirigir requerimento nesse sentido, instruído com os documentos pertinentes, à autoridade central de qualquer Estado Contratante, a qual, sendo caso disso, concitará a intervenção da autoridade central do Estado requerido (artigo 4º, nºs 1, 2 e 3), a fim de serem tomadas com a maior brevidade, se necessário por intermédio das competentes autoridades – judiciais ou administrativas, já o sabemos (cfr. supra, nota 6) –, as medidas apropriadas (artigo 5º, nºs 1 e 2).

Os Estados Contratantes comprometem-se, por outro lado, a não exigir do requerente qualquer pagamento das providências assim tomadas pelas suas autoridades centrais, incluindo custas judiciais e eventuais encargos com a assistência de advogado, exceptuando-se, porém, as despesas de repatriamento (artigo 5º, nº 3).

Sendo o reconhecimento ou a execução recusados, se a autoridade central requerida entender, contudo, dever dar seguimento ao pedido do requerente no sentido de intentar nesse Estado uma acção quanto ao fundo, deverá a mesma providenciar pela representação processual daquele em condições não menos favoráveis que as dos residentes e nacionais do Estado em causa (artigo 5º, nº 4).

Nas comunicações dirigidas ou emanadas da autoridade central do Estado requerido são utilizados os idiomas indicados no artigo 6º, assumindo prevalência a língua ou uma das línguas oficiais daquele Estado.

O Título II (artigos 7º a 12º) respeita, conforme a sua epígrafe, ao Reconhecimento e execução das decisões e restabelecimento da guarda de menores.

Rege na matéria a regra fundamental, formulada no artigo 7º, segundo a qual as «decisões relativas à guarda proferidas num Estado contratante são reconhecidas e, se forem executórias no Estado de origem, são postas em execução em qualquer outro Estado contratante».

Se bem se pensa, tal não significa que as decisões relativas à guarda operem ipso iure, pois, na realidade, quer o reconhecimento, quer a execução dessas decisões podem ser recusados, em certos termos, com os fundamentos aludidos nos artigos 9º e 10º, sendo o respectivo processo susceptível, ademais, de suspensão nas hipóteses configuradas no nº 2 deste último artigo.

E como regra a decisão não poderá ser objecto de exame quanto à matéria de fundo (artigo 9º, nº 3).

O artigo 8º rege em especial com respeito à restituição do menor - ao restabelecimento da guarda do menor - em caso de deslocação ilícita ou de retenção no exercício do direito de visita além-fronteiras ([8]).

Aliás, as decisões sobre o direito de visita são, em princípio, reconhecidas e tornadas exequíveis nas mesmas condições das decisões relativas à guarda (artigo 11º, nº 1), conquanto exista a possibilidade, sob certos pressupostos, de as autoridades competentes do Estado requerido decidirem acerca do direito de visita, a pedido da pessoa que invoque esse direito (artigo 11º, nºs 2 e 3).

O Título III (Processo; artigos 13º a 16º) regula aspectos processuais relativos a aplicação da Convenção.

Assim, o nº 1 do artigo 13º elenca em 6 alíneas os documentos que devem instruir o pedido de reconhecimento ou execução de decisão relativa a guarda – v.g., uma cópia da decisão que preencha os requisitos necessários à sua autenticidade [alínea b)]; documento comprovativo de que a decisão é executória segundo a lei do Estado de origem [alínea d)].

Os Estados Contratantes devem aplicar ao reconhecimento e execução das decisões de guarda «um processo simples e rápido», assegurando a possibilidade de o pedido de exequatur ser apresentado mediante simples requerimento (artigo 14º).

O princípio da audição do menor, atendendo à idade e à capacidade de discernimento, obtém afloração no nº 1 do artigo 15º.

Os custos das averiguações aludidas no mesmo artigo ficam a cargo do Estado em que forem efectuadas (nº 2).

Para os efeitos da Convenção «não pode ser exigida qualquer legalização ou formalidade análoga» (artigo 16º) – embora, como se viu, a cópia da decisão a reconhecer ou executar deva preencher os requisitos necessários à sua autenticidade.

O Título IV (Reservas; artigos 17º e 18º) é especificamente dedicado às reservas admitidas aos Estados Contratantes, com destaque para as respeitantes aos fundamentos de recusa de reconhecimento e execução de decisões de guarda.

E o Título V (Outros instrumentos; artigos 19º e 20º) intenta definir relações não prejudiciais da Convenção sub iudicio com outros instrumentos internacionais em que sejam partes os Estados Contratantes.

Neste sentido, estipulam o artigo 19º que o disposto na Convenção Europeia não impede o recurso a instrumento internacional diverso vinculando o Estado de origem e o Estado requerido – ou ao direito não convencional deste último Estado –, com vista à obtenção do reconhecimento ou execução de uma decisão.

Também os compromissos entre Estados Contratantes e não contratantes, mercê de instrumentos internacionais relativos a matérias reguladas pela Convenção ficam ressalvados (artigo 20º, nº 1).

O mesmo se diga se dois ou mais Estados Contratantes tiverem estabelecido ou vierem a estabelecer uma legislação uniforme concernente á guarda de menores, ou um específico sistema de reconhecimento ou execução de decisões nesse domínio, posto que, justamente, lhes é reconhecida a faculdade de aplicarem entre si essa legislação ou esse sistema em lugar da Convenção ou parte dela, precedendo notificação ao Secretário-Geral do Conselho da Europa (artigo 20º, nº 2).

Restam as Clausulas finais a que vai dedicado ao Título VI (artigos 21º a 30º).

Trata-se, porém, de disposições tabelares relativas à assinatura, ratificação, aceitação ou aprovação – e de adesão, inclusive, de Estados não membros do Conselho da Europa –, entrada em vigor, denúncia, e de aplicação a Estados pluriterritoriais ou dotados de sistemas jurídicos plurilegislativos, cuja análise se reveste já de interesse despiciendo na perspectiva da proposta de lei a que se refere a consulta.



III


É assim oportuno conhecer o conteúdo deste instrumento.


1. Em «exposição de motivos», o breve exórdio dá notícia de dificuldades encontradas na interpretação e aplicação das Convenções antes examinadas que podem justificar o texto projectado, lendo-se a propósito, nomeadamente:


«O facto de não terem sido precedidas de nenhuma lei de aplicação interna levantou vários problemas no que toca á sua interpretação e aplicação pelos órgãos portugueses de aplicação do direito, tais como os que se prendem com a forma e distribuição do processo, o tribunal competente para a acção, os prazos, os recursos, as traduções de documentos estrangeiros, a posição do Ministério Público no processo, o ónus da prova, a proibição de estatuir sobre o fundo do direito de guarda, a obrigatoriedade de apoio judiciário gratuito quando requerido, o exequatur preventivo, etc.

«Pretende-se, pois, clarificar e facilitar a aplicação das Convenções supramencionadas pelos órgãos portugueses de aplicação do direito competentes e, por outro lado, definir melhor o papel da autoridade central portuguesa.»

2. Interessa, por conseguinte, transcrever o articulado na íntegra.


«Capítulo I
Disposições Gerais

«Artigo 1º
Finalidade


O presente diploma regula a execução, pelos órgãos de aplicação de direito portugueses competentes, da Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores, feita no Luxemburgo em 20 de Maio de 1980, e da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980, doravante designadas, respectivamente, por Convenção Europeia e Convenção da Haia.


«Artigo 2º
Aplicabilidade

O presente diploma aplica-se sempre que se verifiquem as circunstâncias de que depende a aplicação da Convenção Europeia ou da Convenção da Haia ou de ambas.

«Artigo 3º
Aplicação no tempo

O presente diploma aplica-se aos processos pendentes.


«Artigo 4º
Aplicabilidade de ambas as Convenções

1. No caso de serem potencialmente aplicáveis as duas Convenções, havendo dúvidas sobre qual delas deverá ser aplicada, será dada prevalência àquela cuja aplicação permita assegurar melhor, no caso concreto, o interesse do menor.

2. A não aplicação, no caso concreto, de uma das Convenções não preclude necessariamente a aplicação da outra, se for caso disso.

«Artigo 5º
Aplicação de outras Convenções ou Tratados Internacionais

O presente diploma não prejudica a aplicação de outras Convenções ou tratados internacionais de que Portugal é parte, devendo dar-se prevalência ao instrumento internacional cuja aplicação permita assegurar melhor, no caso concreto, o interesse do menor.

«Artigo 6º
Âmbito de aplicação pessoal

O presente diploma aplica-se a menores que não tenham ainda atingido os 16 anos de idade, seja qual for a sua residência ocasional.

«Artigo 7º
Princípio geral da gratuitidade

Salvo o disposto no artigo 18º, não será exigido qualquer pagamento relativo às medidas tomadas pelos órgãos de aplicação de direito portugueses competentes, desde que os pedidos tenham sido formulados pelas Autoridades Centrais previstas pelas Convenções Europeia e da Haia.

«Artigo 8º
Cooperação internacional

Na aplicação do presente diploma deverá ser sempre tido em atenção o carácter internacional das situações por ele abrangidas, bem como o espírito de cooperação internacional em matéria de protecção de menores que está subjacente à conclusão das duas Convenções.

«Capítulo II
Aplicação da Convenção da Haia

«Secção I
Da acção especial convencional

«Artigo 9º
Competência territorial

1. Para decretar as providências em que, ao abrigo da Convenção da Haia, se pretenda a restituição do menor ilicitamente transferido ou retido, bem como a fixação ou protecção de um direito de visita, é competente o tribunal de primeira instância da área em que o menor se encontre no momento em que a acção for instaurada.

2. Se não for conhecido o local em que o menor se encontra é competente o Tribunal de Família de Lisboa.

3. São irrelevantes as alterações da residência do menor que ocorrerem após a instauração da acção.

«Artigo 10º
Carácter urgente

Esta acção tem carácter urgente, correndo em período de férias judiciais e não depende de distribuição.

«Artigo 11º
Documentos

1. Os documentos públicos lavrados em qualquer dos Estados partes na Convenção, estão dispensados de legalização, de apostilha e de qualquer formalidade análoga, quando devam fazer fé perante o tribunal ou qualquer autoridade pública.

2. Estes documentos e demais peças processuais devem, no entanto, ser lavrados de modo a permitir a comprovação cabal da sua autenticidade, designadamente, mediante a aposição do selo oficial da autoridade competente para os emitir.

3. Em caso de dúvida sobre a autenticidade de um documento podem ser solicitadas informações por intermédio da Autoridade Central.

«Artigo 12º
Constituição de Advogado

1. Não é obrigatória a constituição de advogado, salvo na fase de recurso.

2. A concessão do patrocínio judiciário será feita nos termos da Convenção.


«Secção II
Do processo

«Artigo 13º
Fase preliminar

1. A autoridade central remeterá ao representante do Ministério Público junto do tribunal competente requerimento relativo ao pedido de regresso ou ao direito de visita, acompanhado pela documentação exigida pela Convenção.

2. O Ministério Público, no prazo de dois dias, notificará a pessoa que tenha deslocado ou retido ilicitamente o menor para se apresentar no tribunal acompanhada por este.

3. Se o requerido comparecer e concordar com a restituição voluntária do menor e se esta puder efectuar-se de imediato, o Ministério Público designa data, num prazo nunca superior a três dias, e local para se proceder à entrega do menor.

4. Da entrega do menor lavar-se-á o respectivo auto.

«Artigo 14º
Remessa a juízo

1. Se o requerido não comparecer ou não concordar com a restituição voluntária do menor, o Ministério Público, no prazo de dois dias, requer a providência judicial adequada.

2. Com o requerimento deverão ser juntos os documentos, designadamente os recebidos da autoridade central, e será arrolada a prova testemunhal.

«Artigo 15º
Audiência

1. Autuado o requerimento, é designado dia para o julgamento, no prazo máximo de quinze dias, e a pessoa que subtraiu o menor ou o retenha será citada para comparecer pessoalmente, acompanhada do menor, sob pena de multa.

2. A contestação é apresentada na própria audiência.

3. Só pode oferecer-se prova documental ou testemunhal que as partes apresentem em audiência.

4. Se o requerido comparecer e aceder à restituição do menor, é ordenada a entrega ou designar-se-á dia e local onde deve efectuar-–se a entrega do menor à pessoa, instituição ou organismo titular do direito de custódia

5. Se não houver contestação ou se a conciliação se frustrar, o juiz ordena a produção imediata da prova e decide por sentença oral.

6. Esta decisão é notificada aos demais interessados.

7. Da entrega do menor lavrar-se-á o respectivo termo.
«Artigo 16º
Audição do menor

Será sempre ouvido o menor com mais de 12 anos ou com idade inferior, quando, de acordo com a sua maturidade, tal for considerado necessário e adequado.

«Artigo 17º
Decisões provisórias

Em qualquer estado da causa, o juiz pode tomar quaisquer medidas a titulo provisório.

«Artigo 18º
Despesas de repatriamento

Se o juiz decidir pela restituição do menor, poderá condenar nas despesas de repatriamento a pessoa que subtraiu ou que reteve o menor.

«Artigo 19º
Medidas coercivas

Para cumprimento e execução das suas decisões, o tribunal poderá recorrer às autoridades policiais e permitir às pessoas a quem incumba o cumprimento das suas decisões a entrada, durante o dia, em qualquer casa, mesmo que seja necessário usar a força.

«Artigo 20º
Recursos

1. Os recursos interpostos de quaisquer decisões proferidas no âmbito deste processo têm efeito meramente devolutivo.

2. Os agravos interpostos no decorrer do processo sobem com o recurso que se interpuser da decisão final.

«Capítulo III
Aplicação da Convenção Europeia

«Artigo 21º
competência

1. Para reconhecer e executar, ao abrigo da Convenção Europeia, as decisões relativas à guarda do menor e ao direito de visita, é competente o tribunal de primeira instância da área da residência do menor.

2. Se, no momento da instauração do processo, o menor não residir em Portugal ou não for conhecida a sua residência, é competente o Tribunal de Família de Lisboa.

3. São irrelevantes as alterações de residência do menor que ocorrerem após a instauração da acção.

«Artigo 22º
Reconhecimento

Apresentado o requerimento pelo Ministério Público, acompanhado pelos respectivos documentos, designadamente pela decisão a reconhecer, o juiz, após realizar as diligências que considerar necessárias, decidirá.


«Artigo 23º
Remissão

À execução das decisões relativas à guarda do menor, requeridas ao abrigo da Convenção Europeia, aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 10º e 16º quanto à Convenção da Haia.



«Capítulo IV
Da autoridade central

«Artigo 24º
Competência

1 - À autoridade central compete nomeadamente:

a) Exercer as funções de autoridade central previstas na Convenção de Haia e na Convenção Europeia;

b) Instruir o expediente e remetê-lo ao Ministério Público;

c) Recorrer directamente às forças policiais, para localização de um menor ilicitamente deslocado ou retirado em Portugal.

2 - Na execução das missões que lhe competem, a autoridade central pode:

a) Ter acesso às listas nominativas das companhias de transportes que mantenham registos de passageiros;

b) Ter acesso aos registos e informações das instituições escolares, públicas ou privadas, e da segurança social;

c) Solicitar aos serviços competentes, gratuitamente, cópias ou extractos de qualquer acto de registo civil relativo a menores.

«Artigo 25º
Traduções

1 - As autoridades judiciárias podem solicitar à autoridade central as traduções que considerem indispensáveis.

2 - A autoridade central disporá dos meios necessários à execução das traduções.


«Artigo 26º
Entrega do menor

A autoridade central, quando seja concedida a execução da decisão, deve assegurar a entrega do menor ao requerente.


Capítulo V
Disposições finais

«Artigo 27º
Lacunas

As lacunas existentes no presente diploma serão preenchidas nos termos do Código de Processo Civil.


«Artigo 28º
Entrada em vigor

O presente diploma entra imediatamente em vigor.»


IV

1. Subjacendo de algum modo à proposta de lei que vem de se transcrever a aplicação, pelos órgãos do Estado, mediante os mecanismos nela delineados, da Convenção da Haia e da Convenção Europeia, suscita-–se desde logo em abstracto a questão da recepção do direito internacional público na ordem jurídica interna.

Rege ao respeito o artigo 8º da Constituição, do seguinte teor ([9]):


«Artigo 8º
(Direito internacional)

1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.

2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

3. As normas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.»

Não está, porém, em causa o direito internacional geral ou comum a que se refere o nº 1 do artigo 8º, nem se trata de normas emanadas de órgãos competentes de organizações internacionais em que Portugal participe subsumíveis ao nº 3 do mesmo artigo.

Trata-se, bem diversamente, de normas de convenções internacionais acerca das quais dispõe o nº 2 vigorarem na ordem interna desde que regularmente ratificadas ou aprovadas e, ademais, oficialmente publicadas, como é o caso das duas Convenções sub iudicio.

O nº 2 do artigo 8º consagra, por conseguinte, um regime de «recepção automática» das normas de direito internacional público convencional internacionalmente vinculativas do Estado português, subordinada ao preenchimento das duas aludidas condições.

Tal significa que, verificadas estas, as normas de direito internacional pactício vinculativas do Estado português «vigoram na ordem interna, nos mesmos termos e com a mesma relevância das normas criadas internamente – inclusive no tocante «à subordinação hierárquica à Constituição», que sobre elas prevalece – e sem necessidade de serem ‘traduzidas’ ou transcritas em lei ou transformadas em direito interno», como verdadeiras «fontes autónomas de direito interno» ([10]).

Flui do exposto que a Convenção da Haia e a Convenção Europeia foram recebidas plena e automaticamente na ordem jurídica portuguesa, onde vigoram nos mesmos termos e com a mesma relevância das normas de direito interno, sem necessidade e independentemente de uma lei interna de transposição.

E há-de efectivamente reconhecer-se não ser esta, encarada com objectividade, a pretensão da proposta de lei submetida à nossa apreciação.

O móbil legislativo enunciado no exórdio do diploma, que uma visão na generalidade do articulado não contradiz, é tão-somente o de «clarificar e facilitar» a aplicação dos convénios pelos órgãos nacionais - além de «definir melhor o papel da autoridade central portuguesa» -, devido à ocorrência de dificuldades práticas concernentes à sua interpretação e aplicação interna.

De modo algum se configura, por conseguinte, a proposta de lei em causa como instrumento de transposição das Convenções para a ordem interna, em assintonia com o sistema de recepção plena ou automática constitucionalmente consagrado.

Quando muito arrogar-se-ia a virtualidade de conferir a certas das normas convencionais carácter «self-executing» ([11])», tornando-as, em resumo, directamente aplicáveis por insuficiência das mesmas no sentido de uma aplicação efectiva no direito interno ([12]).

É, no entanto, aspecto que se tem por assaz duvidoso.

Recebidas plena e automaticamente, dotadas de aplicabilidade imediata na ordem interna portuguesa, como se mostrou, as Convenções sub iudicio – sem embargo de dúvidas de interpretação e aplicação comuns a todo o direito – são, em princípio, exequíveis só por si através dos mecanismos procedimentais, qualquer que seja a sua configuração, já disponíveis no ordenamento.


2. Importa em todo o caso precisar ainda a posição recíproca das Convenções face ao diploma de aplicação na tónica da hierarquia das fontes, não suceda que elementos normativos conflituantes avultem no seio dos instrumentos em confronto.

A equação suscita o problema geral das relações entre direito internacional convencional recebido e direito infraconstitucional interno, que consiste em saber se as normas daquele direito ocupam uma posição idêntica à da lei ordinária interna ou dispõem de valor superior.

Analisando a questão, escreveu-se ([13]).

«Obviamente, basta que aquelas não tenham valor inferior à norma legal para que, em princípio, elas derroguem (ou prevaleçam sobre) as normas de lei interna anterior que as contrarie, por aplicação directa do princípio de que a lei posterior derroga a anterior. Mas só se se lhes reconhecer valor superior à lei interna, um valor supra--legislativo, é que elas podem prevalecer sobre a lei interna posterior, de modo a tornar inválida ou ineficaz a lei que venha contrariar uma norma de DIP vigente na ordem interna. Na medida em que o direito internacional recebido prevaleça sobre o direito ordinário interno, este não poderá contrariar aquele, ficando o Estado impedido de validamente editar normas que sejam discrepantes com as de direito internacional, enquanto se mantiver a vinculação do Estado a estas normas internacionais (o que, no caso de normas de direito internacional geral, não depende sequer da vontade do Estado). O único meio de fazer cessar a vigência dessas normas na ordem interna será a desvinculação externa.»

A despeito de inexistir norma constitucional explícita que estabeleça inequivocamente a prevalência do direito internacional pactício sobre o direito ordinário interno, a opinião quiçá dominante tende a sufragar este entendimento ([14]), aliás tributário de uma «concepção monista com primado do direito internacional», que precisamente implica a «vigência interna» deste direito «na ausência de disposições estaduais que a ela se refiram» e mesmo «perante disposições contrárias do direito estadual» ([15]).

Assaz discutível, neste conspecto a natureza do vício que pode inquinar a norma de direito interno conflituante com o direito internacional convencional recebido.

Determinados cultores do direito internacional público propendem para a «ineficácia» ou «inaplicabilidade» de uma semelhante norma ([16]), quando não para a sua «inconstitucionalidade material» ([17]).

A doutrina constitucional fala, por seu turno, de «invalidade» ([18]), e de «ilegalidade», isto é, de «uma modalidade específica de desconformidade normativa não integrante do conceito de inconstitucionalidade, mas antes equiparada àquela modalidade de ilegalidade por violação de leis dotadas de supremacia sobre outras leis», «desconformidade entre normas infraconstitucionais», dito de outro modo, «sujeita a um regime especial de fiscalização, só em pequena parte coincidente com o da fiscalização da constitucionalidade» ([19]).

Aduzidos tópicos essenciais no tema, a economia do parecer dispensa aprofundá-lo e exonera-nos de assumir no presente ensejo posição compromissória.


3. Posto isto, observar-se-á, noutra tónica, o seguinte.

A iniciativa legislativa patente a nossos olhos, por um lado, apresenta-se sob a forma, precisamente, de uma proposta de lei do Governo, verificando-se, de outro lado, que nela se optou por adjectivar, do mesmo passo, duas Convenções emanadas de diferentes foros.

No tocante ao primeiro aspecto, bem se compreenderá, todavia, a solução de fazer consubstanciar em lei da Assembleia da República conteúdos normativos como os que nos são presentes, destinados a facilitar o funcionamento das Convenções em apreço.

Basta notar, para além de razões políticas que não cabe apreciar, a circunstância de vários dos preceitos projectados respeitarem mais ou menos incisivamente à competência dos tribunais e do Ministério Público (cfr., v.g., os artigos 3º, 9º., 10º, 12º, 13º, 17º a 19º, 21º a 23º), matéria da competência legislativa reservada parlamentar [artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição].

Quanto, por seu turno, ao segundo aspecto, devem recordar-se as afinidades estruturais e materiais entre os dois instrumentos internacionais, oportunamente evidenciadas.

Em primeiro lugar, a arquitectura de ambas as Convenções repousa num sistema muito semelhante de autoridades centrais, e um dos intuitos da proposta de lei é justamente o de agilizar o funcionamento da autoridade central portuguesa.

Acresce que o objecto da Convenção da Haia e o da Convenção Europeia coincidem materialmente em grau apreciável, como houve o ensejo de notar, na medida em que uma e outra pretendem acorrer às situações de violação dos direitos familiares de guarda e de visita relativamente a menores de 16 anos mediante deslocações e retenções ilícitas transfronteiras.


4. Do exposto fluem já sugestões inspiradoras da exposição subsequente.

Em síntese, a proposta de lei objecto da consulta não reveste, por conseguinte, a natureza de instrumento de recepção ou transposição para a ordem portuguesa da Convenção da Haia e da Convenção Europeia, reivindicando-se apenas o escopo de facilitar a interpretação e aplicação interna desses instrumentos internacionais.

Nestas circunstâncias, não poderá deixar de se cuidar da sua conformidade com a Constituição.

Abstraindo, no entanto, desta aferição, a adopção das disposições propostas releva em larga medida de parâmetros políticos, estranhos à vocação do Conselho Consultivo, pautada por exigências de legalidade e juridicidade.

Precisamente, determinadas soluções do articulado, na óptica de adjectivação da praticabilidade das Convenções, podem desmerecer e apresentar-se de utilidade discutível em face do direito infraconstitucional vigente, dependendo o seu acolhimento de critérios político-legislativos.

Em quanto concerne, porém, a eventuais contrariedades aos preceitos internacionais convencionais de que alguma das suas normas enfermasse, já a decisão deveria necessariamente ser de rejeição, mercê do primado das aludidas Convenções e da posição de supra-ordenação sobre a lei ordinária em que a proposta de lei hipoteticamente se converteria.

Nestas linhas de orientação se abordará em derradeiro lugar a análise deste instrumento.


V

O preâmbulo e o articulado, integrado sistematicamente por cinco capítulos, foram oportunamente transcritos (supra, III).

1. O Capítulo I compreende disposições muito gerais que em nada conflituam, se bem se afigura, com o ordenamento português, quer no plano constitucional, quer no plano infraconstitucional.

Os artigos 1º e 2º limitam-se a enunciar o âmbito material de aplicação do diploma, em síntese, quando esteja em causa a aplicação, por sua vez, das duas Convenções.

O artigo 3º, determinando ainda a sua aplicação aos processos pendentes, é disposição transitória intrinsecamente conexionada e dependente da eventual edição da futura lei, carecendo, como é óbvio, de justificação fora deste contexto, e limitando-se a aflorar um princípio geral de aplicação no tempo do direito processual.

Os artigos 4º e 5º aludem ao concurso material de outras convenções ou tratados internacionais em que Portugal seja parte.

Deve dar-se prevalência àquele dos instrumentos – sem excluir a sua aplicação conjugada – que melhor permita assegurar os interesses do menor no caso concreto.

É solução que flui de algum modo dos artigos 34º, segunda parte, e 36º da Convenção da Haia, 19º e 20º, da Convenção Europeia, à luz do princípio fundamental dos interesses da criança salientado nos considerandos preambulares dos dois convénios, a que diversos dos seus normativos dão tradução.

O artigo 6º define o «âmbito de aplicação pessoal» do diploma circunscrevendo-o aos menores de 16 anos, qualquer que seja a sua residência ocasional.

Observe-se, no entanto, que o limite etário constitui requisito estipulado em ambas as Convenções – artigo 1º, nº 1, alínea a), da Convenção Europeia -, cujo funcionamento, ademais, não depende igualmente do facto de o menor se encontrar a título ocasional em determinado lugar de um dos Estados Partes (cfr., v.g., o artigo 9º daquela primeira Convenção e o artigo 5º, nº 2, da segunda).

Quanto ao princípio geral da gratuitidade dos actos relacionados com a aplicação das Convenções, formulado no artigo 7º - com excepção, por ressalva do artigo 18º, das despesas de repatriamento – há que sublinhar tratar-se de regime outrossim emergente de normativos das Convenções, inclusive no que à excepção concerne (artigos 22º, 25º e 26º da Convenção da Haia, e artigo 5º, nºs 3 e 4, da Convenção Europeia).

Por fim, o carácter internacional das situações, assim como o espírito de cooperação internacional em matéria de protecção de menores que o artigo 8º afirma deverem presidir à aplicação da lei constante da proposta são do mesmo modo parâmetros que fluem teleologicamente com clareza dos preâmbulos e articulados dos diplomas internacionais em causa.


2. O Capítulo II da proposta de lei (artigos 9º a 20º), dedicado especificamente à «aplicação da Convenção da Haia» - o teor, justamente, da sua epígrafe -, divide-se em duas secções: «Da acção especial convencional» (Secção I; artigos 9º a 12º) e «Do processo» (Secção II; artigos 13º a 20º).

Nenhuma das normas incluídas nesse acervo se revela, porém, desconforme à Constituição ou contraditória com os preceitos da aludida Convenção.

Passem-se rapidamente em revista.


2.1. Os quatro artigos da Secção I regulam, respectivamente, a competência territorial (artigo 9º), o carácter urgente da acção (artigo 10º), a legalização e autenticação dos documentos instrutórios (artigo 11º) e o ius postulandi (artigo 12º).

No domínio da competência, a regra fundamental (artigo 9º, nº 1) define como territorialmente competente para estatuir sobre o regresso da criança ilicitamente transferida ou retida (artigos 8º e segs. da Convenção), bem como para a organização ou protecção de um direito de visita, o tribunal de 1ª instância da área em que a criança se encontra no momento da instauração da acção.

As alterações da residência do menor que ocorrem após a propositura da acção – acrescenta o nº 3 do artigo 9º - são irrelevantes.

Se não for conhecido o paradeiro do menor em Portugal, é competente em razão do território o Tribunal de Família de Lisboa (nº 2 do mesmo artigo).

Trata-se de opções político-legislativas em pontos não especificamente regulados na Convenção, como bem se entende, mas coincidentes ou afins de soluções processuais já existentes no nosso direito.

Assim, o nº 1 do artigo 9º está em sintonia com a regra base de competência territorial nos processos tutelares cíveis fixada no artigo 155º, nº 1, da Organização Tutelar de Menores (OTM): «Para decretar as providências é competente o tribunal da residência do menor no momento em que o processo foi instaurado». E, em particular, com a regra de competência territorial definida para o processo especial de «entrega judicial de menor no artigo 191º, nº 1, do mesmo diploma.

O nº 3 daquele mesmo artigo constitui um caso do nº 6 do artigo 155º, que declara genericamente «irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração do processo».

O preceito subsidiário do nº 2 do artigo 9º encontra, por seu turno, algum paralelismo na solução do artigo 85º, nº 3, terceira regra, do Código de Processo Civil e, mais ainda, do nº 5 do artigo 155º da OTM.

Bem ao invés, já o carácter urgente do procedimento definido no artigo 10º resulta explicitamente dos artigos 2º e 11º da Convenção, do mesmo passo que, como lógico corolário, a sua tramitação em férias judiciais sempre decorreria, se não do artigo 143º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 161º da OTM, pelo menos do artigo 160º deste último diploma.

E a não dependência de distribuição configura-se como ampliação da solução prevista no artigo 212º do Código de Processo Civil.

O artigo 11º, nº 1, concernente à dispensa de legalização de documentos harmoniza-se nuclearmente com o artigo 23º da Convenção.

Dir-se-ia, inclusivamente, que o nº 2 do mesmo artigo introduz uma atenuação paralela às previstas nos artigos 8º, alíneas e) e f), e 15º do convénio, mas a persistência de incerteza sobre a conformidade com o artigo 23º bem justificaria prudencialmente a sua eliminação, tanto mais que sempre subsistiria o mecanismo delineado no nº 3 tendente a remover dúvidas concretamente suscitadas sobre a autenticidade do documento.

Finalmente, o artigo 12º, por um lado (nº 1), dispensa a constituição de advogado – cuja obrigatoriedade resultaria, em princípio, do disposto no artigo 32º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil -, salvo na fase de recurso, limitando-se a reproduzir assim a regra excepcional definida para os processos de jurisdição voluntária (artigo 1409º daquele Código), como é o caso dos processos tutelares cíveis (artigo 15º da OTM), e, ainda, especificamente para estes mesmos processos (artigo 151º da OTM).

Por outro lado, dispõe que a concessão do patrocínio judiciário tem lugar nos termos da Convenção, oportunamente salientados (supra, II, 1.2.).

O exame dos normativos incluídos na Secção I do Capítulo II da proposta de lei confirma, pois, a sua conformidade constitucional, e de direito internacional, mas permite bem ajuizar da limitada novidade que lhes vai implicada no confronto com os preceitos convencionais da Haia e do direito interno português infraconstitucional.


2.2. Vejamos agora as disposições que integram a Secção II (artigos 13º a 20º).

Nelas se define a tramitação «processual» a que se subordina a «acção especial convencional» esboçada na Secção I, integrando duas fases: uma fase preliminar de carácter administrativo (artigos 13º e 14º) e a fase judicial propriamente dita (artigos 15º a 20º)

A fase preliminar decorre perante o Ministério Público, concitado a intervir por iniciativa da autoridade central (artigo 13º, nº 1), o qual, convocando o requerido e o menor (nº 2), agirá no sentido da restituição voluntária (nº 3), lavrando-se o respectivo auto (nº 4).

No insucesso da diligência, o Ministério Público requer a providência judicial adequada (artigo 14º, nº 1), instrui documentalmente o requerimento e arrola as testemunhas (nº 2), dando início à fase judicial, que se processa segundo trâmites abreviados.

Designado logo dia para julgamento com a presença do requerido e da criança (artigo 15º, nº 1), a contestação é apresentada na audiência (nº 2) que apenas admite a produção da prova documental e por testemunhas a apresentar (nº 3).

Acedendo o requerido à restituição do menor, é ordenada a entrega ao titular do direito de custódia (nº 4).

Frustrando-se pelo contrário a conciliação, o juiz ordena a produção imediata da prova e decide oralmente (nºs. 5 e 6).

Da entrega lavra-se em qualquer caso o respectivo termo (nº 7).

Os artigos subsequentes consignam determinados princípios aplicáveis no processo descrito: o princípio da audição do menor de acordo com a idade e a maturidade (artigo 16º): o de que o juiz pode determinar quaisquer medidas provisórias antes da decisão final (artigos 17º); e o da condenação do responsável pela subtracção ou retenção do menor nas despesas de repatriamento (artigo 18º).

O artigo 19º providencia acerca da execução coerciva das decisões, ultima ratio mediante a intervenção de forças policiais e a entrada compulsiva em qualquer domicílio durante o dia.

E o artigo 20º fixa em remate o regime dos recursos, aos quais é em geral atribuído efeito devolutivo, e subida diferida aos agravos interpostos no decurso do processo.

Que dizer do esquema processual em apreço?

Não se deveria esperar que a Convenção da Haia fosse ao ponto de definir na especialidade um semelhante iter procedimental, que poderia manifestar-se desfasado dos mecanismos jurídico-processuais próprios dos diversos Estados Partes.

No entanto, algumas das disposições passadas em revista encontram nela a sua matriz.

Assim, os princípios da audição da criança (artigo 13º, segundo parágrafo); da adopção de medidas provisórias [artigo 7º, segundo parágrafo, alínea b)]; da exigência dos encargos de repatriamento a despeito da regra de gratuitidade (artigo 26º, segundo parágrafo).

Na óptica do direito interno, pode observar-se que um novo processo tutelar cível, não previsto na OTM, se desenha verdadeiramente na Secção II do Capítulo II da proposta de lei.

Contudo, a «acção especial convencional» gizada não deixa de patentear afinidades com processos especiais aí regulados, maxime o de «incumprimento» da regulação do poder paternal (artigos 174º a 185º e, em particular, artigo 181º) e o de «entrega judicial de menor» (artigos 191º a 193º).

Basta considerar a natureza decisória abreviada e o regime dos recursos, decalcado praticamente à letra do artigo 185º.

Estão uma vez mais em causa opções de política-legislativa que não cumpre aqui apreciar.

Não primam exactamente pela originalidade – e até pela utilidade quando se cogite da «acção tutelar comum» ([20]) -, mas também por isso não deixam transparecer motivos de contrariedade à Convenção e à Constituição.

Inclusive no aspecto da entrada no domicílio durante o dia contra a vontade do titular perspectivada no artigo 19º da proposta de lei, atendendo ao teor do artigo 34º, nº 2, da lei fundamental.

Uma outra prevenção se torna mister, em todo o caso, deixar exarada.

Poderiam interpretar-se os normativos sub iudicio no sentido de pretenderem erigir esta «acção especial convencional» em forma taxativa de dar cumprimento aos ditames da Convenção da Haia.

Há que dizer, porém, muito claramente, não ser este o espírito da Convenção, pelo que um tal entendimento seria desconforme com ela.

Este instrumento internacional comete às autoridades centrais competências próprias cujo exercício por si só, independentemente da instauração da «acção especial convencional», pode resolver os problemas a que se pretendeu acorrer.

Recorde-se apenas, a título exemplificativo, o preceituado nos seus artigos 7º, 10º, 21º e 28º.

A proposta de lei não poderia, por conseguinte, esquecer essas competências da autoridade central portuguesa, sob pena de violação da Convenção.


3. Enquanto o Capítulo II que vem de se analisar respeitava à aplicação da Convenção da Haia, o Capítulo III concerne, por seu lado, à «aplicação da Convenção Europeia».

Compreende tão-somente três artigos (artigos 21º a 23º).

Os artigos 21º e 22º regem acerca do reconhecimento e execução das decisões relativas à guarda do menor e ao direito de visita.

O artigo 23º respeita em especial à execução das mesmas decisões, limitando-se a remeter para a tramitação nuclear das Secções I e II do Capítulo II.

A técnica legislativa explica-se na estrutura da proposta de lei – assim se pensa – pelos tipos de fins respectivamente prosseguidos mediante a Convenção da Haia e a Convenção Europeia, em parte nuclearmente convergentes.

Na verdade, houve em momento oportuno ocasião de notar (supra, II, 2.1.) que a Convenção Europeia visa a consecução de dois objectivos fundamentais: por um lado, a instituição de medidas destinadas a facilitar o reconhecimento e a execução de decisões referentes à guarda e ao direito de visita relativamente a menores de 16 anos; por outro, a criação de mecanismos apropriados ao restabelecimento do regime de guarda definido nessas decisões, quando arbitrariamente interrompido mercê de deslocação ilícitas dos menores transfronteiras.

Ora, neste segundo plano verifica-se não despicienda sintonia finalística entre os dois instrumentos internacionais e daí que, num propósito de economia legislativa, o artigo 23º da proposta de lei se circunscreva a remeter substancialmente para os trâmites da denominada «acção especial convencional» já delineados no ensejo da «aplicação da Convenção da Haia».

São, por conseguinte, pertinentes quanto à aplicação da Convenção Europeia, nessa parte, mutatis mutandis, as considerações há pouco expendidas acerca dos mesmos preceitos.

O artigo 21º define as regras de competência em razão da hierarquia e do território.

Para reconhecer e executar as decisões relativas à guarda do menor e ao direito de visita é competente – regra fundamental definida no nº 1 – o tribunal de primeira instância da área da residência do menor.

Se no momento da instauração do processo o menor não reside em Portugal ou for desconhecida as sua residência é competente o Tribunal de Família de Lisboa (nº 2).

São irrelevantes as alterações de residência do menor que ocorrerem após a instauração da acção (nº 3).

Trata-se, com ligeiras adaptações, de regras idênticas às vertidas no artigo 9º para a «acção especial convencional», comentadas há momentos (supra, 2.1.), produto de concepções de política-legislativa alheias aos critérios de juridicidade da nossa apreciação.

Não deixará, todavia, de se fazer notar que o artigo 21º, nº 1, diverge do sistema de competência de exequatur da lei portuguesa relativamente às sentenças estrangeiras.

Para a revisão e confirmação de sentenças estrangeiras – sem a qual, em princípio, nenhuma decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro tem eficácia em Portugal (artigo 1094º, nº 1, do Código de Processo Civil) – são competente, não os tribunais de 1ª instância, mas os tribunais da Relação (artigo 1095º do mesmo Código).

Apenas a execução fundada em sentença estrangeira é da competência hierárquica dos tribunais de 1ª instância, correndo por apenso ao processo de revisão ou no respectivo traslado se o processo tiver subido em recurso (artigo 95º do citado Código).

Apesar da divergência evidenciada no plano do direito interno, não se vislumbra contraditoriedade das disposições do Capítulo III relativamente à Constituição ou à Convenção Europeia.


4. O mesmo se diga dos artigos 24º a 26º que constituem o Capítulo IV, - aqueles normativos, decerto, mediante os quais, recordando o preâmbulo da proposta de lei , se pretende «definir melhor o papel da autoridade central portuguesa» - e dos artigos 27º e 28º que integram o Capítulo V.


V

Do exposto se conclui:

1. As normas constantes de convenções internacionais, em conformidade com o nº 2 do artigo 8º da Constituição, são objecto de recepção plena, vigorando na ordem interna nos mesmos termos das normas criadas internamente, como fontes autónomas, sem necessidade de serem transpostas ou transformadas em direito interno mediante uma lei;

2. O direito internacional convencional recebido a que alude a conclusão anterior possui valor supra-legislativo, prevalecendo, em princípio, sobre o direito interno infraconstitucional anterior ou posterior que o contrarie;

3. A Convenção sobre aos Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980, e a Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das Decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores, feita no Luxemburgo em 20 de Maio de 1980, de que Portugal é Estado Parte, constituem direito internacional partícipe, na ordem jurídica portuguesa, da natureza e caracteres delineados nas anteriores conclusões 1. e 2.;

4. A proposta de lei constante da consulta não se configura como instrumento de recepção ou transposição para a nossa ordem jurídica das Convenções aludidas na anterior conclusão 3., em desarmonia com o sistema de recepção plena ou automática constitucionalmente consagrado, mas como diploma visando tão-somente clarificar e facilitar a sua interpretação e aplicação interna;

5. Nesta sua veste, a proposta sub iudicio mostra-se em geral conforme à Constituição e às Convenções mencionadas na conclusão 3., relevando, no entanto, as soluções normativas nela consubstanciadas, em larga medida, de opções de política legislativa;

6. Na tónica da juridicidade, as normas do mesmo diploma são susceptíveis das observações constantes, nomeadamente, dos pontos IV, 3., 4., e V do parecer.



Lisboa, 30 de Agosto de 2002


O Procurador-Geral Adjunto


(Eduardo de Melo Lucas Coelho)





[1]) Ofício nº 519, Pº nº 105/95, de 6 de Julho de 1999.
[2]) Aprovada por Decreto do Governo nº 33/83, de 11 de Maio, doravante designada por simplicidade «Convenção da Haia» - Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
[3]) Aprovada para ratificação por Decreto nº 136/82, de 21 de Dezembro, subsequentemente designada «Convenção Europeia» - Conselho da Europa.
[4]) Para uma análise da Convenção, inclusive na sua génese histórica, AMOS SHAPIRA, Private Internacional Law. Aspects of Child Custody and Child Kidnapping Cases, «Recueil des Cours» da Academia da Haia de Direito Internacional, 1989, II, tomo 214, Dordrecht/Boston/London, 1990, págs. 189 e segs.; JOSÉ ANTONIO TOMÁS ORTIZ DE LA TORRE, Retención de hijos menores de edad por parte del progenitor extranjero o español que no tiene la guarda y custodia, «Puntos capitales de derecho de familia en su dimensión internacional», Associación Española de Abogados de Familia, Dykinson, 1999, págs. 36 e seguintes.
[5]) Contudo, aos Estados foi admitido, nos termos dos artigos 24º, segundo parágrafo, e 42º, opor reserva à utilização dos dois idiomas.
[6]) Desta sistemática se excluiu o artigo 1º, frontispício reservado à introdução de noções interessando a hermenêutica do convénio, a saber: «menor» - em princípio, toda a pessoa que não tenha ainda atingido os 16 anos; «autoridade» – qualquer autoridade judiciária ou administrativa; «decisão relativa à guarda» – qualquer decisão de uma autoridade que estatua sobre os cuidados a dispensar à pessoa do menor, incluindo, nomeadamente, o direito de visita; «deslocação ilícita» – nuclearmente, a deslocação do menor transfronteiras em violação de decisão relativa à guarda, ou a não entrega dele, também através de uma fronteira internacional, findo o período de exercício do direito de visita.
[7]) Um exame desta outra Convenção pode ver-se em AMOS SHAPIRA, op. cit, págs. 200 e seguintes.
[8]) O nº 1 do citado artigo impõe à autoridade central do Estado requerido que – por via administrativa, presumivelmente – mande proceder à imediata restituição do menor desde que estejam preenchidas duas condições: se no mormente da instauração da acção no Estado em que a decisão foi proferida, ou na data da deslocação ilícita, quando anterior, o menor e os pais tinham unicamente a nacionalidade daquele Estado e o menor aí possuía a sua residência habitual [a)]; se o pedido de restituição tiver sido formulado a uma autoridade central no prazo de 6 meses a contar da deslocação ilícita [b)]. No caso, porém, de o restabelecimento da guarda nestas circunstâncias exigir, de acordo com a lei do Estado requerido, a intervenção de uma autoridade judiciária, acrescenta o nº 2 do artigo 8º que «nenhum dos fundamentos de recusa da presente Convenção será aplicável ao processo judicial». O normativo não deverá, porém, ser interpretado à letra, sob pena de poder conduzir a um «over-zealous bouncing back of the child», mesmo que o regresso a expusesse a grave risco de dano – AMOS SHAPIRA, op. cit., pág. 203.
[9]) Anote-se que o artigo 8º mantém, após a Lei Constitucional nº 1/2001, de 12 de Dezembro (5ª Revisão), a redacção que possuía desde a Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro (1ª Revisão).
[10]) No sentido exposto, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 83 e segs., que ora se acompanham; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 797. No mesmo sentido, refira-se ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora Limitada, Coimbra, 1988, págs. 76 e segs., 83 e segs., 100 e seg., preferindo, todavia, a terminologia «recepção plena», e reservando o conceito de «incorporação automática» para situações como as previstas no nº 3 do artigo 8º (págs. 89 e segs.), em que determinadas normas passam «a vigorar na ordem jurídica interna sem que o Estado português intervenha, seja a que título for», ou seja os casos de normas dotadas de «aplicabilidade directa», como, v.g., os regulamentos comunitários. No âmbito do artigo 8º, nº 2, observa, efectivamente, o autor ser este o seu significado (pág. 87): «as normas constantes de convenções internacionais válidas e em vigor internacionalmente e que obedeçam ao requisito constitucional da publicação oficial constituem fonte imediata de direito interno português; se se trata de convenções self-executing, são directamente aplicáveis pelo juiz português; se o juiz depara com normas non self-executing, só as aplicará após a competente ‘regulamentação’ (seja ela estadual ou internacional)». Em idêntico sentido, ainda, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, revista e aumentada (Reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, págs. 110/112, citando outra doutrina (JORGE MIRANDA, MARCELO REBELO DE SOUSA), que a propósito do nº 2 do artigo 8º falam igualmente de uma «cláusula de recepção plena». Na prática – ponderam - «a eficácia da convenção (isto é, a sua recepção na ordem interna), que não a sua validade, está dependente da verificação de duas condições: a sua publicação no jornal oficial (...) e a regularidade do processo da sua conclusão por Portugal, isto é, do processo da sua vinculação pelo nosso País («regularmente ratificadas ou aprovadas»).
[11]) Necessidade que poderia ver-se refractada na directriz genérica formulada no artigo 2º da Convenção da Haia (cfr. supra, II, 1.2.), preceito, todavia, já sem paralelo na Convenção Europeia.
[12]) Cfr. o parecer do Conselho Consultivo nº 155/88, de 8 de Junho de 1989, «Diário da República», II Série, nº 196, de 25 de Agosto, págs. 14 e segs. (pontos 5., 7.1. e 7.2.), e ainda os pareceres nºs 23/95, de 8 de Junho de 1995, «Diário da República», II Série, nº 45, de 22 de Fevereiro de 1996 (ponto 6.4., nota 52), e nº 30/96, de 20 de Setembro de 1996, inédito (ponto 2.8., nota 30); cfr. também supra, nota 10. Na doutrina internacional veja-se igualmente, sobre o tema, NICOLAS VALTICOS, Droit international du travail, «Droit du Travail» publié sans la direction de G.H. CAMERLYNCK, Dalloz, Paris, 1983, págs. 575 e 595; com outros desenvolvimentos, THOMAS BUERGENTHAL, Self-executing and non self-executing treaties in national and international law, «Recueil des Cours» citado supra, nota 4, 1992, IV, tomo 235, Dordrecht/Boston/London, 1993, passim; e para o direito estadunidense, JORDAN J. PAUST, Self-Executing Treaties, «American Journal of International Law», nº 4 (October 1988), vol. 82, págs. 760 e seguintes.
[13]) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 86.
[14]) Assim decididamente AZEVEDO SOARES, op. cit., págs. 97 e segs.; alguma inclinação nesse sentido, pelo menos uma posição de não rejeição, é possível também vislumbrar em GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., págs. 86/87, 143, 503; GOMES CANOTILHO, op. cit., pág. 797; GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, op. cit., págs. 121/123. No parecer do Conselho nº 155/88, citado supra, nota 12, escreveu-se (nota 9): «é maioritariamente aceite que o direito internacional convencional, em vigor na ordem interna, ocupa, na hierarquia das fontes de direito, uma posição infra-–constitucional mas supra lei ordinária».
[15]) GONÇALVES PAREIRA/FAUSTO DE QUADROS, op. cit., págs. 82 e segs., 86 e segs., 92/93, 122/123, 147/148.
[16]) GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, op. cit., pág. 123, nota 1.
[17]) AZEVEDO SOARES, op. cit., pág. 99.
[18]) JORGE MIRANDA, apud GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, ibidem.
[19]) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., págs. 87/88, com outros desenvolvimentos, inclusive na perspectiva da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
[20]) Artigo 210º da OTM: «Sempre que a qualquer providência cível não corresponda nenhuma das formas de processo previstas nas secções anteriores o tribunal pode ordenar livremente as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final.»
Anotações
Legislação: 
CONST ART8 N1 N2 N3 ART34 N2 ART165 N1 P)
DECGOV 33 DE 11/05/1983 ART1 A) B) ART2 ART3 ART4 ART5 ART6 ART7 ART8 A ART20 ART21 ART22 ART23 ART24 §2 ART25 ART26 §1 §2 §3 §4 A ART36 ART37 A ART45
DECGOV 136 DE 21/12/1982 ART1 N1 A) ART2 N1 N2 ART3 N1 N2 A) B) C) ART4 N1 N2 N3 ART5 N1 N2 N3 N4 ART6 ART7 ART8 N1 A) B) N2 ART9 N3 ART10 N2 ART11 N1 N2 N3 ART12 ART13 N1 B) D) ART14 ART15 N1 N2 ART16 ART17 ART18 ART19 ART20 N1 N2 ART21 A ART30
LC 1 DE 12/12/2001
LC 1 DE 30/09/1982
OTM78 ART15 ART151 ART155 N1 N5 N6 ART160 ART161 ART174 A ART185 ART191 N1 N3 A ART193 ART210
CPC67 ART32 N1 A) ART85 N3 ART95 ART143 N2 ART212 ART1409 ART1094 N1 ART1095
Referências Complementares: 
DIR INT PUBL* TRATADOS/ DIR CONST* DIR FUND* ORG PODER POL/DIR MENORES/DIR PROC CIV
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