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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
46/1998, de 21.04.1998
Data de Assinatura: 
21-04-1998
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
PGR
Entidade: 
Procurador(a)-Geral da República
Relator: 
ESTEVES REMÉDIO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
TRANSFERÊNCIA DE PESSOA CONDENADA
EXTRADIÇÃO
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
CIDADÃO NACIONAL
CONDENAÇÃO
EXECUÇÃO DE PENAS
CONVENÇÃO INTERNACIONAL
PORTUGAL
CANADÁ
Conclusões: 
1 - Nada obsta, do ponto de vista estritamente jurídico, à celebração, entre Portugal e o Canadá, de um tratado relativo à transferência de pessoas condenadas.

2 - Pode aceitar-se, como base de negociação, o Canada’s Model Treaty - Treaty between the Government of ... and the Government of Canada on the Transfer of Offenders.

3 - Em eventuais contactos ou negociações deverão, todavia, ponderar-se as observações que a análise do respectivo articulado suscitou, e que são explanadas nos pontos 4.1. a 4.10.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Procurador-Geral da República,
Excelência:




1.

O Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com «referência ao Ofício nº 5105, de 93-05-24, relativo ao processo nº 10/92-C, Lº CIMP-T, Fls. 33», remeteu à Procuradoria-Geral da República «cópia da Nota Verbal nº 19, da Embaixada do Canadá em Lisboa, relativa ao projecto de um tratado sobre a transferência de pessoas condenadas entre Portugal e o Canadá»

Na Nota Verbal refere-se, no que interessa destacar:

«A lei canadiana sobre a extradição (...) é neste momento alvo de uma profunda revisão. Importantes alterações deveriam ser introduzidas na lei a fim de simplificar os processos de extradição. Em consequência de tal facto, o Canadá não iniciou negociações em matéria de extradição desde 1993 e suspendeu temporariamente as discussões que tinham sido iniciadas. Esta moratória deveria manter-se até à entrega do projecto de lei e sua entrada em vigor, prevista para o final de 1998. O projecto de tratado negociado com Portugal deverá ser objecto de revisão à luz da nova lei, uma vez adoptada.
O Canadá é signatário da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, do Conselho da Europa, da qual Portugal é igualmente parte. O Canadá considera que a Convenção responde às necessidades e exigências canadianas a esse respeito, mas estaria disposto a celebrar um acordo bilateral se tal for o desejo de Portugal. Um modelo de tratado é enviado em anexo à presente nota e a Embaixada gostaria de, sobre o respectivo texto, obter os comentários do Ministério.»



2.

Liminarmente, importa acentuar que o propósito de - a par da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas (de 21 de Março de 1983, elaborada no âmbito do Conselho da Europa) ([1]), de que ambos os países são parte - celebrar sobre esta matéria, um acordo bilateral com o Canadá, releva de um juízo de conveniência ou oportunidade políticas, estranho às competências do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

À celebração de tal acordo não obsta a circunstância de Portugal e o Canadá serem partes na Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, cujo artigo 22º admite a celebração de acordos bilaterais ou multilaterais.

Restringe-se, portanto, a matéria de legalidade, a análise subsequente do Canada’s Model Treaty - Treaty between the Government of ... and the Government of Canada on the Transfer of Offenders (doravante modelo de tratado), enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros pela Embaixada do Canadá [cf. artigo 37º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público ([2])].



3.

O artigo 33º da Constituição contém normas sobre expulsão, extradição e direito de asilo, e os princípios delas decorrentes constituem a base de todas as formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal ([3]).

Ao nível do direito ordinário, a cooperação judiciária internacional em matéria penal está regulada no Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro. Este diploma dedica à transferência de pessoas condenadas o Capítulo IV (artigos 106º a 115º) do Título IV («Execução de sentenças penais»).

A transferência de pessoas condenadas é, pois regulada pelos princípios e normas procedimentais constantes destes artigos, aplicando-se correspondentemente em tudo o que neles não for especialmente regulado as disposições dos Capítulos I («Execução de sentenças penais estrangeiras») e II («Execução, no estrangeiro, de sentenças penais portuguesas») do mesmo Título.

Por isso, também aqui se exige a ligação entre o condenado e o Estado da execução, a existência de sentença transitada em julgado, uma certa duração da condenação, o consentimento da pessoa visada, a dupla incriminação, o acordo entre o Estado da condenação e o Estado da execução, a efectivação da transferência só após a revisão e confirmação da sentença estrangeira ([4]).

Aliás, no Decreto-Lei nº 43/91 «são estabelecidas normas gerais aplicáveis a todas as formas de entreajuda, sendo dedicado um título às disposições gerais e comuns que visam definir o objecto e o âmbito de aplicação do diploma e dos princípios que o enformam, sendo dada especial ênfase ao carácter subsidiário deste diploma, relativamente aos tratados e convenções, e ao princípio da reciprocidade» ([5]).

Quando à justificação material para a transferência de pessoas condenadas, afirmam MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA e TERESA ALVES MARTINS ([6]):

«Atendendo a que a moderna política criminal insiste cada vez mais na reinserção social dos delinquentes, pode ser mais aconselhável o cumprimento da condenação no país de origem do que no Estado da comissão da infracção. Esta política funda-se igualmente em considerações humanitárias: as dificuldades de comunicação devidas às barreiras linguísticas, a alienação da cultura e dos costumes locais, a falta de contacto com a família, podem ter efeitos negativos sobre o delinquente estrangeiro. O repatriamento de pessoas condenadas pode corresponder ao interesse dos detidos e ao dos próprios governos.»



4.

O modelo de tratado enviado é, em geral, tecnicamente mais perfeito do que o anterior, e mais claro na afirmação de princípios dominantes nesta matéria - facilitar a reinserção social da pessoa condenada, permitindo-lhe, com o seu assentimento expresso, o cumprimento da condenação no respectivo país [cfr. o preâmbulo e o artigo 111º do Decreto-Lei nº 43/91, o 3º considerando e o artigo 7º da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, e o preâmbulo e os artigos II, alínea f), VI, nº 5, e VII do modelo de tratado].

Não suscita, em geral, objecções jurídicas de fundo.

Suscita-nos, sim - a partir do seu confronto com o diploma que, entre nós, rege a cooperação judiciária internacional em matéria penal (o Decreto-Lei nº 43/91) e com outros instrumentos legislativos, designadamente a referida Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas - observações de pormenor, de carácter substancial, umas, de índole predominantemente formal, outras.

Referimo-las, de seguida, omitindo a menção de artigos e disposições que não nos suscitem qualquer comentário.


4.1. O modelo de tratado contém um pequeno preâmbulo e treze artigos.

No respectivo texto, por uma questão de rigor e harmonia terminológica, sugere-se a prevalência, mesmo a exclusividade, de utilização das designações Estado da condenação, Estado da execução e pessoa condenada ou condenado, utilizadas nos instrumentos legislativos acima referidos, em detrimento de outras, próximas ou equivalentes.


4.2. O artigo I, sobre o âmbito de aplicação, fala(rá) em cidadãos canadianos e cidadãos portugueses. E o artigo III, entre as condições para a transferência, exige que a pessoa condenada seja cidadã do Estado da execução.

Na Resolução da Assembleia da República nº 8/93, que aprovou, para ratificação, a Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas ([7]), Portugal, ao texto da Convenção, formulou, entre outras, a declaração de que o termo nacional «abrange todos os cidadãos portugueses, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade», e a de que «Portugal pode admitir a transferência de estrangeiros e apátridas que tenham residência habitual no Estado de execução» [alíneas d) e e) da Resolução].

Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 90º, nº 1, alínea f), do Decreto-Lei nº 43/91, o pedido de execução, em Portugal, de uma sentença penal estrangeira só é admissível quando, para além de outras condições, o condenado «seja português ou estrangeiro ou apátrida que residam habitualmente em Portugal»; condição idêntica é estabelecida para a delegação num Estado estrangeiro da execução de uma sentença penal portuguesa - ser o condenado nacional desse Estado, ou de um terceiro Estado ou apátrida ou português e que tenha residência habitual no Estado estrangeiro [artigo 97º, nº 1, alíneas a) e b), do mesmo diploma].

Será aconselhável que - nos termos referidos e por razões de coerência e uniformidade jurídicas -, se procure alcançar, no decurso de eventual processo negocial, o alargamento do universo subjectivo dos destinatários do tratado.

Tal desiderato pode conseguir-se, dando à alínea b) do artigo III (que versa sobre as condições para a transferência) uma redacção mais abrangente; por exemplo:

«b) Que a pessoa condenada seja cidadã do Estado da execução, ou do Estado da condenação ou de um terceiro Estado ou apátrida, e tenha no Estado da execução a residência habitual.»


4.3. Ainda no artigo III, a fixação na alínea d), entre as condições para a transferência, a de que estejam por cumprir pelo menos seis meses da condenação, releva de opção que exorbita o domínio estritamente jurídico ([8]).

O mesmo acontece com o disposto no artigo IV - «Cada parte designará uma autoridade que ficará encarregue da execução das disposições do presente Tratado.»


4.4. O artigo V estabelece a obrigação de informar do teor do tratado o condenado ao qual este possa vir a ser aplicado.

O cumprimento desta obrigação, filiada em razões de transparência jurídica, está relacionado com a prestação do consentimento, para a transferência, pela pessoa condenada, e respectiva verificação, a que se reporta o artigo VII.


4.5. O artigo VI estabelece que o pedido de transferência pode ser feito pelo Estado da Condenação, pelo Estado da execução ou expresso pelo próprio interessado ([9]). Contém, ainda, normas de carácter relacional entre os dois Estados e reafirma que a decisão final «deverá ter em consideração todos os factores que possam contribuir para a reinserção social da pessoa condenada».


4.6. O artigo VIII trata do fornecimento e troca de informações entre os Estados da condenação e da execução, necessários ou convenientes para o correcto prosseguimento da execução da pena.

A matéria está, entre nós, regulada no artigo 110º do Decreto-Lei nº 43/91. Do confronto entre os dois artigos, nota-se que o artigo VIII do modelo de tratado fica um pouco aquém deste artigo 110º; contém, todavia, uma disposição susceptível de suprir eventuais carências - «O Estado da execução pode solicitar qualquer informação adicional relativa à pessoa condenada, por forma a poder cumprir as disposições do presente Tratado» (nº 3).


4.7. O artigo IX contém normas sobre o procedimento para a transferência, estabelecendo os mecanismos concretos de entrega e recepção da pessoa condenada, bem como a imputação da responsabilidade pelas despesas inerentes.

Trata-se, aqui, de ónus concebidos em termos de reciprocidade, cujo equilíbrio prático depende de avaliação político-legislativa, estranha à avaliação jurídica ora desenvolvida.


4.8. O artigo X versa sobre os procedimentos para a execução da condenação.

Estabelece no nº 3, in fine, que «o Estado da condenação manterá o direito de perdoar ou conceder uma amnistia ao condenado, e o Estado da execução tomará as medidas apropriadas após a recepção de notificação desse perdão ou amnistia».

Sublinhe-se, pelo seu carácter menos restritivo, o disposto no artigo 12º da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, onde sob a epígrafe «Perdão, amnistia, comutação», se estabelece:

«Cada uma das Partes pode conceder o perdão, a amnistia ou a comutação da pena, em conformidade com a sua Constituição ou outra legislação.»


Não se afigurando que haja o propósito de restringir o âmbito de aplicação e o alcance de medidas de clemência, será, nesta parte, aconselhável a adequação do texto do modelo de tratado ao disposto na Convenção ([10]).

O nº 5 do artigo X consagra o princípio ne bis in idem, um dos princípios estruturantes da cooperação judiciária internacional, que está consagrado no artigo 29º, nº 5, da Constituição, e nos artigos 18º, 90º, nº 1, alínea h), 94º, nº 10, e 112º do Decreto-Lei nº 43/91 ([11]).


4.9. O artigo XI trata da transferência de jovens condenados, e prevê a existência de desvios ao regime geral, quer quanto ao tratamento a conceder-lhes, quer quanto à prestação do consentimento para a transferência, que «será dado pela pessoa legalmente autorizada a fazê-lo em nome do jovem».

Importa constatar o carácter vago e impreciso do vocábulo jovem, que na falta de referentes quantitativos, se apresenta de duvidosa operacionalidade.

Neste contexto, deverá acentuar-se que, entre nós, a imputabilidade penal só se atinge aos 16 anos (artigo 19º do Código Penal), que o Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, instituiu um regime especial aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos (cf. artigo 9º do Código Penal) e, por último (o que se reflecte na prestação do consentimento), que a maioridade se atinge aos 18 anos (artigo 130º do Código Civil).


4.10. Finalmente, o artigo XII prevê a elaboração de legislação e o estabelecimento de procedimentos administrativos, adequados à concretização do acordado, e o artigo XIII («Disposições finais») contém as chamadas cláusulas de estilo, respeitantes à ratificação, entrada em vigor e denúncia do modelo de tratado.



5.

Em face do exposto, conclui-se:

1 - Nada obsta, do ponto de vista estritamente jurídico, à celebração, entre Portugal e o Canadá, de um tratado relativo à transferência de pessoas condenadas.

2 - Pode aceitar-se, como base de negociação, o Canada’s Model Treaty - Treaty between the Government of ... and the Government of Canada on the Transfer of Offenders.

3 - Em eventuais contactos ou negociações deverão, todavia, ponderar-se as observações que a análise do respectivo articulado suscitou, e que são explanadas nos pontos 4.1. a 4.10.








([1]) A Convenção foi, entre nós, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 8/93, de 18 de Fevereiro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 8/93, de 20 de Abril (Diário da República, I-A Série, nº 92, de 20 de Abril de 1993). Esta Convenção encontra-se já em vigor, após ter sido efectuado o depósito do instrumento de ratificação - Aviso nº 205/93, de 21 de Agosto (Diário da República, I-A Série, nº 196, de 21 de Agosto de 1993).
Sobre a génese da Convenção e os seus princípios orientadores, cf. o Rapport explicatif à la Convention sur le transfèrement des personnes condamnées, edição do Conselho da Europa. Pode também ver-se, sobre esta matéria, JOSÉ AUGUSTO SACADURA GARCIA MARQUES, “Cooperação Judiciária em matéria Penal no âmbito das Comunidades Europeias”, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, 2º, pág. 295 e segs.
([2]) Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio, e, por último, pela Lei nº 60/98, de 27 de Agosto.
([3]) Cf. TERESA ALVES MARTINS e MÓNICA QUINTAS ROMA, “Cooperação Internacional no Processo Penal”, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 5, 3º e 4º, Julho-Dezembro 1995, págs. 445-446.
([4]) Cf. Informação-Parecer nº 10/92-C, de 25 de Maio de 1993, referida no ponto 1., que incidiu sobre anterior projecto de tratado, e que, por isso, acompanharemos de perto.
([5]) TERESA ALVES MARTINS e MÓNICA QUINTAS ROMA, ob. cit., pág. 453.
([6]) Cooperação Judiciária Internacional (Comentários), Colecção Commentarium, Aequitas - Editorial Notícias, 1992, pág. 174.
([7]) Cf. supra, nota (1).
([8]) Já assim a Informação-Parecer nº 10/92-C, ponto 4.3. O artigo 90º do Decreto-Lei nº 43/91, entre as condições especiais de admissibilidade do pedido de execução, em Portugal, de uma sentença penal estrangeira, enuncia a de que a «duração das penas ou medidas de segurança impostas na sentença não seja inferior a um ano (...)» [nº 1, alínea i) ].
([9]) Cf. artigo 106º, nº 3, do Decreto-Lei nº 43/91.
([10]) Sobre as medidas de clemência em geral, v. M. MAIA GONÇALVES, “As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4, Fasc. 1, Janeiro-Março 1994, pág. 7 e segs.
([11]) Cf. M. A. LOPES ROCHA e TERESA ALVES MARTINS, ob. cit., págs. 53-56.
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART29 ART33.
RAR 8/93 DE 1993/02/18.
DPR 8/93 DE 1993/04/20.
AVISO 205/93 DE 1993/08/21.
DL 43791 DE 1991/01/22 ART106 ART107 ART108 ART109 ART115.
DL 401782 DE 1982/09/23 ART18 ART90 ART94 ART97 ART110 ART112.
Referências Complementares: 
DIR INT PUBL * TRATADOS / DIR PROC PENAL / DIR CONST * DIR FUND.*****
CONV EUR TRANFERÊNCIA DE PESSOAS CONDENADAS CE ESTARASBURGO 1983/03/21
Divulgação
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