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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
18/1997, de 09.07.1997
Data do Parecer: 
09-07-1997
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
PGR
Entidade: 
Procurador(a)-Geral da República
Relator: 
LUÍS DA SILVEIRA
Descritores e Conclusões
Descritores: 
SERVIDÃO MILITAR
COMPETÊNCIA
EMBARGO ADMINISTRATIVO
IRRENUNCIABILIDADE
EMBARGO DE OBRA NOVA
INALIENALIBILIDADE
RATIFICAÇÃO
TRIBUNAL
SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
ESTADO
SERVIDÃO PREDIAL
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PODER DE AUTORIDADE
ACTO ADMINISTRATIVO
EXECUTORIEDADE
ACTO EXECUTÓRIO
PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE
Conclusões: 
1- As servidões administrativas constituem encargos que recaem sobre certos imóveis, em benefício de outras coisas, em regra imóveis também, por razões de interesse público;
2- As obras ou trabalhos realizados, em imóvel sujeito a servidão militar, sem a a necessária licença, ou com inobservaância das condições impostas nessa licença ou nas normas constantes do diploma que a tenha constituído, estão sujeitos a embargo administrativo;
3- Esse embargo, porque administrativo, não carece de qualquer ratificação judicial;
4- Na situação descrita na anterior conclusão 2, a Administração Pública não tem a faculdade de optar pelo embargo de obra nova, e subsequente ratificação judicial, regulados nos artigos 412 e seguintes do Código de Processo Civil.
5- O estado e demais pessoas colectivas públicas só podem lançar mão do embargo de obra nova, e corespondente ratificação judicial, quando carecerem de competência pra embargar administrativamente as obras ou trabalhos em questão.
Texto Integral
Texto Integral: 
 
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República
Excelência:
 1.
1.1- Por despacho de 1 de Abril de 1997, determinou Vossa Excelência que este Conselho emitisse parecer sobre a necessidade ou não de ratificação judicial dos embargos a obras erigidas em áreas sujeitas a servidão militar, constituída nos termos dos Decretos-Leis nºs 45986, de 22 de Outubro de 1964, e 12/72, de 11 de Janeiro.
 
1.2- A questão foi suscitada pelo Procurador-Geral Adjunto do Distrito Judicial de Lisboa, que, expressando embora o entendimento de que a aludida ratificação judicial não teria cabimento, solicitou orientação sobre o procedimento a assumir em tais situações, dado tratar-se de problemática "sensível, até pelo número de casos que, como se informa, irão surgir" (1).
Conforme resulta da exposição do referido Senhor Procurador-Geral Adjunto, e da documentação que a acompanhava, bem como da "Nota Síntese" (2) elaborada, sobre a matéria, por um dos Assessores de Vossa Excelência, o problema a apreciar decorre do facto de o Ministério da Defesa Nacional, após embargar construções implantadas ilegalmente em zona de servidão militar, e depois de determinar a suspensão dos trabalhos e notificar o dono da obra, solicitar seguidamente ao Ministério Público a ratificação judicial desse embargo.
O Procurador-Geral Adjunto do Distrito Judicial de Lisboa exprimiu, a propósito, a opinião - sustentada doutrinal e jurisprudencialmente - de que os tribunais comuns não seriam competentes, em razão da matéria, para proceder às mencionadas ratificações.
E isso porque o embargo administrativo constituiria acto definitivo e executório, podendo por isso a entidade administrativa competente ordenar de seguida a demolição das obras ilegais, e efectuá-la directamente ou mandá-la efectuar, sem necessidade de prévio recurso aos tribunais comuns.
Aliás, a Administração nem poderia renunciar ao exercício dessa sua competência, ao recorrer aos tribunais comuns para consecução da mencionada ratificação.
Enfim, os direitos dos particulares não ficariam deste modo postergados, pois sempre poderiam recorrer do acto de embargo para os tribunais administrativos, nos termos gerais do regime do contencioso administrativo de anulação.
 
1.3- Tendo em conta a necessidade de sobre esta problemática se definir uma perspectiva geral, determinou Vossa Excelência que sobre ela se pronunciassem também os Procuradores-Gerais Adjuntos nos Distritos Judiciais do Porto, Coimbra e Évora.
Todos eles exprimiram posição coincidente, no fundamental, com a do Procurador-Geral Adjunto do Distrito Judicial de Lisboa (3).
O Procurador-Geral Adjunto do Distrito Judicial do Porto especificou, a propósito, que não lhe tinham sido postas questões relativas a servidões militares. Mas que, em contrapartida, a sua Procuradoria-Geral Distrital recebera numerosos pedidos de intervenção da Junta Autónoma das Estradas e das Direcções Regionais dos Recursos Naturais, com vista à obtenção da ratificação judicial do embargo de obras ilegais efectuadas, respectivamente, em zona "non aedificandi" das estradas nacionais e em termos de afectar o domínio hídrico.
Mais informou que, depois de, numa primeira fase, se ter requerido sistematicamente a ratificação desses embargos, se passara, ao invés, a entender que, sendo estes praticados por entidade com competência para praticar actos definitivos e executórios, o Estado carecia de legitimidade, por falta de interesse em agir, para requerer nos tribunais comuns o embargo judicial ou a ratificação de embargo extra-judicial.
Cabe, pois, emitir parecer.
 
2.
2.1- Para tanto, convém partir da consideração das principais normas relevantes, e desde logo, das que, integradas na Lei nº 2078, de 11 de Julho de 1955, configuram legalmente as servidões militares:
"Artigo 1º. As zonas confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, de carácter permanente ou temporário, ficam sujeitas a servidão militar nos termos da presente lei.
§ único. Também poderão ser estabelecidas, nos termos adiante declarados, outras restrições ao direito de propriedade em zonas não confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, mas integradas nos planos de operações militares.
Art. 2º. As servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade têm por fim:
a) Garantir a segurança das organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional;
b) Garantir a segurança das pessoas e dos bens nas zonas confinantes com certas organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional;
c) Permitir às forças armadas a execução das missões que lhes competem, no exercício da sua actividade normal ou dentro dos planos de operações militares;
d) Manter o aspecto geral de determinadas zonas com particular interesse para a defesa do território nacional, procurando evitar o mais possível a denúncia de quaisquer organizações ou equipamentos militares nelas existentes.
Art. 3º. As servidões militares são constituídas, modificadas ou extintas, em cada caso, por decreto referendado pelo Ministro da Defesa Nacional.
Art. 8º. As servidões em zonas confinantes com organizações ou instalações afectas à realização de operações militares, nos termos dos artigos 1º e 6º, alínea a), classificam-se em:
a) Servidões gerais;
b) Servidões particulares.
Art. 9º. As servidões gerais compreendem a proibição de executar, sem licença da autoridade militar competente, todos os trabalhos e actividades seguintes:
a) Construções de qualquer natureza, mesmo que sejam enterradas, subterrâneas ou aquáticas;
b) Alterações de qualquer forma, por meio de escavações ou aterros, do relevo e da configuração do solo;
c) Vedações, mesmo que sejam de sebe e como divisória de propriedades;
d) Plantações de árvores e arbustos;
e) Depósitos permanentes ou temporários de materiais explosivos ou perigosos que possam prejudicar a segurança de organizações ou instalações.
§1º .........................................................................................
§2º .......................................................................................".
 
2.2- Em desenvolvimento e aplicação da Lei nº 2078, foi publicado, em 22 de Outubro de 1964, o Decreto-lei nº 45986, de cuja economia sobressaem, com mais interesse para a matéria em discussão, os seguintes preceitos:
"Art. 7º. Fora dos casos previstos no artigo antecedente (4) os trabalhos e actividades abrangidos pelas servidões militares não poderão iniciar-se, nas áreas a elas sujeitas, sem que tenha sido concedida a necessária licença pela entidade competente.
§1º .......................................................................................
§2º .......................................................................................
Art. 19º. Verificada a execução de quaisquer trabalhos ou actividades sem a necessária licença, ou com inobservância quer das condições naquela impostas, quer das normas genéricas fixadas ao abrigo do disposto no § 1º do artigo 4º, as entidades competentes, sem prejuízo do levantamento do respectivo auto, embargarão desde logo os trabalhos ou actividades, ordenando a sua suspensão imediata e fixando prazo aos interessados para requererem a licença, se for de presumir que esta possa vir a ser concedida.
§1º. As entidades competentes ordenarão a demolição dos trabalhos ilicitamente efectuados, fixando prazo para esse efeito:
a) Se o interessado não requerer a licença dentro do prazo concedido;
b) Se a licença vier a ser negada;
c) Se, verificada a execução dos trabalhos, concluirem desde logo que os mesmos não poderão vir a ser autorizados.
§2º. .......................................................................................
§3º. .......................................................................................
Art. 20º. Se os interessados não procederem, dentro dos prazos fixados, às demolições ordenadas ao abrigo do disposto no artigo anterior, serão as mesmas efectuadas directamente ou mandadas efectuar pelas entidades competentes, sendo os interessados responsáveis pelas respectivas despesas.
Art. 34º. Para observância das prescrições constantes deste decreto-lei, poderão as autoridades competentes ou os seus agentes solicitar a intervenção das autoridades administrativas ou dos tribunais, neste caso por intermédio do agente do Ministério Público."
3
3.1- O presente parecer respeita à definição do regime relativo ao embargo previsto no artigo 19º do Decreto-Lei nº 45986, enquanto instrumento de efectivação das servidões militares, e sua eventual correlação com o embargo de obra nova e correspondente ratificação judicial, conforme consagrados na lei geral de processo civil.
Constituindo tal embargo um meio ou instrumento tendente à realização prática de determinado instituto jurídico, para a definição do seu regime terá de, logicamente, relevar a caracterização, ainda que sintética, deste último.
As servidões militares são unanimemente consideradas, na doutrina, como uma das espécies de servidões administrativas (5).
Esta perspectiva até já encontrou, aliás, de algum modo, certa consagração legislativa, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 181/70, de 28 de Abril, regulador do aviso público e audiência de interessados no processo de constituição de servidões administrativas através de acto da Administração Pública.
Que a afirmação constante desse preâmbulo não foi casual revela-o, claramente, em diversos dos seus passos, o Parecer da Câmara Corporativa que incidiu sobre o respectivo projecto (6).
Aliás, semelhante ponto de vista reflectira já, também, repetida e incisivamente, o Parecer da mesma Câmara sobre a Proposta que antecedera a Lei nº 2078 (7).
 
3.2. Verifica-se assinalável convergência acerca da delimitação do conceito de servidão administrativa.
Assim é que Marcello Caetano (8) define servidão administrativa como "o encargo imposto por disposição da lei sobre certo prédio em proveito da utilidade pública duma coisa" - no que é secundado por Nunes Barata (9).
Menezes Cordeiro, (10) por seu turno, fala de "afectação de direito público a que se podem encontrar sujeitas alguma ou algumas das utilidades proporcionadas por um prédio".
Pereira da Costa (11), enfim - para não alongar demasiado a listagem de definições -, prefere apresentar tal instituto como "encargo imposto sobre um imóvel em benefício de uma coisa, por virtude da utilidade pública desta".
Abstraindo, pois, de meras diferenças de formulação, e de um ou outro aspecto de regime que não afecta o cerne da figura jurídica em questão, ressalta que as várias definições propostas coincidem no essencial: trata-se de encargos incidentes sobre imóveis, em favor de outras coisas, em regra imóveis também, por motivos de utilidade pública.
 
3.3. Já no que concerne ao enquadramento sistemático das servidões administrativas são, aparentemente, mais marcantes as disparidades.
Com efeito, há quem considere que elas constituem uma espécie das servidões prediais em geral, que o Código Civil define nos termos seguintes:
"Artigo 1543º
(Noção)
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia".
Opinam neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela (12) quando, a propósito das servidões legais, indicam como uma das suas modalidades as servidões administrativas.
Outros, ao invés - porventura a maioria - preferem autonomizar o conceito de servidão administrativa, enquanto instituto de Direito Público, fazendo realçar alguns dos seus traços distintivos em relação às servidões prediais de direito comum (13).
Por outro lado, e já em sede de Direito Público, as servidões administrativas são por vezes qualificadas como uma modalidade das restrições de direito público que podem incidir sobre o direito de propriedade, ou os direitos reais, em geral.
Assim as configura, nomeadamente, Pereira da Costa, quando afirma que: "Também designadas por "servidões de interesse público", "servidões públicas", "servidões dominiais", são as servidões administrativas uma espécie das restrições de interesse público que incidem sobre os direitos reais" (14).
Em contraponto, privilegiam outros autores o critério de fazer realçar as diferenças entre as servidões administrativas e as (meras) restrições de utilidade pública.
Apresentou a questão sob esse prisma, v.g., Marcello Caetano, ao ponderar (15):
"Não recebe o Direito administrativo intacto o conceito civilista de servidão: mas, por agora, bastará reter a noção de que ele implica sempre a submissão de certa utilidade de uma coisa à utilidade de outra coisa.
Nos casos em que essa relação entre coisas não existe há meras restrições de utilidade pública que fazem parte da regulamentação objectiva do direito de propriedade.
Tal é a técnica a que obedeceu já a Lei nº 2078, de 11 de Julho de 1955, sobre servidões militares".
 
3.4. A resolução da dúvida que suscitou o presente parecer não obriga à tomada de posição sobre uma ou outra destas questões - qualquer delas, aliás, de minguada relevância prática.
Mas não deixará de se dizer que parece mais acertado qualificar as servidões administrativas como instituto análogo ao das servidões prediais, sem contudo destas constituirem uma espécie:
- instituto análogo, porque - no âmbito do Direito Público - consubstanciam encargos sobre imóveis, estabelecidos em favor doutros bens imóveis;
- sem, contudo, se reconduzirem a uma espécie das servidões prediais, já que podem (como melhor adiante se dirá) recair sobre coisas que não sejam, em rigor, prédios, na acepção do artigo 204º do Código Civil; acrescendo que, para além de os bens dominantes poderem também não ser prédios, eles são beneficiados, não tanto em função da sua natureza de coisas, como, antes, do interesse público a que se encontram afectos.
Por outro lado, assim configuradas, as servidões administrativas não poderão deixar de ser consideradas como uma modalidade das restrições de direito público (em sentido amplo) ao direito de propriedade - a par das demais restrições, atípicas, que não ostentam os caracteres que individualizam as servidões..
 
3.5. Maior interesse para os objectivos deste parecer assumirá, sim, a consideração das principais características das servidões administrativas.
Também a este propósito as posições dos autores se aproximam bastante - sem, todavia, menosprezar uma que outra discrepância de algum relevo.
Marcello Caetano enumera assim esses caracteres (16):
" "a) são sempre impostas por lei;
b) são de utilidade pública;
c) nem sempre são constituídas em benefício de um prédio;
d) podem recair sobre coisas do mesmo dono;
e) podem ser negativas ou positivas;
f) quando exijam um acto definidor da Administração, só são impostas após audiência dos interessados;
g) só dão lugar a indemnização mediante disposição expressa da lei;
h) são impostas e defendidas por processos enérgicos e expeditos de coacção;
i) são inalienáveis e imprescritíveis;
j) cessam com a desafectação dos bens dominiais ou com o desaparecimento da função pública das coisas dominantes".
O Parecer da Câmara Corporativa relativo ao Projecto que deu origem ao Decreto-Lei nº 181/70 (17) converge com esta caracterização, concentrando todavia em três factores os elementos distintivos das servidões administrativas, face às servidões prediais civis. Assim, aquelas nem sempre seriam constituídas em favor de um prédio propriamente dito, e, mesmo quando assim aconteça, "não se ligam pura e simplesmente a ele, pois, sendo a sua razão de ser a utilidade pública, só existem no tempo e na medida em que o prédio esteja afecto ao serviço público"; acresce que decorreriam sempre, directa ou indirectamente, da lei, e que só dariam lugar a indemnização quando a lei o determinasse.
E não será ousado afirmar que, no que respeita à estrutura e regime das servidões administrativas, o elenco de caracteres propostos por Marcello Caetano tem sido generalizadamente aceite (18).
O ensinamento do referido Professor tem, contudo, sido - sobretudo nos tempos mais recentes - posto em causa no que se reporta ao modo de constituição das servidões administrativas.
Para defender que as servidões administrativas só poderiam ser criadas por lei, Marcello Caetano argumentava:
"O que há é casos (servidões militares, p. ex.) em que se torna necessário um acto de definição da área abrangida, mas não há aí servidão constituída por acto administrativo, porque o decreto ou o despacho, nesses casos, não constituem a servidão, apenas se limitam a fixar os respectivos limites, pressupondo-a existente segundo a lei".
E interpretava o artigo 3º da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, quando dispunha que:
"Artº 3º 1- Poderão constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de fins de utilidade pública previstas na lei.
2. As servidões derivadas da lei não dão direito a indemnização, salvo se a própria lei determinar o contrário.
3. As servidões constituídas por acto administrativo dão direito a indemização quando envolverem diminuição efectiva no valor dos prédios servientes",
no sentido de que a referência, aí, a servidões administrativas constituídas por acto administrativo resultaria duma deficiente técnica legislativa, pois nessa norma se abarcariam meros casos de "utilização ou ocupação temporária".
Esta posição passou, todavia, a ser difícil de sustentar a partir do momento em que a legislação que sucedeu à acabada de transcrever abandonou a especificação "(fins de utilidade pública) previstos na lei" dela constante.
Assim se legiferou no artigo 3º do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, cujo preceituado veio também a ser recolhido no artigo 8º do actual Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, o qual é do seguinte teor:
"Artigo 8º
Constituição de servidões administrativas
1- Podem constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de fins de interesse público.
2- As servidões fixadas directamente na lei não dão direito a indemnização, salvo se a própria lei determinar o contrário.
3- As servidões constituídas por actos administrativos dão direito a indemnização quando envolverem diminuição efectiva dos valores do rendimento dos prédios servientes".
Comentando idêntica disposição do Código das Expropriações de 1976, já Alves Correia (19) ponderava que deste modo se consagrava a possibilidade de criação de servidões administrativas através da via - administrativa - da expropriação. E recusava, nessa medida, a objecção dos que defendiam que a Administração Pública teria sempre de recorrer aos meios civis para constituir tais servidões, desde que não criadas directamente por lei, contrapondo que a utilização desses instrumentos de índole civil poderia não satisfazer capazmente o interesse público a realizar.
Corroborando esta opinião, Pereira da Costa (20) realça como deste modo se torna possível a criação de servidões administrativas em situações não tipificadas pela lei, arredando a aceitabilidade do eventual argumento de aí se estar ainda perante a constituição de tais situações jurídicas por força da lei, que o acto administrativo se limitaria a completar quanto a aspectos secundários (p.e. o da demarcação ou da exacta definição da área abrangida). E justifica este regime, até, com base no princípio da proporcionalidade: se a lei admite, em geral, a expropriação por utilidade pública, por maioria de razão legitimará a simples constituição de servidão administrativa, em casos em que a realização do interesse público se satisfizer com esta, sem tornar necessária a extinção da propriedade do titular do imóvel serviente.
É sintomático, aliás, observar que mesmo por parte de cultores do Direito Civil esta posição tem vindo a ser preconizada, bastando entre eles citar Oliveira Ascensão (21) e Menezes Cordeiro (22).
Procurando, pois, sintetizar as características mais marcantes das servidões administrativas, afigura-se lícito apontar:
Em termos estruturais:
- o facto de elas se consubstanciarem num encargo imposto sobre um imóvel em favor de outra coisa, em regra imóvel também, e não necessariamente dum prédio (a coisa "dominante" pode ser constituída, p. e., por águas do mar, ou por linhas telegráficas).
- a circunstância de a imposição desse encargo resultar dum interesse público, a ponto de deixar de subsistir no momento em que a coisa "dominante" deixar de estar afecta a tal interesse público.
No tocante ao modo de constituição:
- a verificação de que podem derivar da lei ou de acto administrativo (assim se contrapondo às servidões prediais civis, que podem ser criadas por algum dos modos descritos no artigo 1547º do Código Civil).
 
 
 
4.
4.1.- Para além das servidões militares, de que este parecer directamente se ocupa, existe toda uma série de outras servidões administrativas previstas em diplomas legais específicos de variadas áreas de interesse da Administração Pública: domínio público hídrico, imóveis classificados, instalação de linhas eléctricas, vias férreas e rodoviárias, telecomunicações, etc. (23).
A legislação relativa a um apreciável número dessas servidões administrativas contempla, como meio de as efectivar, um embargo administrativo do tipo do que constitui objecto do presente parecer.
Mencionam-se, sem qualquer preocupação de exaustão, mas apenas a título exemplificativo, os seguintes casos:
-"Estatuto das Estradas Nacionais (aprovado pela Lei nº 2037, de 19 de Agosto de 1949, alterada pelo Decreto-Lei nº 13/71, de 23 de Janeiro):
"Artigo nº147............................................................................
§ único. A execução de qualquer das mencionadas obras ou actos (obras e actos que, praticados nas proximidades das estradas nacionais, exijam autorização) sem a devida autorização será motivo de embargo.........................................."
- Margens e zonas adjacentes aos leitos das águas do mar, correntes de água, lagos e lagoas (Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 89/87, de 26 de Fevereiro):
"Artigo 33º
(Embargo e demolição)
1- Tanto a Direcção-Geral do Ordenamento do Território como a Direcção-Geral dos Recursos Naturais são competentes para promover directamente o embargo e demolição de obras ou de outras acções realizadas em violação do disposto nos artigos 4º, nº 14º e 15º (obras e acções não autorizadas junto das margens e zonas adjacentes do leito do mar, correntes de água, lagos e lagoas).
2-................................................................................................."
-Património cultural (Decreto-Lei nº 349/87, de 5 de Novembro)
"Artigo 1º
Ao Instituto Português do Património Cultural compete determinar, precedendo autorização do membro do Governo responsável pela cultura, o embargo administrativo de quaisquer obras ou trabalhos, licenciados ou efectuados em desconformidade com a legislação relativa ao património cultural, nomeadamente nas zonas de protecção dos monumentos nacionais, dos imóveis de interesse arqueológico, bem como noutras áreas expressamente designadas na Lei".
- Marcos geodésicos (Decreto-Lei nº 43/82, de 26 de Abril).
 
"Artigo 22º
1-...............................................................................................
2- Em caso de infracção ao disposto no número anterior (realização de obras ou trabalhos que afectem a visibilidade de marcos geodésicos), serão embargadas as obras entretanto realizadas ou destruídas as plantações feitas em contravenção à proibição estabelecida, sem direito a qualquer indemnização.
3-.................................................................................................
4-..................................................................................................
- Edifícios escolares (Decreto-Lei nº 375/75, de 5 de Outubro de 1949):
"Artigo 3º
As Câmaras Municipais, os serviços do Ministério das Obras Públicas que superintendem na construção dos edifícios escolares e os serviços respectivos do Ministério da Educação Nacional são competentes para promover o embargo e a demolição das obras feitas em contravenção do disposto no artigo 2º (violação da área de protecção do edifício escolar)".
 
4.2- A consideração das normas acabadas de transcrever é susceptível de lançar luz sobre alguns traços característicos do embargo administrativo, em correlação com a figura da servidão administrativa.
Não que seja correcto deduzir que tal embargo é um meio cautelar exclusivamente destinado a propiciar a efectiva concretização das servidões administrativas.
Com efeito, o embargo administrativo pode também ser adoptado para reagir contra a prossecução de obras ou trabalhos não licenciados nos termos gerais, que não por violarem uma servidão administrativa.
Basta, a comprová-lo, referir-se, por um lado, o embargo que os presidentes das câmaras municipais podem opor às obras construídas em violação do regime de licenciamento geral das obras particulares (24):
 
"Artigo 57º
Embargo
1- O presidente da câmara municipal, sem prejuízo das atribuições cometidas por lei a outras entidades, é competente para embargar as obras executadas em violação ao disposto no presente diploma, com excepção daquelas a que se refere a alínea c) do nº1 do artigo 3º (obras promovidas em administração directa ou indirecta pelo Estado).
2-..................................................................................................
3-..................................................................................................
4-..................................................................................................
5-................................................................................................."
Que este não é, aliás, caso isolado ou excepcional, pode revelá-lo ainda o artigo 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (25), ao dispor:
"Artigo 165º. As câmaras municipais poderão ordenar, independentemente da aplicação das penalidades referidas nos artigos anteriores, a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1º a 7º, bem como o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas.
§ 1º Do auto de embargo constará, com a minúcia conveniente, o estado de adiantamento das obras e, quando possível, que se procedeu às notificações a que se refere o parágrafo seguinte.
§ 2º A suspensão dos trabalhos será notificada aos donos das obras ou aos seus propostos ou cometidos e, no caso de estes se não encontrarem no local, aos respectivos encarregados. A notificação, quando não tenha sido precedida de deliberação da câmara municipal, apenas produzirá efeitos durante o prazo de vinte dias, salvo se for confirmada por deliberação de que o interessado seja entretanto notificado.
§ 3º A continuação dos trabalhos depois do embargo sujeita os donos, responsáveis e executores da obra às penas do crime de desobediência qualificada, desde que tenham sido notificados da determinação do embargo.
§ 4º O despejo sumário terá lugar no prazo de 45 dias.
§ 5º...............................................................................................
§ 6º...............................................................................................
§ 7º.............................................................................................."
Mas o que se antolha indesmentível é que as não poucas vezes em que a lei resolve associar o embargo administrativo a situações de servidão administrativa denota que ele é um instrumento especialmente adequado a garantir a efectiva realização, na prática, desse instituto jurídico.
E isso, enquanto meio expedito e eficaz para sustar a continuação de obras ou trabalhos cuja prossecução ou, mesmo, conclusão, poderia comprometer as finalidades da servidão administrativa.
A razão de ser deste procedimento do legislador reside, naturalmente, no interesse público de especial intensidade que ele considera existir na concretização de determinadas servidões administrativas, a ponto de, para as defender, munir a própria Administração de arma tão célere e eficiente.
 
4.3- A necessidade, que o legislador sentiu, de conferir a faculdade de suscitar embargo administrativo a propósito de cada um dos tipos de servidão administrativa acima mencionados deixa transparecer uma outra característica fundamental desse instrumento jurídico.
Característica essa, de resto, ajustada à noção de Estado de Direito e à configuração do princípio da legalidade da Administração Pública que melhor lhe quadra.
Como é sabido, o princípio da legalidade desdobra-se em duas dimensões essenciais: a dimensão negativa, correspondente à ideia de prevalência da lei, e a dimensão positiva, traduzida na precedência da lei (26).
Aquela dimensão negativa exprime um dever de mera compatibilidade, segundo o qual a Administração Pública, ao actuar, deve abster-se de ofender ou violar a lei.
A dimensão positiva é mais exigente, impondo a conformidade da actividade administrativa com a lei.
Enquanto que, na primeira vertente, a lei se apresenta como limite da actuação da Administração, na segunda torna-se também num seu pressuposto ou fundamento, não podendo ela exercer senão poderes previstos por uma lei, e dentro dos limites nesta fixados.
O Código do Procedimento Administrativo (27) optou, decididamente, por consagrar a solução mais exigente, da conformidade ou precedência da lei.
Atente-se, a confirmá-lo, no teor do seu artigo 3º:
"Artigo 3º
Princípio da legalidade
1- Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes sejam conferidos.
2-................................................................................................."
A referência aos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos, aliada à da conformidade com os fins para que hajam sido conferidos, revela bem que, para respeitar o princípio da legalidade, não basta à Administração Pública portuguesa abster-se de violar a lei: além de obedecer a essa regra mínima, de teor negativo, ela só poderá exercer poderes conferidos por lei nos limites e para os fins para que os mesmos tenham sido atribuídos.
É neste sentido, de resto, o comentário de Esteves de Oliveira, Costa Gonçalves e Pacheco de Amorim (28) ao transcrito preceito da lei procedimental administrativa:
 
"v. É nos quadros da conformidade com a lei, que a noção de legalidade do artigo 3º, nº1, do Código assume pleno sentido.
Está lá dito, na verdade, por um lado, que essa actuação se realiza em "obediência à lei" e, sobretudo, está lá dito claramente que ela se confina "nos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos" e "em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos".
Nem se trata apenas, ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, de exigências de conformidade em matéria de normas de competência e de fins.
Sobretudo quanto àquela segunda estatuição, é patente que o legislador não estava a pensar apenas nas normas distribuidoras da competência entre os diversos órgãos, mas na própria forma e conteúdo "dos poderes atribuídos": por isso mesmo, escreveu que a actuação administrativa se deve conter "dentro dos limites dos poderes" - e não apenas "dentro dos poderes" conferidos.
As fórmulas usadas parecem manifestações inequívocas de que, para o legislador do Código, a actuação da Administração Pública é, em bloco, comandada pela lei, sendo ilegais não apenas os actos (regulamentos ou contratos) administrativos produzidos contra proibição legal, como também aqueles que não tenham previsão ou habilitação legal, ainda que genérica (ou até orçamental)."
Apresentando-se como a acepção do princípio da legalidade mais propiciadora do "favor libertatis", esta é, por isso mesmo, a mais adequada ás exigências dum Estado de Direito.
Quanto, em particular, ao embargo administrativo, a ausência duma norma geral que permita à Administração Pública utilizá-lo em relação a todas as servidões administrativas, corroborada pelas disposições habilitadoras concretas acima citadas (e por outras similares), legitima a conclusão de que tal poder de autoridade só pode por aquela ser exercido nos casos em que a lei especificamente o faculte.
5.
5.1- A questão que deu azo ao presente parecer não recebeu da Jurisprudência tratamento uniforme, no domínio da lei processual civil anterior à revisão de 1995/96.
Isto, a ponto de não se poder, nela, descortinar uma corrente decididamente dominante, nem, sequer, uma linha evolutiva bem definida.
 
5.2- Assim é que, para uma dessas orientações jurisprudenciais - por alguns considerada a mais seguida (29) - a Administração teria, quando a lei lhe conferisse a faculdade de contrapor embargo administrativo (30), a opção de exercer esse poder, ou, então, de recorrer ao instituto de embargo de obra nova nos termos gerais do artigo 413º do Código de Processo Civil, que dispunha:
"Artigo 413º
(Embargo por parte do Estado e das câmaras municipais)
1- O Estado e as câmaras municipais podem embargar as obras, construções ou edificações que os particulares comecem em contravenção da lei, dos regulamentos e das posturas municipais.
2- Este embargo não está sujeito ao prazo fixado no artigo anterior".
Aceitando-se que a atribuição do poder de exercer embargo administrativo consubstanciava, nas situações em causa, a concessão do privilégio de execução prévia (elemento característico dos sistemas administrativos de tipo francês ou continental), ponderava-se que, ao fazer aquela opção, a Administração podia prescindir de se fazer valer desse privilégio (31).
Só que, escolhida uma das vias de actuação possíveis - a do embargo administrativo ou a do embargo de obra nova da lei de processo civil -, a Administração não poderia recorrer a instrumentos ou procedimentos próprios da outra. Assim, uma vez feita a opção pelo embargo administrativo, deixaria de ter cabimento qualquer eventual ratificação judicial deste nos termos do artigo 413º do Código de Processo Civil (32).
Este critério de "opção" foi adoptado, quer por decisões do Supremo Tribunal de Justiça (33), quer por arestos dos Tribunais de Relação (34).
Não costuma ser muito profusa a fundamentação jurídica de tal "opção", ou da faculdade de prescindir do privilégio de execução prévia que ela envolve.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 1984, invoca-se que "não é lícito privar a Administração do direito de escolher os meios legais para a prossecução dos seus fins (Marcelo Caetano, "Direito Administrativo", vol. I, págs. 15 e 16)."
Por seu turno, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Novembro de 1982 ensaiou argumentação mais alongada, conquanto não apresentada por forma completamente afirmativa:
"Mas nem por o uso do embargo administrativo ser limitado aos casos especialmente previstos na lei - citado artigo 165º do R.G.E.U.- isso significa que a autarquia local esteja privada da faculdade de se prevalecer também, quando assim o entenda por razões de conveniência ou oportunidade, do embargo processual.
É certo que a lei não admite, em princípio, contra a mesma ofensa ou violação, diferentes e optativos meios de actuação jurídica. Todavia, nem sempre o proíbe. E aqui, a excluir-se a possibilidade de escolha da autarquia local, não se vê maneira de conciliar o embargo de obra nova regulado no Código de Processo Civil com o embargo administrativo regulado no artigo 165º do R.G.E.U."
 
5.3- Mas, tanto no Supremo Tribunal de Justiça (35) como no Supremo Tribunal Administrativo (36) e nos Tribunais de Relação (37) encontrou, sobre o problema em análise, também acolhimento uma outra perspectiva, àquela contraposta.
Segundo estes arestos, quando normas especiais facultam à Administração Pública o exercício do embargo administrativo, ela não pode prescindir da utilização do privilégio de execução prévia nessa medida conferido.
O embargo administrativo (tal como, aliás, a demolição de que constitui acto preparatório) consubstanciaria acto definitivo e executório, munido de autoridade bastante para se impor aos particulares, sem necessidade de qualquer ratificação judicial.
Assim, os eventuais pedidos de ratificação judicial de embargos administrativos deveriam ser rejeitados, com fundamento em incompetência dos tribunais comuns (segundo uns), ou em ilegitimidade ou falta de interesse da entidade pública impetrante (na opinião de outros).
O regime do artigo 413º do Código de Processo Civil manteria, naturalmente, sentido e aplicação, relativamente a todas as situações para as quais não houvesse norma especial a prever a possibilidade de utilização de embargo administrativo.
Enfim, este ponto de vista não seria passível da crítica de o embargo administrativo resultar, assim, isento de controlo judicial, já que, enquanto acto administrativo, ele estaria naturalmente sujeito ao contencioso administrativo.
A justificação mais exaustiva desta orientação jurisprudencial é, porventura, a que o Tribunal da Relação do Porto expendeu (38), conquanto acerca de acto administrativo diverso do embargo, em termos análogos aos que em relação a este poderiam valer:
"Funda-se a acção em que a demandada procedeu à extracção de areia, areão e lodo do leito do Rio Douro, no lugar de Areio, da Foz do Sousa, sem qualquer licença e em infracção da legislação em vigor.
Pretende-se portanto - e isso se pede ao Tribunal - que ela seja condenada a repor o "statu quo ante", enchendo com inerte as escavações feitas.
Reconhece, todavia, o próprio autor que a Administração Pública tem o poder legal para impor por si à demandada a conduta pretendida, com força obrigatória, através do privilégio de execução prévia.
E é realmente assim, como resulta concretamente do disposto no artigo 282º do Regulamento dos Serviços Hidráulicos e se proclamou na decisão recorrida.
Logo, parece a todas as luzes incontestável que o recurso à autoridade judicial é uma inutilidade farfalhante e a questão tem estado a ser encarada por uma óptica distorcida.
Efectivamente, não estamos em presença de um instrumento de anulação de um acto administrativo através da actividade jurisdicional que então só poderia naturalmente ser a do contencioso de anulação (artigo 815º do Código Administrativo).
Também não estamos, por outro lado, em presença de um dissídio em que a Administração Pública se apresente perante o particular em pé de igualdade, e, portanto, sem ter outro meio de realizar a tutela do seu direito que não seja o recurso ao Tribunal comum, nesse caso decerto competente para o efeito.
Nesta relação que opõe o Estado ao particular, o primeiro apresenta-se numa posição privilegiada, com o poder de impor ao segundo a sua vontade autoritariamente e praticando actos que, "tais como as sentenças judiciais, permitem a execução coerciva imediata", numa prerrogativa que se tem denominado de privilégio da execução prévia, para o que legalmente dispõe de instrumentos como a execução directa e a coacção policial, entre outros (cf. Marcelo Caetano, "Manual de Direito Administrativo", nºs 12 a 16).
Ora, sendo assim, parece obviamente inaceitável a ideia de que, em alternativa, poderia a Administração recorrer antes aos tribunais a solicitar-lhes a executoriedade dos seus actos, como se sustenta e louva nos presentes autos.
É que, com isso, por um lado, subverter-se-ia a própria essência da função executiva do Estado, moldada na ordem jurídica para ser realizada com o privilégio da execução prévia. A prossecução de interesses colectivos não pode parar, à espera dos acertamentos e injunções do Poder Judicial.
Por outro, ao recorrer-se desnecessariamente aos tribunais, afectar-se-ia o princípio da economia processual, expresso no nosso direito positivo (artigo 137º do Código de Processo Civil), em homenagem ao qual só se pode estar em juízo quando haja necessidade da tutela judicial.
É o que se tem chamado de interesse em agir, embora a terminologia não possa ainda dizer-se uniformizada a esse respeito (interesse processual, necessidade de tutela jurisdicional, causa legítima de acção, etc.).
No nosso direito, pensamos que o interesse em agir não é disciplinado autonomamente, mas como um aspecto indispensável à legitimidade processual."
 
5.4. Duas outras linhas de pensamento - revelando embora peso estatístico claramente inferior aos das anteriores - é ainda possível detectar, sobre esta matéria, na jurisprudência.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça (39) tem, por vezes, decidido que são os tribunais administrativos os competentes para "conhecer" do embargo e da demolição, na medida em que se trata de procedimentos que surgem no âmbito de relações jurídicas administrativas.
Por outro lado, já se tem decidido, diversamente (40), que a possibilidade de a Administração Pública efectuar, através dos seus serviços, o embargo administrativo (concretamente a propósito da aplicação da legislação relativa às servidões administrativas respeitantes às estradas nacionais), não constituiria obstáculo a que, depois, ela viesse requerer a ratificação judicial desse embargo, ao abrigo dos artigos 412º e 413º do Código de Processo Civil.
Numa dessas decisões justificava-se tal competência dos tribunais comuns por estar em causa a defesa, pela Administração Pública embargante, dum direito real seu ("de propriedade ou de outro direito real de gozo ou de posse").
 
6.
6.1- Também na doutrina se não encontra unanimidade quanto ao problema em causa,conquanto, nela, a tese da opção se apresente claramente minoritária.
Defende-a, nomeadamente, Pereira da Costa, (41) quando afirma:
"A Administração pode optar pela execução administrativa ou pelo recurso aos tribunais, só não podendo acumular as duas vias, pelas razões transcritas: ao deliberar e ao executar os seus actos, quantas vezes surgem dúvidas sobre a legitimidade dos mesmos, sendo certo que as dúvidas em direito administrativo são enormes, muito maiores que em direito civil. Os actos administrativos estão sujeitos a recurso contencioso, que, interposto e julgado procedente, pode colocar a Administração na situação de ter de indemnizar. Pode, por isso, haver um interesse sério no recurso ao tribunal, para que este defina previamente a existência e a extensão dos direitos e das obrigações dos particulares e ponha a Administração a coberto de possíveis indemnizações."
E, depois de realçar a crítica a que o chamado privilégio de execução prévia, enquanto princípio geral de Direito Administrativo, tem sido recentemente sujeito, pondera ainda este autor:
"Acresce que a execução forçada pode violar os direitos fundamentais dos cidadãos, caso, por exemplo, do da inviolabilidade do domicílio.................... Por isso, qualquer cidadão pode recusar a entrada aos ditos funcionários (os encarregados de fiscalizar a efectivação das servidões radioeléctricas) na sua residência, caso em que a Administração tem forçosamente de recorrer a tribunal".
 
6.2- Vários autores têm, não obstante, sustentado posição diversa.
De entre eles, merece referência, nomeadamente, Neves Ribeiro, que encontrou ensejo para defender tal tese, quer numa obra doutrinária, quer em anotação a uma decisão judicial (42). Desta segunda se extraem os seguintes passos:
"4. A solução que se nos afigura mais razoável é a negativa.
Ou seja, parece-nos que a boa doutrina se situa do lado do presente acórdão, que considerou haver falta de interesse em agir por parte de um autor público que não tem necessidade da tutela que reclama do tribunal.
Por isso, quer o embargo, quer a acção não devem ser requeridos.
O acto administrativo possui o valor formal de sentença judicial. Mais do que um direito traduz um poder-dever de actuação directa.
Dele se pode recorrer pelas vias próprias do contencioso administrativo, se constituir acto definitivo e executório (artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Decreto -Lei nº 129/84, de 27 de Abril). Ou, não tendo aquela natureza, então dele se recorrerá hierarquicamente até se obter aquela definitividade, que abre o recurso contencioso.
Mas uma vez tornado definitivo e executório, não é preciso pedir ao tribunal judicial o reconhecimento de um efeito que ele próprio já contém e que lhe é assegurado por lei atributiva de competência específica dirigida exactamente à produção desse efeito.
Faz parte da competência do órgão deliberativo «decidir executoriamente« com vista à prossecução das finalidades públicas que incumbem à pessoa de direito público cuja vontade esse órgão forma e formula (a vontade do Estado, das Regiões, das Autarquias, dos Serviços personalizados).
O acto administrativo formulado goza de presunção de legalidade. Só em casos excepcionais a sua eficácia é suspensa pelo Tribunal Administrativo (artigos 76º e segs. da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos).
A competência para a sua prática tem por fonte a lei. E apenas a lei. Trata-se de uma manifestação de soberania que é tão eficaz e operativa quando o juiz decide - se for ele a entidade competente - como quando decide o administrador, se a competência pertencer a este. O que nenhum deles pode é pedir ao outro o exercício de uma competência que qualquer deles possui, com exclusão do outro.
A competência é inalienável e irrenunciável (artigo 114º, nº2, da Constituição), sendo permitidas apenas as derrogações consentidas na lei, através de delegações, substituições ou avocações.
Consequentemente, a competência atribuída por lei conferindo a um órgão administrativo o poder de deliberação com força executiva não é susceptível de ser alienada a favor de outrem, ou objecto de renúncia. Neste sentido se tem pronunciado a mais recente doutrina.
Não seria razoável, nem abonaria os princípios da legalidade, da independência, da separação de poderes e da especialidade, que um órgão de Administração pedisse a um órgão de Justiça a prática de um acto para o qual ele mesmo é competente.
Por absurdo, ninguém suporia que a Junta Autónoma de Estradas pedisse ao Tribunal a demolição de um muro que alguém, de surpresa, construiu numa auto-estrada quando a lei (Decreto-Lei nº 131/71, entre outros) lhe permite (impõe) deitar imediatamente o muro abaixo.
5- Já assim não será nas situações em que não há lei que autorize o embargo ou a demolição administrativa.
Ocorrendo estas situações - então sim - é lícito à Administração recorrer ao único meio legal que possui para prosseguir os seus fins públicos. Socorre-se do tribunal para que embargue (ou ratifique o embargo que fez extrajudicialmente, como se fosse um particular) e declare, em consequente acção condenatória, a demolição da obra, se for caso."
Semelhante ponto de vista foi adoptado por Paula Honório (43) que, após criticar as outras visões jurisprudenciais desta problemática, concluía:
"A competência conferida por lei à JAE para promover directamente o embargo e a demolição é de ordem pública e, como tal, irrenunciável.
Destina-se a assegurar a realização adequada de um fim de interesse público e não está na disponibilidade do órgão ou agente a quem a lei a conferiu.
Não pode esse órgão, por decisão sua, transferi-la validamente para os Tribunais (comuns ou administrativos).
Estes são incompetentes em razão da matéria para embargar, ratificar o embargo, ordenar a demolição ou executar as obras de demolição".
E a esta mesma conclusão chegou Rui Machete (44), em parecer sobre o regime do embargo administrativo, depois de argumentar que:
"A interpretação a dar ao artigo 413º do Código de Processo Civil deve ser outra.
Seria estranho que o legislador tomasse uma posição tão importante e global àcerca do problema da tutela executiva dos actos administrativos e da competência dos órgãos judiciais, por forma enviezada, a propósito de um procedimento cautelar.
Tão pouco parece curial, que, nesta matéria, a posição do ordenamento fosse a de admitir uma concorrência de vias processuais à discrição da Administração Pública:- nos casos em que está autorizada por lei a autotutela executiva, a Administração poderia livremente escolher entre o procedimento executivo de carácter administrativo ou optar pela via jurisdicional.
O facto de, tal como já referimos, o legislador no Estado constitucional de Direito admitir a autotutela executiva, a coacção administrativa, só em casos que expressamente determine, leva «ipso facto» a admitir que nessas hipóteses pretende precisamente excluir a competência dos tribunais comuns. O princípio da separação dos poderes e o desejo de evitar conflitos positivos levam a que se excluam hipóteses de emprego de dois procedimentos executivos, um por via administrativa, outro por via judicial, deixados à livre eleição da entidade administrativa. O simples facto de se regular o procedimento administrativo exclui a competência dos tribunais comuns e, se houver litígio, levará a atribuir a competência judicativa aos tribunais administrativos - cf. artigo 66º do Código de Processo Civil.
Acresce que o embargo ordenado por despacho de 21 de Março de 1986, do Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território, e que foi objecto de ratificação judicial nos tribunais comuns, é um acto administrativo, cuja apreciação contenciosa compete aos tribunais administrativos. Não seria correcto que a sua ratificação judicial o subtraísse à jurisdição administrativa.
12. O artigo 413º do Código de Processo Civil comporta outra interpretação, muito mais consentânea com os princípios gerais do sistema judicial e administrativo português: a medida cautelar que regula e a acção principal que pressupõe só são admissíveis quando não esteja previsto nenhum caso especialmente autorizado por lei de autotutela executiva".
 
7
7.1- Em breve apreciação às várias perspectivas acabadas de indicar - brevidade essa justificada por inovação legislativa introduzida pela revisão do Código de Processo Civil, e que seguidamente se abordará -, deve reconhecer-se, antes de mais, que são vários, e de diversa natureza, os óbices que suscita a ideia da faculdade de opção entre o embargo administrativo e o embargo de obra nova, com a correspondente ratificação.
Não existe, desde logo, na própria letra da lei, qualquer consagração (ou sequer sugestão) expressa da atribuição dessa faculdade de escolha à Administração.
Tratar-se-ia, aliás - como não deixa de realçar Paula Honório (45)-, de solução bastante inusitada e original, essa de a Administração Pública, para conseguir determinado objectivo, poder optar entre exercer um poder próprio ou solicitar a intervenção do tribunal.
E nem a autoridade do ensinamento de Marcello Caetano poderá corroborar esse ponto de vista, já que as afirmações suas que se têm citado nesse sentido dizem respeito, afinal, a questão bem diversa - a da liberdade de escolha característica do exercício de poderes discricionários (46).
Curando de ir mais ao fundo das coisas, a verdade é que esta tese se manifesta em contradição com a intenção mesma do legislador: quando este confere à Administração Pública o poder de realizar um embargo administrativo, fá-lo porque considera ocorrer aí um interesse público relevante que justifica que a sua realização seja conseguida através de tal procedimento de autoridade pública.
Estar-se-ia a desrespeitar esse propósito legislativo se se admitisse que, numa tal situação, a Administração Pública pudesse decidir não usar desse poder e recorrer, como qualquer particular, à via geral do embargo de obra nova e subsequente ratificação.
Ou, dito de outro modo, de molde a fazer contraponto também com outra modalidade de formulação da tese da opção: a Administração Pública não pode prescindir do poder de autoridade relativo ao embargo administrativo, tal como não pode prescindir da competência que a lei lhe atribua - o Código do Procedimento Administrativo é expresso em proclamar (art. 29º) que a competência dos órgãos da Administração Pública é irrenunciável e inalienável.
Se o legislador entendeu estar, em certa situação, em jogo um interesse público tal que justifique a concessão, à Administração Pública, de poderes de autoridade para o realizar, não pode esta fazer uma diversa ponderação de interesses, diferente da do legislador, e resolver actuar apenas com os meios à disposição de qualquer pessoa privada.
Enfim, e no que concretamente se reporta às servidões militares, não constitui arrimo suficiente desta doutrina o facto de o artigo 34º do Decreto-Lei nº 45986, antes transcrito, dispor que para efectivação daquelas poderão as entidades castrenses solicitar a intervenção das autoridades administrativas ou dos tribunais, neste caso através do Ministério Público.
É que a lei não diz que esta intervenção dos tribunais, a requerimento do Ministério Público, possa ter lugar em toda e qualquer situação. Ela só poderá ocorrer, naturalmente, quando e na medida em que tiver cabimento, em função das regras definidoras da competência para análise judicial de cada uma das situações em causa.
Tratar-se-á, em particular, da apreciação, em sede penal, da desobediência por desrespeito a decisões de embargo ou demolição, da cobrança coerciva das despesas por demolições promovidas pela Administração ou da efectivação da sanção de multa, não paga voluntariamente, aplicada nos termos dos artigos 24º e seguintes desse diploma.
 
7.2- Reportando-nos, agora, à corrente que sugere que o embargo administrativo está sujeito a ratificação judicial, sim, mas a obter através do foro administrativo, cabe verificar, antes de mais, a patente ausência de um mínimo de apoio legislativo expresso a tal posição - o que desde logo a debilita fortemente, tratando-se de uma questão de definição da competência de certo tipo de tribunais.
É sintomático, ademais, que as poucas decisões judiciais, de tribunais comuns, que têm sugerido essa solução, não o fazem em termos positivos, preconizando concretamente a viabilidade da ratificação do embargo administrativo e/ou da demolição através do contencioso administrativo, escudando-se antes numa argumentação formulada em moldes negativos, e de ostensiva imprecisão, ao limitarem-se a declarar incompetentes esses tribunais para tratar de tais situações, que seriam do foro dos tribunais administrativos.
Acresce que não basta, para fundamentar juridicamente esse ponto de vista, remeter (como nesta orientação jurisprudencial se propõe), para a formulação genérica do artigo 3º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (47) quando declara que:
 
"Artigo 3º:
(Função jurisdicional)
Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais."
 
É que os meios judiciais admitidos no âmbito do contencioso administrativo são legalmente tipificados (48).
Ora, nem no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (a propósito da competência destes órgãos judiciais), nem na Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (49) (na regulação dos vários procedimentos de contencioso administrativo) se encontra consagrado qualquer procedimento contencioso de ratificação de embargo administrativo ou de demolição de obras ilegais.
 
7.3- Enfim, tão-pouco beneficia de qualquer apoio legal visível a ideia de que o embargo administrativo poderia ser ratificado no foro comum.
Nenhuma indicação nesse sentido consta das normas legais que atribuem o poder de realizar tal tipo de embargo.
E, por outro lado, das normas processuais reguladoras da ratificação judicial do embargo de obra nova resulta claro que esta se destina a reforçar, conferindo-lhe eficácia vinculativa, um acto praticado por particulares (ou por entidades públicas, mas agindo desprovidas de poderes de autoridade).
Ora desse reforço não carece o embargo administrativo, dotado da obrigatoriedade própria dos actos da Administração quando age munida de poderes de autoridade ou auto-tutela.
A perspectiva ora criticada acabaria, até, por entrar em colisão com o princípio da separação de poderes, tal como delineado na Constituição.
 
7.4- Do seu confronto com as posições assim sucintamente criticadas, ressalta o acerto daquela segundo a qual o embargo de obra nova, e correspondente ratificação judicial, regulados na lei processual civil, só têm cabimento se e na medida em que o legislador não haja conferido à Administração Pública o poder de realizar embargo administrativo.
A atribuição, à Administração Pública, da faculdade de embargar administrativamente obras ilegais, denota ter o legislador considerado que nessa situação está em jogo interesse público tão premente que justifica que seja aquela - e só ela- a efectivar esse meio cautelar expedito destinado à protecção de tal interesse.
A Administração Pública actua, nessa medida, no exercício de poderes de autoridade ou auto-tutela (50).
Esta perspectiva acabou, mesmo, por encontrar consagração genérica expressa no Código do Procedimento Administrativo, quando, ao ocupar-se da execução dos actos administrativos, veio estipular que:
 
"Artigo 149º
Executoriedade
1- Os actos administrativos são executórios logo que eficazes.
2- O cumprimento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um acto administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas formas e nos termos previstos no presente Código ou admitidos por lei.
3-................................................................................................."
Não convence, como objecção a esta opinião, e em prol da tese da opção, alvitrar que o recurso à via da ratificação judicial poderá servir para dissipar eventuais dúvidas que a propósito da legalidade do embargo se possam suscitar.
É que a atribuição do poder de auto-tutela da Administração Pública traduzido no embargo administrativo significa, do mesmo passo, e em decorrência do interesse público que fundamentou tal opção legislativa, que esse acto fica revestido duma presunção de legalidade.
Presunção de legalidade que, todavia, não é inilidível, a ponto de deixar o particular inerme, face à Administração Pública embargante.
Como acto administrativo que é, o embargo em questão está, nos termos gerais, sujeito ao contencioso administrativo, de modo que sempre fica salvaguardada a possibilidade de o controlo da respectiva legalidade se operar, em última instância, através dos tribunais.
Tão-pouco o facto de o embargo afectar o direito de propriedade dos particulares (melhor: parte das faculdades em que se desdobra) aponta no sentido da necessidade, ou sequer adequação, da respectiva ratificação judicial.
Em homenagem à relevância de certos interesses públicos, o legislador até permite à Administração Pública intromissão bem mais radical e profunda no direito de propriedade, ao admitir a expropriação por utilidade pública - salvaguardada sempre, aqui também, a possibilidade de controlo final da legalidade de tal acto através dos tribunais.
 
8
8.1. A revisão do Código de Processo Civil de 1995/96 terá vindo consagrar, explicitamente, aquela solução que já corresponderia, afinal, à melhor interpretação do enquadramento normativo, antes vigente, da questão em apreciação (51).
Assim é que o novo artigo 413º desse Código, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (52), passou a ser do seguinte teor:
"Artigo 413º
(Embargo por parte de pessoas colectivas públicas)
1. Quando careçam de competência para decretar embargo administrativo, podem o Estado e as demais pessoas colectivas públicas embargar, nos termos desta subsecção, as obras, construções ou edificações iniciadas em contravenção da lei ou dos regulamentos.
2. O embargo previsto no número anterior não está sujeito ao prazo fixado no nº 1 do artigo 412º".
O preâmbulo daquele diploma legal é bastante sucinto no tocante à justificação da alteração assim operada.
Como menção à finalidade de tal inovação apenas se menciona a "limitação da injustificada prerrogativa do Estado e autarquias locais no que se refere ao embargo de obras ilegalmente efectuadas".
A perspectiva aí citada não se reportava, decerto, a qualquer dos prazos relevantes para o efeito - o relativo à realização do embargo e o respeitante ao requerimento da respectiva ratificação.
É que, agora por forma explícita, o legislador manteve, a esse respeito, a solução que a melhor doutrina e jurisprudência (53) extraíam já da lei anterior, apesar do seu teor literal menos preciso.
Ou seja: as entidades públicas não estão sujeitas ao prazo de 30 dias constantes do nº 1 do artigo 412º para realizar o embargo (54); mas ("a contrario"), tal como os particulares, têm de pedir a ratificação judicial do embargo no prazo de 5 dias.
Parece, pois, que a "injustificada prerrogativa" de que o preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 fala seria a consubstanciada (segundo certa corrente interpretativa) na possibilidade de opção entre o embargo administrativo e o embargo de obra nova, e subsequente ratificação judicial, previsto na lei processual civil.
 
8.2- A previsão do actual artigo 413º do Código de Processo Civil parece arredar claramente a viabilidade, no presente, da doutrina da "opção".
Se o Estado e demais pessoas colectivas públicas podem exercer o embargo de obra nova "quando careçam de competência para decretar embargo administrativo", deduz-se que, se dispuserem dessa competência, não lhes é facultado optar por não a exercer e lançar mão dos meios previstos na lei processual civil (53).
Do mesmo passo resulta da norma em causa, não só que o embargo administrativo se basta a si mesmo, não precisando de ser corroborado por ratificação judicial do tribunal comum, mas, também, que esta ratificação não é sequer adequada a tal embargo.
 
8.3. Não é verosímil, enfim, que subsista, para tomada de posição pelo Ministério Público, alguma situação compreendida no objecto do presente parecer que devesse ser apreciada em função da lei processual anterior à revisão de 1995/96.
As alterações por esta introduzidas no Código de Processo Civil entraram em vigor em 1 de Janeiro de 1997, por força do artigo 16º do Decreto-Lei nº 180/96.
A brevidade do prazo (anterior e posterior à revisão) para ratificação judicial do embargo de obra nova obsta à possibilidade de estarem pendentes, no Ministério Público, eventuais pedidos de tal ratificação judicial formulados por entidades públicas competentes para embargar administrativamente as obras em questão.
 
Conclusão:
9. Em conclusão:
1ª - As servidões administrativas constituem encargos que recaem sobre certos imóveis, em benefício de outras coisas, em regra imóveis também, por razões de interesse público;
2ª - As obras ou trabalhos realizados, em imóvel sujeito a servidão militar, sem a necessária licença, ou com inobservância das condições impostas nessa licença ou nas normas constantes do diploma que a tenha constituído, estão sujeitos a embargo administrativo;
3ª - Esse embargo, porque administrativo, não carece de qualquer ratificação judicial;
4ª - Na situação descrita na anterior conclusão 2ª, a Administração Pública não tem a faculdade de optar pelo embargo de obra nova, e subsequente ratificação judicial, regulados nos artigos 412º e seguintes do Código de Processo Civil;
5ª - O Estado e demais pessoas colectivas públicas só podem lançar mão do embargo de obra nova, e correspondente ratificação judicial, quando carecerem de competência para embargar administrativamente as obras ou trabalhos em questão.
 
_________________________
 
1) Of. nº 4016 (Proc. 1022/95), de 3 de Maio de 1996.
2) Datada de 12 de Março de 1997.
3) Através, respectivamente, dos Ofícios nºs 49, de 10 de Fevereiro, 71, de 27 de Junho, ambos de 1997, e 2050, de 18 de Junho de 1996.
4) O precedente artigo 6º reporta-se a trabalhos e actividades abrangidos por servidão militar, mas cujas normas ou condições de execução hajam sido genericamente definidas no decreto que a tenha constituído.
5) V., por todos, Marcello Caetano, "Manual de Direito Administrativo", T. II, 10ª ed., 5ª Reimp. 1994, págs. 1061-1062; Pereira da Costa, "Servidões administrativas", Porto, 1992, págs. 256 e segs..
6) Parecer nº 2/X, in Pareceres da Câmara Corporativa, X Legislatura, Ano de 1970, vol. I, págs. 125 e segs.
7) Parecer nº 19/VI, in Pareceres da Câmara Corporativa, VI Legislatura, Ano de 1955, vol. I, págs. 353 e segs.
8) Op. cit., pág. 1052.
9) "Dicionário Jurídico da Administração Pública", V. "Servidão administrativa", VII, pág. 399.
10) "Direitos Reais", 1993, pág. 417.
11) Op. cit, pág. 22.
12) "Código Civil Anotado", vol. III, pág. 628.
13) V. por todos, Marcello Caetano (op. cit., pág. 1052); Pereira da Costa (op. cit., págs. 15-16); Parecer da Câmara Coprorativa sobre o projecto que veio a transformar-se no Decreto-Lei nº 181/70 (págs. 133-134); Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 8 de Fevereiro de 1961 (Jur. Rel., Ano 7º, T. I., págs. 62 e segs.)
14) Op. cit., pág. 16.
15) Op. cit., pág. 1051.
16) Op. cit., págs. 1052-1053.
17) Loc. cit., págs. 134-136.
18) V., por todos, Nunes Barata, op. cit., pág. 401.
19) "As garantias do particular na expropriação por utilidade pública", Coimbra, 1982, págs. 89-90.
20) Op. cit. , págs. 16-18.
21) "Direitos Reais", Coimbra, 1993, págs. 262 e segs.
22) " Direitos Reais", Lisboa, 1993 (Reimp.), págs. 417-418.
23) Pode consultar-se uma listagem bastante completa em Pereira da Costa, "Servidões administrativas" (págs. 77 e segs.), com indicação da principal legislação aplicável.
24) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, ratificado, com emendas, pela Lei nº 29/92, de 5 de Setembro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro.
25) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 38382, de 17 de Agosto de 1951, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº44258, de 31 de Março de 1962.
26) Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição, Coimbra, 1993, págs. 922-923.
27) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 5 de Novembro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro.
28) " Código do Procedimento Administrativo", 2ª edição, 1997, págs. 89-90.
29) Abílio Neto, "Código de Processo Civil Anotado", 14ª edição, 1997, pág.481.
30) É claro que, onde assim não sucedesse, a Administração só poderia utilizar-se do embargo de obra nova da lei geral.
31) Este tipo de opção era por vezes admitido, não só em relação ao embargo, mas também no tocante às demolições, pelas câmaras municipais, de obras ilegais.
32) Esta consequência também acabava por ser aceite mesmo por decisões em cuja fundamentação se suscitava alguma dúvida sobre a legitimidade da opção acima indicada.
33) Nomeadamente Acórdãos de 30 de Outubro de 1984 (Boletim do Ministério da Justiça, 340, págs. 334 e segs.), 21 de Novembro de 1985 (Boletim do Ministério da Justiça, 351, págs. 346 e segs.), 28 de Fevereiro de 1989 (Boletim do Ministério da Justiça, 384, págs. 577 e segs.), 23 de Janeiro de 1992 ( Rec. nº 81730, não publicado).
34) Designadamente acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa de 9 de Outubro de 1986 (Col. Jur., Ano XI, 1996, T IV, págs. 143 e segs.), 20 de Dezembro de 1990 (Col. Jur., Ano VII, 1982, T.V, págs. 205 e segs.) de Évora , de 9 de Junho de 1982 (Col. Jur., Ano VII, 1982, T III, págs. 293 e segs.), e do Porto, de 26 de Outubro de 1992 (anexo à resposta da Procuradoria-Geral Distrital).
35) Designadamente acórdãos de 27 de Julho de 1982 (Boletim do Ministério da Justiça, 319, págs. 196 e segs.), de 24 de Maio de 1983 (Boletim do Ministério da Justiça, 327, págs. 566 e segs.), de 10 de Dezembro de 1985 (Boletim do Ministério da Justiça, 352, págs. 291 e segs.) de 28 de Abril de 1987 (Boletim do Ministério da Justiça, 366, pág. 485 e segs.), e de 19 de Março de 1996 (Rec. 88137, não publicado).
36) Acórdão de 19 de Junho de 1970 (Acds. Douts. 108, págs. 163 e segs.).
37) Nomeadamente acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Novembro de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, 1984, T.V, págs. 240-241), de 29 de Março de 1989 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, 1989, T II, págs. 240 e segs.) e de 23 de Janeiro de 1995 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, 1995, T.I., págs. 201 e segs.)
38) Acórdão de 24 de Janeiro de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, 1984, T.I, págs. 84 e segs.)
39) V., p. e., os acórdãos de 28 de Abril de 1987 (Boletim do Ministério da Justiça, 366, págs. 485 e segs.) e de 18 de Fevereiro de 1988 (Boletim do Ministério da Justiça, 374, págs. 423 e segs.).
40) Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Janeiro de 1977 e de 18 de Março de 1982 (Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, 265, pág. 285, e 321, pág. 429.
41) Op. cit. págs. 51-53.
42) "O Estado nos Tribunais", 2ª edição, Coimbra, 1994, págs. 129-134; e "Revista do Ministério Público", Ano 8º, Julho-Setembro de 1987, nº 31, págs. 139 e segs., em anotação a acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
"Autotutela executiva da Junta Autónoma de Estradas para embargar, demolir obras em desrespeito do Estatuto das Estradas Nacionais - Incompetência dos Tribunais Comuns ou Administrativos para embargar, ratificar o embargo, ordenar ou executar as obras de demolição" (in Revista do Ministério Público, Ano 13º, Julho-Setembro de 1992, nº 51, págs. 121 e segs.)
43) "Estudos de Direito Público e Ciência Política", Lisboa, 1991, págs. 505 e segs.
44) Op. cit., pág., 123.
45) Tanto Paula Honório (Op. cit., págs. 123-124) como Neves Ribeiro (op. cit., pág. 143) alertaram já para essa verificação.
46) Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, alterado pelas Leis nºs 46/91, de 3 de Agosto, 11/93, de 6 de Abril, e 46/96 de 4 de Setembro, e pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro.
47) Salvo, porventura, por respeito do princípio de acesso ao direito, no tocante aos procedimentos cautelares à disposição dos particulares. Mas na questão em análise a situação é precisamente a inversa, pois se trata de eventuais meios de contencioso administrativo utilizáveis pela Administração Pública contra os administrados.
48) Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, alterado pela Lei nº 12/86, de 21 de Maio e pelos Decretos-Leis nºs 4/86, de 6 de Janeiro, 326/89, de 26 de Setembro, e 229/96, de 29 de Novembro.
49) Cfr., para além das referências anteriormente feitas: Sérvulo Correia, "Noções de Direito Administrativo", vol I, págs. 332 e segs. e Parecer deste Conselho nº 53/87, de 22 de Outubro de 1987.
50) Em absoluto rigor, o novo artigo 413º do Código de Processo Civil terá vindo, directamente e sobretudo arredar a chamada doutrina da opção, que antes gozara de bastante aceitação. Não terá afectado - nem isso lhe competia - o eventual entendimento de que o embargo administrativo estaria sujeito a ratificação pelos tribunais administrativos. Mas a verdade é que esta era ideia que, aliás defendida por poucos, carecia de apoio jurídico plausível.
51) O Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Novembro, deixou intacto esse preceito.
52) Moitinho de Almeida, "Embargo ou nunciação de obra nova", 2ª ed., Coimbra, 1986, págs. 33 e segs., acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 1976 (Colectânea de Jurisprudência, Ano I, 1976, T. 2, págs. 507 e segs.) e do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Fevereiro de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, 1984, T. I, págs. 47-49).
53) Tendo em atenção o interesse público em jogo, e as demoras inerentes ao funcionamento normal das entidades oficiais.
54) Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 2ª ed., Lisboa, 1997, pág. 240.
Anotações
Legislação: 
DL 45986 DE 1964/10/22 ART7 ART19 ART20 ART34.
DL 12/72 DE 1972/01/11.
DL 181/70 DE 1970/04/28.
L 2078 DE 1935/07/11 ART1 ART2 ART3 ART8 ART9.
L 2030 DE 1948/06/22 ART3.
CCIV66 ART1543 ART1547.
CPC67 ART413.
CEXP91 ART8.
CPADM91 ART3 ART29 ART149.
ETAF84 ART3.
RGEU51 ART165.
DL 445/91 DE 1991/11/20.
Referências Complementares: 
DIR ADM / DIR PROC CIV.
Divulgação
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