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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
147/2001, de 09.11.2001
Data do Parecer: 
09-11-2001
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Defesa Nacional
Relator: 
FERNANDA MAÇÃS
Descritores e Conclusões
Descritores: 
FORÇAS ARMADAS
DEFESA NACIONAL
DEFESA MILITAR
AGRESSÃO EXTERNA
AMEAÇA EXTERNA
TERRORISMO
RESOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS
LEGÍTIMA DEFESA
PREVENÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO ACTUALISTA
MISSÕES DE INTERESSE PÚBLICO
PROTECÇÃO CIVIL
SEGURANÇA INTERNA
FORÇAS DE SEGURANÇA
Conclusões: 
1. A Constituição da República Portuguesa comete às Forças Armadas a missão primária e nuclear de defesa militar da República ( nº 1 do artigo 275º da CRP), com vista a garantir a «independência nacional», a «integridade do território» e a «liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas»;

2. Os conceitos de “agressão” e “ameaça” externas são conceitos indeterminados que não podem deixar de ser objecto de uma integração actualista, de modo a abranger novas formas de actuação externa susceptíveis de afectar os bens jurídicos que constituem objecto do conceito constitucional de defesa nacional;

3. Perante uma agressão ou ameaça do exterior, que pelo seu significado e dimensão afecte de forma séria e fundada os bens jurídicos objecto do conceito constitucional de defesa nacional, a defesa militar poderá envolver uma componente externa, caracterizada pelo exercício de um direito de legítima defesa, no quadro dos compromissos internacionais e, uma componente interna, dirigida à estrita protecção dos mesmos bens jurídicos contra ameaças externas, dentro do espaço físico do território nacional (nº 2 do artigo 273º da CRP, conjugado com o nº 1 do artigo 2º da LDNFA)];

4. A defesa militar perante ameaças externas ao funcionamento de sectores de produção e abastecimento alimentar, industrial e energético, dos transportes e das comunicações, na medida em que constituem interesses vitais para o bem-estar e segurança das populações, compreende-se na previsão do nº 2 do artigo 273º da CRP e no nº 1 do artigo 2º da LDNFA.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Ministro da Defesa Nacional,
Excelência:



I


Dignou-se Vossa Excelência solicitar a este corpo consultivo que se pronunciasse, com carácter de urgência, sobre a seguinte questão:

“Se, no actual quadro legal vigente, as Forças Armadas podem ser incumbidas de colaborar em missões de prevenção de riscos colectivos e de apoio ou reforço de medidas de segurança a locais onde se situam instalações relevantes de sectores essenciais da vida nacional - designadamente importantes instalações industriais dos sectores eléctrico, de gás, de telecomunicações, ou ainda portuárias e aeroportuárias, etc. - em casos de agressão ou de ameaças externas.”

O pedido de consulta é acompanhado de um parecer do Auditor Jurídico que foi emitido na sequência dos trágicos acontecimentos que ocorreram no passado dia 11 de Setembro nos Estados Unidos da América.

Pode ler-se, no corpo do referido parecer, que as circunstâncias que envolveram o ataque a edifícios civis e pontos estratégicos militares vieram confrontar todos os Estados com a ameaça séria de a qualquer momento e em qualquer local poderem ocorrer actos de agressão, que podem pôr em risco a vida e a liberdade das pessoas, bem como a integridade e a segurança de pessoas e bens.

E, ainda, que estas formas de agressão preocupam a generalidade dos Estados, colocando-se em relação ao Estado Português, “a questão de saber se dispõe dos mecanismos legais e/ou constitucionais que permitam encontrar as melhores formas de prevenir os riscos da ocorrência de tais eventos e de encontrar a mais eficaz resposta para tais preocupações”[1].



Cumpre, assim, emitir parecer.



II


1. Antes de entramos propriamente na análise da questão que nos é colocada, importa dizer o seguinte:

A pergunta começa por fazer referência a “missões de prevenção de riscos colectivos e de apoio ou reforço de medidas de segurança”, o que parece apontar para uma ideia de intervenção não militar das Forças Armadas, para o exercício de funções que não impliquem a utilização de meios armados.

No entanto, a parte final, ao aludir a “casos de agressão ou de ameaça externas”, já parece indiciar a verificação dos pressupostos para uma reacção de defesa militar.

Considerando o exposto, e tendo em conta o contexto em que a pergunta é formulada, iremos proceder a uma análise das missões das Forças Armadas que se nos afiguram sugeridas na pergunta.


2. Para o correcto tratamento da questão, julga-se conveniente começar por um excurso, ainda que breve, pelas normas constitucionais pertinentes, com vista a fixar o estatuto constitucional da defesa nacional, da segurança interna e das Forças Armadas.


2.1. Na Constituição de 1976[2], na sua versão originária, as missões das Forças Armadas eram concebidas numa perspectiva muito ampla, incluindo, além da defesa militar do País, a garantia da ordem interna, bem como missões de cunho acentuadamente político[3].

Subjacente a esta concepção alargada das missões das Forças Armadas imperou um entendimento muito amplo do conceito de defesa nacional, que se confundia com o de segurança nacional. Com efeito, a defesa nacional incluía uma componente militar e diversas componentes não militares e visava proteger o País contra qualquer ameaça externa ou interna.


2.2. Na Lei Constitucional nº 1/82 de 30 de Setembro[4], o legislador constituinte adoptou um elenco mais limitado das missões das Forças Armadas associado a um conceito também mais restritivo de defesa nacional, que passou a ter assento constitucional.

Assim, a Constituição da República Portuguesa (CRP) dedicou o seu Título X da Parte III à «Defesa Nacional», a qual era caracterizada no nº 2 do artigo 273º do seguinte modo:

“A defesa nacional tem por objectivos garantir, no respeito das instituições democráticas, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”.

De acordo com o nº 1 do artigo 275º às Forças Armadas incumbia a «Defesa Militar da República».

Por seu turno, o artigo 272º cometia à polícia “defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos” (nº 1), através das forças de segurança” (nº 4).


2.3. O legislador constitucional de 1982 adoptou, assim, uma concepção mais restrita de defesa nacional, concebida essencialmente como um instrumento garantístico dos elementos do Estado («independência nacional», «integridade do território» e «populações») e direccionada exclusivamente para o plano externo[5] [6].

O conceito constitucional de defesa nacional passou a ter como vector essencial a segurança do país contra agressões ou ameaças externas, através das Forças Armadas, distinguindo-se da defesa da ordem interna, constitucionalmente cometida à polícia.

Podemos dizer que a preocupação fundamental que presidiu à alteração dos preceitos acabados de referir foi, por um lado, separar a defesa nacional da defesa da ordem interna[7] (segurança interna) e, por outro lado, redefinir o modelo constitucional das Forças Armadas, em conformidade com o que vigorava nas constituições democráticas do mundo ocidental, através da sua subordinação de forma inequívoca e substancial ao poder político[8].

Também em conformidade com o que acontece em geral com as democracias pluralistas, a nossa lei fundamental não deixou de prever a possibilidade de eventual emprego das Forças Armadas em situações extraordinárias ou excepcionais de necessidade pública, como são o estado de sítio e o estado de emergência, nas condições fixadas por lei[9]. Trata-se de situações excepcionais em que as Forças Armadas podem ser chamadas a exercer missões de segurança no plano interno e, por conseguinte, não incluídas no âmbito da defesa nacional.

Por outro lado, além da sua missão primária e própria, consagrada no nº 1 do seu artigo 275º, a Constituição autoriza o legislador ordinário, desde a Lei Constitucional nº 1/82, a entregar às Forças Armadas funções de interesse público, permitindo que as mesmas colaborem “em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações” (cfr. nº 5 do artigo 275º da CRP).


2.4. O quadro normativo constitucional acabado de referir é ainda o que vigora embora com algumas alterações, que importa analisar com mais detalhe.

Nos termos do artigo 272º da CRP, a polícia tem por função garantir a segurança interna, através das forças de segurança (cfr. nºs 1 e 4 do mesmo preceito).

A sede constitucional da defesa nacional e das Forças Armadas continua a ser o Título X, essencialmente os artigos 273º e 275º, respectivamente.

O nº 1 do artigo 273º afirma a defesa nacional como uma das tarefas e incumbências básicas do Estado decorrente da própria função de garantia da independência nacional[10].

O nº 2 do mesmo preceito explicita os parâmetros a que deve obedecer e os fins a prosseguir pela defesa nacional[11] e tem o seguinte teor:

“A defesa nacional tem por objectivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”[12].

Como vimos, a Constituição acolheu, desde a revisão de 1982, uma concepção mais estrita de defesa nacional, sem contudo a confinar a uma responsabilidade exclusivamente militar[13].

Segundo Freitas do Amaral, a nossa Constituição “adoptou uma concepção intermédia que se caracteriza por, de um lado, restringir o conceito de defesa nacional à protecção perante a ameaça externa, mas admitindo, por outro lado, que em função desta a defesa nacional tem de assumir carácter global e interministerial, não podendo de modo nenhum ser confinada exclusivamente ao vector militar”[14].

Neste sentido, vemos que a “política de defesa nacional tem natureza global[15], abrangendo uma componente militar e componentes não militares”[16]. E, por outro lado, temos que a “política de defesa nacional tem âmbito interministerial, cabendo a todos os órgãos e departamentos do Estado promover as condições indispensáveis à respectiva execução”[17].

Gomes Canotilho destaca duas componentes essenciais do conceito de defesa: uma “dimensão estática (constituição de defesa em sentido estrito) na qual desempenham função de relevo o conjunto de princípios constitucionais referentes à actividade de defesa”, e uma “dimensão dinâmica, reconduzível à definição dos «aspectos fundamentais da estratégia global do Estado adoptada para a consecução dos objectivos da política de defesa nacional»”[18].

No que tange à defesa militar, enquanto componente essencial da defesa nacional, continua a pertencer em exclusivo às Forças Armadas (cfr. nº 1 do artigo 275º da CRP, e artigos 9º, nº 3, 18º, nº 1, e 2º, nº 1, da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA).

No entanto, já vimos que além da sua missão genérica de assegurar a defesa militar contra qualquer agressão ou ameaça externas, a própria Constituição comete outras funções de interesse público às Forças Armadas. Deixando de parte outras missões que não cabem na economia do presente parecer, relacionadas com compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português[19] ou com situações extraordinárias ou excepcionais especialmente previstas na Constituição e na lei[20], centremo-nos naquelas que se prendem com a solicitação que nos é feita, e que constam essencialmente do nº 6 do artigo 275º da CRP[21].

O referido preceito dispõe que “As Forças Armadas podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de protecção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações (...)”.


2.5. Temos, por conseguinte, naquilo que importa para a resposta à questão que vem formulada, que a Constituição dá ampla abertura ao legislador ordinário para cometer às Forças Armadas missões de interesse público, que já não têm a ver com a utilização de meios armados.

A Constituição comete às Forças Armadas uma missão primária e nuclear que é a da defesa militar da República e outras funções que se podem qualificar de acessórias. De entre estas importa destacar as relativas à protecção civil, que cabem de alguma forma numa ideia ampla de “defesa civil”[22] e, finalmente, temos funções que se podem reconduzir à colaboração em tarefas «sociais»[23].


IV


Vejamos, então, mais de perto, quais os pressupostos constitucionais e legais que legitimam o exercício das missões atrás referidas.


1. Começando pela missão primária das Forças Armadas, importa recordar que, para alguns autores, a Constituição aponta, no nº 2 do artigo 273º da CRP[24], para um conceito de defesa militar como uma actividade permanente “destinada fundamentalmente a enfrentar acções agressivas directas, armadas ou de tipo «militar»”[25].

Este entendimento do citado preceito resultaria alicerçado em várias disposições da Carta das Nações Unidas[26] e Resoluções tomadas no seu âmbito.

Por exemplo, o conceito de “agressão” aparece definido no artigo 1º da Resolução 3314 (XXIV) da Assembleia Geral, de 14 de Dezembro de 1974, como “o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer forma incompatível com a Carta das Nações Unidas, tal como decorre da presente definição”[27].

O artigo 3º enumera vários actos[28] que são considerados actos de agressão e nas várias alíneas do preceito repetem-se as expressões “ataque pelas forças armadas” e “forças armadas”.

E o artigo 51º da Carta das Nações Unidas reconhece o exercício do direito de “legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas”[29].

Por sua vez, na nossa ordem jurídica, é a própria Constituição a proclamar no artigo 7º, nº 1, que Portugal se rege nos conflitos internacionais no respeito pelo princípio da “resolução pacífica dos conflitos”.

Esta estreita ligação entre os conceitos de defesa nacional, legítima defesa, de agressão ou ameaça de tipo militar é igualmente desenvolvida ou concretizada em vários preceitos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas[30].

O nº 3 do artigo 2º da LDNFA estabelece que “no exercício do direito de legítima defesa reconhecido na Carta das Nações Unidas, Portugal reserva o recurso à guerra para os casos de agressão militar efectiva ou iminente”.


2. Uma tese que restrinja o uso de meios militares contra acções agressivas directas, armadas ou de tipo militar não tem apoio na expressão literal do nº 2 do artigo 273º, e também não encontra conforto no entendimento mais recente que a doutrina retira dos preceitos da Carta e da sua aplicação através das Resoluções das Nações Unidas, como tentaremos demonstrar.


2.1. Em primeiro lugar, limitar o uso da força militar aos casos estritos de ataque armado é ficar muito aquém do sentido literal do preceito em causa, que não aponta nenhuma definição para os conceitos de “agressão” ou de “ameaça”, limitando-se a exigir que sejam externas.

Em segundo lugar, ao definir os pressupostos materiais de intervenção militar das Forças Armadas, a Constituição, a par de agressões já desenvolvidas, ao usar a expressão “ameaça”, pressupõe actuações coactivas ainda não executadas ou em início de execução.

Por outro lado, os próprios conceitos de “agressão” e de “ameaça” revestem aspectos muito diversificados e de grande complexidade.

As ameaças podem manifestar-se através de agressões, de actos de violência voluntários ou comportamentos hostis, mas não necessariamente ou exclusivamente através de meios militares.

Num sentido amplo, podemos dizer que “ameaça” é tudo quanto pode afectar, directa ou indirectamente, os objectivos da defesa nacional, isto é, a “independência nacional, a integridade e a unidade do Estado, a liberdade de acção dos cidadãos e dos órgãos do Estado, o desenvolvimento das suas tarefas normais, ou mesmo que subverta os valores culturais, históricos e espirituais da Nação que constituem a sua estrutura moral, ou quebre a vontade e o consenso nacionais no sentido de prosseguir o seu desígnio”[31].

Assim sendo, além da ameaça militar, que é aquela “em que se dá prevalência ao emprego de meios de coacção militar”, podemos autonomizar a ameaça económica, em que se procura destruir o comércio e os meios financeiros indispensáveis, a ameaça subversiva, que “visa modificar as estruturas do Estado através de actos de violência, apelando a acções marcadas pelo terror, conduzidas no interior do próprio território” e, finalmente, outra ameaça que pode afectar a segurança do Estado-Nação são os acidentes naturais, as grandes calamidades e as grandes catástrofes”[32].

Também do lado da agressão, os autores tendem a distinguir entre formas de “agressão directa”, onde se incluiriam os “casos de acções de violência dotadas de natureza armada”, e modalidades de “agressão indirecta”, de natureza económica, diplomática ou ideológica[33].

Por outro lado, são cada vez mais raras as situações de risco que resultam da concretização de ameaças conhecidas, de intenções agressivas de governos legítimos.

Hoje os Estados têm de confrontar-se com a proliferação de ameaças de tipo novo, de natureza transnacional[34], e caracterizadas por novos riscos, mais difusos, mais diluídos, pois podem servir-se de braços armados de natureza não convencional, que vão desde o crime organizado, passam pela existência de poderosas mafias ligadas ao tráfico de droga, de armamento, de materiais nucleares, e vão até à afirmação de fundamentalismos e nacionalismos agressivos[35].

Esta vaga de mudança projecta-se também na sofisticação e proliferação dos instrumentos da guerra, dada a facilidade de acesso por parte de países pobres ou até mesmo por grupos terroristas a meios de destruição maciça, tais como as armas nucleares, químicas e bacteriológicas[36] [37].

Existe o risco crescente da denominada “proliferação não -estatal, através da detenção de agentes radioactivos, químicos ou biológicos, de elevada letalidade, por seitas fanáticas, grupos terroristas ou organizações de banditismo, capazes de lançar o pânico em grandes núcleos populacionais ou de exercerem acções de chantagem que ponham em cheque os poderes constituídos” .[38] [39]

Esta constitui uma das razões pelas quais a questão das armas de destruição maciça[40] constitui verdadeira ameaça destrutiva a que nenhum país ou região podem ficar alheios.

É essencialmente pela sua natureza difusa associada à incerteza e imponderabilidade, que as novas formas de ameaças sem “rosto” constituem, em cada uma das vertentes assinaladas, por si próprias, instrumentos poderosos de ameaça à segurança colectiva das democracias europeias[41].

Temos, por conseguinte, que, no quadro actual, nem as agressões nem as ameaças assumem, em primeira linha, uma natureza vincadamente militar. Os Estados não têm propriamente de estar preparados para fazer frente a ameaças directas ao seu território, ou de opor-se a ataques militares em larga escala perpetrados por outro Estado.

Todos têm a noção de que os riscos contra a paz e a segurança não estão necessariamente associados ao exercício da força militar, e as necessidades de defesa não visam propriamente um inimigo que se possa identificar.

As novas formas de ameaça, pelas roupagens que revestem, carácter insidioso e intensidade dos danos que podem ocasionar, também interagem sobre os interesses que tradicionalmente eram considerados vitais ou primários pelos Estados.

Nas sociedades de hoje, podemos dizer que as vulnerabilidades não se fazem sentir tanto ao nível, por exemplo, da inviolabilidade territorial, mas essencialmente ao nível da segurança global ambiental, da protecção do estilo de vida e bem-estar das populações, através da preservação de redes de distribuição de água, gás, electricidade, zonas agrícolas, meios de comunicação, transportes, etc., e da própria vida e bens das pessoas. Uma ameaça de ataque terrorista sobre os recursos naturais de um país, com armas químicas ou bacteriológicas, pela carga intimidativa que envolve, pode ter efeitos paralisantes da vida normal de uma comunidade equivalentes a uma agressão directa militar (ataque armado convencional) dirigida por um outro Estado contra o seu território.

Todos os elementos apontados devem ser convocados para delimitar o sentido e alcance do nº 2 do artigo 273º da CRP, tendo presente que as normas constitucionais se abrem, por natureza, à maior liberdade de conformação do intérprete e aplicador[42].

No caso em apreço, vimos que os conceitos de “agressão” e “ameaça” são especialmente dinâmicos e dotados de elasticidade que lhes permite adaptar-se não só às evoluções tecnológicas que sofrem os instrumentos e meios de ameaça, como às mudanças acerca dos centros de interesses que em cada momento são considerados vitais ou primários pelos Estados[43].

A própria natureza das agressões e das ameaças tem evoluído substancialmente de tal modo que, quando a Constituição refere “agressão ou ameaça externas”, nessa expressão hão-de caber não só as agressões e ameaças clássicas, como as novas realidades que afectam os povos neste domínio.


2.2. No que respeita à interpretação da Carta das Nações Unidas e respectivas Resoluções, importa destacar que a restrição do uso da força militar aos casos em que haja um ataque armado, interpretação que poderia resultar prima facie da leitura isolada de alguns dos preceitos da Carta das Nações Unidas, não tem apoio numa interpretação sistemática com outras disposições nucleares do regime da Carta, e sobretudo com a interpretação que a prática internacional foi construindo e consolidando com o apoio mais ou menos explícito das instâncias decisoras competentes.

Logo no início de vigência da Carta, o sentido e alcance da proibição genérica do uso da “ameaça” ou da “força” nas relações internacionais, constante do artigo 2º, nº 4[44], constituiu fonte de dissídio na doutrina[45], sobretudo quanto à questão de saber se a expressão “força” se devia restringir à utilização da força armada ou também ao uso da força económica. Por outro lado, mesmo no contexto da própria Carta, a expressão “força”, suscitou dúvidas quando ao seu sentido e alcance quando cotejado com outros preceitos que aludem a “ameaças à paz”, “ruptura da paz” e actos de “agressão”[46].

As incertezas hermenêuticas estendiam-se ao próprio conceito de legítima defesa, ”aparentemente concebida como excepção estreita” ao princípio proibitivo do uso da força. Muitos autores recusaram que a conexão estabelecida no artigo 51º entre legítima defesa e ataque armado significasse necessariamente que a mesma defesa só fosse válida em relação apenas a um ataque armado[47]. Tal interpretação aparentava não deixar espaço para a legítima defesa antecipada ou preventiva, ou para a intervenção em Estado estrangeiro para protecção de nacionais.

E a verdade é que perante a pressão de conflitos de outra natureza, das realidades tecnológicas, políticas e militares novas, que alteraram substancialmente as formas de fazer guerra, a prática internacional veio dar cobertura a usos da força que excediam o entendimento estrito de ataque armado.

Ultrapassados os estreitos limites do conceito de legítima defesa[48], o uso da força por parte dos Estados passou a estar legitimado em casos de agressão indirecta[49], legítima defesa preventiva[50], intervenção para protecção de nacionais[51], etc., ao ponto de se falar em erosão do princípio da proibição do uso da força[52].

Podemos afirmar que a par do direito legislado se foi afirmando um relevante direito consuetudinário, o que é natural num ramo direito como o direito internacional, baseado em mecanismos de formação pouco formalizados e institucionalizados e sujeito a “um premente apelo à evolução e ao desenvolvimento progressivo da sociedade internacional”[53].

Com a Resolução nº 3314 (XXIV) da Assembleia Geral, que introduziu a noção de agressão[54], pretendeu-se reforçar a aplicação do princípio consagrado no artigo 2º, nº 4, da Carta com critérios mais objectivos. Já vimos que o artigo 3º da referida Resolução enumera vários actos que integram o conceito de agressão, e que segundo o artigo 4º o Conselho de Segurança tem poderes para qualificar outros actos como actos de agressão, para além dos enumerados no artigo 3º .

As recentes transformações da sociedade internacional têm originado um maior protagonismo das Nações Unidas, essencialmente no âmbito de operações de manutenção da paz e humanitárias[55], sob a égide do Conselho de Segurança, no quadro e invocação genérica do Capítulo VII e artigo da Carta 51º [56].

Neste domínio, os autores destacam algumas resoluções tomadas no âmbito do Conselho, que constituem exemplo de legitimação do uso da força, sem que o seu conteúdo o refira expressamente. Foi o que aconteceu com a Resolução nº 678, de 29 de Novembro de 1990, a propósito do denominado conflito do Golfo, que autorizou os Estados-membros que cooperavam como o Governo do Koweit, a usar todos os “meios necessários” para fazer aplicar as resoluções anteriores e restabelecer a paz e a segurança internacionais na região. A expressão “meios necessários” foi entendida como autorização implícita de meios armados[57]. No caso da Bósnia-Herzegovina, foi utilizada a mesma expressão, na Resolução 816, de 31 de Março de 1993[58].

Por conseguinte, os próprios preceitos da Carta, em especial no que se refere aos pressupostos do direito de legítima defesa dos Estados[59], têm de ser interpretados tendo em conta o direito consuetudinário derivado do conjunto de tomadas de posição dos órgãos competentes, em especial do Conselho de Segurança, e até de Resoluções recentes.

A este propósito, cabe destacar as Resoluções tomadas pelo Conselho de Segurança em relação aos ataques terroristas que no passado dia 11 de Setembro atingiram “Nova York, Washington, D.C. e Pennsylvania”.

Logo no dia 12 de Setembro, foi tomada a Resolução nº 1368 (2001) que condenou de forma inequívoca o referido ataque, classificando-o como uma “ameaça à paz e à segurança internacionais”.

No preâmbulo da referida Resolução pode ler-se a afirmação do “reconhecimento do direito de legítima defesa individual ou colectiva em conformidade com a Carta”.

Na Resolução de 28 de Setembro de 2001 (Resolução nº 1373), o Conselho de Segurança voltou a condenar de forma inequívoca o ataque terrorista que teve lugar em “Nova York, Washington, D.C. e Pennsylvania” em 11 de Setembro, e a classificar o referido acto, tal como qualquer acto terrorista, como uma ameaça à paz e à segurança internacionais[60].

Mais uma vez, no seu preâmbulo, o Conselho reafirmou “the inherent right of individual or collective self-defence as recognized by the Charter of the United Nations as reitered in resolution 1368 (2001)”.

Relevante é ainda a reafirmação “The need to combat by all means, in accordance with the Charter of the United Nations, threats to internacional peace and security caused by terrorist acts”.

Entre o conjunto de medidas estabelecidas na referida Resolução, cabe destacar a exortação feita a todos os Estados para colaborarem “to prevent and supress terrorist attacks and take action against perpetrators of such acts” (cfr. alínea c) do artigo 3º).

Esta última Resolução foi tomada ao abrigo do Capítulo VII da Carta, que tem como epígrafe “Acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão”.

Como vimos, além de ser expressamente qualificado como uma ameça à paz e à segurança internacionais[61], da leitura das referidas resoluções pode extrair-se que o ataque em questão foi implicitamente qualificado como ataque armado. Não só pela linguagem que reiteram à semelhança de resoluções anteriores[62], como pelo facto de reconhecerem o direito de legítima defesa, segundo o artigo 51º da Carta.

Também no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o referido ataque foi considerado como equivalente a um ataque armado para os efeitos de invocação do artigo 5º do Tratado de Washington[63], que reconhece o exercício do direito de legítima defesa colectiva, tal como previsto no artigo 51º da Carta, no caso de ataque armado perpetrado contra qualquer dos Estados Aliados.


2.3. Finalmente, na interpretação do nº 2 do artigo 273º da CRP, temos ainda de ter em conta a sua razão de ser e os objectivos visados pelo legislador constitucional.

Cremos existir um consenso alargado assente na autonomia específica da política de defesa nacional cuja componente militar não se confunde com funções policiais e que por isso não se destinam as Forças Armadas à garantia da ordem interna.[64]

Este foi um dos objectivos[65] que nortearam a Lei Constitucional nº 1/82 e é objectivo do legislador constitucional quando comete às Forças Armadas a defesa militar da República.

Às Forças Armadas cabe a defesa da “independência nacional”, “integridade do território”, e “a liberdade e a segurança das populações” contra qualquer agressão ou ameaça exterior[66]. Note-se que o próprio conceito de ameaça externa deverá ser entendido no sentido de incluir acções desenvolvidas no interior de um Estado, mas cuja causa tem origem no exterior.

Essa defesa compreende uma componente externa, propriamente dita, susceptível de fundamentar o exercício do direito de legítima defesa dirigido contra toda e qualquer agressão ou ameaça do exterior, independentemente da sua origem ou natureza, ponto é que possam ser qualificadas como idóneas a pôr em causa a salvaguarda dos bens jurídicos fundamentais que a Constituição aponta como fazendo parte do objecto da defesa nacional.

Quaisquer ameaças externas, que pelo seu significado e dimensão, afectem de forma séria e fundada os mesmos bens jurídicos, podem justificar, no plano interno, uma reacção de natureza militar proporcionada, confinada, por conseguinte, ao espaço físico do território nacional[67].

É evidente que, na dimensão externa propriamente dita, a interpretação do nº 2 do artigo 273º[68] da CRP terá de ser harmonizada com as fontes de direito internacional[69] já analisadas, em especial as derivadas do direito internacional consuetudinário, bem como as constituídas pela Carta das Nações Unidas e Resoluções[70] adoptadas no seu âmbito.



3. Debrucemo-nos, agora, sobre as outras funções das Forças Armadas.

Como vimos, a Constituição autoriza que a lei possa incumbir as Forças Armadas de colaborar em missões de protecção civil (cfr.1ª parte do nº 6 do artigo 275º).

Reportando-nos ao preceito tal como constava antes da Lei Constitucional nº 1/97, de 18 de Outubro, o seu conteúdo era o seguinte:

“As Forças Armadas podem colaborar, nos termos da lei, em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, inclusivamente em situações de calamidade pública que não justifiquem a suspensão do exercício de direitos”[71].

Repare-se que a Constituição não se referia expressamente a funções de protecção civil, fazia-o apenas de uma forma implícita ao mencionar “situações de calamidade pública” que não justificassem a suspensão do exercício de direitos.

No seguimento do citado preceito, as Forças Armadas aparecem qualificadas como agentes da protecção civil, na lei de bases da protecção civil.

A Lei de Bases da Protecção Civil (Lei nº 113/91, de 29 de Agosto) estabelece no seu artigo 1º que “a protecção civil é a actividade desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos com a finalidade de prevenir riscos colectivos[72] inerentes a situações de acidente grave, catástrofe ou calamidade, de origem natural ou tecnológica, e de atenuar os seus efeitos e socorrer as pessoas em perigo, quando aquelas situações ocorram”[73].

Por sua vez, o artigo 18º, nº1, do mesmo diploma estabelece que “exercem funções de protecção civil, no domínio do aviso, alerta, intervenção, apoio e socorro, de acordo com as suas atribuições próprias:
a)
b)
c) As Forças Armadas.”

O nº 4 do mesmo preceito remetia para decreto regulamentar o estabelecimento das condições de emprego das Forças Armadas em situação de catástrofe ou de calamidade.

Na sequência do referido preceito, foi emitido o Decreto Regulamentar nº 18/93, de 28 de Junho, que quanto ao objecto refere que visa regulamentar “o exercício de funções de protecção civil pelas Forças Armadas, no âmbito da sua missão de colaboração nas tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, definindo as condições do seu emprego em caso de acidente grave, catástrofe ou calamidade, sem prejuízo do disposto na lei sobre o regime de estado de sítio e estado de emergência” (cfr. artigo 1º).

O artigo 3º explicita as formas de colaboração das Forças Armadas e que são as seguintes:

“a) Apoio em pessoal não especializado, designadamente para o rescaldo de incêndios e a organização e montagem de acampamentos de emergência;
b) Apoio em pessoal especializado para reforço do pessoal civil, nomeadamente no campo da saúde;
c) Participação em acções de busca e de salvamento de pessoas e bens;
d) Disponibilização de meios de transporte;
e) Cooperação na reabilitação de infra-estruturas danificadas;
f) Fornecimento de alimentação, géneros alimentares, abastecimento de água e alojamento de emergência;
g) Prestação de auxílio no domínio da saúde, nomeadamente na hospitalização e evacuação de feridos e doentes;
h) Efectuação de reconhecimentos terrestres, aéreos e marítimos;
i) Prestação de apoio em telecomunicações;
j) Cooperação em acções nos planos de emergência elaborados aos diferentes níveis, nacional, regional, distrital e municipal;
l) Colaboração na realização de exercícios de simulação nos termos da lei.”

Considerando os diplomas legais atrás referidos, podemos constatar que, já no âmbito da lei de bases da protecção civil, as Forças Armadas eram qualificadas como agentes da protecção civil, e que desde 1993 se encontra regulamentada a sua intervenção em situações de acidente grave, catástrofe ou calamidade. Tudo isto, portanto, muito antes da Lei Constitucional nº 1/97.

Numa primeira apreciação poder-se-ia pensar que o legislador constituinte se limitou, na revisão de 1997, a dar guarida constitucional expressa a uma realidade que já existia.

Uma análise mais atenta, e tendo sobretudo em conta os debates no seio da comissão de revisão[74] sobre o tema, permite, porém, extrair outras ilações.

Na verdade, tudo indica que o objectivo foi o de dar a possibilidade de ampliar a intervenção das Forças Armadas neste domínio. Com efeito, fixando-nos no segmento normativo que se referia a “situações de calamidade”, este parecia inculcar a ideia de que as Forças Armadas só podiam ser autorizadas a intervir em missões de protecção civil em situações de acidente grave, de catástrofe ou de calamidade para “atenuar os riscos e limitar os seu efeitos” (cfr. alínea b) do artigo 3º da Lei nº 113/91), e “socorrer as pessoas em perigo” (cfr. alínea c) do artigo 3º da Lei nº 113/91).

Este entendimento parece ser também o acolhido pelo Decreto Regulamentar nº 18/93, atendendo ao tipo de missões que comete de um modo geral às Forças Armadas.

A substituição do referido segmento pela expressão “missões de protecção civil “ significa, neste contexto, que a lei pode incumbir as Forças Armadas de colaborarem também em missões preventivas.

Entre os objectivos da protecção civil, a lei estabelece o de “prevenir a ocorrência de riscos colectivos resultantes de acidente grave, de catástrofe ou de calamidade” (cfr. alínea a) do artigo 3º da Lei nº 113/91).

Por conseguinte, se for vontade do legislador ordinário[75], as missões das Forças Armadas, no âmbito da protecção civil, podem ser ampliadas no sentido acabado de expor.



4. Finalmente, resta analisar as outras missões de interesse público das Forças Armadas, que não as relativas à protecção civil.

Como vimos, a Constituição autoriza a lei a cometer às Forças Armadas tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas da população (cfr. nº 6 do artigo 275º da CRP).

Dada a amplitude do preceito, poderá questionar-se se o legislador ordinário não terá legitimidade para incumbir as Forças Armadas de colaborarem na realização de tarefas relacionadas com a construção de redes de comunicação, transporte, e de abastecimento público (água, gás, electricidade, etc.), assim como em funções de segurança relacionadas com a necessidade de preservação desses mesmos equipamentos[76], perante ameaças fundadas quanto à sua integridade.

Tratar-se-ia de funções desenvolvidas no âmbito da actuação civil das Forças Armadas, que ainda poderiam caber na finalidade do preceito (garantia das necessidades básicas e melhoria da qualidade de vida das populações), desde que a lei explicitasse os termos da sua actuação.

Cremos, porém, que a interpretação do preceito seria forçada, na medida em que o seu objectivo terá sido o de permitir às Forças Armadas colaborar em tarefas de interesse público de natureza social, aproveitando os meios de engenharia e técnica de que dispõem, e não envolvê-las na realização de funções de segurança propriamente dita.

Por outro lado, não podemos deixar de realçar que, do ponto de vista material, essas funções não podem integrar o âmbito da segurança interna[77] [78].

Com efeito, como já vimos atrás, no quadro constitucional actual as Forças Armadas não poderão, em princípio, ser chamadas a desempenhar funções de defesa da ordem interna, a não ser nos casos expressamente previstos na Constituição e na lei.


V


Depois de analisadas as missões das Forças Armadas atrás referidas, e tendo por referência a pergunta objecto deste parecer, propende-se para concluir não existirem obstáculos de origem constitucional nem legal para uma intervenção das Forças Armadas, na sua missão primária.

Com efeito, tendo presente o contexto em que a pergunta vem formulada, e considerando que Portugal faz parte da OTAN, enquanto perdurar o presente conflito, pode configurar-se uma situação susceptível de justificar o uso de meios militares para, no plano interno, reforçar as funções de prevenção e dissuasão nos locais considerados mais vulneráveis.

Se é ameaçado (ameaça externa) o funcionamento dos sectores de produção e abastecimento alimentar, industrial e energético, dos transportes e das comunicações, porque se trata de interesses vitais para o bem estar e segurança das populações, a defesa militar desses sectores ainda há-de compreender-se no nº 2 do artigo 273º da CRP, conjugado com o nº 1 do artigo 2º da LDNFA, pelas razões que expusemos na Parte IV, pontos nºs 1 a 2.3.

Contudo, uma decisão nesta matéria passa por uma avaliação dos pressupostos de facto justificativos da intervenção das Forças Armadas, que os órgãos competentes[79] hão-de verificar em concreto.

Na nossa ordem jurídica, são órgãos de soberania competentes em matéria militar: O Presidente da República, que é o Comandante Supremo das Forças Armadas (cfr. artigo 120º da CRP), nomeia as chefias militares (cfr. alínea p) do artigo 133º, e 274º, da CRP) e preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional (cfr. alínea o) do artigo 133º da CRP); A Assembleia da República, à qual compete definir as bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas [cfr.artigo 164º, alínea d)], e o Governo, que é o órgão da condução da política geral do país, e o órgão superior da administração pública, incluindo da administração militar [cfr. artigo 182º da CRP, e 199º, alínea d)]. Também segundo o nº 2 do artigo 7º da LDNFA, “ a condução da política de defesa nacional compete ao Governo”.

Em matéria de Forças Armadas, e segundo a LDNFA, cumpre destacar que “O ministro da defesa Nacional é politicamente responsável pela elaboração e execução da componente militar da política de defesa nacional, pela administração das Forças Armadas e pela preparação dos meios militares e resultados do seu emprego” (cfr. nº 3 do artigo 1º).

Por seu turno, as missões específicas das Forças Armadas são definidas pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, mediante proposta do Ministro da Defesa Nacional, sob projecto do Conselho de Chefes de Estado-Maior” (cfr. nº4 do artigo 2º da LDNFA).


VI


Tendo em conta tudo o exposto, podemos concluir o seguinte:



1. A Constituição da República Portuguesa comete às Forças Armadas a missão primária e nuclear de defesa militar da República ( nº 1 do artigo 275º da CRP), com vista a garantir a «independência nacional», a «integridade do território» e a «liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas»;

2. Os conceitos de “agressão” e “ameaça” externas são conceitos indeterminados que não podem deixar de ser objecto de uma integração actualista, de modo a abranger novas formas de actuação externa susceptíveis de afectar os bens jurídicos que constituem objecto do conceito constitucional de defesa nacional;

3. Perante uma agressão ou ameaça do exterior, que pelo seu significado e dimensão afecte de forma séria e fundada os bens jurídicos objecto do conceito constitucional de defesa nacional, a defesa militar poderá envolver uma componente externa, caracterizada pelo exercício de um direito de legítima defesa, no quadro dos compromissos internacionais e, uma componente interna, dirigida à estrita protecção dos mesmos bens jurídicos contra ameaças externas, dentro do espaço físico do território nacional (nº 2 do artigo 273º da CRP, conjugado com o nº 1 do artigo 2º da LDNFA)];

4. A defesa militar perante ameaças externas ao funcionamento de sectores de produção e abastecimento alimentar, industrial e energético, dos transportes e das comunicações, na medida em que constituem interesses vitais para o bem-estar e segurança das populações, compreende-se na previsão do nº 2 do artigo 273º da CRP e no nº 1 do artigo 2º da LDNFA.





[1]) Cfr. Parecer de 10/10/2001, p. 2.
[2]) Sobre a evolução, embora temporalmente limitada, da posição e funções das Forças Armadas na história do constitucionalismo português e de vários países do mundo, incluindo os países de expressão portuguesa, Marques Guedes, «A Segurança, a Defesa Nacional, as Forças Armadas e os Cidadãos numa perspectiva constitucional», Nação e Defesa, Ano VI, nº 19, pp. 11 e ss.
[3]) No plano político, as Forças Armadas eram incumbidas de assegurar o prosseguimento da revolução de 25 de Abril de 1974, o regular funcionamento das instituições democráticas, o cumprimento da Constituição, a transição da sociedade portuguesa para a democracia e o socialismo e ainda a colaboração nas tarefas de reconstrução nacional (cfr. artigo 273º). Para maiores desenvolvimentos, cfr. Freitas do Amaral, A Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, Coimbra Editora, Limitada, 1983, pp. 108 e ss., e «La Constitución y las Fuerzas Armadas», Revista de Estudios Políticos, nºs 60/61, 1988, pp. 607 e ss.; Lucas Pires, «As Forças Armadas e a Constituição», Estudos sobre a Constituição, Vol. I, pp. 321 e ss., e JORGE MIRANDA, «A participação dos militares no exercício da soberania», Estudos sobre a Constituição, 2º vol., pp. 43 e ss.
[4]) A revisão constitucional de 1982 abriu caminho para a aprovação da estrutura normativa fundamental da Defesa Nacional e das Forças Armadas, assente sobretudo na Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, que sofreu posteriormente várias alterações, como veremos.
[5]) Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 958/59. Ainda segundo os mesmos autores, a defesa militar constitui dimensão principal do conceito constitucional de defesa nacional, mas não o esgota, como melhor será analisado.
[6]) Cfr. FREITAS DO AMARAL, A Lei de Defesa..., cit., p. 110, e Carlos Blanco de Morais, «Alinhamentos sobre o regime jurídico da organização e funcionamento da Defesa Nacional e das Forças Armadas», O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, Carlos Blanco de Morais/António Araújo/Alexandra Leitão, Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 2000, p. 41.
[7]) Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 959. Para uma distinção entre “polícia” e “ordem pública”, cfr. Guido Corso, L’ Ordine Pubblico, Bolonha, 1979, pp. 117 e ss.
[8]) Sobre os aspectos fundamentais em que a revisão constitucional de 1982 substituiu a independência funcional das Forças Armadas pela sua subordinação ao poder político, cfr. Freitas do Amaral, A Lei de Defesa..., cit., pp. 113 e ss.
[9]) Cfr. a Lei nº 44/86, de 30 de Setembro. Ver, também, os artigos 19º, 134º, alínea d), e 138º da CRP, na redacção vigente. Neste caso, aliás, as forças de segurança ficam subordinadas às Forças Armadas (cfr. artigo 8º, nº 3, da Lei nº 44/86).
[10]) Cfr. artigo 9º, alínea a), da CRP.
[11]) Para uma análise mais detalhada do preceito, ainda que sem ter em conta as alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, 1997, cfr. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., pp. 957 e ss.
[12]) O artigo 1º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA), Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, posteriormente alterada pelas Leis nºs 41/83, de 21 de Dezembro, 111/91 e 113/91, de 29 de Agosto, 18/95, de 13 de Julho, Lei Orgânica nº 3/99, de 18 de Setembro, e Lei Orgânica nº 4/2001, de 30 de Agosto, tem o seguinte conteúdo: “A defesa nacional é a actividade desenvolvida pelo Estado e pelos cidadãos no sentido de garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas, e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa”.
[13]) Um conceito estrito ou limitado, que restrinja a defesa nacional a uma responsabilidade eminentemente militar considera-se hoje ultrapassado. Segundo uma concepção alargada ou ampla, a defesa nacional engloba, a par da defesa militar, “uma defesa civil, uma defesa económica, uma defesa energética, uma defesa científica e tecnológica, uma defesa cultural, etc.”. Cfr. Mário Firmino Miguel, «Defesa Nacional», Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, 2, p. 41.
[14]) Cfr. A Lei de Defesa..., cit., pp. 111/112. Sobre a evolução da noção e âmbito da defesa nacional na nossa ordem jurídica, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, ob. cit., pp. 41 e ss.
[15]) Sobre o conceito integrador e global de “defesa”, cfr. Miguel Domínguez-Berrueta de Juan e outros, Constitución, Polícia y Fuerzas Armadas, Marcial Pons, Madrid, 1997, p. 51, e JEAN PAUCOT, «Le pouvoir d’engager les hostilités en France», Pouvoirs, nº 10, p. 66.
[16]) Cfr. nº 2 do artigo 6º da LDNFA.
[17]) Cfr. nº 3 do artigo 6º da LDNFA. Sobre a multidisciplinaridade do conceito estratégico de defesa nacional, cfr. a Resolução do Conselho de Ministros nº 9/94, publicada no Diário da República, 1ª Série B, de 4 de Fevereiro de 1994.
[18]) Cfr. «Fidelidade à República ou Fidelidade à NATO ?», Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, 1986, pp. 13/14.
[19]) A partir da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, as Forças Armadas passaram a ter credencial constitucional para participar em missões de paz e humanitárias em apoio à política externa de Portugal, bem como no âmbito da cooperação técnico-militar. Cfr. nº 5 do artigo 275º, aditado pela lei de revisão de 1997, e a última parte do nº 6 actual, respectivamente.
[20]) Trata-se de missões de segurança no plano interno e que não se incluem, como já foi dito, no âmbito da defesa nacional. Cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 963.
21) Este preceito, que corresponde no essencial ao texto da Lei Constitucional nº 1982, foi revisto pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, que alterou os nºs 5 e 6. Posteriormente, a Lei Constitucional nº 1/97 alterou o nº 2, aditou o nº 5 (passando os artigos nºs 5 e 6 a nºs 6 e 7) e alterou o nº 6.
[22]) Num sentido estrito, a “defesa civil compreende todos os sectores interessados a conferir a uma nação a capacidade de suportar os efeitos dos ataques sobre objectivos civis e providenciar os abastecimentos indispensáveis para a população e para a sustentação do esforço militar”. Segundo uma acepção mais ampla “a ideia de defesa civil alcança um finalismo dual, e abrange a de protecção civil, sendo integrada por todos os recursos humanos e materiais, não preponderantemente militares, que são colocados ao serviço da defesa nacional e que se destinam, igualmente, a obviar aos efeitos de catástrofes e outras situações de natureza análoga”. Cfr. Carlos Blanco de Morais, ob. cit., p. 70.
[23]) Gomes canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 962 e 963. Os autores falam em tarefas como, por exemplo, “intervenção da engenharia militar em abertura de vias”, etc.
[24] Conjugado com o nº 1 do artigo 275º da CRP.
[25]) Ver por todos, Carlos Blanco de Morais, ob. cit., p. 42. Sobre as críticas que o autor tece a esta concepção, cfr. ob. cit., pp. 58 e ss. Trata-se, segundo GIUSEPPE DE Vergottini, de uma concepção clássica de defesa, Indirizzo político della difesa e sistema costituzionale, Milão, 1971, pp. 48 e ss.
[26]) A publicação dos textos em inglês e português da Carta das Nações Unidas, actualizada com as alterações adoptadas pela Assembleia Geral, e bem assim o Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, constam do Aviso nº 66/91, de 22 de Maio, Diário da República nº 117, Iª Série – A .
[27]) PEDRO ROMANO MARTINEZ / J.AZEREDO LOPES, Textos de Direito Internacional Público, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 1999, p. 43 e ss.
[28]) O artigo 3º tem o seguinte conteúdo: “Considerar-se-á acto de agressão qualquer um dos actos a seguir enunciados, tenha ou não havido declaração de guerra, sob reserva das disponibilidades do artigo 2º e de acordo com elas:
a) A invasão ou o ataque do território de um Estado pelas forças armadas de outro Estado, ou qualquer ocupação militar, ainda que temporária, que resulte dessa invasão ou ataque, ou qualquer anexação mediante o uso da força do território ou de parte do território de outro Estado;
b) O bombardeamento pelas forças armadas de um Estado, ou o uso de quaisquer armas por um Estado, contra o território de outro Estado;
c) O bloqueio dos portos ou da costa de um Estado pelas forças armadas de outro Estado;
d) O ataque pelas forças armadas de um Estado contra as forças armadas terrestres, navais ou aéreas, ou a marinha e aviação civis de outro Estado;
e) A utilização das forças armadas de um Estado, estacionadas no território de outro com o assentimento do Estado receptor, em violação das condições previstas no acordo, ou o prolongamento da sua presença no território em questão após o termo do acordo;
f) O facto de um Estado aceitar que o seu território, posto à disposição de outro Estado, seja utilizado por este para perpetrar um acto de agressão contra um terceiro Estado;
g) O envio por um Estado, ou em seu nome, de bandos ou de grupos armados, de forças irregulares ou de mercenários que pratiquem actos de força armada contra outro Estado de uma gravidade tal que sejam equiparáveis aos actos acima enumerados, ou o facto de participar de uma forma substancial numa tal acção.”Texto recolhido em PEDRO ROMANO MARTINEZ / J.AZEREDO LOPES, ob. cit., pp. 95 e ss.
Por sua vez, o artigo 4º estabelece que “a enumeração dos actos mencionados acima não é exaustiva e o Conselho de Segurança poderá qualificar outros actos como actos de agressão de acordo com as disposições da Carta”.
[29]) O referido preceito insere-se no capítulo VII, que tem como epígrafe “ Acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão”, e o seu conteúdo é o seguinte:
“Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a acção que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais”.
[30]) O nº 1 do artigo 2º estabelece que “O Estado Português preconiza a solução dos problemas e conflitos internacionais pela via da negociação e da arbitragem, considerando seu dever contribuir para a preservação da paz e da segurança internacionais, nos termos da Constituição”.
[31]) Cfr., entre outros, Mário Firmino Miguel, ob. cit., p. 37.
[32]) Mário Firmino Miguel, ob. cit., p. 37/8. Ainda segundo o mesmo autor, alguns teóricos tendem a considerar que a defesa nacional se deve restringir à ameaça militar, dando-se prevalência aos meios de coacção militar; outros alargam-na de modo a abranger toda a agressão ou comportamento hostil externos; outros ainda, de uma forma mais abrangente, tendem a globalizá-la, considerando ameaça tudo quanto possa afectar a segurança do Estado-Nação.
[33]) Giuseppe de Vergottini, ob. cit., pp. 41 e ss.; Pierluigi Lamberti Zanardi, «Indirect Military Aggression», The current legal regulation of the use of force, Martinus Nijhoff Publishers, 1986, pp. 111 e ss, e Carlos Blanco de Morais, ob. cit., p. 42. Sobre os conceitos de agressão directa, indirecta, económica e ideológica, cfr. André Gonçalves Pereira/Fausto Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 528.
[34]) Pode ler-se no Livro Branco da Defesa Nacional 2001, que “as ameaças e riscos para a segurança nacional e internacional assumem hoje um carácter multifacetado, imprevisível e transnacional como resultado das características de um sistema marcado pela interdependência, multipolaridade e heterogeneidade de modelos políticos, culturais e civilizacionais” (cfr. p. 4).
[35]) Sobre o tema, António Vitorino, Opções de Política de Defesa Nacional, Defesa Nacional, Lisboa, 1998, pp. 50/51 e 65. Sobre os novos desafios internos e externos com que o Estado de Direito do período posterior à guerra fria se vê confrontado, cfr. Carlos Blanco de Morais, ob. cit., pp. 62 e ss.
[36]) António Vitorino, ob cit., p. 132.
[37]) Sobre as armas bacteriológicas, ver Eric David, Principes de droit des conflits armés, Bruylant, Bruxelles, 1999, pp. 305 e ss. Sobre o tema, ver, também, Christopher Greenwood, «Self-defence and the Conduct of International Armed Conflict», International Law at a Time of Perplexity, Essays in Honour of Shabtai Rosenne, Martinus Nijhoff Publishers, London, 1989, p. 279 e ss, e Abel Cabral Couto, «Armas de destruição maciça: a espada de Dâmocles», Janus, 98, Suplemento Especial, Público e Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, pp. 22/23.
[38]) Sobre o terrorismo e a violência, cfr. Robert Schmelck/Georges Picca, «L’État face au terrorisme», Pouvoirs, nº 10, 1979, pp. 53 e ss.
[39]) Abel Cabral Couto, ob. cit., p. 22.
[40]) Sobre a proibição de armas de destruição maciça e efeitos indiscriminados, Eric David, ob. cit., pp. 293 e ss.
[41]) António Vitorino, ob. cit., pp. 65/147.
[42]) Sobre a abertura das normas constitucionais, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 1054 e ss.
[43]) De entre várias classificações sobre os diferentes tipos de interesses, “interesse primário” e “interesse vital” parecem equivaler-se, legitimando ambos o uso da força militar, J. Loureiro dos Santos, Incursões sobre o domínio da defesa estratégica, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp. 47 e ss.
[44]) O nº 4 do artigo 2º da Carta das Nações Unidas estabelece que “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas.”
[45]) Para uma análise mais detalhada sobre os problemas hermenêuticos suscitados pela própria Carta, cfr. PAULO CANELAS DE CASTRO, «De quantas cartas se faz a paz internacional ?», Ab Vno Ad Omnes, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 1013 e ss. e, em especial, pp. 1026 e ss.
[46]) As expressões constam da epígrafe do Capítulo VII.
[47]) PAULO CANELAS DE CASTRO, ob. cit., pp. 1020/21.
[48]) Alguns autores tendem a fundar o direito de legítima defesa dos Estados num direito consuetudinário anterior à própria Carta. Para maiores desenvolvimentos, cfr., ABDULHAY SAYED, «Le recours à la force et la legitime défense», Quand le droit est face à son néant, Bruyant, Bruxelas, 1998, pp. 124 e ss.
[49]) Os autores também distinguem entre agressão indirecta armada e não armada. Esta última acontece quando um Estado financia ou apoia por qualquer forma acções de terror desenvolvidas por grupos armados contra outro Estado. Para maiores desenvolvimentos, cfr. ANTÓNIO CASSESE, International Law in a divided World, Clarendon Press, Oxford, 1990, p.139. Sobre a extensão do direito de legítima defesa, no caso de agressão indirecta militar, cfr. ROSALIYN HIGGINS, «The individual use of force in International Law», International Law and how we use it, Problems and Process, Clarendon Press, Oxford, 1994, pp. 250 e ss.; «Use of Force by States. Collective Security. Law of War and Neutrality», Manual of Public International Law, Macmillan, 1968, pp.747 e ss., e JEAN-PIERRE COT/ ALAIN PELLET, La Charte des Nations Unies, Economica, Paris, 1991, pp. 780 e ss.
50) A legítima defesa preventiva permite que um Estado, na iminência de um ataque armado futuro, reaja por antecipação. Não seria necessário, como parece inculcar o artigo 51º da Carta, esperar a ocorrência de uma acção materializada, ou em começo de execução. A questão tem-se colocado sobretudo perante a ameaça de utilização de armas nucleares. Sobre o tema, cfr. ABDULHAY SAYED, ob. cit., pp. 137 e ss.; IAN BROWNLIE, «The principle of non-use of force in contemporary International Law», The non-use of force in International Law, Martinus Nijhoff Publishers, Londres, 1989, pp. 24 e ss., e ROSALYN HIGGINS, ob. cit., pp. 242 e ss.
[51]) Sobre a intervenção armada para protecção de nacionais, cfr. ROSALYN HIGGINS, ob. cit., pp. 243 e ss. Os autores tendem a justificar esta intervenção no direito de legítima defesa ou no direito consuetudinário internacional. Sobre o problema, ver, também, CARLOS BLANCO DE MORAIS, ob. cit., pp. 62 e ss.
[52]) Foi essencialmente durante o período da Guerra Fria que os Estados invocaram muitas vezes preceitos da Carta, quer em nome de uma interpretação criativa da mesma, quer apelando ao Direito Consuetudinário Internacional. Sobre a questão, cfr. REIN MULLERSON, Ordering Anarchy, Martinus Nijhoff Publishers, 2000, pp. 290 e ss.; PAULO CANELAS, ob. cit., pp. 1038 e ss., e ROSALYN HIGGINS, ob. cit., pp. 248 e ss.
[53]) Paulo Canelas de Castro, ob. cit, p. 1026, e «Da não intervenção à intervenção? O movimento do pêndulo jurídico perante as necessidades da comunidade internacional», Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXI, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1995, pp. 307 e ss.
[54]) Segundo André Gonçalves Pereira e FauSto de quadros, ob. cit., p. 531, a noção de agressão, além de se revelar obsoleta, não contribui para a manutenção da paz e da segurança internacionais.
[55]) Sobre a natureza e pressupostos materiais das deliberações do Conselho de Segurança nestas hipóteses, Gomes Canotilho, «Nova Ordem Mundial e ingerência Humanitária. Claros-Escuros de um Novo Paradigma Internacional», A ingerência e o Direito Internacional, Instituto de Defesa Nacional, 1996, pp. 9 e ss.
[56]) Sobre a interpretação alargada do conceito de sistema de segurança colectiva feito pelo Conselho, Paulo Canelas de Castro, «De Quantas Cartas», cit., pp. 1045 e ss. Sobre os poderes do Conselho de Segurança, cfr. Michael Bothe, «Les limites des pouvoirs du Conseil de Sécurité», Le développement du rôle du Conseil de Sécurité, Martinus Nijhoff Publishers, 1993, pp. 67 e ss.
[57]) FREDERIC DOPAGNE, « Le recours à la force armée autorisé par le Conseil de sécurité», Annales de Droit de Louvain, 2000/2, pp.194 e ss. ; SERGE SUR, «Sécurité collective et rétablissement de la paix:la Résolution 687 (3 Avril 1991) dans l‘ Affaire du Golfe», Recueil des Cours de l’ Académie de Droit International, Dordrecht, 1993, pp. 13 e ss ; Henri Meyrowitz, «La Guerre du Golf et le droit des Conflits armés», Revue Générale de Droit International Public, Tome 96/1992/3, pp. 551 e ss ; Moura Ramos, «A Crise do Golfo e o Direito Internacional», A Crise do Golfo e o Direito Internacional, Universidade Católica, 1993, pp. 19 e ss., e Azeredo Lopes, «Agressão, Crime Internacional e Crise do Golfo», A Crise do Golfo…, cit., pp. 61 e ss.
[58]) Frédéric Dopagne, ob. cit., pp. 205 e ss.
[59]) Cfr. artigo 51º da Carta das Nações Unidas.
[60]) Repare-se que neste tipo de situações, em que se atingem de forma indiscriminada populações e bens civis, não são respeitados princípios básicos do direito dos conflitos, entre os quais se contam, o da distinção entre a população civil e os combatentes, bem como entre bens civis e objectivos (alvos) militares. Acresce que mesmo um ataque dirigido contra objectivos militares tem de respeitar o princípio da proporcionalidade. Segundo alguns autores, constitui princípio de natureza absoluta e inderrogável que as partes em conflito devem dirigir as suas operações militares contra objectivos militares. As mesmas razões justificam a proibição da utilização de gases e outras formas de agressão que possam pôr em risco as populações civis, ou do emprego de armas que têm efeitos não discriminados. Sobre os princípios gerais do direito da guerra, cfr. Catarina de Albuquerque, «La Guerre après la Guerre», Separata do Boletim de Documentação e Direito Comparado», nºs. 69/70, 1997, pp. 173 e ss.
[61]) As referidas Resoluções levantam outros problemas de direito internacional que não nos cabe analisar, como, por exemplo, o facto de não se fazer distinção entre os comportamentos materiais imputados à organização terrorista, enquanto tal, e o comportamento ilícito do Estado que a apoia (Afeganistão). Por outro lado, a legítima defesa é, por natureza, transitória ou temporária. Sobre os pressupostos da legítima defesa, Paulo Canelas de Castro, «Da não intervenção»..., cit., pp. 317 e ss.
[62]) Em especial, destaca-se que volta a repetir a expressão ”to combat by all means”, já utilizada nas Resoluções nºs 678, de 29 de Novembro, e 816, de 31 de Março de 1993.
[63]) O artigo 5º tem o seguinte conteúdo:
“As partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51º da Carta Das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora individualmente e de acordo com as restantes Partes, a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na Região do Alântico Norte.
Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque serão imediatamente comunicadas ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho se Segurança tiver tomado as providências necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais.”
[64]) As razões pelas quais as Forças Armadas não devem assegurar a ordem interna prendem-se fundamentalmente com o facto de que elas devem actuar com imparcialidade e neutralidade política com vista a garantir unidade. A garantia da ordem pública já será fruto do “indirizzo político” da maioria. Cfr. Guido Corso, «La difesa e l’ordine pubblico», Manuale di diritto pubblico, III, a cura di Giuliano Amato e Augusto Barbera, Milão, 1997, p. 278.
[65]) Lucas Pires, ob. cit., em especial, pp. 326/7, e Barbosa de Melo/Vieira de Andrade/Cardoso da Costa, Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pp. 295/6. Esta foi também uma das preocupações do legislador constitucional espanhol expressa na Constituição de 1978, Federico Trillo–Figueroa, «Las Fuerzas Armadas en la Constitucion Española», Revista de Estudios Políticos, nº 12, 1979, p. 110 e ss, e Javier Barcelona Llop, «Reflexiones Constitucionales sobre el modelo policial español», Revista Española de Derecho Constitucional, nº 48, 1996, pp. 83 e ss. No direito italiano, a Constituição não parece impedir o uso das Forças Armadas em acções de segurança interna, sobretudo em casos de insuficiência ou falência das forças policiais, como já aconteceu em situações pontuais como o combate ao crime organizado ou o controlo das fronteiras contra a imigração clandestina. Sobre a problemática, cfr. Guido Corso, La difesa..., cit., p. 278.
[66]) Sobre o problema, cfr. Giuseppe DE Vergottini, ob. cit., pp. 45 e ss.
[67]) Trata-se de uma espécie de vertente interna da defesa nacional, que se distingue da segurança interna pela natureza externa da ameaça.
[68]) De igual modo, o artigo 2º, nº 3, da LDNFA deve ser objecto de uma interpretação em conformidade com a Constituição e as fontes de direito internacionais mencionadas.
[69]) Cfr. artigo 8º, ns 1 e 3, da CRP. Sobre a extensão e alcance do referido preceito constitucional e o valor jurídico no âmbito das fontes de direito internacional da Carta das Nações Unidas, cfr. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Internacional Público, Parte I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 65 e ss.
[70]) E qualquer actuação externa tem de obedecer, como é óbvio, aos procedimentos estabelecidos para o efeito, e mover-se no quadro dos compromissos internacionais, que não cabe aqui analisar.
[71]) Texto correspondente ao nº 5 do artigo 275º da CRP, segundo versão da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho de 1989.
[72]) Sobre uma tipologia dos riscos, cfr. VICENT DYE, La sécutité civile en France, PUF, 1995, p. 18.
[73]) A Lei nº 113/91, de 29 de Agosto de 1991, foi alterada pela Lei nº 25/96, de 31 de Julho.
[74]) Cfr. Actas das Reuniões nºs 68, de 18 de Dezembro de 1996, e 117 de 8 de Julho, de 1997.
[75]) A recente Lei Orgânica nº 3/99, de 18/9/99, que alterou a LDNFA, veio estabelecer que “as Forças Armadas podem ser incumidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de protecção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações” (cfr. artigo 9º, nº 5)
[76]) Neste sentido, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, ob. cit., p. 63.
[77]) A Lei de Segurança Interna consta da Lei nº 20/87, de 12 de Junho, alterada pela Lei nº 8/91, de 1 de Abril de 1991.
[78]) Ver o que se disse na Parte IV, ponto 2.3.
[79]) Para maiores desenvolvimentos sobre as competências constitucionais relativas à defesa nacional, cfr. António Araújo, «Competências constitucionais relativas à Defesa Nacional: as suas implicações no sistema de governo», O direito da Defesa Nacional... , cit., pp. 137 e ss., e, em especial, pp. 216 e ss.
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART7 N1 ART8 ART9 A ART120 ART133 O P ART164 D ART182 ART199 D ART272 N1 ART273 ART274 ART275 N1 N3 N5 N6 N7
LC 1/82 DE 1982/09/30
LC 1/89 DE 1989/07/08
LC 1/97 DE 1997/09/20
L 29/82 DE 1982/12/11 ART1 ART2 N1 N3 N4 ART3 N1 ART7 N2 ART9 N3
L 41/83 DE 1983/12/21
L 111/91 DE 1991/08/29
L 18/95 DE 1995/07/13
LO 3/99 de 1999/09/18
LO 4/2001 DE 2001/08/30
L 113/91 DE 1991 ART1 ART3 ART18 N1 C N4
L 25/96 DE 1996/07/31
DRGU 18/93 DE 1993/06/28 ART1 ART3
L 20/87 DE 1987/06/12
L8/91 DE 1991/04/01
L 44/86 DE 1986/09/30
Referências Complementares: 
DIR CONST / DIR MIL / DIR INT PUBL*****
AV66/91 DE 1991/05/22 CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS ART2 N4 CAPÍTULO VII ART51
RES AG ONU 3314 (XXIV) DE 1974/12/14 ART1 ART3
RES CONSELHO DE SEGURANÇA ONU 678 DE 1990/11/29
RES CONSELHO DE SEGURANÇA ONU 816 DE 1993/03/31
RES CONSELHO DE SEGURANÇA ONU 1368 DE 2001/09/12
RES CONSELHO DE SEGURANÇA ONU 1373 DE 2001/09/28
OTAN ART5
Divulgação
Data: 
16-02-2002
Página: 
3101
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