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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
114/2005, de 02.11.2009
Data de Assinatura: 
02-11-2009
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
PEREIRA COUTINHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CONVENÇÃO PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS
PROTOCOLO
RATIFICAÇÃO
PROIBIÇÃO DE DESCRIMINAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
OMISSÃO LEGISLATIVA
Conclusões: 
1.ª - Com o Protocolo n.º 12 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem a interdição geral de discriminação naquele contida passa a ser aplicada a todo e qualquer direito previsto na lei, ou seja na ordem interna de cada Estado Parte, deixando a interdição de estar limitada aos direitos reconhecidos na referida Convenção e nos outros Protocolos que a complementam;

2.ª - Aquela interdição geral de discriminação, desde logo prevista no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, é observada na nossa ordem jurídica portuguesa, que, por esse motivo, não é alterada nem muito menos inovada por efeito de uma eventual ratificação do referido Protocolo n.º 12.

3.ª - Neste contexto, não se vislumbram desconformidades entre a lei interna portuguesa e o conteúdo daquele instrumento de direito internacional que, a existirem, seriam geradoras de situações de ilegalidade e poderiam conduzir à necessidade de introdução de alterações legislativas;

4.ª - Assim sendo, a decisão a tomar sobre a ratificação do Protocolo n.º 12 não mais pressupõe que um juízo sobre a conveniência da sua adopção, que é um juízo de natureza política e, por essa razão, extravasa do âmbito de um Parecer deste corpo consultivo.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Ministro da Justiça,
Excelência:



I

O Director do Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação (GRIEC) do Ministério da Justiça tomou a iniciativa de, junto do Chefe de Gabinete do antecessor de Vossa Excelência, Senhor Ministro, sugerir que fosse solicitado ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República parecer jurídico sobre a compatibilidade entre o Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinado por Portugal em 4 de Novembro de 2000, e o ordenamento jurídico do nosso País e sobre as eventuais alterações legislativas que possam decorrer da ratificação desse Protocolo, para o efeito de se iniciarem os procedimentos com vista à ratificação pelo nosso País desse instrumento de direito internacional.

O antecessor de Vossa Excelência remeteu seguidamente essa sugestão à Procuradoria-Geral[1], no sentido de obter aquele parecer. Cumpre emiti-lo, em termos que se limitarão à apreciação de questões de legalidade, de acordo com o que se dispõe no artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público[2].


II

1. A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, abreviadamente Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou CEDH, entrou em vigor na ordem internacional em 3 de Setembro de 1953 e, até à data, já foi complementada por 15 Protocolos (14 Protocolos numerados de 1 a 14 aos quais acresce o Protocolo n.º 14bis).

A Convenção bem como os seus Protocolos n.os 1, 2, 3, 4 e 5 foram aprovados para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, e passaram a vincular o nosso País a partir de 9 de Novembro de 1978.

Portugal, com excepção dos Protocolos n.º 12, n.º 14. e n.º 14bis, já ratificou os Protocolos restantes e está por eles vinculado depois de ter depositado os instrumentos de ratificação correspondentes, conforme, quanto a estes Protocolos restantes, passa a descrever-se.

Assim, o Protocolo n.º 6 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 12/86, publicada no Diário da República, I Série, n.º 129, de 6 de Junho de 1986, e vincula Portugal desde 1 de Novembro de 1986.

O Protocolo n.º 7 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/90 e foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 51/90, ambos publicados no Diário da República, I Série, n.º 224, de 27 de Setembro de 1990. Vincula o nosso País desde 1 de Março de 2005.

O Protocolo n.º 8 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 30/86, publicada na I Série, n.º 283, do Diário da República de 10 de Dezembro de 1986. Vincula Portugal desde 1 de Janeiro de 1990.

O Protocolo n.º 9 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/94 e foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 12/94, de 7 de Março. Ambos os actos se encontram publicados no Diário da República, I Série, n.º 55, de 7 de Março de 1994. O Protocolo vincula Portugal desde 1 de Fevereiro de 1996.

O Protocolo n.º 10 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/94, de 2 de Abril, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 18/94, de 2 de Abril, que é a data da publicação destes actos no Diário da República, I Série, n.º 77 do mesmo ano de 1994.

O Protocolo n.º 11 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 21/97 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 20/97, de 3 de Maio, que é a data, nesse ano de 1997, de publicação em Diário da República, I Série-A, destes dois actos. Vincula Portugal desde 1 de Novembro de 1998.

Finalmente, o Protocolo n.º 13 foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 44/2003 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 33/2003, de 23 de Maio. Ambos os actos se encontram publicados no Diário da República, I Série-A, n.º 119, de 23 de Maio de 2003. O Protocolo vincula o nosso País desde 1 de Fevereiro de 2004.

Quanto aos Protocolos que, para além do Protocolo n.º 12 que é objecto deste Parecer, não vinculam ou ainda não vinculam o Estado Português, deverá referir-se que o Protocolo n.º 14, que altera o sistema de controlo da Convenção, foi aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/2006 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 14/2006, ambos publicados no Diário da República, I Série-A, de 21 de Fevereiro de 2006, mas, ainda sem ter entrado em vigor na ordem internacional nos termos nele consignados, vigora apenas quanto aos Estados que declarem aceitar a sua aplicação a título provisório nas condições estabelecidas em um acordo, designado por Acordo de Madrid, de 12 de Maio de 2009. Portugal não apresentou essa declaração.

Por sua vez, o Protocolo n.º 14bis, não assinado nem ratificado pelo nosso País, entrará em vigor na ordem internacional em 1 de Outubro de 2009.


2. O Protocolo n.º 12 foi adoptado pelo Comité dos Ministros do Conselho da Europa em 26 de Junho de 2000, ficou aberto à assinatura pelos Estados membros do Conselho da Europa a partir de 4 de Novembro do mesmo ano e entrou em vigor na ordem internacional[3] em 1 de Abril de 2005, passados três meses após ter recolhido o número de 10 ratificações exigido para esse efeito.

Segundo dados do Conselho da Europa[4] reportados a 28 de Outubro de 2009, o Protocolo foi assinado por 37 dos 47 países que fazem parte do Conselho e ratificado por 17. Portugal, tal como mais 24 países, assinou este Protocolo em 4 de Novembro de 2000, data que corresponde também, como se disse, àquela em que o Protocolo ficou aberto para assinatura. De entre os países que o ratificaram e por ele ficaram vinculados refiram-se a Espanha (desde Junho de 2008), os Países Baixos (em Abril de 2005) e o Luxemburgo (em Julho de 2007). Mas países relevantes da área cultural em que nos inserimos ainda não o ratificaram; integram este grupo, a título de exemplo, a França, a Itália, o Reino Unido, a Bélgica, a Alemanha, a Áustria e a Suíça, sendo que, destes países, a França, o Reino Unido e a Suíça não chegaram a assiná-lo.

O texto do Protocolo em apreciação comporta, para além do Preâmbulo, apenas seis artigos dos quais apenas o artigo 1.º contém uma disciplina substancial ou de fundo, sendo os restantes de natureza apenas adjectiva ou procedimental.

Quanto a estes últimos artigos bastará referir que:

- o artigo 2.º regula a aplicação territorial;
- o artigo 3.º as relações do Protocolo com a Convenção: «[o]s Estados Partes entendem os artigos 1.º e 2.º do presente Protocolo como artigos adicionais à Convenção, sendo as disposições da Convenção correspondentemente aplicadas»[5], ou seja, o Protocolo não tem funções derrogatórias mas apenas de aditamento;
- o artigo 4.º regula a assinatura e ratificação, sendo de sublinhar que segundo os seus termos «[n]enhum Estado membro do Conselho da Europa pode ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter simultânea ou previamente ratificado a Convenção»);
- o artigo 5.º regula a entrada em vigor, aplicando-se ao caso português, se for decidida a ratificação. Porque o Protocolo já entrou em vigor na ordem internacional, será aplicável o n.º 2 deste artigo na parte em que determina que o Protocolo passará a vincular o nosso País «no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar da data de depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação»; e
- o artigo 6.º dispõe sobre as funções do depositário.

Assume assim relevo para a economia do presente parecer o Preâmbulo do Protocolo e o artigo 1.º, nos quais se dispõe como segue:


«Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do presente Protocolo,
Tendo em conta o princípio fundamental segundo o qual todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a uma igual protecção pela lei;
Decididos a tomar novas medidas para promover a igualdade de todas as pessoas através da implementação colectiva de uma interdição geral de discriminação prevista na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950 (adiante designada “a Convenção”);
Reafirmando que o princípio de não-discriminação não obsta a que os Estados partes tomem medidas para promover uma igualdade plena e efectiva, desde que tais medidas sejam objectiva e razoavelmente justificadas;

Acordam no seguinte:

Artigo 1.º
Interdição geral de discriminação
1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente, do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação.
2. Ninguém pode ser objecto de discriminação por parte de qualquer autoridade pública com base nomeadamente, nas razões enunciadas no número 1 do presente artigo.»


Desde já, e antes de mais desenvolvimentos, tenha-se presente que o Protocolo não visa introduzir derrogações na Convenção mas apenas complementar a mesma. Designadamente, entre o preceito acabado de reproduzir e o artigo 14.º da Convenção existem conexões de sentido que se tornam patentes pela mera leitura deste último artigo, que agora se transcreve na redacção vigente:

«Artigo 14.º
(Proibição de discriminação)
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.»



III

3. O confronto entre o artigo 14.º da Convenção e o artigo 1.º do Protocolo evidencia os propósitos do Protocolo, em cujo Preâmbulo, aliás, claramente se declara que se pretendem tomar novas medidas «através da implementação colectiva de uma interdição geral de discriminação».

Ou seja, a interdição de discriminação estatuída no artigo 14.º da Convenção passa a ser uma interdição “geral” que terá de ser entendida como aplicável relativamente a «todo e qualquer direito previsto na lei» o qual «deve ser garantido sem discriminação alguma» (n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo). São proibidas diferenciações fundadas em razões expressamente enunciadas também no mesmo preceito do n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo, mas, tal como sucede no artigo 14.º da Convenção cujo texto nesta parte é reproduzido no Protocolo sem alteração, a enumeração não é taxativa, conforme resulta da utilização do advérbio «nomeadamente». A referência a certas razões de discriminação não restringe nem diminui o âmbito de aplicação do princípio de interdição geral de discriminação.

Não é assim no texto do artigo 14.º da Convenção. Nesse preceito a distinção é proibida mas não se estabelece uma interdição genérica. Nele são banidas discriminações apenas quanto ao gozo dos direitos e liberdades «reconhecidos na presente Convenção», enquanto no Protocolo as discriminações[6] são proscritas relativamente a «todo e qualquer direito previsto na lei». A regra da proibição das discriminações não gozava de um título ilimitado de intervenção; só era chamada a intervir se estivessem em causa não todos mas apenas direitos e liberdades consagrados na Convenção. O âmbito material, no quadro da Convenção, é o âmbito de direitos nela expressamente consignados e a proibição surge como elemento que acresce ao conteúdo específico de cada direito, surge como um regra inserida no regime apenas de cada um dos direitos garantidos pela Convenção.

O artigo 1.º do Protocolo n.º 12 sobrepõe-se assim ao artigo 14.º Mas para os Países que tenham ratificado o Protocolo o conteúdo prescritivo deste artigo 14.º da Convenção é absorvido pelo preceituado no Protocolo, que vai além, generalizando o campo de aplicação da proibição. O Protocolo tem assim vocação para, a termo e à medida em que for sendo ratificado pelos países membros do Conselho da Europa, tornar dispensável a aplicação do artigo 14.º da Convenção[7].


4. Igualdade e não discriminação são noções intrinsecamente ligadas[8]. O princípio da igualdade, com efeito, manda tratar igualmente o que for igual e tratar desigualmente o que for desigual – é a vertente positiva do princípio. As diferenciações de tratamento podem ser, portanto, legítimas. Mas entra-se no campo do ilícito quando, sem fundamento substancial e ou objectivo, se trata desigualmente aquilo que é igual ou pelo menos semelhante, ou quando se tratam por igual situações claramente diferentes. Por esta via se cria o que pode designar-se por discriminação – a proibição da discriminação é a vertente negativa do princípio da igualdade. Poderá, assim dizer-se que «[a] supressão de todas as discriminações constitui a realização da igualdade»[9].

Um entendimento estrito da letra do artigo 14.º da Convenção tenderá a autonomizar a regra da não discriminação, separando-a da regra da igualdade, sua correlativa. Por essa via o juiz, apenas terá de aplicar a lei sem estabelecer distinções entre os destinatários da norma, ainda que esta abranja no seu campo de aplicação, sem distinguir, situações substancialmente diferentes. Esta perspectiva equivalerá a ter da igualdade um entendimento puramente formal em que a igualdade, sem mais, estará garantida porque a lei, dada a sua generalidade, se aplica por igual a todos os seus destinatários e, assim sendo, nesse sentido, não estabelece qualquer discriminação. Um entendimento material da não discriminação, porém, levará à censura de tratamentos que, embora iguais, tenham por objecto situações diferentes; por outras palavras, o correcto é que sejam tratadas diferenciadamente pessoas colocadas em situações diferentes. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, abreviadamente TEDH, seguiu inicialmente uma orientação formal e só na sentença de 6 de Abril de 2000, proferida no caso Thlimmenos c. Grécia, acolheu a tese de que o direito à não discriminação é transgredido «quando, sem justificação objectiva e razoável, os Estados não aplicam tratamento diferente a pessoas cujas situações são sensivelmente diferentes»[10].

O TEDH vem entendendo como discriminação a distinção desprovida de justificação objectiva e razoável, isto é, uma distinção que não prossegue uma finalidade legítima ou em que não se detecta uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregados e o fim visado.

Para ser objectiva, a distinção questionada perante o Tribunal terá de se fundar em características de um grupo ou categoria social e não de pessoas tomadas individualmente; a distinção será razoável na medida em que, embora se reporte a esse grupo, não implique a inversão do princípio da igualdade. Por sua vez, o Tribunal vem seguindo a orientação de que o juízo de proporcionalidade consente às autoridades nacionais uma certa margem de apreciação quanto às diferenciações em apreciação, na medida em que aquelas autoridades muitas vezes se encontram confrontadas com situações cuja diversidade reclama soluções jurídicas diferentes, sem embargo de o Tribunal entender que a existência de um denominador comum aos sistemas jurídicos dos Estados membros é um índice pertinente do carácter razoável ou não razoável da diferença de tratamento[11].

Acrescenta o n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo o enunciado de um conjunto de factores de diferenciação não admitidos, em listagem igual àquela que consta do artigo 14.º da Convenção. Essa listagem não é exaustiva mas apenas indicativa, o que resulta de, como atrás se disse, o enunciado desses factores ser precedido do advérbio nomeadamente. É manifestação dessa particularidade, por exemplo, o facto de o TEDH ter aplicado a proibição da discriminação a uma situação de diferenciação segundo a orientação sexual, que é factor de diferenciação não contido na enunciação[12].


5. O Tribunal vem entendendo que, sendo a Convenção um “tratado normativo” que estabelece regras de relacionamento entre os Estados partes e os seus cidadãos, a sua interpretação deve procurar o sentido que melhor se ajuste às finalidades e objecto das suas disposições acompanhando a evolução das situações sociais a que se aplica, sem se limitar estritamente aos compromissos assumidos pelas partes; assim sendo, o sentido que os preceitos adquirem no momento em que são aplicados prevalece sobre o sentido dos mesmos aquando da sua redacção. A interpretação levada a cabo pelo TEDH é uma “interpretação evolutiva”, conforme designação adoptada pela doutrina; entre outras facetas, contribuiu ela para o alargamento do alcance dos preceitos contidos na Convenção, criando institutos novos não previstos, designadamente o das “obrigações positivas”, e dando ocasião a que se suscitassem controvérsias doutrinais ainda não definitivamente encerradas, como por exemplo a respeitante à “eficácia horizontal” dos direitos reconhecidos na Convenção. Estes dois aspectos, o das obrigações positivas e o da eficácia horizontal, interessam-nos porque, separadamente e também de forma interligada, se projectam sobre a matéria do Parecer.

Tradicional e geralmente as liberdades públicas são consideradas como garantia negativa contra actuações dos poderes públicos e obrigam estes a abster-se de acções lesivas dos direitos dos particulares.

As obrigações positivas, pelo contrário, em vez de uma abstenção, implicam um dever de agir, uma acção dos poderes públicos. Mas, mais do que isso, no quadro da jurisprudência do TEDH, esse dever de agir constitui a forma de prevenir ou de sancionar a violação de um direito praticada, não pelo Estado, mas por algum particular.

Do ponto de vista do TEDH, a imposição da obrigação positiva é legítima porque constitui uma forma de dar efeito útil e de efectivar um direito conferido pela Convenção (ou, no nosso caso também pelo Protocolo n.º 12), em matéria de igualdade. As violações praticadas por particulares acabam por ser imputadas ao Estado, que nesse caso comete uma violação da Convenção por não ter adoptado as medidas (positivas) adequadas para prevenir ou limitar as violações do direito garantido. Compreende-se que neste domínio o Tribunal reconheça ao Estado uma certa margem de apreciação, cuja extensão varia segundo vários factores, as circunstâncias de cada caso entre outros, no contexto de uma obrigação de meios, não de resultados, em que também é tido em conta o justo equilíbrio entre o interesse geral e os interesses do indivíduo e a existência de um denominador comum aos sistemas jurídicos dos Estados partes[13].

A Convenção vincula os Estados que a ratificaram, os quais se obrigaram, por esta via, a aplicar os preceitos nela contidos no relacionamento entre os poderes públicos e os particulares. Trata-se, nessa sede, do chamado efeito ou “eficácia vertical” dos direitos previstos pela Convenção. Na doutrina discute-se a aplicabilidade da Convenção nas relações entre particulares, em concreto sobre se o TEDH pode pronunciar-se sobre violações de direitos de particulares praticadas por outros particulares. Trata-se aí da chamada “eficácia horizontal” ou efeito reflexo (Drittwirkung na terminologia germânica) das direitos previstos na Convenção e distingue-se entre eficácia horizontal directa e indirecta.

Não cabe na economia do Parecer uma análise de fundo da questão, que está longe da ser encerrada[14], quanto à eficácia horizontal directa. Esta teria lugar se fosse conhecida em juízo uma queixa ou pretensão de um particular contra outro particular requerido, mas sublinhe-se que o TEDH até à data só admite pedidos contra um Estado parte. Fala-se de eficácia horizontal indirecta nas situações em que estão envolvidos particulares (nesse sentido a eficácia será horizontal) mas em que a decisão do Tribunal responsabiliza algum Estado e, nesse sentido, a eficácia do direito em causa será apenas indirecta.

Assim, por exemplo no caso Pla e Puncernau c. Andorra, de 13 de Julho de 2004, o TEDH reconheceu-se competente para conhecer de uma diferença de tratamento estabelecida por uma cláusula testamentária que excluía da herança uma criança adoptada. O Estado foi responsabilizado, não por omissão mas por acção, por a sua ordem jurídica ter permitido a um particular a violação de direitos que deveriam ser atribuídos a outra pessoa[15].

O veículo mais frequentemente utilizado, porém, para conferir eficácia horizontal indirecta aos direitos garantidos pela Convenção é o das obrigações positivas, como fica evidenciado no já referido caso dos 97 membros da congregação das testemunhas de Jeová de Gldani c. Andorra, em que o Estado foi responsabilizado por não ter tomado as medidas necessárias para prevenir ou reprimir as discriminações praticadas no relacionamento entre particulares.


6. O Protocolo acompanha-se de um Relatório explicativo[16] que, embora não tenha valor de interpretação autêntica, é um documento oficial preparado pelo Comité Director para os Direitos do Homem (CDDH)[17] e adoptado pelo Comité de Ministros, destinado a facilitar a compreensão das respectivas disposições.

Este documento dedica alguma atenção a estes dois temas, das obrigações positivas e da eficácia horizontal dos direitos, provavelmente por se tratar de matéria sensível que desencadeia um alargamento do âmbito da Convenção e que é debatida pela doutrina.

Relativamente ao artigo 1.º do Protocolo começa por se assinalar que, embora «não possam ser globalmente excluídas […] obrigações positivas o objectivo principal […] é estabelecer para as Partes uma obrigação negativa: a de se absterem de qualquer discriminação quanto aos indivíduos» (número 24). Não se inclui nesse objectivo principal, portanto, «uma obrigação positiva geral», que teria um sentido programático, de tomada de medidas com vista a evitar ou remediar qualquer caso de discriminação, incluindo nas relações entre particulares (número 25).

No entanto, é recordado que o n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo consagra o dever de garantir o gozo dos direitos, dever do qual decorrerão obrigações positivas, «por exemplo […] quando existir uma lacuna manifesta na protecção oferecida pelo direito nacional contra a discriminação». O número 25 do Relatório prossegue afirmando que a falta de protecção contra a discriminação, mais especificamente nas relações entre particulares[18], poderá ser nítida e grave ao ponto de implicar a responsabilidade do Estado por cair no âmbito de aplicação do artigo 1.º

Quanto às obrigações positivas nas relações entre particulares em geral, o Relatório pronuncia-se (número 28) no sentido de que elas poderão ser relevantes no domínio da esfera pública normalmente regida pela lei em que o Estado assume alguma responsabilidade, como por exemplo no acesso ao trabalho, aos restaurantes ou a serviços colocados por particulares à disposição do público, como os serviços de saúde ou a distribuição de água ou de electricidade, sem que assuntos exclusiva e puramente privados sejam abrangidos. E sublinha que a referência a «todo e qualquer direito previsto na lei» (ou seja, não previsto em manifestações de vontade de particulares) contida no n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo visa «limitar eventuais efeitos horizontais indirectos».

Finalmente, merece referência a afirmação constante do 3.º parágrafo do preâmbulo do Protocolo de que «o princípio de não discriminação não obsta a que os Estados partes tomem medidas para promover uma igualdade plena e efectiva» dentro de determinados pressupostos – de objectividade e de razoabilidade – mencionados na continuação do texto, do que resulta que o instituto das chamadas “discriminações positivas” adquire acolhimento. Com a introdução de discriminações positivas é quebrada a igualdade formal mas, estabelecendo o que se deverá considerar não uma discriminação mas apenas uma distinção legítima, visa-se a obtenção de uma situação de igualdade material; aplica-se um regime favorável e consequentemente diferente em benefício de pessoas que se encontram em situações sensivelmente diferentes, com a finalidade de promover uma igualdade de facto até então inexistente mas que se entende dever ser alcançada ou pelo menos fomentada.

O Protocolo é interpretado, neste contexto, como não implicando a condenação de algum Estado Parte por não adoptar medidas desta natureza. O reconhecimento de um direito a tratamento diferenciado excederá o âmbito do Protocolo. Neste, segundo o Relatório Explicativo (número 16), não vem imposta a obrigação de adoptar tais medidas; «tal obrigação de carácter programático acomodar-se-ia mal com o carácter global da Convenção e com o seu sistema de controlo, que se fundam em uma garantia colectiva dos direitos individuais que são enunciados em termos suficientemente específicos para poderem ser apreciados em tribunal».



IV

5. A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da igualdade no artigo 13.º, que dispõe o seguinte:

«Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»


Sentido e alcance do princípio da igualdade são matéria conhecida e tratada entre nós tanto pela jurisprudência como pela doutrina[19] e a violação daquele princípio, consagrado no artigo 13.º da Constituição, é certamente o fundamento da alegação de inconstitucionalidade de normas ou de interpretações normativas mais frequentemente invocado perante a justiça constitucional portuguesa, cujas orientações jurisprudenciais irradiam para todos os outros tribunais da nossa ordem jurídica[20]. Do mesmo modo não deverá ignorar-se que a Administração Pública, ao aplicar a lei no exercício das suas funções, se encontra vinculada também ao princípio da igualdade, como princípio orientador e de limitação externa do exercício de poderes discricionários, por força do que se estabelece no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição.

No acórdão n.º 232/2003 do Tribunal Constitucional[21], que vamos seguir na exposição subsequente e do qual colhemos apenas os elementos que nos parecem relevantes para a economia do Parecer, procede-se, citando e transcrevendo passagens de outros acórdãos, a uma síntese expressiva do acervo jurisprudencial anterior sobre o princípio da igualdade, que continua a subsistir sem alterações[22].

Naquele acórdão refere-se que é orientação seguida pelo Tribunal a de que o princípio de que vimos falando «vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional» e «postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais)». O princípio «não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objectivamente fundadas».

Para o Tribunal Constitucional, caem sob a alçada da “proibição do arbítrio” desigualdades materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. «Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação de iniciativa do legislador». À proibição do arbítrio acrescem mais duas dimensões ou vertentes do princípio da igualdade que são a proibição da discriminação, que significa a ilegitimidade de qualquer diferenciação baseada em critérios subjectivos, como são aqueles que vêm referidos no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, e a obrigação de diferenciação, que surge com forma de compensar as desigualdades de oportunidades.

Também, conforme se diz naquele aresto tendo em vista o disposto no citado artigo 13.º , n.º 2.º, a nossa Lei Fundamental «enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente – presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplificativo»[23].


6. Ao serem abordados no número anterior aspectos gerais do regime do princípio da igualdade no contexto do Protocolo n.º 12, fez-se alusão a três questões, focadas no respectivo Relatório Explicativo, não expressamente reguladas mas que emergem de uma consideração mais aprofundada sobre o alcance dos preceitos que constam daquele instrumento, questões que em alguma medida deixam em aberto, porventura intencionalmente, o apuramento e definição de orientações por parte da jurisprudência do TEDH. Dizem elas respeito, nomeadamente: a uma obrigação que possa impender sobre o Estado de tomada de medidas que visem evitar ou remediar situações de discriminação (teoria das obrigações positivas na literatura jurídica sobre a Convenção); à possibilidade de aplicação do Protocolo no relacionamento entre particulares (a problemática da eficácia horizontal dos direitos previstos na Convenção); e às chamadas discriminações positivas.

Nenhuma destas questões é desconhecida no ordenamento jurídico português, que as acolhe e lhes dá resposta em termos que não conflituam com as orientações seguidas pela jurisprudência do TEDH.

Com a primeira questão é chamada à colação em primeira linha a figura da omissão susceptível de censura - ilegalidade ou inconstitucionalidade por omissão que, segundo o Tribunal Constitucional quanto a esta última, «só é verificável quando existir uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador e que este se abstenha de a satisfazer» (acórdão n.º 474/2002).

O princípio da igualdade pode ser, designadamente, fonte de uma obrigação de legislar naquelas situações em que o âmbito de aplicação pessoal de determinada disciplina injustificadamente deixa por abranger alguma categoria de destinatários, «seja por um erro de qualificação, por força do hábito ou por uma intenção discriminatória»[24].

Nessas situações o legislador desrespeitou o princípio da igualdade, não satisfez integralmente a imposição de legislar e incorre na censura de inconstitucionalidade por omissão (que é nestes casos uma inconstitucionalidade parcial), ficando obrigado a estender a disciplina inicial aos casos não contemplados. As situações acabadas de descrever corresponderão, porventura, a alguns daqueles casos de lacuna manifesta na protecção oferecida pelo direito interno na protecção contra a discriminação que, no contexto do Protocolo, conforme atrás ficou referido, poderão implicar a responsabilização do Estado.

Danos decorrentes de omissões ilícitas, quer no exercício da função administrativa, quer no exercício da função jurisdicional e da função político-legislativa, poderão entre nós, conferir aos particulares lesados o direito a indemnização nos termos dos artigos 7.º, 12.º e 15.º, n.º 5, do “Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas”, publicado em Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro[25].

Quanto à segunda questão, respeitante à eficácia horizontal dos direitos conferidos pela Convenção, não é vocação do Protocolo aplicar-se ao relacionamento entre particulares como atrás ficou dito. Admite-se nesse campo tão-só uma eficácia indirecta, ou seja, que os poderes públicos sejam responsabilizados mas apenas por omissões deles próprios nos termos da teoria das obrigações positivas.

No domínio do direito interno português, extrai-se das considerações que já foram feitas que o Estado poderá vir a ser responsabilizado por omissão em termos próximos daqueles que correspondem ao instituto das “obrigações positivas” criado pela jurisprudência do Tribunal Europeu. Também é de entender que, entre nós, o princípio da igualdade é aplicável nas relações entre particulares, embora de alguma forma limitado nos seu alcance por força da sua conjugação com outros princípios constitucionais, designadamente o da autonomia da vontade[26]. E vale a pena referir que a eficácia neste contexto reconhecida ao princípio da igualdade, no nosso ordenamento, dispensa, em termos dogmaticamente mais escorreitos, a convolação da violação do princípio em responsabilização do Estado a que procede a jurisprudência do TEDH.

Resta fazer uma curta referência às discriminações positivas, sobre as quais também o Acórdão n.º 232/2003 tece algumas considerações que ilustra com exemplos retirados de arestos anteriores.

Como se disse, a figura das discriminações positivas tem acolhimento na Convenção, embora o Protocolo n.º 12 não imponha qualquer obrigação no sentido da adopção de tais medidas. A jurisprudência constitucional portuguesa entende as diferenciações resultantes daquelas discriminações como uma das três vertentes do princípio da igualdade – a obrigação de diferenciação que visa compensar desigualdades de facto – e não vê nessas diferenciações motivo de censura[27]. Deveremos dar como suposto que a disciplina normativa que as consagre não se subtrai à sindicância jurisdicional, nomeadamente quanto ao respeito pelos limites que a proibição do arbítrio impõe, da mesma forma que, em certos casos, a emissão das correspondentes normas poderá ter por fundamento uma obrigação constitucional de legislar ou uma obrigação de regulamentar, imposta por lei.



V

7. O confronto, nos seus aspectos mais salientes e determinantes, do artigo 13.º da Constituição com o Protocolo n.º 12 conjugado com o artigo 14.º da Convenção, dispondo do volume de informação que se foi agregando, é agora tornado possível e fornece elementos com interesse para concretizarmos a apreciação que se pretende com o presente Parecer.

Em primeiro lugar importa mencionar que o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa institui o princípio da igualdade como um princípio de aplicação geral a todos os direitos consagrados no nosso ordenamento. Não se limita a constituir um simples acessório ou complemento de cada um dos direitos fundamentais consignados na Constituição e vincula o legislador, a administração pública e os tribunais bem como os particulares relativamente a todas as matérias. É este também o alcance e sentido que presidem ao artigo 1.º do Protocolo n.º 12 que consigna segundo a sua epígrafe a «interdição geral de discriminação» na qual a menção que nela se faz ao carácter “geral” da interdição vem carregada de sentido.

Transparece a proximidade, que roça a coincidência, das orientações que assumem o Tribunal Constitucional e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quanto ao alcance e sentido da regra da não discriminação. Ambas as instâncias adoptam na apreciação dos casos de diferenciações de tratamento o critério da necessidade de uma justificação, que deverá ser “objectiva” segundo o TEDH, à qual corresponde na jurisprudência constitucional portuguesa a exigência resultante da vertente do princípio da igualdade designada por “proibição da discriminação”; também deverá ser uma justificação razoável segundo o TEDH, à qual corresponde entre nós a exigência resultante da vertente do mesmo princípio da igualdade designada por “proibição do arbítrio”.

Também não se registam diferenças de fundo quanto à orientação assumida pelas duas instâncias a respeito dos factores de diferenciação objecto de censura, estabelecidos no artigo 14.º da Convenção e no n.º 1 do Protocolo n.º 12 por um lado, e no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição por outro.lado. As enumerações que constam desses preceitos são exemplificativas, sendo que no caso português o Tribunal Constitucional acrescenta algum sentido material à enunciação.

É elucidativa das proximidades acabadas de referir a posição assumida pelo Tribunal Constitucional perante a invocação pelos recorrentes de que determinada norma infringe em matéria de igualdade, entre outros instrumentos de direito internacional convencional, a CEDH. Tal invocação é feita ao abrigo do abrigo do artigo 16.º, n.º 1, de Constituição, segundo o qual «[o]s direitos fundamentais consagrados pela Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional». Neste circunstancialismo entende o Tribunal Constitucional que «os princípio jurídico-internacionais invocados não dizem nada que já não se contenha nas normas ou princípio constitucionais pertinentes. Por isso […] os referidos princípios jurídico-internacionais serão […] tomados em consideração “enquanto elementos coadjuvantes da clarificação do sentido e alcance” das normas ou princípios constitucionais relevantes para a decisão da questão […] e não como “padrões autónomos de um juízo de constitucionalidade”» (Acórdão n.º 147/92, em formulação que se repete em termos semelhantes em vários outros – designadamente no recente acórdão n.º 101/2009 e que, no Acórdão n.º 99/88[28], se reportava também de forma explícita ao próprio artigo 14.º da CEDH).


8. O Protocolo n.º 12, fique bem assente este ponto, não inova quanto ao conteúdo substancial da Convenção, não adita a esta princípios ou direitos a respeitar pelos Estados partes que nela não estejam já consignados e regulados. Traz consigo aspectos que são relevantes, mas não faz mais do que tornar geral o âmbito de aplicação de um princípio ou regra – a da proibição da discriminação – que anteriormente se aplicava apenas aos direitos estabelecidos na Convenção. Será admissível dizer, nesta perspectiva, que o Protocolo não introduz alterações substanciais ou qualitativas mas apenas alterações quantitativas.

Significa isto que numa ordem jurídica como é a portuguesa, que conhece e dá aplicação ao princípio da igualdade em todas as vertentes, a introdução de um regime como aquele que consta do artigo 1.º do Protocolo não pode ser considerado como propriamente uma novidade. Assim é tanto mais que a nossa ordem jurídica já vem dando aplicação ao mesmo princípio, sem qualquer alteração de substância, no quadro da CEDH que ratificámos e nos vincula, com a diferença única de essa aplicação se circunscrever ao leque delimitado e circunscrito de direitos reconhecidos pela Convenção.

Do ponto de vista da legalidade, ou seja da compatibilização do Protocolo n.º 12 com a ordem jurídica interna, não são de antever problemas de natureza diferente daqueles que no presente momento podem suscitar-se. Quando muito, o que poderá verificar-se é um aumento do número de situações em que seja questionada a conformidade de actos e decisões dos poderes públicos com esse instrumento de direito internacional convencional.

Da mesma forma, e porque o Protocolo n.º 12 não introduz inovações de conteúdo mas traz apenas extensão de âmbito de aplicação material de um conteúdo não inovador, não se vislumbra a necessidade de introdução de alterações na ordem jurídica interna destinadas a de eliminar alguma discrepância entre esta e o regime instituído por aquele instrumento. É certo que o conteúdo de alguma ou algumas decisões do Tribunal Europeu sobre casos concretos poderá induzir discrepâncias susceptíveis de generalização, que requeiram remédio por via de alteração do direito interno. Mas esta será uma vicissitude futura e imprevisível, que não pode ser imputável ao Protocolo n.º 12 em especial, porque pode ocorrer relativamente a qualquer disposição constante da Convenção e de qualquer dos seus outros Protocolos.

O que o Protocolo n.º 12 traz efectivamente de novo é o alargamento das competências do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A totalidade da ordem jurídica interna dos países que o ratificarem, todos os destinatários das normas respectivas seja qual for a matéria tratada, ficam uma e outros abrangidos pelo âmbito de aplicação de um princípio, como é o da não discriminação, que proporciona um grau elevado de abertura a vários conteúdos em função dos critérios de valoração que forem sendo adoptados pelo Tribunal Europeu.

Será provavelmente este o fundamento das reticências à adesão por parte de muitos Estados membros do Conselho da Europa, que encararão com algum receio confiar a uma jurisdição estranha, diferente da sua própria, o controlo dos poderes de conformação que àquela jurisdição – o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - é consentido pela abertura inerente ao princípio da igualdade. No entanto, trata-se de uma jurisdição cujas orientações não são aleatórias nem incertas, porque utiliza critérios de orientação e aplica categorias dogmáticas – por exemplo as categorias das obrigações positivas e as da eficácia horizontal indirecta – que são conhecidas e que procurámos descrever nos seus traços gerais.

Colocada nessa sede, a questão da ratificação do Protocolo n.º 12 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem deixa de ser uma questão de legalidade e passa a assumir contornos em que vai implicado um juízo de conveniência que tem como sede própria a instância política competente para decidir. Um juízo ela excede os quadros dentro dos quais o presente Parecer se pode pronunciar.



VI

Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1.ª - Com o Protocolo n.º 12 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem a interdição geral de discriminação naquele contida passa a ser aplicada a todo e qualquer direito previsto na lei, ou seja na ordem interna de cada Estado Parte, deixando a interdição de estar limitada aos direitos reconhecidos na referida Convenção e nos outros Protocolos que a complementam;

2.ª - Aquela interdição geral de discriminação, desde logo prevista no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, é observada na nossa ordem jurídica portuguesa, que, por esse motivo, não é alterada nem muito menos inovada por efeito de uma eventual ratificação do referido Protocolo n.º 12.

3.ª - Neste contexto, não se vislumbram desconformidades entre a lei interna portuguesa e o conteúdo daquele instrumento de direito internacional que, a existirem, seriam geradoras de situações de ilegalidade e poderiam conduzir à necessidade de introdução de alterações legislativas;

4.ª - Assim sendo, a decisão a tomar sobre a ratificação do Protocolo n.º 12 não mais pressupõe que um juízo sobre a conveniência da sua adopção, que é um juízo de natureza política e, por essa razão, extravasa do âmbito de um Parecer deste corpo consultivo.




Lisboa, 2 de Novembro de 2009

O Procurador-Geral Adjunto


(José Luís Paquim Pereira Coutinho)









[1] Pelo ofício do Gabinete do Ministro da Justiça n.º 5377, de 26 de Outubro de 2005.
[2] O Estatuto consta da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis n.º 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, que lhe introduziu a designação de Estatuto do Ministério Público, 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, e 52/2008, de 28 de Agosto. A Lei n.º 60/98 foi rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 20/98, publicada no Diário da República, I Série-A, n.º 253, de 2 de Novembro de 1998.
[3] Para cada Estado que vier a ratificá-lo após a sua entrada em vigor na ordem internacional, o Protocolo entrará em vigor, segundo o seu artigo 5.º, n.º 1, no primeiro dia do mês seguinte ao termo do prazo de três meses a contar da data de depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação (na terminologia do direito internacional convencional a figura da ratificação é aplicável apenas aos Estados que assinaram o instrumento).
[4] Para obtenção destes dados e de outros sobre a matéria pode consultar-se o sítio do Conselho da Europa em http://conventions.coe.int/Treaty/Commun.
[5] Nas transcrições de textos do Protocolo reproduz-se a tradução proporcionada pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado (GDDC) da Procuradoria-Geral da República no sítio http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/regionais.html.
[6] As versões em inglês e em francês das convenções do Conselho da Europa são aquelas que fazem fé. Na versão francesa da Convenção é utilizado o termo distinction enquanto o texto inglês refere discrimination. A tradução oficial portuguesa da Convenção seguiu a versão francesa e adoptou o termo “distinção”. A doutrina francesa (v. Jean-François Renucci, Droit européen des droits de l’homme, L.G.D.J., Paris 2007, págs. 141-142 e 155-156) assinala a discrepância e pronuncia-se no sentido de que a versão francesa tomada à letra conduziria a resultados absurdos uma vez que as distinções são admissíveis em certas condições; deverá portanto interpretar-se o termo distinction à luz do texto inglês, mais restritivo. A discrepância já não subsiste no Protocolo, que recorre ao termo discrimination tanto na versão inglesa como na versão francesa. Na tradução portuguesa do Protocolo o termo escolhido é o de discriminação.
[7] Note-se que, segundo o artigo 4.º do Protocolo, «[n]enhum Estado membro do Conselho da Europa pode ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter simultânea ou previamente ratificado a Convenção.»
[8] Em termos de rigor lógico, as duas noções poderão distinguir-se. O princípio da igualdade impõe igual aplicação da lei e dirige-se directamente ao órgão que aplica o direito; este poderá aplicar por igual uma norma discriminatória. Nesta perspectiva de rigor lógico, por sua vez, a proibição de discriminação tem por objecto a norma a aplicar e, sendo assim, a aplicação desta, ainda que conforme à regra da igualdade, constitui não violação da igualdade mas sim violação da regra da não discriminação.
[9] Cfr. Marcel Sousse, “Le principe de non-discrimination”, AJDA, n.º 12/1999, pág. 985.
[10] V. Frédéric Sudre, “Rapport Introductif”, em Frédéric Sudre / Hélène Surrel (dir.), Le droit à la non-discrimination au sens de la Convention européenne des droits de l’homme, Bruylant / Nemesis, Bruxelas, 2008, pág. 36.
[11] V. referências neste sentido em Jean-François Renucci, ob. cit., pág 144.
[12] Em 21 de Dezembro de 1999 no caso Salgueiro da Silva Moura c. Portugal, acessível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/portugal-dh/acordaos/salgueirodasilva.pdf. V. indicação de jurisprudência sobre a matéria em Jean-François Renucci, ob. cit., pág. 141, nota 283.
No caso referido, o TEDH concluiu pela violação do artigo 8.º (direito ao respeito pela vida privada e familiar) combinado com o artigo 14.º da Convenção, resultante da decisão do Tribunal da Relação de não confiar a guarda de uma criança a seu pai, tendo em conta o interesse do menor mas também o facto de seu pai ser homossexual e viver com outro homem. Considerou o TEDH que fora estabelecida uma diferença de tratamento entre o pai e a mãe da criança que repousava na orientação sexual do requerente e entendeu que o próprio conteúdo da sua decisão constituía satisfação razoável quanto ao pedido formulado de uma reparação justa pelos danos sofridos.
[13] V. sobre estas questões, para além de Frédéric Sudre, ob. cit., pág. 31 e segs., que aqui acompanhamos de perto, Dean Spielmann, “Obligations positives et effet horizontal des dispositions de la Convention”, em Frédéric Sudre (dir.), L’interprétation de la Convention européenne des droits de l’homme, Bruylant, Bruxelas, 1998, pág. 136 e segs.
F. Sudre, em “Rapport introductif”, cit., págs 31-32, refere uma primeira decisão de aplicação da teoria das obrigações positivas nas relações entre particulares no caso 97 membros da Congregação das testemunhas de Jeová de Gladni e outros contra a Geórgia, de 3 de Maio de 2007, da qual se extrai que um Estado que não tomou as medidas necessárias para a prevenção ou repressão de discriminações praticadas por particulares viola a Convenção. No caso apontado foram apreciados actos de agressão e humilhação infligidos a testemunhas de Jeová e seus filhos por ortodoxos extremistas com a tolerância de agentes policiais que recusaram intervir, se bem que alertados. O Tribunal entendeu que a negligência policial resultara das convicções religiosas dos ofendidos, que considerou vítimas de violação do artigo 14.º (Proibição de discriminação) combinado com os artigos 3.º (Proibição da tortura) e 9.º (Liberdade de pensamento, de consciência e de religião), todos da Convenção.
[14] Podem ver-se as linhas básicas da argumentação desenvolvida contra e a favor em Dean Spielmann, L’effet potentiel de la Convention européenne das droits de l’hommne entre personnes privées, Bruylant, Bruxelas, 1995, pág. 33 e segs.
[15] F. Sudre refere este caso na ob. cit., pág. 31.
[16] Tal documento é acessível no sítio do Conselho da Europa, já identificado na antecedente nota 4, no local respeitante ao Protocolo n.º 12.
[17] O CDDH é um órgão de apoio do Comité de Ministros do Conselho da Europa que compreende representantes dos quarenta e sete Estados membros bem como observadores de outros países, de organizações internacionais e de organizações não governamentais.
[18] Cita a este propósito a sentença proferida no caso X e Y contra Países Baixos, de 26 de Março de 1985, em que se considerou violado o artigo 8.º da Convenção, por não ser legalmente possível intentar a acção penal contra o autor de uma agressão sexual na pessoa de uma jovem de 16 anos deficiente mental, dado a lei exigir que a própria vítima apresentasse queixa.
[19] Na doutrina, v. por todos, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 237 e segs, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 426 e segs. V. também os comentários ao artigo 13.º da Constituição em Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 115 e segs. e J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 333 e segs. Em todas estas obras é indicada abundante bibliografia.
A temática é também abordada em direito administrativo. V., entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª edição, Dom Quixote, Alfragide, 2008, pág. 225 e segs., Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 122 e segs. e Mário Esteves de Oliveira / Pedro Costa Gonçalves / J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo comentado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 99 e segs.
[20] Entre nós o Tribunal Constitucional procede apenas a uma fiscalização de normas e de interpretações normativas e não de actos concretos de aplicação da lei. Mas, para além do acolhimento que merecem as suas orientações jurisprudenciais em geral, as suas decisões em sede de fiscalização concreta acabam por ter projecção directa no conteúdo das decisões de aplicação da lei por parte dos tribunais recorridos.
[21] Os acórdãos do Tribunal Constitucional proferidos desde o ano de 1989 inclusive que vamos referir, são acessíveis no sítio htpp://www.tribunalconstitucional.pt./tc/acordaos.
[22] A jurisprudência mais recente reitera as orientações anteriores como pode verificar-se, por exemplo, pela leitura do Acórdão n.º 199/2009, de 28 de Abril de 2009, que cita e transcreve passagens do Acórdão n.º 232/2003.
[23] No entanto, a enunciação daqueles factores não é gratuita, antes é expressão de uma mais elevada censura por parte da consciência jurídica da comunidade perante determinado tipo de diferenciações. Uma comparação do n.º 2 do artigo 13.º da nossa Constituição com o artigo 14.º da Convenção (bem como com o artigo 1.º, n.º 1, do Protocolo n.º 12), que não cabe na economia deste Parecer, seria interessante deste ponto de vista. Assinalam-se patentes proximidade e algumas diferenças entre os textos; quanto às diferenças, só na nossa Constituição são referidas a orientação sexual (desde a revisão constitucional de 2004) e a instrução, enquanto apenas a Convenção dá relevância à pertença a uma minoria nacional.
[24] Cfr. o Acórdão n.º 474/2002, que neste ponto transcreve José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 387.
[25] O Regime anexo à Lei n.º 67/2007 foi alterado pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, que modificou a redacção do respectivo artigo 7.º
[26] V. sobre este ponto Jorge Miranda, Manual …, tomo IV, citados, pág. 263 e segs.
[27] Diz-se no Acórdão n.º 568/08, citando o Acórdão n.º 412/2002, que «a igualdade tem ainda uma vertente positiva, pois pode abranger, para além das proibições de diferenciação, autorizações – dirigidas ao legislador ordinário – para que este estabeleça diferenças favoráveis a certos grupos de pessoas «como forma de compensar as desigualdades de oportunidades».
[28] Publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 785 e segs, em concreto págs. 791-792.
Anotações
Legislação: 
CRP ART13; L 65/78 DE 1978/10/13; RES AR 12/86 DE 1986/06/06; RES AR 22/90; DEC PR 51/90 DE 1990/09/25; RES AR 30/86 DE 1986/12/10; RES AR 11/94 DE 1994/03/07; DEC PR 12/94 DE 1994/03/07; RES AR 16/94 DE 1994/04/02; DEC PR 18/94 DE 1994/04/02; RES AR 21/97 DE 1997/05/03; DEC PR 20/97 DE 1997/05/03; RES AR 44/2003 DE 2003/05/23; DEC PR 33/2003 DE 2003/05/23; RES AR 11/2006 DE 200/02/21; DEC PR 14/2006 DE 2006/02/21; L 67/2007 DE 2007/12/31; L 31/2008 DE 2008/07/17
Jurisprudência: 
AC TC 232/2003; AC TC 199/2009; AC TC 474/2002; AC TC 99/88
Referências Complementares: 
DIR INT PUBL * TRATADOS
Divulgação
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