Simp English Español

Está aqui

Dados Administrativos
Número do Parecer: 
106/2003, de 22.10.2004
Data de Assinatura: 
22-10-2004
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
Maria de Fátima da Graça Carvalho
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL
PROTOCOLO ADICIONAL
FABRICO E TRÁFICO ILÍCITO DE ARMAS DE FOGO SUAS PARTES COMPONENTES E MUNIÇÕES
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
Conclusões: 
1ª) Não se suscitam obstáculos de natureza jurídico-constitucional à ratificação do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, relativo ao Fabrico e Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições;

2ª) A criminalização do fabrico e tráfico ilícitos, nos termos estabelecidos no Protocolo, exige a adopção dos respectivos procedimentos e do sistema de autorizações de importação, exportação e trânsito, no caso de circulação transnacional, e implica alterações no actual regime sancionatório;

3ª) A eventual ratificação do Protocolo reclama ainda as adaptações legislativas e as prescrições administrativas casuisticamente referidas no parecer.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:



I

Por ofício subscrito pelo Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro da Justiça[1] foi solicitada a emissão de parecer prévio da Procuradoria-Geral da República, nos termos do artigo 37º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, no âmbito do processo de ratificação do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, relativo ao Fabrico e ao Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições.

Acompanhando o referido ofício, foi enviada cópia de expediente proveniente do Gabinete para as Relações Internacionais Europeias e de Cooperação do Ministério da Justiça de que consta o texto do referido Protocolo e ofício do respectivo Director sugerindo a solicitação do presente parecer.

Aí se esclarece: «O protocolo em título foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de Maio de 2001, na sua 101ª Sessão Plenária, tendo sido assinado por Portugal em 3 de Setembro de 2002, ao contrário do que sucedeu com a Convenção e os outros dois Protocolos Adicionais, assinados em Palermo, em 15 de Dezembro de 2000. Por este motivo não chegou a ser objecto de apreciação pela Procuradoria-Geral da República quando, através do Parecer nº 146/2001, se pronunciou sobre a inexistência de obstáculos constitucionais ou legais à ratificação, por Portugal, da Convenção e dos dois Protocolos Adicionais.»

De facto, trata-se de protocolo adicional a uma convenção que foi objecto de anterior parecer do Conselho Consultivo[2], que incidiu ainda sobre dois outros protocolos adicionais: o Protocolo relativo ao Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, e o Protocolo relativo ao Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea. Esse parecer culminou com as seguintes conclusões:

«1ª) A ratificação (...) afigura-se compatível com as normas e princípios da Constituição da República Portuguesa;
2ª) Porém, os compromissos decorrentes daquela eventual ratificação reclamam algumas alterações legislativas e suscitam diversas observações, nos termos expressos no texto do parecer.»

Cabe referir que, quer a Convenção quer os dois protocolos adicionais foram entretanto ratificados por Decreto do Presidente da República[3].


II

O artigo 37º da Convenção da Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional prevê que a mesma seja completada por um ou mais protocolos, dispondo, no nº 4, que «Qualquer protocolo à presente Convenção será interpretado conjuntamente com a presente Convenção, tendo em conta a finalidade do mesmo protocolo». Idêntica disposição consta do artigo 1º do Protocolo relativo ao Fabrico e Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições.

A interpretação do Protocolo em conjunto com a Convenção, de que constitui complemento, implica que, salvo disposição expressa em contrário, as normas da segunda se apliquem mutatis mutandis[4] ao primeiro e que as infracções neste estabelecidas o sejam em conformidade com aquela.

Assim, em relação aos princípios e conceitos gerais consagrados na Convenção acolher-se-ão as considerações formuladas no parecer que incidiu sobre o respectivo texto, segundo o entendimento de que «(...) o Protocolo e a Convenção conjugam-se para formar um instrumento mais vasto que confere poderes gerais contra a criminalidade organizada transnacional e que sujeita a disposições do Protocolo problemas particulares de criminalidade»[5].

No presente parecer ir-se-ão, pois, analisar, os aspectos específicos atinentes ao objecto deste Protocolo com as adaptações que o caso justifique.

Expostas estas considerações, cumpre emitir parecer, restrito à matéria de legalidade, nos termos delimitados pelo artigo 37º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público[6], na perspectiva da apreciação da sua conformidade com os preceitos e princípios constitucionais, bem como da sua compatibilização com a legislação ordinária vigente.

III

1. O fenómeno da globalização, que caracteriza as actuais estruturas económicas e sociais, ditou também a internacionalização da criminalidade, sobretudo da criminalidade organizada. Conforme é reconhecido, tais estruturas foram aproveitadas para a organização do crime, assumindo particular vocação, para o efeito, os espaços de livre circulação de pessoas, bens e capitais, e as potencialidades oferecidas pela sociedade de informação.

A internacionalização do crime implicou que a comunidade internacional se organizasse também para a combater com eficácia, recorrendo, cada vez mais, à cooperação internacional, à celebração de tratados, acordos e convenções, à harmonização das legislações internas, com vista a uma actuação operante face aos novos modelos de criminalidade.

Conforme sintetizam ANABELA RODRIGUES e LOPES DA MOTA[7]: «A globalização é hoje o novo paradigma da política criminal: frente à internacionalização do crime, urge responder com a internacionalização da política de combate ao crime».

Neste contexto, têm surgido diversos instrumentos de direito internacional, e, em particular, no âmbito das Nações Unidas, foi aprovada a Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional (doravante, apenas Convenção).

Constituindo o tráfico de armas - ao lado, entre outros, do tráfico de pessoas, do tráfico de estupefacientes, da corrupção, das falsificações, do terrorismo, do jogo ilícito, associados ao branqueamento de capitais - um dos campos privilegiados de actuação da criminalidade organizada e transnacional, compreende-se que a Assembleia Geral das Nações Unidas lhe tivesse dedicado particular atenção e que o tema tivesse constituído objecto de um dos protocolos adicionais àquela Convenção, o Protocolo relativo ao Fabrico e Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições (doravante, apenas Protocolo).

2. O Protocolo em análise é constituído pelo preâmbulo e por três capítulos, estes referentes a «Disposições Gerais», «Prevenção» e «Disposições Finais». Justifica-se a transcrição dos dois primeiros capítulos, que contêm as disposições que carecem de apreciação no âmbito do parecer; já quanto ao terceiro capítulo, constituído por disposições de estilo e de conteúdo basicamente tabelar, se nos afigura dispensável a sua transcrição. Assim:

Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo ao Fabrico e Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições

Preâmbulo

Os Estados Partes no presente Protocolo,

Conscientes de que é urgente prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, tendo em conta que estas actividades são prejudiciais à segurança de cada Estado, região e do mundo em geral, e que constituem uma ameaça para o bem estar dos povos, para a promoção do seu progresso social e económico, assim como para o seu direito de viver em paz,

Convencidos por isso da necessidade de todos os Estados adoptarem todas as medidas apropriadas para este fim, incluindo a promoção da cooperação internacional e outras medidas a nível regional e mundial,

Recordando a Resolução 53/111 da Assembleia Geral, de 9 de Dezembro de 1998, pela qual a Assembleia decidiu criar um comité intergovernamental especial, de composição aberta, encarregado de elaborar uma convenção internacional global contra a criminalidade organizada transnacional e estudar a possibilidade de elaborar, designadamente, um instrumento internacional de luta contra o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições,
Tendo presente o princípio da igualdade de direitos dos povos e do seu direito à autodeterminação, tal como consagrado na Carta das Nações Unidas e na Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às relações de amizade e de cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas,

Convencidos de que completar a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional com um instrumento internacional destinado a combater o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições contribuirá para a prevenção e o combate deste tipo de criminalidade.

Acordaram no seguinte:

I. Disposições Gerais

Artigo 1º
Relação com a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional
1. O presente protocolo completa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional. O mesmo será interpretado em conjunto com a Convenção.
2. As disposições da Convenção aplicar-se-ão mutatis mutandis ao presente Protocolo, salvo se no mesmo se dispuser em contrário.
3. As infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 5° do presente Protocolo serão consideradas como infracções estabelecidas em conformidade com a Convenção.

Artigo 2º
Objecto
O presente Protocolo tem por objecto promover, facilitar e reforçar a cooperação entre os Estados Partes a fim de prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições.

Artigo 3º
Definições
Para efeitos do presente Protocolo:
(a) Por “arma de fogo” entende-se qualquer arma portátil, de cano, para tiro a chumbo, bala ou projéctil por meio de um explosivo, ou que seja concebida para disparar ou ser facilmente modificada para esse fim, com exclusão das armas de fogo antigas ou respectivas réplicas. O conceito de armas de fogo antigas e as respectivas réplicas será definido em conformidade com o direito interno. No entanto, o conceito de armas de fogo antigas não deverá, em caso algum, abranger armas de fogo fabricadas depois de 1899;
(b) Por “partes e componentes” entende-se qualquer componente ou elemento de substituição especificamente concebido para uma arma de fogo e indispensável ao seu funcionamento, incluindo o cano, a armação ou o carregador, a corrediça ou o tambor, a culatra móvel ou o corpo da culatra e ainda todo o dispositivo concebido ou adaptado para diminuir o som provocado pelo tiro da arma de fogo.
(c) Por “munições” entende-se o cartucho completo ou os seus componentes, incluindo a caixa de cartucho, o fulminante, a pólvora propulsora, balas ou projécteis, utilizados numa arma de fogo, desde que esses mesmos componentes estejam sujeitos a autorização no Estado Parte em causa.
(d) Por “fabrico ilícito” entende-se o fabrico ou a montagem de armas de fogo, das suas partes, componentes ou munições:
(i) a partir de partes e componentes provenientes de tráfico ilícito;
(ii) sem licença ou autorização emitida por uma entidade competente do Estado Parte onde se procede ao fabrico ou à montagem; ou
(iii) sem a aposição de uma marca no momento do fabrico, de acordo com o estipulado no artigo 8° deste Protocolo;
A licença ou autorização para o fabrico de partes e de componentes deve ser concedida nos termos do direito interno;
(e) Por “tráfico ilícito” entende-se a importação, a exportação, a aquisição, a venda, a entrega, o transporte, ou a transferência de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições directamente de ou em trânsito pelo território de um Estado Parte para o território de outro Estado Parte, caso um dos Estados Partes em causa não o autorize de acordo com as disposições do presente Protocolo ou se as armas de fogo não foram marcadas de acordo com o estipulado no artigo 8° do presente Protocolo.
(f) Por “localização” entende-se o acompanhamento sistemático das armas de fogo e, sempre que possível, das suas partes, componentes e munições, do fabricante ao comprador com o objectivo de auxiliar as autoridades competentes dos Estados Partes na detecção, investigação e análise do fabrico e tráfico ilícitos.

Artigo 4º
Âmbito de aplicação
1. O presente Protocolo aplica-se, salvo disposição em contrário, à prevenção do fabrico e tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, bem como à investigação e ao procedimento penal iniciado relativamente às infracções definidas de acordo com o artigo 5° do referido Protocolo sempre que essas infracções sejam de natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado.
2. O presente Protocolo não se aplica às transacções entre Estados nem às transferências efectuadas por Estados sempre que a sua aplicação prejudique o direito de um Estado Parte agir no interesse da segurança nacional, de acordo com a Carta das Nações Unidas.

Artigo 5º
Criminalização
1. Cada Estado Parte deverá adoptar as medidas legislativas e outras que considere necessárias para qualificar como infracções penais os seguintes actos, quando tenham sido praticados intencionalmente:
(a) fabricar ilicitamente armas de fogo, as suas partes, componentes e munições;
(b) traficar ilicitamente armas de fogo, as suas partes, componentes e munições;
(c) falsificar ou apagar, retirar ou alterar ilegalmente a(s) marca(s) aposta(s) nas armas de fogo de acordo com o estipulado no artigo 8° do presente Protocolo.
2. Cada Estado Parte deverá adoptar também as medidas legislativas e outras que considere necessárias para qualificar como infracções penais os seguintes actos:
(a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, tentar cometer ou participar como cúmplice numa infracção na acepção do n.° 1° do presente artigo; e
(b) Organizar, dirigir, incitar, promover, facilitar ou aconselhar a prática de uma infracção na acepção do n.° 1° do presente artigo.

Artigo 6°
Perda, apreensão e disposição
1. Sem prejuízo do artigo 12° da Convenção, os Estados Partes deverão adoptar, o mais possível de acordo com o seu sistema jurídico, as medidas necessárias para permitir a declaração de perda das armas de fogo e respectivas partes, componentes e munições que foram ilicitamente fabricadas ou traficadas.
2. Os Estados Partes deverão adoptar, de acordo com o seu sistema jurídico interno, as medidas necessárias para impedir que as armas de fogo e respectivas partes, componentes e munições que tenham sido ilicitamente fabricadas ou traficadas caiam nas mãos de pessoas não autorizadas, apreendendo e destruindo essas armas de fogo, bem como as suas partes, componentes e munições, a menos que outro tipo de utilização tenha sido oficialmente autorizado, desde que essas armas tenham sido marcadas e que os métodos para dispor delas e das munições tenham sido registados.

II. Prevenção

Artigo 7°
Conservação da Informação
Cada Estado Parte deverá conservar durante, pelo menos, um período de dez anos, as informações sobre as armas de fogo e, se for o caso e se possível, sobre as suas partes, componentes e munições, que são necessárias para localizar e identificar essas armas de fogo e, quando for o caso e se possível, as suas partes, componentes e munições que foram ilicitamente fabricadas ou traficadas, bem como para prevenir e detectar essas actividades. Essa informação deverá incluir:
(a) As marcas apropriadas estipuladas pelo artigo 8° do presente Protocolo;
(b) Em caso de transacções internacionais de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, a data de emissão e expiração das respectivas licenças ou autorizações, o país exportador, o país importador, os países de trânsito e, se for o caso, o destinatário final e a descrição e quantidade dos artigos.

Artigo 8º
Marcação de armas de fogo
1. Para efeitos de identificação e localização de cada arma de fogo, os Estados Partes deverão:
(a) No momento do fabrico de cada arma de fogo, exigir uma forma de marcação única da qual conste o nome do fabricante, o país ou o local de fabrico e o número de séne, ou manter qualquer outra forma de marcação única de fácil identificação com símbolos geométricos simples combinados com um código numérico e/ou alfanumérico, permitindo a todos os Estados identificar facilmente o país fabricante;
(b) Exigir a aposição de uma marca apropriada simples em cada arma de fogo importada que permita identificar o país importador e, sempre que possível, o ano de importação, e que possibilite às autoridades competentes desse país localizar a arma de fogo, ou uma marca única, caso a arma de fogo não tenha aquela marca aposta. As condições enumeradas nesta alínea não têm de ser aplicadas à importação temporária de armas de fogo para fins lícitos passíveis de serem verificados;
(c) Assegurar, no momento da transferência de uma arma de fogo dos depósitos do Estado para utilização civil permanente, a forma de marcação única adequada que permita aos Estados Partes identificar o país de transferência.
2. Os Estados Partes deverão encorajar a indústria fabricante de armas de fogo a desenvolver medidas para impedir que as marcas sejam retiradas ou alteradas.

Artigo 9º
Desactivação das armas de fogo
O Estado Parte, nos termos de cujo direito interno, uma arma de fogo desactivada não é considerada uma arma de fogo, deverá tomar as medidas necessárias, incluindo, se necessário, a tipificação de infracções específicas para prevenir a reactivação ilícita de armas de fogo desactivadas, em conformidade com os seguintes princípios gerais de desactivação:
a) Tomar todas as partes essenciais de uma arma de fogo desactivada definitivamente impróprias para utilização e impossíveis de remover, substituir ou modificar, tendo em vista toda e qualquer reactivação;
b) Tomar diligências no sentido de, se necessário, uma autoridade competente verificar as medidas de desactivação a fim de assegurar que as modificações efectuadas numa arma de fogo a tornaram definitivamente imprópria para utilização.
c) Prever, no quadro da verificação efectuada por uma autoridade competente, a emissão de um certificado ou documento que comprove a desactivação da arma de fogo, ou a aposição, para esse fim, de uma marca claramente visível na arma de fogo.

Artigo 10°
Requisitos gerais para os sistemas de concessão de licenças ou autorizações de exportação, importação e trânsito
1. Para a transferência de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições cada Estado Parte deverá estabelecer ou manter um sistema eficaz de concessão de licenças ou autorizações de exportação e de importação, assim como um sistema eficaz de medidas relativas ao trânsito internacional.
2. Antes de emitir licenças ou autorizações de exportação de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, cada Estado Parte deverá verificar se:
a) os Estados importadores emitiram licenças ou autorizações de importação; e
b) sem prejuízo dos acordos bilaterais ou multilaterais que favoreçam os Estados sem litoral, se os Estados de trânsito, pelo menos, comunicaram por escrito, previamente à expedição, que não colocam qualquer objecção a esse trânsito.
3. A licença ou autorização de exportação e importação e a documentação que as acompanha deverão conter, pelo menos, as informações respeitantes ao local e data de emissão, à data da expiração, ao país de exportação, ao país de importação, ao destinatário final, à descrição e quantidade das armas de fogo, das suas partes, componentes e munições e, em caso de trânsito, aos países de trânsito. Os Estados de trânsito devem ser previamente informados dos elementos constantes da licença de importação.
4. O Estado Parte importador deverá informar o Estado Parte exportador, mediante pedido, da recepção das armas de fogo, das suas partes, componentes e munições.
5. Cada Estado Parte deverá, de acordo com as suas possibilidades, tomar as medidas necessárias para garantir que os procedimentos de concessão de licenças ou autorizações sejam seguros e que a autenticidade das licenças ou autorizações possa ser verificada ou validada.
6. Os Estados Partes podem adoptar procedimentos simplificados para a importação e exportação temporária, bem como para o trânsito de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições concebidos para fins legais passíveis de serem verificados, tais como a caça, o tiro desportivo, a peritagem, a exposição ou a reparação.

Artigo 11º
Medidas de segurança e prevenção
A fim de detectar, prevenir e eliminar o roubo, a perda ou o desvio, assim como o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, cada Estado deverá adoptar as medidas apropriadas para:
a) Exigir a segurança das armas de fogo, das suas partes, componentes e munições no momento do fabrico, da importação, da exportação e do trânsito pelo seu território;
b) Aumentar a eficácia dos controlos de importação, de exportação e de trânsito, incluindo, se for caso disso, os controlos nas fronteiras e a cooperação transfronteiriça entre a polícia e os serviços alfandegários.

Artigo 12º
Informação
1. Sem prejuízo dos artigos 27° e 28° da Convenção, os Estados Partes deverão trocar entre si em conformidade com os respectivos sistemas jurídicos e administrativos, a informação pertinente, em cada caso concreto, sobre nomeadamente os fabricantes, negociantes, importadores, exportadores e, sempre que possível, os transportadores autorizados de armas de fogo e das suas partes, componentes e munições.
2. Sem prejuízo dos artigos 27° e 28° da Convenção, os Estados Partes deverão trocar entre si, em conformidade com os respectivos sistemas jurídicos e administrativos, informações relevantes sobre:
(a) Os grupos criminosos organizados envolvidos ou suspeitos de envolvimento no fabrico e tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições;
(b) Os métodos de dissimulação utilizados no fabrico ou no trafico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições e os meios para os detectar;
(c) Os métodos e meios, locais de expedição e de destino, e ainda as rotas normalmente utilizados pêlos grupos criminosos organizados que se dedicam ao tráfico ilícito de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições; e
(d) As experiências e práticas legislativas, assim como medidas tendentes a prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições.
3. Os Estados Partes deverão transmitir ou partilhar entre si, na medida em que tal seja necessário, informações científicas e tecnológicas úteis para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei, tendo em vista o reforço das suas capacidades em matéria de prevenção, detecção e investigação do fabrico e do tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, bem como em matéria de instauração de procedimentos criminais contra as pessoas envolvidas nessas actividades ilícitas.
4. Os Estados Partes deverão cooperar para localizar as armas de fogo e as suas partes, componentes e munições que possam ter sido ilicitamente fabricadas ou traficadas. Tal cooperação deverá contemplar uma resposta rápida, no limite dos meios disponíveis, aos pedidos de auxílio nessa matéria.
5. Cada Estado Parte deverá, sob reserva dos conceitos fundamentais definidos no seu sistema jurídico ou em qualquer acordo internacional, garantir a confidencialidade e respeitar as restrições impostas para a utilização da informação fornecida por outro Estado Parte nos termos do presente artigo, incluindo as informações exclusivas sobre as transacções comerciais, sempre que o Estado Parte que fornece as informações o solicitar. Se a confidencialidade não puder ser assegurada, o Estado Parte que comunicou as informações deverá ser notificado antes da divulgação das mesmas.

Artigo 13º
Cooperação
1. Os Estados Partes deverão cooperar a nível bilateral, regional e internacional para prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições.
2. Sem prejuízo do n.° 13 do artigo 18° da Convenção, cada Estado Parte deverá designar um organismo nacional ou um ponto de contacto único encarregue de assegurar a ligação com os Estados Partes para as questões relativas ao presente Protocolo.
3. Os Estados Partes deverão procurar obter o apoio e a cooperação dos fabricantes, negociantes, importadores, exportadores, corretores e transportadores comerciais de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, de modo a prevenir e a detectar as actividades ilícitas referidas no n°. l do presente artigo.

Artigo 14°
Formação e assistência técnica
Os Estados Partes deverão cooperar entre si e com as organizações internacionais competentes, na medida do necessário, para poderem receber, mediante pedido, a formação e a assistência técnica de que necessitam para reforçar a sua capacidade de prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, incluindo a assistência técnica, financeira e material para as questões referidas nos artigos 29° e 30° da Convenção.

Artigo 15°
Corretores e corretagem
1. A fim de prevenir e combater o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições, os Estados Partes que ainda não o tenham feito, deverão considerar a possibilidade de instituir um sistema de regulamentação das operações daqueles que exercem a actividade de corretagem. Um sistema deste tipo poderia incluir uma ou mais medidas, tais como:
a) Exigir o registo dos corretores que operam no respectivo território;
b) Exigir uma licença ou autorização para a actividade de corretagem; ou
c) Exigir informação sobre as licenças ou autorizações de importação ou exportação, ou sobre os documentos de acompanhamento, o nome e a localização dos corretores envolvidos nas transacções.
2. Os Estados Partes que instituíram um sistema de autorização para a corretagem, tal como descrito no n° l do presente artigo, são incentivados a fornecer dados sobre os corretores e a corretagem, sempre que troquem informações no âmbito do artigo 12° do presente Protocolo, bem como a conservar as informações sobre os correctores e a corretagem, em conformidade com o artigo 7º do mesmo Protocolo.

III. Disposições finais
(...).»


3. Como tópicos gerais, cabe referir, desde já, que o princípio da cooperação no domínio das relações internacionais assume, no nosso ordenamento jurídico interno, dignidade constitucional (artigo 7º da Constituição), e que a Lei nº 144/99, de 31 de Agosto[8], consagra o regime geral de cooperação judiciária internacional em matéria penal, que releva do princípio da reciprocidade e se subordina à protecção dos interesses da soberania, da segurança, da ordem pública e de outros interesses da República Portuguesa constitucionalmente definidos, contemplando as seguintes formas de cooperação: extradição, transmissão de processos penais, execução de sentenças penais, transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade, vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente, auxílio judiciário mútuo em matéria penal.

No que respeita à legislação ordinária vigente, relativa a armas de fogo, evidenciamos a sua reconhecida dispersão e desactualização.

De facto, encontra-se parcialmente em vigor o Regulamento Respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Manifesto, Uso e Porte de Armas e suas Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 37313, de 21 de Fevereiro de 1949[9]; o elenco de armas proibidas consta do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril[10], cujas normas incriminadoras foram revogadas com a entrada em vigor do Código Penal de 1982; os tipos legais de crime estão, actualmente, previstos no artigo 275º do Código Penal (no que respeita a condutas relacionadas com armas proibidas) e em diplomas avulsos (Lei nº 22/97, de 27 de Junho[11], e Lei nº 8/97, de 12 de Abril[12]). Outros diplomas avulsos regulam aspectos específicos no âmbito da mesma temática[13].
Recentemente, foi aprovada a Lei nº 24/2004, de 25 de Junho, que autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico das armas e suas munições. Na exposição de motivos que precedeu a respectiva proposta de lei[14] realça-se que se pretende aprovar um diploma que «modernize e actualize o regime jurídico relativamente ao fabrico, montagem, reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação, comércio, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de arma e sua munições, bem como o regime sancionatório adequado a desmotivar as práticas ilícitas associadas», reconhecendo-se, no que concerne à classificação das armas, que «imperativos de segurança exigem a clarificação e a adaptação do regime legal aos conhecimentos tecnológicos e aos estudos de balística mais recentes».

Aguarda-se, pois, a edição de legislação que deverá adoptar novas definições e proceder a novas classificações, que estabelecerá novas regras, designadamente - na parte que releva no âmbito deste parecer - em matéria de fabrico, venda, aquisição, importação e exportação, que procederá à revisão do regime de licenças, do exercício da actividade de armeiro e respectiva fiscalização, bem como à tipificação de condutas passíveis de integrar ilícitos de natureza penal e contra-ordenacional. Estão excluídas desta autorização legislativa as actividades relativas a armas e munições destinadas às Forças Armadas, militarizadas, forças e serviços de segurança, outros serviços públicos expressamente excluídos por lei, e aquelas que se destinem exclusivamente a fins militares.

Evidencia-se que a lei de autorização legislativa prevê, expressamente, a revogação de todas as normas e diplomas que disponham em sentido contrário ao regime jurídico a aprovar e, em particular, dos diversos diplomas legais a que atrás fizemos referência, bem como das normas sancionatórias, designadamente, a do artigo 275º do Código Penal.

4. Por fim, cabe ainda referir que o Estado Português se encontra vinculado, no espaço europeu, a outros instrumentos, de direito convencional e comunitário, que impõem a observância de determinados procedimentos em matéria de aquisição, detenção, comércio, cedência e transferência de armas de fogo, entre os respectivos Estados Partes, os quais revelam similitude, conquanto menor grau de exigência, relativamente aos que são estabelecidos no presente Protocolo.

4.1. Pela Convenção Europeia sobre o Controle de Aquisição e Detenção de Armas de Fogo por Particulares[15], do Conselho da Europa, as Partes Contratantes «comprometem-se a prestar assistência mútua, por intermédio das autoridades administrativas adequadas, para a repressão do tráfico ilícito de armas de fogo e para a procura e descoberta de armas de fogo transferidas do território de um Estado para o território de outro».
Esta Convenção estabelece os seguintes procedimentos: “notificação das transacções”, pelo qual, em caso de venda, transferência ou cedência a qualquer título de uma arma do território de uma Parte para o território de outra, a primeira se obriga a notificar a segunda, bem como, se entender útil, as Partes por cujo território a arma deva transitar; “dupla autorização”, que impõe à Parte em cujo território se encontra a arma objecto de venda, transferência ou cedência para pessoa residente no território de outra Parte, que apenas autorize essa operação após ter confirmado que também a Parte de destino a autorizou (prevendo-se a possibilidade de este sistema de dupla autorização ser substituído por uma licença internacional).
De referir que Portugal ratificou esta Convenção mas formulou uma reserva no sentido de não aplicar os capítulos sobre notificação das transacções e dupla autorização relativamente a determinadas armas, bem como a componentes, acessórios e munições.

4.2. Pelo Decreto-Lei nº 399/93, de 3 de Dezembro, foi parcialmente transposta para a ordem jurídica interna a Directiva Comunitária nº 91/477/CEE, do Conselho, de 18 de Junho, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas, que prevê a harmonização das legislações internas relativas às armas de fogo e estabelece diversas formalidades para a sua circulação[16].
Entre o clausulado transposto para a ordem interna destaca-se a norma referente ao “cartão europeu da arma de fogo”, documento que habilita o seu titular a deter e a usar uma ou mais armas de fogo em qualquer Estado membro, desde que autorizado pelo Estado membro de destino. Este cartão, de modelo aprovado por anexo, é emitido a quem detenha licença ou autorização de uso e porte de arma, bem como, a quem esteja legalmente isento da licença ou autorização; em Portugal, cabe à PSP a competência para a sua emissão.
Também a aquisição e transferência de armas de fogo de Portugal para um Estado membro ou de um Estado membro para Portugal está sujeita a autorização, a emitir pela PSP, de modelo aprovado, devendo esta acompanhar sempre a arma até ao destino.

4.3. No Acordo de Adesão da República Portuguesa à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen[17], o capítulo VII contém normas sobre armas e munições - com base na classificação de proibidas, sujeitas a autorização e sujeitas a declaração - dispondo o artigo 77º, nº 1, que «As Partes Contratantes comprometem-se a adaptar às disposições deste capítulo as suas disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais relativas à aquisição, detenção, comércio e cedência de armas de fogo e munições». Entre as orientações estabelecidas incluem-se os requisitos para autorização de aquisição e detenção, o registo de declaração, a sujeição a autorização ou declaração das actividades de fabrico e comércio de armas, bem como à vigilância pelas autoridades, regras sobre identificação das armas (incluindo número de ordem e marca do fabricante) e prevê-se o intercâmbio de informações sobre aquisição de armas por particulares ou por armeiros.


IV

Isto posto, passaremos à análise circunstanciada do texto do Protocolo na perspectiva da sua conformidade com a legislação ainda em vigor e, procuraremos aferir da eventual compatibilização face à legislação a aprovar no uso da autorização legislativa.

1. Não nos merece qualquer observação o conteúdo dos “Considerandos” que precedem as disposições do Protocolo, proclamando princípios e enunciando objectivos e compromissos, que relevam dos grandes valores aceites pela comunidade internacional.

O Capítulo I, sobre “Disposições Gerais”, inicia-se com o preceito que se refere à “Relação do Protocolo com a Convenção”, matéria a que já nos referimos a propósito da sua interpretação conjunta e a que voltaremos na parte referente aos ilícitos criminais estabelecidos.

Por razões de ordem metodológica, analisaremos, sucessivamente, os artigos 2º e 4º (“Objecto” e “Âmbito de aplicação”, respectivamente), o artigo 3º (“Definições”), o artigo 5º (“Criminalização”) e o artigo 6º (“Perda, apreensão e disposição”).

2. A definição do objecto e do âmbito de aplicação do Protocolo revelam a intenção de, através da cooperação entre os Estados Partes, se «prevenir, combater e erradicar o fabrico e tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições».
A vertente preventiva assume um importante papel no quadro geral do Protocolo. Contudo, perfila-se como outra vertente «a investigação e o procedimento penal iniciado relativamente às infracções definidas de acordo com o artigo 5º (...) sempre que essas infracções sejam de natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado».

Este segmento final permite, desde já, configurar duas situações no que respeita à vertente criminal: as infracções referentes ao fabrico e tráfico de armas, suas partes, componentes e munições, que reportam à criminalidade transnacional organizada e se inserem no âmbito da Convenção, às quais esta se aplicará, salvo disposição em contrário; as mesmas infracções, quando não assumam essa natureza e, por isso, se encontram fora do âmbito de aplicação da Convenção, mas que não deverão deixar de ser previstas pelo direito interno[18].

Recorde-se que a Convenção é aplicável, nos termos do seu artigo 3º, à prevenção, investigação e procedimento judicial de um conjunto expressamente identificado de infracções (participação em grupo criminoso organizado, branqueamento do produto do crime, corrupção e obstrução á justiça) e às infracções graves (puníveis com pena privativa de liberdade não inferior a quatro anos) sempre que estas infracções sejam de carácter transnacional[19] e envolvam um grupo criminoso organizado[20].

Ressalvadas do âmbito de aplicação do protocolo ficam as transacções entre Estados e as transferências efectuadas por Estados «sempre que a sua aplicação prejudique o direito de um Estado Parte agir no interesse da segurança nacional, de acordo com a Carta das Nações Unidas». Não nos merece qualquer observação esta ressalva, que releva de opções de natureza política, acautelando interesses relevantes, e que suscita a possibilidade de nela se incluirem operações relacionadas com armamento destinado a forças militares, militarizadas ou de segurança.

3. No âmbito das definições adoptadas pelo Protocolo destacam-se, num primeiro grupo, os conceitos de arma de fogo, componentes e munições, e, num segundo grupo, os conceitos de “fabrico ilícito”, tráfico ilícito” e “localização”.

3.1. O conceito de arma de fogo exige a verificação de três requisitos materiais: ser portátil; dispor de cano; disparar tiro a chumbo, bala ou projéctil por meio de explosivo, ou ser concebida para disparar ou ser facilmente modificada para esse fim. São excluídas as armas de fogo consideradas antigas ou suas réplicas, remetendo-se o conteúdo destes conceitos para o direito interno, com o limite de que não poderão ser consideradas armas antigas as fabricadas depois de 1899.

Por seu turno, são consideradas partes e componentes, os componentes ou elementos de substituição especificamente concebidos para a arma de fogo e indispensáveis ao seu funcionamento. Nestas categorias incluem-se expressamente o cano, a armação ou o carregador, a corrediça ou o tambor, a culatra móvel ou o corpo da culatra. São ainda integrados no mesmo conceito de “partes e componentes” os dispositivos concebidos ou adaptados para diminuir o som provocado pela arma (vulgo, silenciador).

O conceito de munições corresponde ao cartucho completo ou seus componentes (incluindo a caixa de cartucho, o fulminante, a pólvora propulsora, balas ou projécteis, utilizados numa arma de fogo), desde que sujeitos a autorização no respectivo Estado.

3.2. No ordenamento jurídico interno o universo de armas de fogo é integrado por classificações e tipologias adoptadas pelo legislador, nas quais se incluem frequentemente outro tipo de armas, designadamente armas brancas[21].

Através do Regulamento Respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Manifesto, Uso e Porte de Armas e suas Munições, aprovado pelo Decreto-lei nº 37313, de 21 de Fevereiro de 1949, o legislador procedeu a uma classificação das armas (em sentido lato) de acordo com um critério misto de finalidade, utilização e características técnicas, que ainda hoje constitui a base material em que assenta o respectivo regime jurídico. As armas foram classificadas em: armas de defesa[22], de caça, de precisão, de recreio[23], de ornamentação[24], de valor estimativo[25], material de guerra[26], munições, utensílios com lâmina, armas proibidas, respeitando exclusivamente a armas de fogo as primeiras quatro categorias.

As munições incluem as que se destinam às armas de defesa, de caça, de precisão, de recreio e de guerra, adoptando a respectiva classificação; quando destinadas a armas de fogo proibidas as munições são abrangidas pelo mesmo regime de proibição de detenção e uso.

O elenco das armas proibidas consta, actualmente, do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril. Por um lado, o artigo 2º deste diploma dispõe que «É proibido o uso, porte ou simples detenção, por parte de elementos estranhos às forças armadas ou militarizadas, de armamento que pelas suas características, equipe ou possa ser usado como material de guerra, próprio dessas forças»; para além do material de guerra, o artigo 3º do mesmo diploma estabelece, ainda, nos seguintes termos, o elenco de armas proibidas:

«1- É proibida, salvo nos casos previstos neste diploma, a detenção, uso e porte das seguintes armas, engenhos ou matérias explosivas:
a) Pistolas de calibre superior a 6,35 mm;
b) Revólveres de calibre superior a 7,65 mm (0,32”);
c) Espingardas ou carabinas de cano estriado ou de alma estriada de calibre superior a 6 mm e de percussão circular;
d) Armas de fogo cujo cano haja sido cortado;
e) Espingardas ou carabinas de precisão, facilmente desmontáveis em peças ou mecanismos principais de reduzida dimensão, bem como estojos portáteis para seu transporte;
f) Armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse;
g) (...);
h) (...);.
2- É igualmente proibida a detenção e uso de:
a) (...);
b) Silenciadores de armas de fogo ou quaisquer outros aparelhos com fins análogos;
c) Munições próprias das armas referidas no número anterior.»

3.3. De acordo com a Lei nº 24/2004 - lei de autorização legislativa - as armas, munições e acessórios deverão ser classificados em oito classes, consoante o grau de perigosidade, a finalidade a que se destinam e a sua utilização, estando especificadas determinadas armas de fogo que, necessariamente, se integrarão na classe A[27] [28].

Como ponto de partida determinante do novo regime legal e do novo regime punitivo afirma-se a necessidade de se «proceder ao recorte entre equipamentos, meios militares e material de guerra, aí se incluindo as armas afectas ou pertença das Forças Armadas e outras forças militarizadas ou de segurança, e as armas permitidas aos civis, ficando as primeiras sujeitas ao regime próprio do referido Código de Justiça Militar». O artigo 7º deste Código define o conceito de material de guerra[29] e o artigo 82º incrimina as condutas de comércio ilícito relativas a esse material[30].

Assim, as armas de fogo que integram o conceito de material de guerra - entre as quais se incluem algumas das armas e respectivas munições para as quais a lei de autorização legislativa impõe a classificação na categoria A[31] - são sempre proibidas a civis e as actividades ilícitas que lhes respeitem são subsumíveis nos tipos legais de crimes previstos no Código de Justiça Militar; já as infracções estabelecidas nos termos da lei de autorização legislativa abrangerão as condutas relacionadas com as restantes armas.

3.4. Os instrumentos de direito convencional europeu e a directiva do Conselho das Comunidades Europeias já mencionados fixam, para efeitos da sua aplicação, o conceito e a classificação de armas de fogo.

Assim, a Convenção Europeia sobre o Controle de Aquisição e Detenção de Armas de Fogo por Particulares define “arma de fogo” como « todo e qualquer objecto que : i) seja concebido ou adaptado para servir de arma, por meio da qual chumbo, bala ou outro projéctil, ou uma substância nociva gasosa, líquida ou outra possa ser descarregada por meio de uma pressão explosiva, gasosa ou atmosférica ou por meio de outros agentes propulsores, e ii) corresponda a uma das descrições específicas que se seguem...», sendo que na classificação adoptada as distinções se baseiam em factores de ordem técnica.

E o Decreto-Lei nº 399/93, de 3 de Dezembro, pelo qual foi parcialmente transposta para a ordem jurídica interna a Directiva Comunitária nº 91/477/CEE, define armas de fogo como «qualquer objecto» que se integre numa de quatro categorias: armas de fogo proibidas; armas de fogo sujeitas a autorização; armas de fogo sujeitas a declaração; outras armas de fogo, sendo as categorias igualmente estabelecidas em função de características técnicas e consequente perigosidade.

Também, como vimos, pelo Acordo de Adesão da República Portuguesa à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen as armas de fogo são classificadas em proibidas, sujeitas a autorização e sujeitas a declaração, de acordo com critérios similares, sendo excluídas de tal classificação as armas antigas[32].

3.5. O universo material de aplicação da legislação interna referente a armas de fogo, é, pois, delimitado por definições e classificações baseadas nas características técnicas e respectivo grau de perigosidade, bem como na susceptibilidade de utilização e na finalidade específica a que estão destinadas. Existem armas de fogo que são sempre proibidas ou que apenas podem ser utilizadas por elementos das forças armadas ou de segurança, outras que podem ser detidas e usadas por outros cidadãos mediante obtenção de licença, autorização ou simples manifesto; noutra perspectiva, estabelecem-se categorias de armas que são susceptíveis de utilização, de outras que não são utilizáveis tendo apenas finalidade ornamental ou estimativa, e ainda outras que se destinam a actividades desportivas, a caça ou a recreio.

Estas classificações e subdivisões, não encontram, de um modo geral, correspondência no Protocolo. Este adopta um conceito abrangente de arma de fogo, independente do fim a que se destinam e de características técnicas específicas - designadamente das que se baseiam no calibre, no comprimento e tipo de cano, nas formas de recarregamento, de percussão, etc. - e apenas exclui do seu âmbito de aplicação as armas antigas (de fabrico não posterior a 1899) permitindo, pelos artigos 9º e 10º, que o direito interno exclua do mesmo conceito as armas que não são susceptíveis de utilização, exigindo, neste caso, a observância de procedimentos que confirmem e atestem a desactivação definitiva dessas armas e suas partes essenciais.
Embora se trate de matéria de índole técnica, alerta-se para que a compatibilização do ordenamento interno com a normação do Protocolo - que pressupõe a identidade do conteúdo material dos conceitos - exige que o universo global resultante dos diversos tipos correspondentes às classificações adoptadas no direito interno (modelo para que também aponta a lei de autorização legislativa, embora com base em diferentes factores, que terão em conta os novos conhecimentos tecnológicos e científicos) esgote o conceito amplo de arma de fogo acolhido pelo Protocolo.

Por outro lado, a exclusão das armas antigas e das armas não utilizáveis, permitida pelo Protocolo, exige que, no plano interno, seja introduzida, quanto às primeiras, uma limitação temporal não superior à nele estabelecida, e, quanto às segundas (a que poderão corresponder as armas actualmente classificadas como “ornamentais” e “de valor estimativo”), a fixação de procedimentos e meios técnicos de verificação e confirmação de desactivação, de acordo com os seus artigos 9º e 10º.

O Protocolo discrimina as partes e componentes (elementos imprescindíveis à utilização das armas), bem como os silenciadores, como objectos autonomamente abrangidos no seu campo de aplicação material, aos quais se aplicam directamente diversos preceitos. A compatibilização dos dois instrumentos exige, nesta parte, a inclusão no campo de aplicação material das normas internas sobre fabrico e tráfico de armas de fogo, das suas partes e componentes (designadamente, o cano, a armação ou o carregador, a corrediça ou o tambor, a culatra móvel ou o corpo da culatra) e dos silenciadores.

Já quanto às munições, o Protocolo contém uma clausula de ressalva do direito interno, abrangendo apenas aquelas que, de acordo com as respectivas normas internas, careçam de autorização. Sendo certo que, pelo normativo interno, as munições acompanham o regime das armas a que se destinam, não se vislumbram, nesta parte, problemas específicos.

4. Os conceitos de “fabrico ilícito”, “tráfico ilícito” e “localização”, respeitam já a actividades relevantes no âmbito de aplicação do Protocolo.

Os conceitos de fabrico e de tráfico ilícito são preenchidos pelo incumprimento de exigências previstas no Protocolo e deverão integrar ilícitos criminais, caso se mostrem preenchidos os elementos típicos da infracção, desde logo, o elemento de ordem subjectiva.

4.1. O “fabrico ilícito” pode resultar do fabrico ou montagem com peças provenientes de tráfico ilícito, da falta de licença ou autorização para o exercício dessa actividade, ou da falta de aposição de marcas no momento de fabrico.

No ordenamento jurídico interno existem normas que condicionam a actividade de fabrico e montagem de artigos de armamento ou munições à titularidade de licença para o exercício dessa actividade, a registo junto da Direcção Nacional da PSP, a habilitação com alvará (que deverá ser de armeiro caso se pretenda efectuar venda ao público).

Também a actividade de indústria de bens e tecnologias militares (incluindo material de guerra), na qual se inclui o fabrico e montagem, está sujeita, nos termos do Decreto-Lei nº 396/98, de 17 de Dezembro[33], a autorização e fiscalização pelo Ministério da Defesa e a uma credenciação de segurança nacional.

Quanto à marcação, a exigência consta, em geral, do artigo 38º, parágrafo 11º, do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº 37313, segundo o qual «todas as armas que não possuam características distintas serão numeradas e marcadas no cano por forma indelével com o número indicado pela autoridade competente e as iniciais do proprietário»; existem outras exigências específicas de marcação para as armas de guerra fabricadas pela indústria particular.

Conforme veremos adiante, estas exigências de marcação ficam aquém das previstas no Protocolo. Apontando a lei de autorização legislativa para a definição de novas regras específicas de conduta relativamente a diversas actividades, entre elas a do fabrico de armas, seria adequado, na perspectiva da ratificação do Protocolo, que fossem tomadas em consideração todas aquelas exigências.

4.2. O conceito de “tráfico ilícito”, tal como é definido no Protocolo, corresponde às operações efectuadas entre ou através de Estados, sem autorização destes, nos termos estabelecidos, ou sem que as armas apresentem a marcação exigida.

O tráfico ilícito de armas, nesta dimensão transnacional, e condicionado à inobservância dessas mesmas exigências, não é objecto de normas específicas de direito interno.

4.3. Quanto ao conceito de “localização” dada a sua função instrumental na aplicação do Protocolo, correspondendo a um desiderato de “acompanhamento sistemático” da arma, suas partes, componentes e munições, não nos merece particular referência.

5. A criminalização do fabrico e tráfico ilícitos das armas, suas partes, componentes e munições, de acordo com o conteúdo dos conceitos atrás referidos, bem como a criminalização da actividade de falsificar, retirar ou apagar ilegalmente as marcas apostas nas armas de fogo, constitui propósito enunciado no nº 1 do artigo 5º do Protocolo, que impõe aos Estados Partes a adopção de medidas adequadas a qualificar como infracções penais os respectivos actos, desde que praticados intencionalmente.

Este segmento final restringe a previsão às infracções praticadas com dolo, afastando os casos de negligência. O nº 2, por seu turno, prevê a punição da tentativa, de diversas formas de autoria e da cumplicidade, em moldes que se mostram adequados aos consagrados na parte geral do Código Penal Português quanto aos pressupostos de punição, às formas do crime e à comparticipação, conquanto sejam respeitados os requisitos específicos de punição da tentativa e da cumplicidade previstos no artigo 22º, 23º e 27º (maxime quanto à moldura penal, no primeiro caso, e à existência de dolo, no segundo).

5.1. Embora no nosso ordenamento jurídico-penal o tráfico de armas não constitua um tipo legal de crime autónomo, surge referenciado na legislação sobre branqueamento de capitais e de outros bens provenientes de determinados crimes, no elenco desses crimes precedentes[34].

Por outro lado, a introdução do tráfico de armas como novo tipo legal de crime é referida na exposição de motivos que precedeu a proposta de lei de autorização legislativa, já mencionada, na qual se considera que «a tipificação do crime de tráfico de armas dotará o Estado de um mecanismo de controlo e punição de uma actividade de elevada perigosidade social e geradora de uma preocupante instabilidade no controlo e na repressão do armamento ilegal».

Contudo, o nosso ordenamento jurídico-penal prevê e pune, como veremos, condutas materiais de fabrico e de tráfico de armas de fogo, cuja ilicitude advém do incumprimento de normas internas aplicáveis. Não coincidindo estas com as exigências previstas no Protocolo, cujo incumprimento constitui elemento típico dos actos a cuja criminalização obriga, a conformação da previsão interna com a previsão do instrumento internacional exige a adopção de medidas legislativas e administrativas cujo incumprimento deverá integrar a infracção penal.

Vejamos em que medida existe correspondência entre os tipos legais já previstos no ordenamento jurídico-penal interno e os tipos legais previstos no artigo 5º do Protocolo.

5.2. A criminalização das condutas relacionadas com armas[35] e, particularmente com armas de fogo, tem sido acompanhada, no plano interno, pela polémica da inclusão das armas simplesmente indocumentadas na previsão da norma incriminadora, dividindo-se os intérpretes quanto ao entendimento de uma arma indocumentada ser ou não uma arma proibida, e o legislador quanto à melhor adequação da tutela penal ou da tutela meramente contra-ordenacional relativamente aos ilícitos respeitantes a este tipo de armas.

Acolhendo o pensamento de FIGUEIREDO DIAS, no sentido de ser exigível um controlo rigoroso das armas de fogo, como referência fundamental para uma boa política criminal[36], considerando, contudo, que a ilegalidade da arma do ponto de vista administrativo apenas devia dar origem a uma punição contra-ordenacional, o Código Penal estabeleceu um tipo legal de infracção restrito às armas de fogo proibidas[37].

No entanto, através de um diploma avulso - a Lei nº 22/97, de 27 de Junho - viria a ser também criminalizada a detenção e uso ilegal de armas de defesa ou de caça não manifestadas ou sem a necessária licença, bem como a venda dos mesmos tipos de armas a pessoas não autorizadas a detê-las.

Também na lei de autorização legislativa se assume o propósito de incluir no conceito de arma proibida as armas sujeitas a manifesto sem que este se mostre efectuado.

Ainda no âmbito da autorização legislativa concedida ao Governo se inclui a incriminação da importação, exportação, transferência, fabrico, compra, venda, distribuição, transporte, e outras actividades, se exercidas sem autorização ou em contrário às prescrições das autoridades competentes, sendo as respectivas molduras penais fixadas em função da tipologia das armas em causa[38]; prevê-se a punição com pena mais grave (de dois a dez anos de prisão) no caso de o agente, sem se encontrar autorizado, se dedicar como modo de vida principal ou complementar a algumas dessas actividades ilícitas.

5.3. Importa-nos agora cotejar a norma do Código Penal - por ser esta que prevê actos materiais de fabrico e tráfico das armas de fogo a que se aplica - com o artigo 5º do Protocolo.

O artigo 275º do Código Penal, incluído no Título IV – “Dos crimes contra a vida em sociedade” e no seu capítulo III – “Dos crimes de perigo comum”, dispõe na sua actual redacção[39]:

«Artigo 275º
(Substâncias explosivas ou análogas e armas)
1- Quem importar, fabricar ou obtiver por transformação, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer titulo ou por qualquer meio, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo arma classificada como material de guerra, arma proibida de fogo ou destinada a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes, radioactivas ou corrosivas, ou engenho ou substância explosiva, radioactiva ou própria para fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
2- Se as condutas referidas no número anterior disserem respeito a engenho ou substância capaz de produzir explosão nuclear, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
3- Se as condutas referidas no nº 1 disserem respeito a armas proibidas não incluídas nesse número, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
4- Quem detiver ou trouxer consigo mecanismo de propulsão, câmara, tambor ou cano de qualquer arma proibida, silenciador ou outro aparelho de fim análogo, mira telescópica ou munições, destinadas a serem montadas nessas armas ou por elas disparadas, se desacompanhadas destas, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.»

Trata-se de um crime de perigo, de natureza dolosa, pelo qual se protege «a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e matérias explosivas»[40].

Os elementos típicos objectivos abrangem diversas formas de actuação material que consistem em importar, fabricar, obter por transformação, guardar, comprar, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio, transportar, distribuir, deter, usar ou trazer consigo (...) fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente[41]. Esta última formulação («fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente») é evidenciada pela doutrina como uma “norma penal em branco” que será preenchida através de prescrições administrativas.

Na sua materialidade, poderá afirmar-se que as actividades previstas no artigo 275º do Código Penal têm a virtualidade de corresponderem aos conceitos materiais de fabrico e de tráfico de armas previstos no Protocolo. Para o efeito, tem-se presente a definição de transporte como «operação de transferência de um local para o outro», que permite enquadrar neste conceito a «passagem de armas pelo território nacional com destino a outro país»[42].

Já os pressupostos de ilicitude dessas actividades se não mostram coincidentes, consistindo, na previsão do Código Penal, na inobservância de regras de fabrico e de circulação internas, a que adiante faremos referência, e reportando, na previsão do Protocolo, a um sistema de autorizações de importação, exportação e trânsito, e a exigências de marcação que não têm correspondência - ou total correspondência - com aquelas normas internas.

Concretizando, a integração do crime de tráfico ilícito previsto no Protocolo exige a falta de autorização de um dos Estados envolvidos (de proveniência, de destino ou de trânsito) quanto às armas, partes, componentes e munições, o que pressupõe um sistema de comunicações, licenças, autorizações e documentação que não está implementado - ou não está totalmente implementado - na ordem interna, designadamente, em relação a Estados situados fora da União Europeia. O mesmo tipo de ilícito admite outra modalidade, que consiste na falta de marcação das armas objecto de tráfico; esse procedimento de marcação, sendo também exigido no ordenamento interno, não tem nele a mesma amplitude, obstando a que, também neste caso, exista uma correspondência integral entre as condutas ilícitas previstas.

Quanto à actividade de fabrico, para que a mesma constitua ilícito criminal nos termos do Protocolo, há-de:

- ser exercida a partir de partes e componentes provenientes do tráfico, ficando nesta parte o elemento típico do crime de fabrico subordinado à verificação de elementos próprios do crime de tráfico, sendo-lhe assim extensíveis as respectivas reservas formuladas àquele propósito; ou,
- ser exercida sem a aposição de marcas, nos termos exigidos por outra norma do Protocolo, que, como referimos, é mais ampla do que a norma que no direito interno impõe a marcação; ou ainda,
- sem licença ou autorização emitida pela autoridade competente do Estado onde se procede ao fabrico ou montagem. Esta última exigência remete para o direito interno, sendo certo que o nosso ordenamento sujeita a actividade de fabrico e montagem de artigos de armamento à concessão de licença, à titularidade de alvará, a registo e a fiscalização pela PSP, não se suscitando, nesta parte, qualquer desconformidade ou insuficiência.

5.4. Concluímos, pois, no que respeita à criminalização das actividades definidas como fabrico e tráfico ilícitos, que existem entre as previsões do direito interno e do Protocolo, espaços de intersecção restando outros em que não existe correspondência.

Destaca-se, como factor de insuficiência do direito interno, o facto de a actual norma penal não abranger as condutas relativas a todas as armas que integram o conceito de arma de fogo definido no Protocolo. Por outro lado, no que respeita às condutas ilícitas, verifica-
-se que a lei interna não abrange todas as que são previstas no Protocolo e que, no que particularmente concerne ao tráfico ilícito, não visa proteger os interesses específicos do tráfico transnacional tal como são acautelados pelas normas procedimentais que aquele instrumento contempla e cujo incumprimento deve constituir elemento do tipo.

Refira-se ainda que, não obstante a extensão da autorização legislativa, na parte referente à criação e tipificação do regime de responsabilidade criminal no domínio destas e de outras actividades relacionadas com armas de fogo, alguns aspectos específicos que carecem de ser acautelados não estarão perspectivados, porquanto decorrem do acolhimento de procedimentos legais ou administrativos previstos no Protocolo.

Dá-se conta, ainda, que a estrutura das infracções penais assenta, na mesma lei, em critérios de classificação das armas que não têm correspondência neste instrumento internacional e que, relativamente a algumas categorias de armas, bem como aos silenciadores, partes essenciais e munições, as molduras penais estabelecidas não permitirão a sua qualificação como infracções graves, nos termos e para os efeitos previstos na Convenção. Trata-
-se, porém, de matéria que releva de opções fundamentais de política criminal, pelo que se não nos oferece formular outras considerações, até porque o modelo adoptado não contende com o acolhimento da norma mínima estabelecida pelo Protocolo em matéria de criminalização, que encontrará correspondência nas infracções já previstas na lei de autorização legislativa, implementados que sejam os procedimentos de comunicação, autorização e marcação impostos.

Idêntica conclusão nos merecem as normas incriminadoras que abrangem o fabrico e o tráfico do material de guerra, fora das condições e das prescrições aplicáveis, as quais, como veremos, estão muito próximas das exigências do Protocolo.

5.5. Por fim, a última actividade ilícita prevista na norma de criminalização do Protocolo (consistente em falsificar, apagar, alterar ou retirar ilegalmente as marcas apostas de acordo com as exigências do protocolo) poderá subsumir-se, desde já, nos crimes de falsificação do Código Penal (“Danificação ou subtracção de documento e notação técnica”, previsto e punido pelo artigo 259º), subordinado à verificação do elemento subjectivo (intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo).

6. O artigo 6º do Protocolo prevê que, sem prejuízo do artigo 12º da Convenção[43], sejam adoptadas medidas que permitam a apreensão, declaração de perda e destruição das armas, partes, componentes e munições provenientes de fabrico e tráfico ilícitos.

O artigo 109º e seguintes do Código Penal prevê que os objectos que serviram para a prática de facto ilícito típico ou que constituem produto do mesmo sejam declarados perdidos a favor do Estado «quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos»; nos termos do nº 3, do mesmo artigo, o juiz poderá determinar a sua destruição ou que sejam postos fora do comércio se não for previsto outro destino especial[44].

E a lei de autorização legislativa reafirma que, em caso de condenação pela prática das respectivas infracções penais, será aplicável, para além de outras medidas, a perda das armas a favor do Estado.

Noutra perspectiva, o Regulamento respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Detenção, Uso e Porte de Armas e suas Munições prevê, no artigo 25º, que as armas e munições importadas que não correspondam aos tipos, modelos e calibres constantes da respectiva autorização de importação sejam apreendidas e declaradas perdidas a favor do Estado, ressalvando hipóteses de imediata reexportação, de interposição de recurso ou de pedido de rectificação em caso de modelos permitidos. Trata-se de uma medida cautelar, que vai ao encontro das exigências do Protocolo, embora uma completa conformação exija que o ordenamento jurídico interno consagre outras exigências, designadamente, quanto à marcação, quanto ao sistema de comunicações interestaduais e à obtenção das respectivas autorizações, com vista à integral correspondência dos conceitos de fabrico e de tráfico ilícitos, e ao consequente alargamento das hipóteses de apreensão e declaração de perda dos respectivos objectos, quer em sede administrativa quer em sede judicial.

Quanto ao destino dos objectos apreendidos, o Protocolo elege a destruição como destino preferencial, salvo se outro tipo de utilização for oficialmente autorizada, conquanto as armas tenham sido marcadas e os métodos para dispor delas e suas munições registados. Sendo certo que nem sempre a lei interna determina a destruição como destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado, haverá que acautelar, nestas hipóteses, a observância daqueles procedimentos e formalidades.


V

O Capítulo II do Protocolo, sobre “Prevenção”, prevê a implementação de um conjunto de medidas de controlo e segurança que têm como fim último permitir ou facilitar o controlo da circulação transfronteiriça das armas, suas partes, componentes e munições. A implementação de tais medidas dará corpo a um sistema cuja violação fundamenta as infracções estabelecidas.

1. O artigo 8º respeita à marcação, que constitui uma das medidas fulcrais desse sistema, permitindo a identificação e a localização das armas.

O Protocolo prevê a aposição de uma marca diferenciadora em cada arma de fogo, em três situações:

- no momento do fabrico (devendo esta marcação conter o nome do fabricante, o país ou local de fabrico e o número de série ou determinada conjugação de símbolo próprio e código que permita aos Estados Partes proceder à sua identificação);
- em caso de importação, ressalvando os casos de importações temporárias para fins lícitos (exigindo a indicação do país importador e, se possível, do ano de identificação);
- no momento da transferência da arma dos depósitos do Estado para utilização civil permanente (através de marcação única que permita reconhecer o país de transferência).

Conforme já referimos, o preceito regulamentar que, no plano interno, impõe também a marcação das armas de fogo, tem menor extensão e menor grau de exigência. De facto, para além de apenas impor a marcação no momento do fabrico, mesmo neste caso, fica aquém daquelas exigências pois dispensa de marcação as armas que sejam por si diferenciáveis e apenas exige a indicação das iniciais do fabricante e do número.

Nesta parte, o ordenamento jurídico interno não satisfaz, pois, integralmente, as exigências do Protocolo.

2. Outra medida de controlo que o artigo 9º do Protocolo estabelece consiste na desactivação das armas que, por serem consideradas insusceptíveis de utilização, poderão ser excluídas do respectivo universo de aplicação. Para tanto, exige-se que sejam observados procedimentos que garantam que tais armas e suas partes essenciais não poderão ser reactivadas, sugerindo-se, a título facultativo, alguns meios para alcançar esse objectivo.

Existindo na tipologia adoptada no direito ordinário categorias de armas susceptíveis de se enquadrar nesta previsão, mostra-se adequada a consagração de procedimentos, sobretudo de ordem técnica, que satisfaçam o objectivo de garantir a neutralização das armas e seus elementos essenciais. Quanto à eventualidade de incriminação de práticas de reactivação ilícita, sugerida a título facultativo, trata-se de uma opção de política criminal que se nos não oferece apreciar.

3. Outra das medidas previstas, que tem por objectivo permitir que os diversos Estados envolvidos tenham conhecimento das operações de tráfico transnacional das armas de fogo, suas partes, componentes ou munições, consiste no sistema de concessão de licenças ou autorizações de exportação, importação e trânsito, estabelecido no artigo 10º do Protocolo.

Este sistema baseia-se na obrigação que impende sobre o Estado exportador de, antes de autorizar a exportação, verificar se a importação foi autorizada pelo Estado importador e, ainda, se eventuais Estados de trânsito (aos quais deve ser dado conhecimento da operação) não se opuseram, por escrito.

As licenças e autorizações de importação e de exportação e a documentação que as acompanha devem conter os seguintes elementos: local e data de emissão, prazo de expiração da licença; indicação do país importador, do país exportador, dos países de trânsito, e do destinatário final; descrição e quantidade das armas, partes, componentes ou munições. Possibilita-se a adopção de procedimentos simplificados em caso de importações e exportações temporárias, ou de tráfico destinado a determinadas finalidades, tais como a caça, torneios, exposições, reparação, etc.

O Regulamento[45] que rege ainda esta matéria, ao nível interno, revela-se muito cauteloso e impõe procedimentos rigorosos sujeitos ao controlo, autorização e fiscalização das autoridades policiais.

Em notas gerais, os importadores de armas e munições devem estar habilitados para o exercício desse comércio (sendo exigidas licenças especiais no caso de importação de armas cujas características técnicas as torna mais perigosas), as importações devem ser requeridas e autorizadas pela PSP, mediante descrição dos artigos, indicação da origem, nome, marca do fabricante, características e quantidades, indicação dos números de alvará e registo do requerente naquela Polícia.

As obrigações impostas têm reflexos nos procedimentos alfandegários, já que as encomendas não podem ser passadas sem que tenha sido obtida a autorização de importação; a abertura das mercadorias é presenciada por um perito (geralmente daquela polícia) que procede ao preenchimento de um boletim de classificação contendo as características do material. As Alfândegas devem ainda guardar as autorizações de importação e elaborar mapas de importações a enviar à PSP.

A exportação e reexportação de armamento e munições exigem igualmente autorização da Direcção Nacional da PSP.

Disposições especiais regem a importação de armas de caça, de recreio e de defesa por particulares, para uso próprio, desde que munidos da respectiva licença de uso e porte, bem como das armas de valor estimativo em condições de poderem funcionar; normas especiais regem também as importações temporárias para turismo ou torneios, a importação de armas de caça por pessoal diplomático, bem como a importação de armas para amostra destinadas à aquisição pelas forças de segurança.

Por seu turno, nos termos estabelecidos pelo Decreto-Lei nº 327/98, de 17 de Dezembro[46], o exercício de actividade de importação, exportação e trânsito de armamento militar e de material de guerra exige autorização do Ministério da Defesa e credenciação de segurança nacional, ficando as entidades autorizadas sujeitas á fiscalização por departamento daquele Ministério. Por outro lado, o Decreto-lei nº 436/91, de 8 de Novembro, exige que a importação deste material seja titulada por um certificado internacional de importação (CII), a emitir pelo Ministério da Defesa, sempre que tal seja exigido pelo país exportador; já as operações de exportação e de reexportação estão sempre sujeitas à prévia emissão de um certificado internacional de exportação (CIE), que só será emitido face à correspondente certificação de importação emitida pelas autoridades do país importador, constituindo infracção criminal a realização da operação sem o competente CIE.

Em geral, os procedimentos vigentes acautelam os interesses de ordem interna, revelando-se até bastante rigorosos; no caso do armamento militar mostram-se conformes ao sistema previsto no Protocolo, com excepçãp apenas da parte referente às comunucações e autorizações de trânsito.

Contudo, a perspectiva da circulação transnacional que preside ao Protocolo, impõe a adopção de um sistema de controlo mais vasto, susceptível de acompanhar toda a movimentação da arma a partir do país exportador até ao país importador passando pelos países de trânsito.

Pela Lei nº 24/2004 ficou o Governo autorizado a definir e a estabelecer um novo regime jurídico referente à compra, venda, importação, exportação e transferência de armas e acessórios, sem outras especificações. Algumas referências feitas na exposição de motivos a experiências, realidades e recomendações que relevam no espaço comunitário, permitem supor que se não perspectiva a consagração de normas relativas à circulação de armas para além desse espaço.

A conformação do direito interno às exigências do Protocolo exige, pois, a implementação do sistema de comunicações e de autorizações de importação, exportação e trânsito, relativamente à circulação transnacional que envolva os Estados Partes neste instrumento de direito internacional.

Por outro lado, os procedimentos já existentes carecem de extensão às partes e componentes das armas, suscitando-se ainda a eventualidade de serem adoptados novos modelos de licenças que observem todas as exigências formais.

4. Por razões de ordem metodológica analisaremos agora o artigo 15º do Protocolo, referente à regulamentação da actividade dos “corretores”, que sugere a adopção de medidas tais como o registo, a licença ou autorização para o exercício da actividade, ou, em alternativa, a obtenção de informações sobre as licenças de importação e exportação e documentação que as acompanha, bem como sobre a identidade e localização dos corretores envolvidos nas transacções.

A actividade de corretagem corresponde à intervenção nos circuitos de transacção, ao nível da intermediação[47]. Porém, no nosso ordenamento jurídico a actividade de compra e venda de armas é reservada a estabelecimentos habilitados[48].

Os armeiros devem ser titulares de alvará de licença e estar inscritos como importadores-vendedores, ou apenas como vendedores, na Direcção Nacional da PSP, e estão sujeitos a diversas obrigações de registo, de elaboração de mapas de existências a enviar às entidades competentes e à sua fiscalização; as respectivas licenças são objecto de renovação anual. O comércio de armamento militar e de material de guerra está igualmente sujeito a autorização e fiscalização do Ministério da Defesa, bem como a uma credenciação de segurança nacional.

Também na lei de autorização legislativa se prevê a definição dos tipos de alvarás de armeiro para o exercício da actividade de fabrico, compra, venda ou reparação das armas e suas munições, bem como a fixação do regime jurídico relativo à concessão, renovação, caducidade, cedência e cassação desses alvarás.

Mostram-se, pois, acauteladas as exigências do Protocolo nesta matéria.

5. O Capítulo II do Protocolo contém ainda um conjunto de outras normas que se apresentam como directrizes, orientações a serem tomadas em consideração nas decisões políticas, nos processos legislativos, na actividade administrativa.

Tais normas, visando o mesmo fim de prevenção do fabrico e tráfico ilícitos, assumem uma natureza eminentemente programática postulando parâmetros de actuação eficazes e conformes ao ideário prosseguido pelo Protocolo.

Aqui se incluem os preceitos que visam o aumento de eficácia do controlo das principais movimentações, sobretudo nas fronteiras, ou a adopção de regras de segurança das armas, suas partes, componentes e munições, em momentos essenciais (fabrico, importação, exportação e trânsito) - artigo 11º - ou ainda o incentivo à adesão e à cooperação dos particulares que participam licitamente nestas actividades.

Do mesmo modo, os preceitos referentes a cooperação e troca de informações entre Estados (ressalvadas, no último caso, as disposições de direito interno e administrativo), tendo em vista a partilha de conhecimentos e a cooperação tendente à prevenção e combate das actividades ilícitas e à localização das armas, com designação de um organismo centralizador ou de um ponto de contacto (artigos 12º e 13º), bem como os preceitos referentes a formas específicas de cooperação em matéria de formação e assistência técnica e que visam os mesmos objectivos globais (artigo 14º). Trata-se de medidas que relevam sobretudo no plano da prevenção, e não tanto no domínio específico da cooperação judiciária relativamente a processos ou investigações concretas, e que se conformam com os princípios acolhidos na ordem interna e em diversos instrumentos internacionais.

Uma menção particular nos merece a matéria do artigo 7º, sobre “Conservação da informação”, que estabelece a obrigação de os Estados Partes conservarem, durante um período mínimo de 10 anos, informações pertinentes relativas às armas de fogo e, se possível, às suas partes, componentes e munições, e que devem incluir elementos fornecidos pela marcação e pelas licenças ou autorizações de importação e de exportação, em caso de transacções internacionais. Mais uma vez se realça a necessidade de implementação desses procedimentos administrativos, na ordem interna, como condição de compatibilização com o sentido do protocolo e de conformação com o seu normativo.

6. Conforme se referiu o capítulo III - “Disposições finais” - contém regras de estilo, de conteúdo usual nestes instrumentos normativos, sobre “Resolução de diferendos”, “Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão”, “Entrada em vigor”, “Alterações”, “Denúncia”, “Depositário e línguas”, que não nos merecem particular referência.


VI

Face ao exposto, conclui-se:

1ª) Não se suscitam obstáculos de natureza jurídico-
-constitucional à ratificação do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, relativo ao Fabrico e Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições;

2ª) A criminalização do fabrico e tráfico ilícitos, nos termos estabelecidos no Protocolo, exige a adopção dos respectivos procedimentos e do sistema de autorizações de importação, exportação e trânsito, no caso de circulação transnacional, e implica alterações no actual regime sancionatório;

3ª) A eventual ratificação do Protocolo reclama ainda as adaptações legislativas e as prescrições administrativas casuisticamente referidas no parecer.






Lisboa, 22 de Outubro de 2004


A Procuradora-Geral Adjunta,


(Maria de Fátima da Graça Carvalho)






[1] Ofício nº 2383, de 24 de Setembro de 2003, processo nº 3212/2002.
[2] Parecer nº 146/2001, de 16 de Maio de 2002.
[3] Decreto nº 19/2004, de 2 de Abril.
[4] Segundo o Guia Legislativo relativo à ratificação deste Protocolo (Nações Unidas, Centro para a Prevenção do Crime, Viena, Maio de 2003, publicação do GRIEC do Ministério da Justiça), tendo presentes os trabalhos preparatórios, esta expressão é utilizada com o sentido de «com as alterações exigidas pelas circunstâncias» ou «com as alterações necessárias». Acrescenta-se que «as disposições da Convenção aplicadas ao Protocolo em virtude deste artigo serão alteradas ou interpretadas, de modo a ter quanto ao fundo o mesmo sentido ou o mesmo efeito tanto no Protocolo como na Convenção», e que. os termos utilizados numa e noutro devem ter o mesmo significado; aponta-se, ainda, para a necessária coordenação na redacção das leis nacionais de implementação «por forma a evitar que existam diferenças e incoerências susceptíveis de prejudicar a sua eficácia».
[5] Guia legislativo, página 9.
[6] Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis nº 2/90, de 20 de Janeiro, nº 23/92, de 20 de Agosto, nº 10/94, de 5 de Maio, nº 33-A/96, de 26 de Agosto, nº 60/98, de 27 de Agosto (pela qual foi adoptada a designação Estatuto do Ministério Público).
[7] Para uma Política Criminal Europeia, Coimbra Editora, 2002, página 15.
[8] Alterada pela Lei nº 104/2001, de 25 de Agosto, e pela Lei nº 48/2003, de 22 de Agosto.
[9] Alterado pelos Decretos-Leis nº 1/79, de 8 de Janeiro, nº 327/79, de 24 de Agosto, nº 432/83, de 14 de Dezembro, nº 385/84, de 5 de Dezembro, pela Lei nº 22/97, de 27 de Junho, e pelo Decreto-Lei nº 258/2002, de 23 de Novembro.
[10] Alterado pelos Decretos-Leis nº 651/75, de 19 de Novembro, nº 328/76, de 6 de Maio, nº 462-A/76, de 9 de Junho, nº 237/82, de 19 de Junho e nº 400/82, de 23 de Setembro.
[11] Alterou o regime de uso e porte de arma. Rectificada pela Lei nº 93-A/97, de 22 de Agosto e alterada pelas Leis nº 29/98, de 26 de Junho, e nº 98/2001, de 25 de Agosto.
[12] Criminaliza condutas susceptíveis de criar perigo para a vida e integridade física decorrentes do uso e porte de armas e substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos no âmbito de realizações cívicas, políticas, religiosas, artísticas, culturais ou desportivas.
[13] Entre outros, o Decreto-Lei nº 521/71, de 24 de Novembro, que estabelece o regime de polícia da produção, comércio, detenção, armazenagem e emprego de armamento, munições e substâncias explosivas, e o Decreto-Lei nº 49439, de 15 de Dezembro de 1969, sobre a entrada de armas pertencentes a turistas que se desloquem a Portugal para a prática de caça ou para participação em torneios de tiro a chumbo.
[14] Proposta de lei nº 121/IX/2, Diário da Assembleia da República, II Série A, de 3 de Abril de 2004.
[15] Pelo Aviso de 8 de Novembro de 1986 foi tornado público que Portugal ratificou a referida Convenção, com reservas, em 2 de Outubro do mesmo ano.
[16] A directiva não se aplica à aquisição e detenção de armas e munições pelas forças armadas, pela polícia ou pelos serviços públicos, nem às transferências comerciais de armas e munições de guerra. Excluída está também a aplicação a coleccionadores e organismos com vocação cultural na matéria, devidamente reconhecidos.

[17] Aprovado para adesão por Resolução da Assembleia da República nº 35/93, e ratificado por Decreto do Presidente da República nº 55/93. Publicado no Diário da República, I Série A, de 25 de Novembro de 1993.
[18] Neste sentido, cfr. Guia Legislativo citado, página 10.
[19] Nos termos do artigo 3º, nº 2, da Convenção, a infracção será de carácter transnacional se: a) for cometida em mais de um Estado; b) for cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, planeamento, direcção e controlo tenha lugar noutro Estado; c) for cometida num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique actividades criminosas em mais de um Estado; d) for cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais noutro Estado.
[20] Grupo criminoso organizado é definido no artigo 2º, alínea a) da Convenção como «um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e actuando concertadamente com o propósito de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material».
[21] Armas brancas são «aquelas que se confeccionam a partir do aço polido e que ferem com a ponta ou o gume, impulsionadas unicamente pela força do braço (...)» - SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, 1996, volume II, página 832.
[22] No conceito de armas de defesa, definido pelo artigo 1º da Lei nº 22/97, de 27 de Junho, cabem :
a) As pistolas até calibre 7,65 mm, inclusive, cujo cano não exceda 10 cm;
b) As pistolas até calibre 6.35 mm, inclusive, cujo cano não exceda 8 cm;
c) Os revólveres de calibre não superior a 7.65 mm (= ,32”) cujo cano não exceda 10 cm;
d) Os revólveres de calibre não superior a 9 mm (= ,38”), cujo cano não exceda 5 cm.»
De acordo com o nº 2 do mesmo preceito só podem ser emitidas licenças de uso e porte de arma, pela Direcção Nacional da PSP, relativamente às armas referidas nas alíneas b) e c), e desde que o requerente satisfaça, cumulativamente, as seguintes condições: ser maior de 21 anos de idade, encontrar-se no uso de todos os direitos civis e políticos, carecer da licença, por razões profissionais ou de defesa pessoal, não ter sido condenado por determinados tipos de crimes, designadamente por infracções relacionadas com estupefacientes ou condução com álcool, submeter-se a testes e exames médicos, psicotécnicos e periciais.
[23] São armas de caça as espingardas de um ou mais canos, de alma lisa ou sistema Pandox , com destino venatório ou outro permitido pelo Regulamento. São armas de precisão as carabinas, pistolas ou revólveres de cano estriado, com qualquer calibre e destinadas a determinadas entidades. São armas de recreio as carabinas, pistolas ou revólveres sistema Flaubert e outras, de calibre não superior a 9 mm, com determinadas características.
[24] São consideradas armas de ornamentação aquelas que, independentemente do modelo ou calibre, se encontrem fora de uso e sejam insusceptíveis de serem usadas, bem como as armas de fogo antiquadas, artísticas ou gentílicas, desde que sejam exclusivamente utilizadas na decoração ou façam parte de colecções.
[25] São consideradas de valor estimativo as armas de fogo que, independentemente do modelo e calibre, estão desacompanhadas de munições e cuja conservação foi requerida por motivos atendíveis.
[26] O artigo 7º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, procede ao elenco do material de guerra para efeitos de aplicação do mesmo Código, e inclui, na alínea a), «as armas de fogo portáteis e automáticas, tais como espingardas, carabinas, revólveres, pistolas, pistolas-metralhadoras e metralhadoras, com excepção das armas de defesa, caça, precisão e recreio, salvo se pertencentes ou afectas às Forças Armadas ou outras forças militares» e, na alínea c), as munições destinadas àquelas armas.
[27] De cano de alma estriada de calibre superior a 12,7mm e de cano de alma lisa de calibre superior a 20mm.
[28] Pretende-se afastar a anterior classificação entre armas de guerra, de defesa, de caça e de recreio, bem como o agrupamento baseado na fixação de um calibre e de um comprimento de cano máximos.
[29] Cfr. nota 26.
[30] Pelo artigo 82º do Código de Justiça Militar - “Comércio ilícito de material de guerra” - é punível com as penas previstas para o crime de furto de material de guerra «Aquele que importar, guardar, comprar, vender ou puser à venda, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo material de guerra, conhecendo essa qualidade e sem que para tal esteja autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente...». O artigo 14º, do Decreto-Lei nº 436/91, de 8 de Novembro, prevê e pune a exportação do equipamento, produtos e tecnologias que possam pôr em causa a defesa ou os interesses estratégicos nacionais (em que se inclui o material de guerra) sem o necessário certificado internacional de exportação.
[31] Cfr. nota 27.
[32] Armas de modelo ou ano de fabrico anterior a 1870, que não possam usar munições destinadas aos dois primeiros grupos de armas, bem como as respectivas réplicas que não permitam utilização de cartucho com invólucro metálico e aquelas que se tornaram impróprias para o tiro de quaisquer munições (situação que deve ser confirmada através de processos técnicos).
[33] Alterado pela Lei nº 164/99, de 14 de Setembro.
[34] Artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro, alterado pelo artigo 5º, da Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, artigo 1º da Lei nº 10/2002, de 11 de Fevereiro; no âmbito da 16ª alteração do Código Penal, pela Lei nº 11/2004, de 27 de Março, que aditou o artigo 368º-Aº -“Branqueamento” - o tráfico de armas é um dos crimes relativamente aos quais as vantagens provenientes da prática dos respectivos factos ilícitos típicos, relevam para o preenchimento daquele ilícito.
[35] O artigo 4º do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que aprovou o Código Penal, dispõe que «Para efeito do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.»
[36] Cfr. MAIA GONÇALVES, Código Penal Português, Anotado e comentado,16ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, página 861.
[37] Manteve-se, contudo, a polémica que vinha de trás e que daria origem ao assento do STJ nº 3/97, de 6 de Fevereiro, publicado no Diário da República, I Série- A, de 5 de Março de 1997, que firmou a seguinte jurisprudência: «A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6.35 mm não manifestada nem registada não constitui o crime previsto e punido pelo artigo 275º, nº 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, norma que fez caducar o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989».
[38] Prevê-se a punição com pena de prisão até cinco anos ou até três anos, de acordo com as características técnicas das armas e respectiva perigosidade (bem como com a circunstância de o agente estar ou não autorizado à sua detenção, uso ou porte); as actividades ilícitas referentes às partes essenciais, silenciadores e munições são puníveis com pena de prisão até três anos.
[39] Após sucessivas alterações, introduzidas pelas Leis nº 65/98, de 2 de Setembro, e pela Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto.
[40] PAULA RIBEIRO DE FARIA, em anotação ao artigo 275º, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, tomo II, página 891.
[41] O fabrico consiste numa «actividade desenvolvida a nível artesanal ou industrial traduzida no confeccionar, construir, produzir de uma forma permanente ou esporádica, quantidades mais ou menos relevantes destes produtos» (CARLO MOSCA, citado na obra e local citados na nota anterior).
A importação pressupõe uma actividade comercial e consiste na «aquisição no exterior e posterior transporte para o país» (SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, 1996, volume II, página 822).
A distribuição consiste num «acto de natureza económica pelo qual alguém lança nos circuitos comerciais determinado produto com a intenção de o fazer chegar aos consumidores finais».O transporte, consiste na «operação de transferência de um local para o outro», o que permite enquadrar neste conceito a «passagem de armas pelo território nacional com destino a outro país» (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, página 896).
[42] Cfr. nota anterior.
[43] O artigo 12º da Convenção prevê que os Estados adoptem medidas que permitam o confisco do produto dos crimes especialmente previstos na Convenção ou dos bens equivalentes ou dos instrumentos desses crimes, na medida em que o seu ordenamento jurídico o permita.
[44] Acresce que a Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, prevê um regime especial de recolha de provas, de quebra do segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado relativamente a um elenco de crimes em que se inclui o tráfico de armas, consagrando a presunção (ilídivel pelo arguido) de constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e o que seja congruente com o seu rendimento lícito, sendo declarado perdido a favor do Estado esse excesso, em caso de condenação do arguido, transitada em julgado.
[45] Regulamento Respeitante ao Fabrico, Importação, Comércio, Manifesto, Uso e Porte de Armas e suas Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 37313, de 21 de Fevereiro de 1949.
[46] Alterado pela Lei nº 153/99, de 14 de Setembro.
[47] No Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa um dos significados do termo corretor é o de «agente comercial que serve de intermediário entre comprador e vendedor».
[48] A troca, venda ou cedência a qualquer título, de armamento devidamente legalizado, pelo seu detentor, é permitida relativamente a pessoas a quem a lei permita o uso e porte ou a simples detenção, mas o vendedor está obrigado a requerer a competente autorização à entidade que emite as licenças.
Anotações
Legislação: 
L 144/99 DE 1999/08/31 ART7
L 24/2004 DE 2004/06/25
DL 37313 DE 1949/02/21
DL 207-A/75 DE 1975/04/17 ART2 ART3
CP82 ART109 ART259 ART275 ART368-A
DL 48/95 DE 1995/03/15 ART4
L 22/97 DE 1997/06/27
L 8/97 DE 1997/04/12
DL 399/93 DE 1993/12/03
L 5/2002 DE 2002/01/11
DL 325/95 DE 1995/12/02
DL 396/98 DE 1998/12/17
DL 397/98 DE 1998/12/17
DL 436/91 DE 1991/11/08
CJM2003 ART7 ART82
Referências Complementares: 
DIR INT PUBL * DIR TRAT * DIR PENAL INT*****
DIR CONS CEE 91/477 DE 1991/06/18*****
CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL, PROTOCOLO ADICIONAL RELATIVO À PREVENÇÃO, À REPRESSÃO E À PUNIÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS, EM ESPECIAL DE MULHERES E CRIANÇAS, E PROTOCOLO ADICIONAL CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE MIGRANTES POR VIA TERRESTRE, MARÍTIMA E AÉREA (IN RAR 32/2004 E DPR 19/2004 DE 2004/04/02)
CONVENÇÃO EUROPEIA SOBRE O CONTROLE DA AQUISIÇÃO E DETENÇÃO DE ARMAS DE FOGO POR PARTICULARES (IN D GOVERNO 56/84 DE 1984/09/28 E AV DE 1986/11/08)
PROTOCOLO DE ADESÃO AO ACORDO RELATIVO À SUPRESSÃO GRADUAL DOS CONTROLOS NAS FRONTEIRAS COMUNS E ACORDO DE ADESÃO À CONVENÇÃO DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE SCHENGEN (IN RAR 35/93 E DPR 55/93 DE 1993/11/25 -CAPÍTULO VII ART77 E SEGUINTES)
Divulgação
13 + 1 =
Por favor indique a resposta à questão apresentada para descarregar o pdf