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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
40/1990, de 07.11.1991
Data do Parecer: 
07-11-1991
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Maioria
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério das Finanças
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
DIRECÇÃO GERAL DO TESOURO
CONCURSO DE CREDORES
CAIXA GERAL DE DEPOSITOS
PREFERENCIA DE CREDITO
SEGURANÇA SOCIAL
SUB-ROGAÇÃO
CONCESSÃO DE AVAL
PRIVILEGIO CREDITORIO
AVAL DO ESTADO
PRIVILEGIO MOBILIARIO GERAL
CREDITO DO ESTADO
FIANÇA
FIADOR
CREDITO FISCAL
HIPOTECA
GRADUAÇÃO
PENHOR
REPRESENTAÇÃO DO ESTADO
CREDITO
MINISTERIO PUBLICO
CREDOR
REMISSÃO
FICÇÃO LEGAL
NORMA INCOMPLETA
CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
CONFLITO DE INTERESSES
Conclusões: 
1 - De harmonia com a Lei n 1/73, de 2 de Janeiro, o aval prestado a financiamentos concedidos pela Caixa-Geral de Depositos, ou outras instituições de credito, a empresas privadas reveste a natureza de garantia pessoal e acessoria, mediante a qual o Estado avalista assume, perante a instituição credora, o dever de efectuar a prestação debitoria ou a parte da prestação debitoria garantida, no caso de incumprimento do devedor;
2 - Prestado aval apenas a uma fracção da divida, o Estado, satisfazendo a Caixa a parte garantida, verificado o incumprimento, cumpre tudo a quanto se obrigou, ficando desonerado em face daquela e sub-rogado nos seus direitos frente ao devedor (artigo 592, n 1, do Codigo Civil e Base XII, n 2, da Lei n 1/73);
3 - A prestação nestas condições realizada, consubstanciando todo o objecto da obrigação impendente sobre o Estado e o respectivo adimplemento ponto por ponto, não traduz mero cumprimento parcial e, portanto, parcial satisfação dada ao credor, no sentido do artigo 593, n 2, do Codigo Civil, pelo que a sub-rogação não se representa como um caso da hipotese configurada neste artigo;
4 - Merce da sub-rogação, transfere-se para o Estado a titularidade do credito na parte garantida e solvida, assim como as garantias e outros acessorios do direito transmitido (artigos 593, n 1, e 582, n 1, e 594, conjugados, do Codigo Civil, e Base XII, n 2, da Lei n 1/73), tal o penhor originalmente constituido a favor da Caixa para garantia da obrigação principal;
5 - O credito advindo a titularidade do Estado por via da sub-rogação fica, ademais, garantido por privilegio mobiliario geral sobre os bens do devedor, nos termos da Base XII, n 2, da Lei n 1/73;
6 - O aludido credito do Estado, dotado deste privilegio, gradua-se, por força da remissão ditada pela citada Base XII, n 2, para o artigo 747, n 1, alinea a), do Codigo Civil, com os creditos por impostos e no mesmo lugar destes;
7 - Os creditos por contribuições a Segurança Social beneficiam de privilegio mobiliario geral, graduando-se logo apos os creditos referidos na alinea a) do n 1 do artigo 747 do Codigo Civil (artigo 10, n 1, do Decreto-Lei n 103/80, de 9 de Maio), mas com preferencia a qualquer credito pignoraticio, ainda que o penhor tenha sido anteriormente constituido;
8 - Nos termos dos preceitos conjugados do artigo 10, n 1, do Decreto-Lei n 103/80, e da Base XII, n 2, da Lei n 1/73 - que reconhece aos creditos do Estado resultantes da execução de avales a mesma dignidade e grau concursual dos creditos fiscais -, os creditos privilegiados da Segurança Social, conforme a anterior conclusão 7, são graduados logo a seguir aos creditos fiscais e aos creditos de avales do Estado;
9 - Em homenagem a ordem e gradação de valores perfilhada pela lei e tornada subjacente ao artigo 10 do Decreto-Lei n 103/80, os creditos privilegiados de impostos e de avales do Estado preferem aos creditos privilegiados da Segurança Social e estes aos creditos pignoraticios, cedendo os ultimos, por seu turno, perante essas duas classes de creditos, seja o concurso de credores concretamente extensivo a todas as aludidas modalidades ou so a algumas delas;
10- A figura do conflito ou colisão de interesses entre representante e representado, impondo a limitação, diversificação ou exclusão da representação confiada, define-se pela existencia de um perigo de dano a que o representado e exposto na eventualidade de o representante, prosseguindo o interesse contrario, não cuidar de modo exclusivo o interesse daquele;
11- Verifica-se um semelhante conflito na hipotese de a Caixa-Geral de Depositos, ou outra instituição de credito, assumir a representação do Estado ao abrigo do artigo unico do Decreto-Lei n 608/76, de 24 de Julho, quando os dois entes hajam de intervir em concurso de credores nas posições delineadas nas anteriores conclusões 1 a 9, devendo em tal situação ser a representação exercida pelo Ministerio Publico.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Secretário de Estado do
Tesouro,
Excelência:






I

A Direcção-Geral do Tesouro e a Caixa-Geral de Depósitos sustentam pontos de vista divergentes acerca da posição relativa - na perspectiva de concurso ao património do devedor comum - do crédito do Estado emergente da satisfação de aval concedido ao abrigo da Lei nº 1/73, de 2 de Janeiro, e de créditos da instituição financiadora e da Segurança Social.

Com vista à resolução do dissídio dignou-se Vossa Excelência solicitar o parecer deste corpo consultivo, que por isso cumpre emitir.

II
1. Precisando os termos da controvérsia, figure-se a concessão de meios financeiros pela Caixa a determinada empresa - em veste de mútuo, abertura de crédito, ou outro contrato de que resulte para a empresa a obrigação de pagar ou restituir o montante recebido -, garantidos por penhor na sua globalidade e, ainda, numa fracção do respectivo montante, por aval do Estado.

Incumprida a obrigação e honrado o aval, defende aquela instituição que o seu crédito, na parte não garantida e, portanto, não solvida pelo Estado, prefere ao crédito surgido na esfera do avalista mercê do pagamento efectuado.

A solução tem-se, aliás, por incontroversa no caso de concurso restrito, relevantemente, ao Estado e à Caixa-Geral de Depósitos.

Consoante a opinião desta, o crédito do primeiro encontra a sua fonte, na hipótese configurada, em sub-rogação à originária posição da Caixa, mediante a qual adquire, pois, o Estado os respectivos direitos em relação ao devedor nos termos dos artigos 592º, nº 1, 593º, nº 1, e 582º, este aplicável por força do artigo 594º, todos do Código Civil (1(1Transcrevem-se, por comodidade de leitura, os preceitos citados:
"Artigo 592º
(Sub-rogação legal)
1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito.
2. Ao cumprimento é equiparada a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação ou outra causa de satisfação do crédito compatível com a sub-rogação.

"Artigo 593º
(Efeitos da sub-rogação)
1. O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.
2. No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.
3. Havendo vários sub-rogados, ainda que em momentos sucessivos, por satisfações parciais do crédito, nenhum deles tem preferência sobre os demais.

"Artigo 594º
(Disposições aplicáveis)
É aplicável à sub-rogação, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 582º a 584º.

"Artigo 582º
(Transmissão de garantias e outros acessórios)
1. Na falta de convenção em contrário, a cessão de crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.
2. A coisa empenhada que estiver na posse do cedente será entregue ao cessionário, mas não a que estiver na posse de terceiro.".

Como, porém, a "sub-rogação é parcial" e "não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada" (artigo 593º, nº 2), daí que o credor originário e o sub-rogado se não encontrem em pé de igualdade qualitativa quando tenham de concorrer ao património do devedor sobrevindo execução ou qualquer outra forma de liquidação desse património: o credor originário goza de "preferência" sobre o credor parcialmente sub-rogado; aquilo que for afecto ao pagamento do crédito destina-se, portanto, em primeiro lugar à Caixa e só o excedente, se o houver, aproveitará ao Estado.

É certo que, além dos direitos que ao Estado advêm por via sub-rogatória, ele goza ainda, autonomamente, do privilégio concedido pela Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73, de 2 de Janeiro (2(2Do seguinte teor:
"Base XII
1. (...)
2. Além das garantias que em cada caso forem estipuladas, o Estado goza, sobre os bens das empresas privadas a que tenha concedido aval, de privilégio creditório, nos termos dos artigos 735º, nº 2, e 747º, nº 1, alínea a), do Código Civil, pelas quantias que efectivamente tiver despendido a qualquer título, em função do aval prestado ao abrigo deste diploma".

Os citados normativos do Código Civil dispõem, por seu turno:
"Artigo 735º
(Espécies)
1. São de duas espécies os privilégios creditórios: mobiliários e imobiliários.
2. Os privilégios mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente; são especiais quando compreendem só o valor de determinados bens móveis.
3. Os privilégios imobiliários são sempre especiais.

"Artigo 747º
(Ordem dos outros privilégios)
1. Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais.
b) (...)
c) (...)
d) (...)
e) (...)
f) Os créditos com privilégio mobiliário geral, pela ordem segundo a qual são enumerados no artigo 737º.
2. (...)".
, mas tal privilégio creditório mobiliário geral cede perante o penhor de que é titular a Caixa, nos termos do artigo 749º do Código Civil (3(3Reproduza-se desde já também esta norma:

"Artigo 749º
(Privilégio geral e direitos de terceiro)
O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.".

Isto, portanto, nas relações exclusivas entre o Estado e a Caixa.

Mas, mesmo noutras situações em que o concurso se torna extensivo a créditos da Segurança Social, idêntica posição de prevalência é reivindicada pela Caixa-Geral de Depósitos, enquanto credor pignoratício, relativamente ao Estado.

A especificidade destes casos reside no facto de os créditos da Segurança Social pelas contribuições respectivas gozarem, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio (4(4Transcreva-se o dispositivo em causa, cujo teor vem do antecedente artigo 1º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho:

"Artigo 10º
(Privilégio mobiliário)
1- Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.
2- Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.", de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil, com primazia sobre qualquer crédito garantido por penhor, ainda que constituído anteriormente (5(5Discutiu-se, aliás, o ponto de saber se a preferência assim criada valia só quanto aos penhores constituídos posteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 103/80, ou também quanto aos constituídos em data anterior. Prevaleceu, ao que se afigura, a segunda tese, que pode ver-se representada, v.g., por JOSÉ DA SILVA PAIXÃO, Falência. Graduação de créditos, "Colectânea de Jurisprudência", Ano X (1985), tomo I, págs. 355 e ss., e pelos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Abril de 1984 (Pleno), "Boletim do Ministério da Justiça", nº 336, págs. 412 e ss., e de 17 de Outubro de 1984, "Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo", Ano XXIV (1985), nº 279, págs. 294 e ss.
A questão não vem de qualquer modo aflorada na consulta, sendo por isso irrelevante no âmbito do presente parecer..

Pois bem. Por virtude desta norma, se o Estado concorrer só com a Segurança Social prefere o crédito daquele. Tal como, se com a Segurança Social concorresse apenas a Caixa, prevaleceria o crédito da primeira.

Já na hipótese de concurso entre os créditos das três entidades considera a Caixa que o da Segurança Social se gradua em primeiro lugar (artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80), o seu em segundo (artigos 593º, nº 2, e 749º do Código Civil, como há pouco vimos) e o do Estado em terceiro.

Com efeito, pondera existir, no tocante a este concurso, uma lacuna gerada por falta de regra especificamente aplicável, cuja solução deve buscar-se, de acordo com o nº 3 do artigo 10º do Código Civil, "dentro do espírito do sistema", tendo em atenção a "natureza das normas em confronto e os interesses que tutelam", para, "em função deles, fazer prevalecer umas em detrimento das outras, assim se afastando a colisão resultante da sua aplicação cumulativa".

Nesta filosofia, entende a Caixa fazer prevalecer, primeiramente, as "normas dispositivas" dos artigos 593º, nº 2, e 749º do Código Civil, e do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, sobre o preceito de "natureza puramente instrumental" do artigo 747º daquele Código, assim definindo a preeminência do seu crédito e do crédito da Segurança Social sobre o do Estado.

As posições relativas dos dois créditos preferentes são, em seguida, delineadas pela prevalência da "norma excepcional" do artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 103/80 sobre a norma geral do artigo 749º do Código Civil, com a consequente graduação em primeiro lugar da Segurança Social (6(6A Caixa observa, no entanto, que a prevalência da Segurança Social por força do citado artigo 10º, nº 2 apenas se encontra definida relativamente ao penhor. Nos casos, portanto, em que a Caixa seja credora hipotecária, muito embora a garantia recaia, por exemplo, sobre bens móveis legalmente "equiparados a imóveis" (automóveis, barcos, aviões), já a mesma norma, visto o seu carácter excepcional e a consequente impossibilidade de aplicação analógica (artigo 11º do Código Civil), não poderá ser chamada à colação em detrimento da Caixa.
Razão por que, consentaneamente, a graduação dos três créditos seria a seguinte: a Caixa em primeiro lugar como credora hipotecária, o Estado em segundo e a Segurança Social em terceiro lugar.
Na economia da consulta, tal como a entendemos, a questão é, todavia, marginal, pelo que não será objecto de específico tratamento e de um compromisso formal. Pensar-se-á, em todo o caso, não haver que ponderar a aplicação analógica do artigo 10º, nº 2 porque, referindo este apenas o penhor, nem por isso há lacuna quanto às hipotecas, as quais contam com normas específicas definindo as relações entre elas e as demais garantias, tais os privilégios..


2. Perante a tomada de posição da Caixa-Geral de Depósitos, que acaba de se expor, entendeu Vossa Excelência ouvir a Auditoria Jurídica, a qual veio a subscrevê-la, aderindo à respectiva argumentação e conclusões.


3. Entendimento diverso na essência perfilhava, porém, a Direcção-Geral do Tesouro.

No concernente ao concurso entre a Caixa e o Estado admite já, hesitando, embora, a preferência do Estado.

Com o seguinte argumento.

Se, nos termos do artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 103/80, o crédito privilegiado da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício da Caixa e se, conforme o nº 1 do mesmo artigo, o crédito da Segurança Social cede o passo ao crédito do Estado, logo, por maioria de razão, deve este crédito prevalecer sobre o crédito da Caixa.


É, contudo, no caso de concurso alargado à Segurança Social que colhe plenamente similar ordenação recíproca dos créditos, motivando a Direcção-Geral do Tesouro a discordar, agora decididamente, da graduação, contrária à lei, ensaiada pela Caixa e a perfilhar a única alternativa conforme ao artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80 - cuja qualificação como norma excepcional, antes que especial, aliás, repudia -, que concede a preferência, sucessivamente, ao Estado e à Segurança Social sobre a Caixa-Geral de Depósitos.


Tais os termos da controvérsia colocada por Vossa Excelência à nossa apreciação.


III

Abordemos em primeiro lugar a matéria dos avales do Estado, dado o seu interesse para a compreensão da genética e conformação dos créditos cuja graduação, em determinados concursos de credores, vem debatida, pesem embora limitações, como se verá, derivadas da carência de elementos essenciais à sua análise jurídica.


Trata-se de temática já estudada no seio deste corpo consultivo, pelo que vamos prevalecer-nos também de subsídios colhidos nas respectivas investigações.


1. Escreveu-se no parecer nº 25/88 (7(7De 24 de Maio de 1989, "Diário da República", II Série, nº 196, de 25 de Agosto de 1990; cfr. também o ponto 4. do parecer nº 220/81, de 28 de Abril de 1983, "Diário" citado, II Série, nº 4, de 5 de Janeiro de 1984, e "Boletim do Ministério da Justiça", nº 332, págs. 165 e ss., após sumário incurso histórico no regime jurídico dos avales do Estado anterior à Lei nº 1/73, de 2 de Janeiro:

"Mediante a Lei nº 1/73 - que particularmente nos interessa - pretendeu-se remodelar o regime de prestação dos avales, permitir a extensão da medida a operações de carácter interno, melhorar o elenco de garantias mínimas que protejam adequadamente o Estado, crescentemente chamado a intervir como dador de avales, simplificando e prestando segurança ao sistema."

No intuito de dar consecução a semelhantes desideratos, aliás expressivamente salientados na exposição de motivos da proposta de lei respectiva (8(8Proposta com o nº 20/X - na versão da Câmara Corporativa; parece que teria antes o nº 21/X, a fazer fé da intervenção do deputado ROBOREDO E SILVA na pág. 3902 do "Diário das Sessões" da Assembleia Nacional, nº 197, de 22 de Novembro de 1972 -, embrião da Lei nº 1/73, cujo texto pode ver-se nas "Actas da Câmara Corporativa", X Legislatura, nº 86, de 19 de Janeiro de 1972. O parecer desta Câmara, nº 40/X, de 24 de Abril de 1972, acerca da proposta, encontra-se no "Diário das Sessões", nº 193, 4º Suplemento, de 10 de Maio de 1972, e nos "Pareceres da Câmara Corporativa" (X Legislatura), Ano de 1972 (vol. III), Lisboa, 1973, págs. 235 e ss. A discussão e aprovação parlamentares constam, por seu turno, do "Diário das Sessões", nº 196, de 17 de Novembro, págs. 3896 e s., nº 197, de 22 de Novembro, págs. 3902 e ss., nº 198, de 23 de Novembro, págs. 3915 e ss., e nº 199, de 24 de Novembro de 1972, págs. 3936 e ss. Tudo elementos sem interesse relevante no domínio da consulta., a Base I, introduzindo o Capítulo I ("Da concessão de avales do Estado por acto administrativo"), autoriza o Ministro das Finanças "a prestar, por uma ou mais vezes, o aval do Estado a operações de crédito interno ou externo a realizar pelas províncias ultramarinas, por institutos públicos ou por empresas nacionais".

"O aval será prestado - acrescenta a Base II, nº 1 - apenas quando se trate de financiar empreendimentos ou projectos de manifesto interesse para a economia nacional, ou em que o Estado tenha participação que justifique a prestação dessa garantia e, em qualquer caso, se verifique não poder o financiamento realizar-se satisfatoriamente sem o referido aval".

Ademais, se "a operação de crédito for proposta por empresa privada, o aval somente poderá ser concedido após verificação de que a empresa oferece segurança suficiente para fazer face às responsabilidades que pretende assumir, designadamente pelas suas características económicas, estrutura financeira e orgânica administrativa" (Base II, nº 2).

O nº 3 da mesma Base II estabelece, aliás, uma importante limitação de competência no tocante à possibilidade de o Estado se obrigar mediante a concessão de avales, ao dispor que a "responsabilidade em capital decorrente para o Estado dos avales prestados ao abrigo da autorização concedida pela base anterior não excederá a quantia que for fixada pelo Conselho de Ministros para os Assuntos Económicos sobre proposta do Ministro das Finanças".

"Plafond" para cujo efeito são imediatamente contadas as "responsabilidades actuais do Estado, em capital, decorrentes da concessão de avales a operações de crédito externo" (Base II, nº 4).

Passando por cima das Bases III, IV, V, e VI, de menor relevo no desenvolvimento do parecer, considerem-se os principais momentos do processo de concessão de avales, e da execução destes - Capítulo I, Bases VII e VIII, e Capítulo III, Base IX.

Precedendo consulta aos órgãos competentes do planeamento económico, os avales são prestados, em cada caso, sob determinada forma, mediante prévio despacho de autorização do Ministro das Finanças, pelo Director-Geral do Tesouro, condicionalismos cuja inobservância implica a nulidade do aval (Base VII).

Em anexo ao despacho ministerial deve figurar o plano de amortização do capital mutuado e de pagamento dos juros respectivos, plano cuja modificação sem prévia autorização do Ministro implica a imediata cessação do aval, inibindo o beneficiário de invocar qualquer responsabilidade do Estado após o início de execução das modificações introduzidas (Base VIII).

As entidades a quem os avales forem concedidos comunicarão à Direcção-Geral do Tesouro, no prazo de 5 dias, as amortizações de capitais e os pagamentos de juros a que procedam "indicando sempre as correspondentes importâncias que deixam de constituir objecto de garantia do Estado" (Base IX, nº 1).

Até 45 dias antes do vencimento dos encargos de amortização e de juros, os beneficiários dos avales que verificarem não estar em condições de os satisfazer nas datas fixadas para o efeito darão do facto conhecimento àquela Direcção-Geral (nº 2).

Com respeito às garantias do Estado pelo facto da prestação dos avales, providencia o Capítulo IV, integrando as Bases X, XI e XII.

A concessão do aval confere ao Governo o direito de fiscalizar a actividade da entidade beneficiária, tanto do ponto de vista técnico-económico como dos pontos de vista administrativo e financeiro (Base X).

É criado um fundo de garantia destinado à cobertura dos prejuízos motivados pela execução de avales, para o qual reverterá nomeadamente o produto de uma "taxa de aval", suportada pelos beneficiários, de montante a fixar por despacho do Ministro das Finanças (Base XI, nº 1).

Se os beneficiários do aval forem sociedades anónimas, o Estado pode exigir a transformação do seu crédito, resultante do pagamento de qualquer prestação por si efectuada, em acções das mesmas sociedades (Base XII, nº 1).

Finalmente, nos termos do nº 2 da Base XII, há pouco transcrito, o Estado goza, além das garantias que em cada caso forem estipuladas, de privilégio creditório, nos termos dos artigos 735º, nº 2 e 747º, nº 1, alínea a), do Código Civil (cfr. supra, nota 2), sobre os bens das empresas privadas a que tenha concedido aval, pelas quantias que efectivamente tiver despendido a qualquer título em função do aval prestado (9(9Como se observa no parecer nº 25/88 (ponto 4.3.), o Decreto-Lei nº 346/73, de 10 de Julho, veio prevenir, para o caso de os beneficiários não cumprirem, a abertura de créditos especiais que permitam ao Estado honrar totalmente o compromisso, assim colmatando uma lacuna resultante da revogação, pela Base XIII da Lei nº 1/73, do Decreto-Lei nº 43710, de 24 de Maio de 1961, e, portanto, do seu artigo 4º, nº 2, que justamente estabelecia uma similar providência, sem equivalente no articulado da Lei nº 1/73..

Mediante o aval, o Estado garante pessoalmente o cumprimento de dívidas de outras entidades, assumindo, portanto, em caso de incumprimento, as respectivas responsabilidades perante os credores (1(10SOUSA FRANCO, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, págs. 570 e ss., apud parecer nº 25/88, ponto 4.4. e nota 10.0. Assumindo então, por outras palavras, o dever de efectuar a prestação debitória garantida. E o dever de a efectuar acessoriamente, apenas no caso de incumprimento do devedor principal.


2. Caberia agora reflectir sobre a natureza jurídica do aval, cujo regime jurídico, numa sua principal projecção normativa, se acaba de examinar, mas a questão é, nalgumas das suas vertentes, assaz polémica e, ademais, de tratamento dispensável na economia e inteligência do parecer (1(11Acerca da temática veja-se o parecer deste Conselho nº 220/81, citado supra, nota 7 - cuja doutrina veio reafirmada em parecer complementar com o mesmo número, de 18 de Abril de 1985, inédito - e a apreciação crítica que mereceu a COSTA FREITAS, O Aval do Estado. Natureza Jurídica e Efeitos, "Boletim da Ordem dos Advogados", nº 23, Fevereiro/1984, págs. 4 e ss.; ALBERTO LUÍS, Os Avales do Estado, "Direito Bancário", Coimbra, 1985, págs. 177 e ss.; RAÚL VENTURA, Aval do Estado, Vencimento da Obrigação do Estado Avalista, "Revista da Banca", nº 4, Outubro-Dezembro de 1987, págs. 67 e ss. Cfr. também AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, "Revista de Legislação e de Jurisprudência", ano 113º, págs. 197 e 198, apud parecer nº 25/88, nota 12.1.

Basta que se tome em conta a natureza pessoal e acessória do aval e se assente na ideia, indiscutível, segundo a qual "o regime do aval do Estado deve aferir-se, em primeiro lugar, pelo diploma que o prevê e admite" (1(12Transcreve-se do parecer nº 220/81, ponto 7., onde igualmente se escreveu (ponto 8.), numa asserção rotulada por RAÚL VENTURA, op. cit., pág. 68 (cfr. também págs. 82 e s.), como "evidente", que a sua "regulamentação e aplicação devem basear-se, em primeira linha, no diploma que o criou".2.

Quer dizer, haverá que ter em atenção, fundamentalmente, na dilucidação da problemática da consulta, além dos dispositivos da Lei nº 1/73, os preceitos aplicáveis do Código Civil, diploma estreitamente conexionado pelas designações vertidas na Base XII, nº 2, daquela Lei.

Essenciais ainda, obviamente, os termos concretos em que o aval é prestado nos diferentes casos - atente-se apenas na Base VII, nº 1, da Lei nº 1/73, e imediatamente se prefigurará a diversidade de regimes que podem tornar-se implicados -, aspectos, no entanto, a que a consulta se não estende e dos quais teremos por isso que abstrair.


3. Todavia, os precisos termos em que o aval se materializa numa ou noutra situação seriam indispensáveis à rigorosa definição do condicionalismo em que a obrigação de cumprimento se constitui na esfera do Estado e, por isso, da génese, estrutura e conteúdo tanto dessa obrigação como do crédito sobre o devedor originário que o respectivo adimplemento faz surgir na titularidade do avalista (1(13Nomeadamente, tais aspectos poderão condicionar uma tomada de posição definida acerca da questão da sub-rogação, que se diz emoldurar normativamente o sub-ingresso do Estado na posição do credor.
Veja-se, por exemplo, que a regra do artigo 593º, nº 2, do Código Civil só vale se outra coisa não for estipulada. Ignoramos o que se passou nos casos subjacentes à consulta. O que sempre, porém, se tornará mister é, por interpretação e integração, nos termos dos artigos 236º e ss. do Código Civil, apurar o que resulta do negócio de aval. Pensa-se, aliás, que poderia não ser razoável a concessão de aval no entendimento de que haveria necessariamente preferência do credor originário. Seria, porventura, chocante, nessa hipótese, aceitar, por exemplo, a primazia do credor primitivo, desprovido de especial garantia, sobre o Estado sub-rogado com privilégio mobiliário, garantia que então se revelaria inútil em todas as situações da hipótese configurada.3.

Temos, pois, que ultrapassar esse plano para nos situarmos adiante, no momento, postulado na consulta, em que o Estado, havendo solvido quanto garantiu, se encontra investido de um correspondente crédito relativamente ao devedor inadimplente, a cujo património, em curso de execução, a título singular ou universal, concorre com o credor originário e com a Segurança Social, nas condições introdutoriamente descritas.

Assiste nessa posição ao Estado, já o sabemos, o privilégio creditório conferido pela Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73.

Importa desde já assentar numa qualificação e remover uma dúvida.

Trata-se, em primeiro lugar, necessariamente, de privilégio mobiliário geral.

Mobiliário porque o artigo 735º, nº 2, do Código Civil, para que remete a citada Base, apenas aos privilégios mobiliários, gerais e especiais, alude.

Geral porque não se encontram especificados os bens móveis determinados sobre que o privilégio, se fosse especial, haveria de incidir (1(14Neste sentido, COSTA FREITAS, op. cit., pág. 5 e nota 7.
Acerca dos privilégios creditórios cfr., para maiores desenvolvimentos, aqui despiciendos, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, revista e actualizada, Coimbra, 1989, págs. 554 e ss.; ALFREDO JOSÉ DE SOUSA/SILVA PAIXÃO, Código de Processo das Contribuições e Impostos, 2ª edição, Coimbra, 1986, págs. 635 e ss.; parecer deste corpo consultivo nº 11/72, de 23 de Março de 1972, "Diário do Governo", II Série, nº 91, de 18 de Abril de 1973, e "Boletim do Ministério da Justiça", nº 220, págs. 94 e ss.; VAZ SERRA, Privilégios, "Boletim" citado, nº 64 (Março de 1957), págs. 41 e ss.
Para o direito italiano cfr. G. PAOLO GAETANO, Privilegi (Diritto civile e tributario), "Novissimo Digesto Italiano", vol. XIII, págs. 962 e ss.
Quanto ao direito francês, HENRI DE PAGE/RENÉ DEKKERS, Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, tomo 7º, 2ª edição, Bruxelas, 1957, págs. 7 e ss., e, numa acepção amplíssima, com especial enfoque dos denominados "privilèges sans texte", o primeiro autor, no mesmo Traité, tomo 6º, Bruxelas, 1953, págs. 729 e ss.4.

Se, porém, é este o significado da alusão ao artigo 735º, nº 2, qual então a utilidade de uma paralela remissão para o artigo 747º, nº 1, alínea a), que não se queira redundante?

Recorde-se o teor deste preceito (supra, nota 2) e veja-se que o seu escopo é apenas definir uma ordem de graduação de classes de créditos dotados de privilégio.

Ocupam a primeira posição, à frente de todos, os créditos por impostos, do Estado e das autarquias, referidos precisamente na alínea a) do nº 1.

Isto quer dizer que os créditos do Estado resultantes do cumprimento da obrigação avalizada são tratados, na perspectiva da Lei nº 1/73, para efeitos de graduação relativamente a outros créditos concorrentes à mesma classe de bens (1(15Não se esqueça, com efeito, que a graduação de créditos "não é acto global e unitário, mas a fazer separadamente nas diversas espécies de bens", dado que as preferências têm de ser ordenadas "segundo a sua classe e a espécie dos bens", como ensinava ANSELMO DE CASTRO, Acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra, 1970, págs. 271 e s., apud, SILVA PAIXÃO, op. cit., pág. 358, ponto 17.5do património do devedor, como se fossem impostos.

A lei considera esses créditos, para tal efeito, como impostos; ficciona, dito de outro modo, que são impostos (1(16Acerca da técnica legislativa da remissão/ficção veja-se KARL LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft (Studienausgabe), 5ª edição alemã, Springer-Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, Tokyo, 1983, págs. 141 e ss.; REINHOLD ZIPPELIUS, Juristische Methodenlehre, 4ª edição, C.H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung, München, 1985, págs. 32 e s.; OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 4ª edição revista, Lisboa, 1987, págs. 476 e s.; pareceres deste Conselho nº 92/87, de 11 de Fevereiro de 1988, "Diário da República", II Série, nº 218, de 20 de Abril de 1988, nº 82/88, de 13 de Julho de 1988, inédito, nº 73/87, de 11 de Maio de 1989, "Diário" citado, nº 18, de 8 de Agosto de 1989, nº 109/88, de 2 de Julho de 1989, inédito, e nº 121/88, de 10 de Maio de 1990, "Diário", nº 205, de 5 de Setembro de 1990. 6, atribuindo-lhes a mesma importância na escala das prioridades de pagamento.

Não era solução obrigatória. Ao legislador abriam-se outras alternativas. Podia tê-los situado noutra posição. Na ordem específica do artigo 747º ou na ordem do artigo 737º.

Optou, porém, deliberadamente, por conferir-lhes a dignidade concursual dos impostos, mandando graduá-los com eles, no mesmo lugar que a estes compete.

E este é um aspecto muito de salientar, como dentro em pouco veremos.


4. Aluda-se, por último, a questões laterais na temática nuclear dos avales, afloradas na controvérsia entre a Caixa e a Direcção-Geral do Tesouro.

O Decreto-Lei nº 608/76, de 24 de Junho, dispôs no seu artigo único:

"Artigo único. Para os efeitos do artigo 644º do Código Civil (1(17Do seguinte teor:
"Artigo 644º
(Sub-rogação)
O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos."

7, pode o Estado ser representado na defesa dos seus interesses, a pedido da Direcção-Geral da Fazenda Pública (1(18Hoje Direcção-Geral do Tesouro.8, pelas instituições de crédito que tenham concedido créditos a empresas, com aval prestado por intermédio do IAPMEI" (1(19A justificação da solução adoptada resulta da nota preambular, que se reproduz:
"Considerando que o Estado, por intermédio do IAPMEI, tem vindo a conceder avales para financiamentos a pequenas e médias empresas na qualidade de principal pagador;
"Considerando que o Estado tem de assumir as responsabilidades contraídas, junto das instituições de crédito, nos casos de incumprimento;
"Considerando que importa defender os interesses do Estado enquanto defesa dos interesses colectivos, exercendo o seu direito de regresso;
"Considerando finalmente que o Estado poderá beneficiar dos serviços de contencioso das instituições de crédito, devidamente apetrechados para o efeito;
"Depois de consultados o Banco de Portugal e as principais instituições de crédito;
"Usando da faculdade (...) o Governo decreta (...)"9(2(20Este corpo consultivo, em parecer nº 3/81, de 8 de Outubro de 1981, partindo da tese da consagração constitucional da competência exclusiva do Ministério Público para representar o Estado em juízo, pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade do transcrito artigo único, na medida em que permite seja essa representação confiada a entidades diversas.
Por despacho de 21 de Outubro de 1981, Sua Excelência o Senhor Procurador-Geral da República determinou que a doutrina fosse seguida e sustentada por todos os magistrados do Ministério Público (Circular nº 34/81, de 23 de Outubro de 1981), sendo requerida, do mesmo passo, a declaração de inconstitucionalidade ao Conselho da Revolução. Em parecer nº 8/82, de 9 de Março de 1982, "Pareceres da Comissão Constitucional", 19º volume, Lisboa, 1984, págs. 3 e ss., e "Boletim do Ministério da Justiça", nº 315, págs. 107 e ss. a Comissão Constitucional não aderiu à tese da exclusividade da representação do Estado pelo Ministério Público, e o Conselho da Revolução absteve-se de declarar a inconstitucionalidade da referida norma - Resolução nº 57/82, de 18 de Março de 1982, "Diário da República", I Série, nº 79, de 5 de Abril de 1982.
O despacho supra citado, de 21 de Outubro de 1981, foi revogado por despacho de Sua Excelência o Senhor Procurador-Geral da República, veiculado mediante a Circular nº 1/85, de 2 de Janeiro de 1985.0.

Esclareça-se que o IAPMEI - Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais - foi criado, com personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, pelo Decreto-Lei nº 51/75, de 7 de Fevereiro (artigo 1º, nº 1), na incumbência, basicamente, de "estudar e promover a execução das medidas que integram a política de apoio às pequenas e médias empresas" (artigo 2º, nº 1), orientando-se a sua acção "no sentido de dinamizar o potencial produtivo de que dispõem as pequenas e médias empresas, superar as limitações e deficiências a que estão sujeitas, preservar a sua independência e assegurar a sua modernização, contribuindo para a efectivação da estratégia antimonopolista" (nº 2).

Nesta intencionalidade, compete ao Instituto, além do mais, "assumir a responsabilidade pelos encargos financeiros de empréstimos de que beneficiem as empresas" (artigo 3º, alínea d)), e ainda, bem assim, "estudar e propor o apoio do Estado na obtenção de condições de crédito e seguro de crédito à exportação e às vendas no mercado interno" (alínea e)).

Com similares escopos, pode o IAPMEI "decidir sobre a prestação de avales", em termos a fixar por despacho governamental (artigo 6º, nº 1, alínea a)); "tomar a seu cargo parte dos custos de financiamento que as empresas deveriam normalmente suportar, incluindo a compensação de juros de empréstimos" (alínea b)); "a solicitação dos interessados, apoiar junto dos estabelecimentos de crédito os pedidos de financiamento respeitantes a empreendimentos que apresentem interesse para a economia nacional" (alínea c)).

Na sequência do Decreto-Lei nº 51/75, surge o despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Indústria e Tecnologia, de 10 de Fevereiro de 1976 - "Diário da República", I Série, nº 63, de 15 de Março de 1976, págs. 528 e s. -, assumindo-se como instrumento de orientação política no campo de actuação económico-fi- nanceira reservado ao Instituto, cujos dispositivos não importa aqui analisar (2(21Sem embargo de alguns deles exorbitarem, com duvidosa legitimidade, destes limites, bordejando, numa certa óptica, as fronteiras da legalidade. Assim o nº 10º do despacho, que paradigmaticamente se transcreve:
"10º Uma vez efectuada a liquidação de quaisquer responsabilidades por avales a créditos, o Estado fica sub-rogado nestes e nos direitos acessórios da instituição reembolsada sobre o avalizado".
A natureza acessória do aval, derivada do facto de o Estado apenas responder em caso de incumprimento, ressalta, por outro lado, com nitidez dos quatro números do nº 9º.1.

Tanto mais que seria em breve revogado pelo nº 13º, nº 1, do Despacho Normativo nº 231/78, emanado, em similar postura política, pelos mesmos Ministérios a 27 de Maio de 1978 - "Diário da República", I Série, nº 213, de 15 de Setembro de 1978.

Dispõe, nomeadamente, o nº 1º, nº 1, do novo instrumento que os "avales do Estado a prestar através do Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais - IAPMEI, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 51/75, de 7 de Fevereiro, serão para garantia de créditos de investimento em capital fixo, reorganização e reestruturação financeiras".

Enquanto o nº 2º, nº 1 esclarece que os "avales serão prestados ao mutuário e a favor das instituições que concedem o crédito".

A controversa norma do despacho revogado (supra, nota 21) aparece por seu turno, praticamente reproduzida ipsis verbis, no nº 11º.

Do nº 10º ressalta, por sua vez, a natureza acessória do aval:

"10º -1- As entidades financiadoras informarão a Direcção-Geral do Tesouro e o Instituto das situações de incumprimento dentro dos trinta dias seguintes à data da sua verificação, demonstrando que desenvolveram os devidos esforços para obter satisfação por parte do mutuário.

2- A Direcção-Geral do Tesouro procederá aos pagamentos devidos em resultado de avales prestados no prazo máximo de três meses a contar da data da comunicação pela instituição de crédito da situação de incumprimento e respectivo pedido de pagamento.

3- A importância a liquidar à instituição de crédito não poderá exceder, em qualquer caso, o montante avalizado no momento do vencimento do crédito."

De registar também, atenta a possibilidade de concessão de avales parciais, isto é, garantindo apenas uma parte do financiamento e o inerente crédito da instituição respectiva, o teor do nº 3º:

"3º Os avales a conceder, nos termos do presente despacho, serão reduzidos proporcional e progressivamente na medida em que for amortizada a operação de crédito."

Uma vez adquirida a compreensão suficiente, através do bosquejo que antecede, do artigo único do Decreto-Lei nº 608/76, não se torna mister pormenorizar os mecanismos de mediação do IAPMEI na concessão de avales do Estado (2(22Nem, igualmente, proceder à exegese do Decreto-Lei nº 387/88, de 25 de Outubro, que, revogando, além do mais, o Decreto-Lei nº 51/75 (artigo 38º, nº 1), recriou o IAPMEI em nova roupagem, sob a denominação de "Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento".
Consigne-se apenas que, nos termos do artigo 37º, são "automaticamente transferidos para o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento, na data da entrada em vigor do presente diploma, todos os direitos e obrigações de que era titular o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais, o qual se considera extinto a partir daquela data".
O artigo 38º, nº 2 mantém, por outro lado, "em vigor a restante legislação relativa ao apoio às pequenas e médias empresas, transitando para o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento as funções que até aqui eram desempenhadas pelo Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais na aplicação dessa legislação".2.

Interessará mais deixar esclarecido que a Caixa-Geral de Depósitos entende condicionar a representação do Estado, ao abrigo do citado normativo, à aceitação, pela Direcção-Geral do Tesouro, do esquema de graduação dos créditos por si propugnado.

Pela razão seguinte.

A perfilhar-se o entendimento de que o crédito do Estado prevalece sobre o seu próprio crédito, verificar-se-ia nessa hipótese um conflito de interesses entre o Estado e a Caixa que inibiria esta de representar aquele.

Oportunamente haverá ensejo de apreciar também estoutro aspecto do dissídio.


IV

Conhecemos já o esquema de graduação de créditos sustentado pela Caixa-Geral de Depósitos na qualidade de instituição financiadora ao abrigo da Lei nº 1/73.

O seu crédito pela parte do financiamento não coberta pelo aval, e por isso mesmo não solvida pelo avalista, primaria sempre sobre o crédito do Estado resultante do funcionamento da garantia, quer o concurso ocorra apenas entre a Caixa e o Estado, quer se torne extensivo, ainda, à Segurança Social.

Na verdade, estar-se-ia, em qualquer das hipóteses, perante uma "sub-rogação parcial" do Estado e esta, nos termos do artigo 593º, nº 2, do Código Civil, "não prejudica os direitos do credor originário" (2(23Acresce, salienta a Caixa, que o crédito do Estado dispõe tão-somente de privilégio creditório mobiliário geral, o qual teria de ceder o passo ao penhor que assiste ao seu próprio crédito (artigo 749º do Código Civil).3.


Atente-se mais de perto na fenomenologia representada.


1. De um modo geral fala-se de sub-rogação para designar determinadas situações em que juridicamente uma coisa se substitui a outra ou uma pessoa a outra pessoa. No primeiro caso, haverá sub-rogação real, no segundo, que ora mais importa, sub-rogação pessoal.

No tocante à sub-rogação pessoal é possível conceber ainda dois tipos distintos.

Um deles verifica-se quando, para satisfação ou garantia do seu próprio direito, o credor, no uso de uma faculdade que a lei lhe concede (artigo 606º do Código Civil), se substitui ao devedor no exercício, de que se este se abstenha, de um direito de conteúdo patrimonial contra terceiro. É a denominada "sub-rogação do credor ao devedor", traduzindo a substituição deste por aquele, não na titularidade de certo direito, mas em determinada "actuação jurídica", tal a propositura de uma acção judicial (acção sub-rogatória) (2(24INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 6ª edição, revista e actualizada, Coimbra, 1989, págs. 271 e ss.; ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 326; MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 683 e s. e nota 3.4.

Noutras situações, diversamente, uma vez cumprida a obrigação o crédito não se extingue, transmitindo-se, por efeito do cumprimento, para terceiro que o efectua (ou faculta ao devedor os meios necessários para o realizar) (2(25GALVÃO TELLES, op. cit., pág. 273; ALMEIDA COSTA, ibidem.5.

É esta segunda, e não, obviamente, a primeira, a modalidade pressuposta na argumentação da Caixa.

De facto, há agora substituição, não numa actuação jurídica, mas na titularidade de um direito. O terceiro (Estado) sub-roga-se ao credor (Caixa), não no sentido de agir em vez dele, mas no sentido de adquirir o crédito, que se lhe transfere (2(26GALVÃO TELLES, ibidem, quase à letra.6.

Pode assim definir-se a sub-rogação, neste sentido, único para nós hipoteticamente relevante, como a "substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor" ("ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento") (2(27ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 324.7- terceiro a que a lei (artigo 593º) dá o nome de sub-rogado (2(28MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2º volume, Lições policopiadas ao 3º Ano Jurídico de 1978/1979, Edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1979, pág. 585, nota 41, considera que deve haver lapso e dá ao terceiro a denominação de "sub-rogante" e a de "sub-rogado" ao credor originário. Não é essa, em todo o caso, a terminologia corrente - cfr. GALVÃO TELLES, op. cit., págs. 275 e ss.; ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 324, nota 1.8.

Está-se perante um fenómeno de transferência de créditos, que o Código regula, como tal, no capítulo relativo à "transmissão de créditos e dívidas" (Capítulo IV do Título I do Livro II).

O seu fulcro reside, porém, no "cumprimento", enquanto, por exemplo, a cessão de créditos tem fundamento jurídico no contrato de cessão entre o cedente e o cessionário.

Por isso, os direitos do sub-rogado medem-se "em função do cumprimento" (artigo 593º, nº 1 (2(29Cfr. supra, nota 1.9), enquanto o direito do cessionário se afere pelos termos do negócio respectivo.

São, por isso, as circunstâncias peculiares do cumprimento, erigidas pela lei em pressupostos da sub-rogação, que justificam o "sub-ingresso" ou "sub-entrada" do terceiro na posição do primitivo credor
(3(30No sentido exposto seguimos ANTUNES VARELA, op. cit., págs. 324 e s.0.


2. No tocante à sua fonte distingue-se a sub-rogação voluntária - por vontade do credor ou do devedor (artigo 589º e artigos 590º e 591º, respectivamente) - e a sub-rogação legal, em exclusivo fundada na lei, independentemente de declaração do credor ou do devedor (artigo 592º).

Interessa ao nosso caso a segunda espécie, no seio da qual distingue, recorde-se, o nº 1 do último preceito citado (cfr. supra, nota 1) dois núcleos de situações:



"Artigo 592º

(Sub-rogação legal)

1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito (3(31Tenha-se presente, no contexto, a regra geral do artigo 767º, acerca do cumprimento por terceiro:

"Artigo 767º
(Quem pode fazer a prestação)
1. A prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação.
2. O credor não pode, todavia, ser contrangido a receber de terceiro a prestação, quando se tenha acordado expressamente em que esta deve ser feita pelo devedor, ou quando a substituição o prejudique."

Quer dizer, a prestação pode, em princípio, ser efectuada por terceiro, interessado ou não no cumprimento (artigo 767º). Mas só o terceiro interessado tem acesso ao instituto da sub-rogação (artigo 592º).
1.

2. (...) (...)"

O primeiro núcleo refere-se aos casos em que o terceiro tenha garantido o cumprimento.

Observa ANTUNES VARELA (3(32Op. cit., págs. 331 e s.2tratar-se "de um benefício tradicional e geralmente concedido ao fiador que paga em vez do obrigado (cfr. ar. 779º, nº 1, do Código de 1867) e que o artigo 592º, nº 1, do Código de 1966 intencionalmente estendeu aos outros casos de garantia do cumprimento".

Não há, pois, razão para excluir desse benefício os casos de aval prestado pelo Estado ao abrigo da Lei nº 1/73, garantia, acresce, de carácter pessoal, e acessório, e nessa medida afim, embora não idêntica à fiança, arvorando-se esta tipicamente, dir-se-ia, em modelo daquele género de garantias, e em similar conformação sendo regulada no capítulo do Código Civil dedicado às "garantias especiais das obrigações" (3(33No sentido dos "estreitos laços de parentesco" entre aquela figura de aval e a garantia fidejussória, ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 486. A natureza acessória desta resulta com clareza do artigo 627º, nº 2, do Código Civil:

"Artigo 627º
(Noção. Acessoriedade)
1. O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
2. A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o devedor principal".3.

No segundo núcleo de situações prevenidas no artigo 592º, nº 1 incluem-se os casos em que o terceiro tem "interesse directo" na satisfação do crédito.

Não nos importa especialmente esta hipótese, a qual vem ilustrada doutrinariamente, afirmando-se, por exemplo, que o interesse directo no cumprimento existirá, entre outros casos, sempre que o terceiro "esteja constituído no dever de o efectuar" (3(34GALVÃO TELLES, op. cit., pág. 279.4, ou "tenha um interesse próprio na satisfação do crédito", excluindo-se "os casos em que o cumprimento se realize no exclusivo interesse do devedor (-) ou por mero interesse moral ou afectivo do solvens", a favor daqueles "em que este visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence" ou "apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito" (3(35ANTUNES VARELA, op. cit., págs. 332 3 s., apontando a seguinte exemplificação: do sublocatário que paga a renda do locatário para evitar a caducidade da sublocação (artigo 1102º); do credor pignoratício que paga a prestação em dívida do preço da coisa empenhada, para obviar à resolução da venda; do adquirente da coisa empenhada ou hipotecada que cumpre pelo devedor no intuito de prevenir a venda e adjudicação do penhor ou a execução do crédito hipotecário; o pagamento feito por credor preferente a outro graduado antes dele, ou o efectuado por um credor comum a um credor preferente, para evitar uma execução ruinosa ou inoportuna para os demais credores; no mesmo sentido, ALMEIDA COSTA, op. cit, pág. 686; para MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 583, o "interesse directo" do terceiro verificar-se-á quando "implicar que uma posição subjectiva deste esteja dependente do cumprimento do débito".
5.


3. A sub-rogação pode ser total ou meramente parcial, classificação de importância nuclear no contexto da consulta, cuja boa compreensão exige, porém, uma breve reflexão sobre os efeitos ligados, em geral, ao instituto.

Relembre-se, a este propósito, o teor do nº 1 do artigo 593º do Código Civil (supra, nota 1): "o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam".

Isto significa, no fundo, que fica o sub-rogado "investido na posição jurídica até aí pertencente ao credor pago" (3(36GALVÃO TELLES, op. cit., pág. 282.6.

E a amplitude desta investidura revela-se, primordialmente, em dois aspectos.

O principal efeito da sub-rogação é, evidentemente, a transmissão, para o credor sub-rogado, do crédito que pertencia ao credor satisfeito.

Por outro lado, transmitem-se ainda para o sub-rogado, com o direito à prestação, quer as garantias, pessoais ou reais (fiança, penhor, hipoteca), quer os acessórios do crédito que não sejam inseparáveis da pessoa do credor primitivo (taxas de juro, cláusula penal) - acessorium sequitur principale. É a doutrina que dimana do artigo 582º, nº 1 para a cessão de créditos, preceito aplicável à sub-rogação por força do artigo 594º (cfr. supra, ponto II, 1. e nota 1) (3(37ANTUNES VARELA, op. cit., págs. 336 e ss.; GALVÃO TELLES, op. cit., págs. 282 e s.; MENEZES CORDEIRO, op. cit., págs. 583 e ss.7.

Centre-se a atenção no primeiro efeito.

Como há pouco se notou, a aquisição do sub-rogado funda-se substancialmente no acto do cumprimento e por isso só lhe será lícito exigir do devedor "uma prestação igual ou equivalente àquela com que tiver sido satisfeito o interesse do credor". Se a dívida for de 10 000 e o terceiro tiver pago apenas 8 000, não será superior a este o montante da prestação a que fica tendo direito.

Há, portanto, ao lado da sub-rogação total, a denominada sub-rogação parcial, que tanto pode resultar de o direito do credor não ter sido integralmente satisfeito, como - hipótese de interesse despiciendo no âmbito do parecer - de serem dois ou mais terceiros que lhe deram total ou parcial satisfação.


4. No primeiro caso surge então a questão de saber se o credor primitivo "goza de alguma preferência em relação ao sub-rogado, ou se ambos são pagos em plena igualdade de condições" (3(38ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 336, advertindo (pág. 338, nota 2), no concernente ao efeito da transmissão das garantias, que, no caso de sub-rogação parcial, a indivisibilidade das garantias dá como resultado que cada sub-rogado exerce o seu direito real de garantia por inteiro. Mas a contitularidade do direito real de garantia terá expressões diferentes, consoante se considere a hipótese do nº 2 ou do nº 3 do artigo 593º.8(3(39Segundo o mesmo Autor, op. cit., págs. 333 e ss., a satisfação do direito de crédito do terceiro operar-se-á, justamente, pela via sub-rogatória, e não pela via do "regresso". Embora nalgumas legislações estrangeiras a "sub-rogação" e o "direito de regresso " sejam tratados, não como realidades jurídicas "distintas ou opostas", mas como figuras "compatíveis" e até, em vários casos, "sobrepostas", as duas figuras constituem, no sistema legal português, realidades jurídicas "distintas" e mesmo "opostas", sem embargo de "certa afinidade substancial nas suas raízes". A sub-rogação, como forma de "transmissão" das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao primitivo credor. O "direito de regresso", ao invés, nasce ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior. A sub-rogação envolve um "benefício" concedido a quem, sendo "terceiro", cumpre, por ter interesse na satisfação do direito do credor. O "direito de regresso", no caso paradigmático da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de "reintegração" ou "restituição" concedido pela lei a quem, sendo "devedor" perante o acipiens, cumpre, todavia, para além do que lhe competia no plano das relações internas - por isso, acaso, se não transmitindo para ele, na falta de estipulação, nem as "garantias" nem os "acessórios" da dívida.9.

Pondera GALVÃO TELLES (4(40Op. cit., págs. 284 e s.0que "o crédito fica então dividido em duas partes: a parte não paga, que continua a pertencer ao credor primitivo, e a parte paga, que se transfere ao sub-rogado". Ora, é "só quanto à parte paga que a sub-rogação se dá, sendo só nessa medida que o sub-rogado adquire os poderes que ao credor competiam (art. 593º). O crédito global fracciona-se em dois créditos menores, permanecendo um nas mãos do seu titular e apenas se transferindo o outro".

"À primeira vista - prossegue - poderia parecer que os dois créditos, possuindo a mesma origem, deveriam ter sob todos os aspectos tratamento igual. Mas não é assim. O credor originário (-) goza de preferência sobre o sub-rogado, visto a lei declarar que a sub-rogação não prejudica os direitos daquele, quando outra coisa não tenha sido estipulada (art. 593º, nº 2)".

Este, com efeito, o teor do preceito, que ora convém recordar (cfr. supra, nota 1):

"Artigo 593º
(Efeitos da sub-rogação)

1. (...)

2. No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.

3. (...)"

Da norma deriva, como consequência, nas palavras do Autor que vimos citando, que, "em caso de insolvência do devedor, aquilo que for afecto ao pagamento do crédito global destina-se em primeiro lugar ao credor primitivo; só o excedente, se o houver, aproveita ao sub-rogado" (4(41GALVÃO TELLES, op. cit., pág. 284.1.

A solução baseia-se na vontade provável do credor. Como este não é obrigado a aceitar um cumprimento parcial (artigo 763º, nº 1) (4(42Dispõe este normativo:
Artigo 763º
(Realização integral da prestação)
1. A prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos.
2. (...)"2 presume a lei que, se o consente, quererá ser preferido ao terceiro quanto à parte do crédito de que continua titular (4(43GALVÃO TELLES, op. cit., pág. 285.3, , de modo a não ficar em pior situação do que a que teria se não se verificasse o cumprimento por terceiro.

É, pois, uma preferência fundada no velho adágio nemo contra se subrogasse censetur, "pouco convincente", aliás, já se observou, quanto à sub-rogação legal e quanto à sub-rogação fundada na vontade do devedor (4(44ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 285.
Sobre o sentido da máxima face ao abrigo 1252º do Código Civil francês (cfr. infra, nota 54), DE PAGE, Traité citado supra, nota 15, tomo 3º, Bruxelas, 1967, págs. 555 e ss.; H. MAZEAUD/J. MAZEAUD, Leçons de Droit Civil, Tomo 2º, 3ª edição, Paris -, págs. 767 e ss.; CARBONNIER, Droit Civil, 4/Les Obligations, Paris, - págs. 480 e ss.; ALEX WEILL, Droit Civil. Les Obligations, 3ª edição, Paris, 1980, págs. 1086 e s.; G. MARTY/P. REYNAUD, Droit civil, tomo II, 1º vol. (Les Obligations), Paris, 1962, págs. 654 e s. Doutrina que acentua, em geral, a inoponibilidade da regra ao solvens, além do mais, quando este demanda o devedor por via de acções próprias, derivadas de relações pessoais entre ambos alheias à sub-rogação - v.g., mandato, gestão de negócios.4.


5. O Código de Seabra consagrava-a já no artigo 782º, que rezava:

"Artigo 782º

O crèdor, que só foi pago em parte, pode exercer os seus direitos, com preferência ao subrogado, pelo resto da dívida.
§ único. Esta preferência, porém, compete ùnicamente aos crèdores originários, ou aos seus cessionários, e não a qualquer outro subrogado."

Era a recepção, na sua maior amplitude, do princípio expresso no brocardo citado.

Comentava-se, efectivamente, a propósito:

"o crèdor parcialmente pago sòmente concede a subrogação na medida em que não o possa prejudicar, quer em relação às garantias especiais do seu crédito, quer quanto à garantia geral dos bens do devedor; pois, ainda quando o subrogante e o subrogado sejam crèdores comuns, o primeiro terá preferência sobre o segundo. Os termos do artigo 782º não permitem qualquer restrição a êste respeito" (4(45CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código Civil Português, volume V, Coimbra, 1932, pág. 51.5.

Nos estudos preparatórios do Código Civil vigente, VAZ SERRA, porém, mostrava-se céptico quanto a semelhante extensão do princípio.

Transcreva-se um passo significativo (4(46VAZ SERRA, Sub-rogação nos Direitos do Credor, "Boletim do Ministério da Justiça", nº 37 (Julho de 1953), págs. 17 e s.; cfr. também págs. 59 e s. e nota 92.6:

"Quanto à regra nemo contra se subrogasse censetur, aplicável à sub-rogação, e não à cessão, parece desde logo que não deve observar-se no caso de sub-rogação por vontade do credor, quando o pagamento é feito por iniciativa do credor, que procura a realização imediata do seu crédito: afigura-se que ao credor não deve reconhecer-se, em princípio, preferência em relação ao sub-rogado. Aquela regra funda-se em que "o credor que é pago com os dinheiros de um outro não é obrigado a sub-rogá-lo senão na medida em que a sub-rogação não possa trazer-lhe prejuízo", como dizia Pothier (-); e este fundamento não é válido se o pagamento por terceiro é devido ao interesse e iniciativa do credor. É assim que, em França, a convenção contrária à dita regra se encontra muitas vezes na prática, "sobretudo quando o sub-rogado paga voluntariamente... Quando o pagamento é oferecido espontâneamente ao credor [e, com mais razão, acrescentamos, quando é devido ao interesse e iniciativa do credor] é o sub-rogado quem dita a lei do contrato..." (4(47Cita aqui PLANIOL, RIPERT e RADOUANT, Obligations, 2ª parte (vol. III do Traité Pratique dos dois primeiros autores), nº 1237.7. Parece injusto que o credor que já recebeu parte do seu crédito do terceiro sub-rogado vá ainda ter preferência em relação a ele, pelo resto do crédito, se o devedor estiver insolvente. O mesmo poderá dizer-se se o pagamento é feito no interesse do devedor. Esta solução resulta já da fórmula proposta, ao estudar os efeitos da sub-rogação (na exposição sobre a cessão legal) - a sub-rogação não pode prejudicar os direitos do credor - entendida no sentido de que o credor só terá preferência quando da sub-rogação derive prejuízo para ele - o que não acontece nos exemplos mencionados, nos quais o credor recebeu do sub-rogado uma parte do seu crédito e não fica, com a sub-rogação e concorrência do sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro".

Em sintonia com o exposto, insere-se no articulado proposto para a sub-rogação na parte final do mesmo estudo (4(48Nº 10, págs. 61 e ss.; cfr. supra, nota 46.8, o seguinte artigo.

"Art. 6º - Aplicação das regras sobre transferência legal de créditos. Efeitos da sub-rogação.

1. À sub-rogação são extensivas, na parte aplicável, as disposições relativas à transferência de créditos por força da lei. (...)

2. O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao credor, os direitos deste último.

3. No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo estipulando-se outra coisa. Não pode dar-se sub-rogação parcial em dívidas cuja solução é indivisível (-).

4. Havendo vários sub-rogados (...)

5. (...)".

Anote-se, em aparte, que o primeiro período do nº 3 é precisamente idêntico - com ligeiríssima e insignificante diferença literal - ao nº 2 do actual artigo 593º (cfr. supra, 4.), e sublinhe-se igualmente a divergência de formulação em relação ao artigo 782º do Código Civil de 1867.

Temos, contudo, que prosseguir ainda a indagação acerca da formação do nº 2 do artigo 593º do novo Código Civil.

A Caixa-Geral de Depósitos afirma linearmente que a norma confere, ao credor originário, preferência sobre o terceiro sub-rogado.

Salta, porém, à vista que o inciso não fala de preferência. De preferência falava, sim, o artigo 782º do Código predecessor. Deve ter havido boas razões para a alteração, e desvendá-las vai-nos revelar que as coisas não se passam exactamente como pretende a Caixa.

Mas tal impõe que continuemos debruçando-nos sobre a investigação empreendida preparatoriamente por VAZ SERRA, mau grado a extensão e até uma certa repetição de transcrições.

Do passo há momentos seleccionado resulta sobressaliente o desfavor com que o arquitecto da parte geral do direito das obrigações hoje vigente (4(49Nomeada uma comissão encarregada de preparar um projecto de novo Código Civil português, o Professor Doutor Adriano Paes da Silva Vaz Serra encarregou-se efectivamente da elaboração do anteprojecto relativo ao direito das obrigações, com excepção dos contratos em especial. Cfr. a nota preliminar ao estudo sobre a Compensação, no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 31 (Julho de 1952), págs. 13 e s.9encarava a regra do nemo contra se subrogasse, e já uma primeira explicação para a redacção do actual preceito.

É, no entanto, mister ir um pouco mais longe, pois que aí se remete para a exposição sobre a cessão legal.

Nesta outra obra (5(50VAZ SERRA, Cessão de créditos ou de outros direitos, "Boletim do Ministério da Justiça", número especial, 1955, págs. 5 e ss., que passamos a utilizar, embora o trabalho tenha sido também publicado no "Boletim da Faculdade de Direito" da Universidade de Coimbra, vol. XXX (1954), Coimbra, 1955, págs. 191 e ss., e vol. XXXI (1955), Coimbra, 1956, págs. 190 e ss.0discorre-se em determinado ensejo sobre os efeitos da sub-rogação. Ponderando que a assimilação entre a situação do sub-rogado e a do sub-rogante - posto que ao sub-rogado se transfere o crédito, com os seus acessórios - não é absoluta, procede-se à análise da limitação traduzida no aludido adágio, esclarecendo-se que a admitem os Códigos francês, alemão e brasileiro, rejeitando-a o Código italiano e o Projecto franco-italiano (5(51Quanto ao direito francês cfr. supra, nota 44 e infra, nota 54.
No direito brasileiro rege o artigo 990º do Código Civil -"O credor originário, só em parte reembolsado, terá preferência ao sub-rogado, na cobrança da dívida restante, se os bens do devedor não chegarem, para saldar inteiramente o que a um e outro dever" -, podendo a propósito consultar-se, na doutrina, PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado (Parte Especial), tomo XXIV, 3ª edição (reimpressão), Rio de Janeiro, 1971, págs. 292 e ss.
No direito alemão releva a norma do § 268, alínea terceira do BGB - "O crédito transmite-se para o terceiro na medida da satisfação por este dada ao credor. A transmissão não pode redundar em prejuízo do credor" (Soweit der Dritte den Glaubiger befriedigt, geht die Forderung auf ihn über. Der Übergang kann nicht zum Nachteile des Glaubigers geltend gemacht werden) -, acerca da qual podem ver-se H. HEINRICHS, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 2, 2ª edição, C.H.Beck, München, 1985, pág. 518; PALANDT/HEINRICHS, Bürgerliches Gesetzbuch, 49ª edição, C.H. Beck, München, 1990, pág. 301; K. LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, vol. 1, 13ª edição, C.H. Beck, München, 1982, pág. 179, nota 8; H. HEINZ HERPERS, Über den Nachteil des Glaubigers bei der Legalzession, "Archiv für die civilistische Praxis", vol. 166 (1966), págs. 454 e ss.
Finalmente, no direito italiano a regra é rejeitada pelo artigo 1205º (Sub-rogação parcial) do Codice Civile salvo convenção em contrário - "Se o pagamento for parcial, o terceiro sub-rogado e o credor concorrem no confronto com o devedor em proporção de quanto lhes for devido, salvo convenção em contrário". Cfr. na doutrina, G. CIAN/A.TRABUCCHI, Commentario Breve al Codice Civile, 3ª edição, Padova, 1988, pág. 858; BRUNETTO CARPINO, Surrogatione (Pagamento con), "Novissimo Digesto Italiano", vol. XVIII, págs. 964 e ss.1.

Esta última atitude baseia-se na ideia de não ser "razoável que, estando o devedor insolvente, o credor que já recebeu parte da dívida receba o resto por inteiro, podendo dar-se para o sub-rogado, que não teve nenhum intuito lucrativo, um prejuízo total".

Ora, escreve o mestre de Coimbra (5(52Cessão de créditos, págs. 322 e ss.; cfr. também págs. 308 e ss. do vol. XXXI do "Boletim da Faculdade de Direito" citado na nota 50.2:

"pareceria que, na verdade, a regra antiga nemo contra se subrogasse censetur não deveria ser conservada e se lhe deveria substituir o princípio, consagrado nos citados Código italiano e Projecto franco-italiano, de colocar o sub-rogante e o sub-rogado em pé de igualdade.

"Com efeito, dir-se-ia que, se um terceiro se sub-roga ao credor, porque lhe faz um pagamento parcial, o credor já recebe, com este pagamento, um benefício superior ao que resultaria de conservar a parte do crédito que foi paga, com as suas garantias; e, por outro lado, o terceiro, que pagou sem intenção de lucro, também merece protecção, tanto mais quanto é certo que só vai concorrer na medida em que o credor já está pago".

No entanto, considera que "talvez não seja de eliminar de todo aquela regra", pelo seguinte:

"A regra de que o credor tem preferência ao sub-rogado pelo resto da dívida (art. 782º do nosso Código; art. 1252º do Código francês; etc) conduz, na sua generalidade, a consequências injustas. Tanto assim é que, segundo informam Planiol, Ripert e Radouant (-), é vulgar a convenção em contrário: "na prática encontramo-la frequentemente, sobretudo quando o sub-rogado paga voluntàriamente e não é, nem um devedor pessoal obrigado como fiador, nem um terceiro detentor de imóvel, que o credor poderia constranger ao pagamento. Quando o pagamento é oferecido espontâneamente ao credor, é o sub-rogado que dita a lei do contrato; põe as suas condições e estipula ordinàriamente, não já mesmo que concorrerá com o sub-rogante, mas que lhe será preferido. A convenção particular destrói então a presunção de vontade estabelecida pelo art. 1252º. Mesmo nos outros casos derroga-se muitas vezes a regra legal e o credor concede ao sub-rogado o direito de concorrer com ele".

"Mas se o sub-rogado concorresse com o credor em proporção do que é devido a cada um deles, o credor poderia ser prejudicado e ficar, portanto, pior do que se lhe não tivesse sido feito o pagamento parcial".

Para ilustrar a observação, VAZ SERRA aponta um exemplo:

"o credor de 20 contos com hipoteca e com fiança até 10 contos, a quem o fiador pagasse 10 contos, poderia ser prejudicado, se o fiador concorresse com ele no exercício do direito hipotecário, pois, quando o prédio hipotecado valesse apenas 10 contos, o credor receberia daí 5 contos e o fiador outros 5, de modo que o credor viria a receber afinal apenas 15 contos e não já os 20 a que tinha direito e que receberia sem a concorrência do sub-rogado (5(53"Supõe-se neste exemplo, que o fiador fica sub-rogado no direito hipotecário do credor (...)".3. E pode mesmo ter acontecido que o credor houvesse exigido a fiança porque a hipoteca não era bastante".

Concluindo:

"Há casos, porém, em que o credor não é, em rigor prejudicado: assim, se ele recebe um pagamento parcial de terceiro, que paga espontâneamente, não parece que sofra prejuízo com o concurso do sub-rogado, pois este vai concorrer apenas por uma parte do crédito, que o credor já recebeu desse mesmo terceiro.

"De modo que, em vez da fórmula do art. 782º do nosso Código, adoptar-se-ia antes a de que a sub-rogação não prejudica os direitos do credor.

"(...) (...)" (5(54O preceito projectado, em consonância com a doutrina exposta, era de teor muito semelhante ao nº 3 do artigo 6º do anteprojecto relativo à sub-rogação antes reproduzido (Cessão de créditos, pág. 326; cfr. o último parágrafo deste estudo, pág. 374):
"Artº...
1- No caso de pagamento parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo estipulando-se o contrário.
2- Havendo vários sub-rogados (...)".

O mesmo se diga quanto ao correspondente preceito do articulado geral do anteprojecto sobre o direito das obrigações - VAZ SERRA, Direito das Obrigações (com excepção dos contratos em especial). Anteprojecto, separata do "Boletim do Ministério da Justiça", nº 98, Lisboa 1960, pág. 106:

"Artigo 144º
(Efeitos da sub-rogação)
1. O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao credor, os direitos do mesmo credor.
2. No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo se outra coisa se estipular.
3. Havendo vários sub-rogados, ainda que em ocasiões diversas, por satisfações parciais, não têm eles preferência entre si; mas, se não puderem ser todos pagos ao mesmo tempo, o pagamento será feito pela ordem sucessiva das diferentes sub-rogações."

É, no tocante aos nºs 1 e 2, praticamente a redacção definitiva que veio a constar dos vigentes nºs 1 e 2 do artigo 593º, a qual resultava já, por seu turno, do artigo 583º, nºs 1 e 2 do Anteprojecto na primeira revisão ministerial, e do artigo 593º, nºs 1 e 2 do Anteprojecto na segunda revisão ministerial - J. RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, III, Lisboa, 1972, pág. 173.
Anotem-se, por último, as semelhanças e diferenças relativamente ao citado artigo 1252º do Code Civil:
"Art. 1252. La subrogation établie par les articles précedents a lieu tant contre les cautions que contre les débiteurs; elle ne peut nuire au créancier lorsqu'il n'a été payé qu'en partie; en ce cas, il peut exercer ses droits, pour ce que lui reste du, par préférence à celui dont il n'a reçu qu'un payement partiel."4.

Vê-se, portanto, que a história do artigo 593º, nº 2, do Código Civil não permite sustentar que o credor primitivo, parcialmente pago, goze automaticamente, sejam quais forem as circunstâncias, de preferência sobre o terceiro sub-rogado.

Na mens legis, em caso de cumprimento meramente parcial, a preferência apenas surgirá quando a sub-rogação se traduza em prejuízo do credor.


6. Restaria saber em que condições, precisamente, pode um semelhante prejuízo afirmar-se.

Mas não interessará neste momento, bem vistas as coisas, ir além do tópico há pouco aflorado, segundo o qual sairá o credor prejudicado, legitimando-se a preferência, quando, mercê da sub-rogação e da concorrência do sub-rogado, ele fique "em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro".

Primeiro porque desse prejuízo só poderá exactamente ajuizar-se, como claramente se infere das reflexões antecedentes, face a circunstâncias de facto que na presente consulta, dados os termos abstractos em que está formulada, não vêm equacionadas.

Segundo, porque, decisivamente, o prejuízo apenas adquire relevo no caso de "cumprimento parcial". E está longe de ser esta a situação que nos é presente.

Permita-se, aliás, observar, a propósito, que o exemplo adrede imaginado por VAZ SERRA não é, salvo o devido respeito, particularmente ilustrativo.

Para além de figurar uma hipótese de nítidos contornos marginais e de ser duvidoso que o terceiro - sub-rogado também no direito hipotecário - pudesse concorrer em igualdade com o primitivo credor hipotecário, sobretudo releva que não parece configurar-se nesse exemplo um caso de cumprimento parcial.

A fiança era a uma parte do crédito e o fiador, pagando pontualmente nessa parte, pagou quanto havia garantido, cumprindo, portanto, toda a sua obrigação.

Trata-se, no fundo, de uma manifestação do carácter acessório da fiança.

Sendo a fiança "o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor" (5(55ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 465.5, como bem resulta do artigo 627º, nº 1, do Código Civil (5(56Cfr. supra, nota 33.6, então o fiador é verdadeiro devedor do credor.

Só que a sua obrigação é acessória da que impende sobre o obrigado principal, pois ele apenas garante que esta será satisfeita (5(57ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 469;7.

Consequentemente, o credor tem o poder de exigir ao fiador a realização da prestação devida apenas se o devedor não cumprir (5(58ANTUNES VARELA, op. cit., págs. 475 e s.; CUNHA GONÇALVES, no passo citado infra, nota 59.
Se vigorar, como é de regra (artigo 638º), o benefício da excussão, de que aqui se abstrai, não basta, evidentemente, o incumprimento, sendo necessário ainda que se executem todos os bens do devedor antes que o fiador efectivamente responda.8.

Tal uma consequência imediata da natureza acessória da fiança.

A acessoriedade manifesta-se, todavia, ainda, justamente, no próprio conteúdo da garantia. Conforme dispõe o artigo 631º, nº 1, esta "não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas, mas pode ser contraída por quantidade menor ou em menos onerosas condições" (5(59Era esta já a estatuição do artigo 823º do Código de Seabra - "A fiança não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída sob condições mais onerosas. Pode, contudo, contrair-se por quantidade menor e com menos onerosas condições. (...)" -, copiada do nosso Código Comercial de 1833, como afirma CUNHA GONÇALVES, op. cit., pág. 173, ou, mais remotamente, importada, como pensa ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 469, nota 2, do artigo 2013º do Código de Napoleão - "Le cautionement ne peut excéder ce qui est du par le débiteur, ni être contracté sous des conditions plus onéreuses. Il peut être contracté pour une partie de la dette seulement, sous des conditions moins onéreuses (...)".
Por isso se caracterizava doutrinariamente a fiança como "acto ou contrato pelo qual um terceiro, chamado fiador, assume ou assegura, no todo ou em parte, o cumprimento da obrigação do devedor, quando este não a cumprir ou não a possa cumprir, salvo quando a obrigação seja estrictamente pessoal" - CUNHA GONÇALVES, op. cit., pág. 156.9.

Ou seja, deve a fiança, na tradição romanista, adaptar-se à dívida principal quantitate, die, loco, conditione (6(60POTHIER, apud CUNHA GONÇALVES, op. cit., pág. 172.0.

Ora, no último caso, isto é, se o fiador garantiu tão-somente uma fracção da dívida principal, o credor, obviamente, apenas esse montante parcial, não a soma global do crédito, pode exigir-lhe.

Por isso é que, garantida pessoalmente uma parte do crédito e solvida esta pelo garante na falta de adimplemento do devedor principal, não pode afirmar-se que aquele tenha procedido a um cumprimento meramente parcial, posto haver cumprido quanto garantira e, portanto, tudo o que devia.

Não é que, propriamente, se opere extinção (parcial) da obrigação principal, uma vez que esta continua radicada na esfera do devedor, e a titularidade do crédito se transmite, nessa parte, para o fiador mediante sub-rogação (artigo 644º do Código Civil; cfr. supra, nota 17) (6(61ANTUNES VARELA, Das Obrigações, págs. 344 e ss., pronunciando-se, a propósito da natureza jurídica da sub-rogação, a favor da doutrina tradicional, que a concebe como modalidade de transmissão do direito de crédito. Defrontando-se esta orientação com a aporia, aparentemente insuperável, decorrente do facto de o cumprimento constituir uma causa extintiva da obrigação, com a consequente inaptidão para operar, do mesmo passo, a transmissão desta, o autor procura dissecar a relação creditória na sua complexidade, concluindo que o cumprimento por terceiro não envolve forçosamente a "extinção" do dever de prestar a cargo do devedor, embora importe a "perda" do crédito para o antigo titular, tudo redundando afinal na manutenção do dever e na conservação do direito, agora na titularidade do solvens, ordenadas e articuladas, construtivamente, no conceito de transmissão, correspondente à vera natureza do instituto da sub-rogação segundo o nosso direito.
Também GALVÃO TELLES, op. cit., págs. 280 e ss., considera a sub-rogação em todos os casos como transmissão legal do crédito.
O problema é, efectivamente, de construção científica das soluções de um certo sistema, sendo por isso os resultados espácio-temporalmente contingentes. Veja-se, todavia, que não andam longe da doutrina sumariada as reflexões desenvolvidas sobre o tema por E. BETTI, Teoria General de Las Obligaciones, tomo II, tradução espanhola de J.L. de Los Mozos, Madrid, 1970, págs. 258 e ss.1.

O que sucede, de todo o modo, é ficar o fiador desobrigado frente ao credor, consoante a própria natureza e essência da obrigação de garantia pessoal e da sua acessoriedade.

Entenda-se, porém, a desoneração nos seus devidos termos.

Não há aí qualquer interferência dos mecanismos de imputação.

Admita-se que o devedor paga no vencimento uma fracção, da soma pecuniária devida, equivalente ao montante garantido pessoalmente por terceiro.

Parece não ser possível estabelecer uma ligação incindível entre a garantia e o montante satisfeito, sem embargo da coincidência aritmética, devendo a garantia, consequentemente, subsistir no tocante à parte incumprida, visto o seu escopo de assegurar o pagamento, até certo limite, de quanto o devedor deixe de pagar (6(62CUNHA GONÇALVES, op. cit., pág. 173; no mesmo sentido a jurisprudência francesa acerca do artigo 2013º do Code Civil - cfr. a decisão, de 5 de Novembro de 1968, da secção comercial da Cour de Cassation, referenciada no Code Civil, Éditions Dalloz, Paris, 1990/1991, pág. 1431, como segue: "Lorsque le cautionement ne garantit qu'une partie de la dette, il n'est éteint que lorsque cette dette est intégralement payée, les paiements partiels faits par le débiteur principal s'imputant d'abord, sauf convention contraire, sur la portion de la dette non cautionnée".2.

Ora, não é o que se verifica no nosso caso.

Pagando, pois, o que garantira, cumpriu o fiador, integralmente, a sua obrigação.

E, havendo cumprimento integral, haverá, por conseguinte, sub-rogação total na medida respectiva, não se integrando a hipótese do artigo 593º, nº 2, nem funcionando a respectiva estatuição.

Para que de sub-rogação parcial pudesse falar-se, permita-se o argumento, seria necessário que igualmente fosse possível, nessa hipótese, a sub-rogação total, correspondente, no mesmo parâmetro, ao cumprimento, pelo fiador parcial, da totalidade da prestação debitória.

No entanto, facilmente se vê que, se a esta integralidade estendesse o terceiro o cumprimento, não seria só por isso que, a título de garante parcial, poderia, alguma vez, atingir a sub-rogação na totalidade da prestação (artigo 592º, nº 1, do Código Civil).

Nesta óptica se compreende, aliás, o nº 2 do artigo 593º.

Por um lado, só tem, efectivamente, sentido falar de cumprimento parcial pelo garante, se este garantiu o cumprimento integral, recte, se este cumpriu apenas uma parte do que garantira.

Por outro lado, só em similar hipótese de cumprimento parcial será porventura inaceitável o tratamento paritário de sub-rogado e credor.

Obrigado à totalidade da prestação, mas cumprindo apenas numa parte, intoleravelmente se legitimaria aquele a disputar ao último o resíduo de satisfação que era ainda dever seu proporcionar-lhe.

Não assim, manifestamente, no caso de garantia parcial, que o garante honre, incumprida a obrigação, ponto por ponto.

Como afirmar então que o credor "se sub-roga contra si próprio", se lhe não assiste o direito de exigir montante superior à garantia, nem o poder de recusar o cumprimento respectivo?

Temos para nós que a previsão do artigo 593º, nº 2 é totalmente estranha à situação.


7. Notar-se-á, porém, que o preceito não fala de "cumprimento parcial", mas de "satisfação parcial" do credor.

E daí poder obtemperar-se que não importa tanto o cumprimento, em sentido técnico, parcial, como antes o facto de, meramente, quedar o credor apenas parcialmente satisfeito.

Pensa-se que a objecção carece de valor decisivo.

VAZ SERRA empregava indiferentemente as expressões "pagamento parcial" e "satisfação parcial" sem cuidar de fundamentar a diversidade terminológica, sinal de que a questão não assumia relevo no espírito do autor.

Comparem-se, ademais, semioticamente os nºs 1 e 2 do artigo 593º.

Se se atentar na redacção do primeiro número - "na medida da satisfação dada ao direito do credor" -, facilmente se compreenderá que a "satisfação parcial" a que alude o nº 2 não seja senão a "satisfação parcial dada ao credor" pelo adimplente, e satisfação entendida, portanto, em íntima conexão e necessariamente condicionada ao conteúdo e extensão do dever de prestar a cargo do devedor.

Não basta, dito de outro modo, a satisfação parcial do credor, como quer que esta se configure. Exigir-se-á, na lógica do exposto, tecnicamente, um verdadeiro cumprimento parcial, postulando, de resto, obrigatoriamente, agora sim, tão-só parcial satisfação.

Será que a solução pode teleologicamente justificar-se?

E que dizer da sua viabilidade dogmática?

Demos a palavra a ANTUNES VARELA (6(63Op. cit., págs. 344 e s.3:

"A obrigação - escreve - não se reduz ao direito de crédito, que é apenas uma das suas faces. Do ponto de vista económico-social, a relação creditória também não é apenas o instrumento coercivo da satisfação do interesse de determinada pessoa.

"A obrigação é uma relação jurídica e, como toda a relação, tem dois pólos. Se, de um dos lados, no anverso da medalha, a obrigação constitui um instrumento de satisfação de certa necessidade, do outro lado, no reverso da medalha, ela traduz-se na imposição coerciva do sacrifício correspondente ao sujeito passivo da relação (devedor ou obrigado).

"Embora qualquer outra pessoa possa realizar a prestação devida, sempre que esta tenha carácter fungível, só do devedor a prestação pode ser exigida. Só contra o obrigado dispara a arma que o poder de exigir coloca nas mãos do credor.

"Para assegurar a regular composição dos dois interesses fundamentais em conflito dentro da relação, podem existir (e existem frequentemente), ao lado do poder de exigir, atribuído ao credor, e do dever de prestar, que recai sobre o devedor, muitos outros poderes e deveres secundários ou acessórios".

Há, portanto, que reconhecer, perante a complexidade da relação creditória, que esta resultaria estrutural e funcionalmente desfigurada, não sendo, aliás, atingida aquela composição equilibrada dos dois feixes de interesses fundamentais que a polarizam, a privilegiar-se exacerbadamente um deles em detrimento do outro.

Em conclusão. No caso de garantia pessoal a uma parte do débito, se o garante paga tudo quanto garantiu não pode falar-se de cumprimento parcial - e de satisfação parcial hoc sensu -, restando por concretizar a previsão do artigo 593º, nº 2, do Código Civil.

E ocorrerá, por isso, na medida da solutio operada, efectiva sub-rogação do garante nos poderes do originário credor (artigo 593º, nº 1).


8. Na conclusão a que chegámos, mercê de ilações extrapoladas a pretexto da fiança atrás exemplificada, o valor destas alicerça-se argumentativamente nos caracteres de pessoalidade e de acessoriedade próprios da garantia em questão.

Erigida esta por lei, tipicamente, já o observámos, como que em paradigma de garantias pessoais, justifica-se, em princípio, a transposição das reflexões suscitadas para o domínio de outras garantias da mesma natureza, tais, justamente, os avales do Estado, cuja índole pessoal e acessória pudemos deduzir oportunamente do seu estatuto fundamental.

Em suma, também no caso de aval parcial assume o Estado, por sub-rogação, solvendo ao credor quanto garantiu, verificado o incumprimento do devedor, a titularidade do direito na importância respectiva, sem se sujeitar à aplicação do artigo 593º, nº 2 e, por isso, à preferência do credor no exercício do direito pela parte não cumprida (6(64No sentido da exclusão da preferência, no âmbito da fiança, com recurso a mecânica muito específica, ao que se julga, do direito francês, DE PAGE, Traité, tomo 6º, Bruxelas, -, págs. 900 e ss.4 .

A sub-rogação, aliás, investe ainda o Estado no penhor de que a Caixa-Geral de Depósitos fez, ademais, prover o seu direito (artigo 582º, nº 1, aplicável à sub-rogação por remissão do artigo 594º).

Só que a indivisibilidade da garantia real terá por consequência, oportunamente o frisámos (supra, nota 38), que tanto o Estado como a instituição de crédito a exerçam por inteiro - artigo 696º, aplicável ao penhor, ex vi do artigo 678º (6(65Dispõem os normativos citados:

"Artigo 678º
(Remissão)
São aplicáveis ao penhor, com as necessárias adaptações, os artigos 692º, 694º a 699º, 701º e 702º".

"Artigo 696º
(Indivisibilidade)
Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito."
Não se torna, aliás, necessário assumir aqui um compromisso formal acerca da questão de saber se e qual dos dois credores pignoratícios prefere ao outro, considerado o concurso na exclusiva base do penhor. Quer se entenda que concorrem no mesmo grau, quer se advogue que o penhor da Caixa neutraliza o penhor do Estado, em homenagem, quiçá, ao princípio prior tempore potior iure, a questão será em derradeiro termo decidida pela primazia do privilégio estadual, como se vai ver.5.


V

Dispomos já de elementos suficientes para a dilucidação das questões postas.


1. Qual, em primeiro lugar, a ordem de prioridades de pagamento, pelas forças respectivas do património do devedor, do crédito do Estado derivado da sub-rogação e dotado de privilégio mobiliário geral nos termos da Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73, de 2 de Janeiro, da parte remanescente do crédito da Caixa, provido de penhor (6(66É preciso não esquecer que o privilégio mobiliário geral do Estado incide sobre todos os bens móveis existentes no património do devedor, enquanto o penhor recai apenas sobre coisas móveis (ou direitos) certas e determinadas, não podendo abranger uma universalidade de bens enquanto tal, como, por exemplo, todo o património do devedor constituído por móveis (artigo 666º, nº 1, do Código Civil; ALMEIDA COSTA, op. cit., pág. 779; ANTUNES VARELA, op. cit., pág. 512.
Daí que deva sempre, nessa óptica, definir-se liminarmente se e em que termos se configura um concurso - decerto em determinada classe de bens, como sempre se torna mister - entre o Estado e a Caixa.
Trata-se, obviamente, de questão a resolver noutra sede, uma vez que as informações de que dispomos não incluem os necessários dados de facto.6, e dos créditos da Segurança Social contemplados com o privilégio mobiliário geral previsto no artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio?

Cremos, tudo ponderado, que deve optar-se pela graduação sucessiva do Estado, da Segurança Social e da Caixa-Geral de Depósitos, em primeiro, segundo e terceiro lugares, respectivamente.

Vimos (supra, III, 3.) que o crédito do Estado é considerado pela lei, para efeitos de graduação, justamente, como os créditos por impostos, atribuindo-lhe a Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73, a mesma dignidade concursual dos créditos fiscais.

Na óptica da lei, quer isto dizer, teleologicamente, que os créditos derivados da concessão de avales, mediante os quais se propiciam, por exemplo, a empresas privadas os meios que lhes permitam "financiar empreendimentos ou projectos de manifesto interesse para a economia nacional" (cfr., v.g., a Base II, nº 1), assumem, do ponto de vista do interesse público, a mesma importância dos créditos tributários, fonte de receitas mercê das quais providencia o Estado a satisfação de necessidades comunitárias essenciais.

Nada de estranhar, portanto, que, em homenagem ao interesse colectivo, a lei confira primazia ao pagamento das duas categorias de créditos sobre outros, portadores, dir-se-ia, distributivamente, de menor relevância social.

Tanto mais que os pagamentos do Estado às instituições de crédito em execução dos avales, originando os créditos sub-rogados em questão, são, naturalmente, efectuados com recursos que buscam a sua fonte, em maior ou menor medida, nas receitas tributárias, tornando-se nesta tónica partícipes, de algum modo, da natureza económica destas, embora não possam, como é óbvio, merecer a qualificação jurídica de "créditos fiscais" (6(67E, por isso mesmo, ao menos, se furtam à incidência do artigo 8º, nº 1, da Lei de Introdução ao Código Civil. Cfr. o parecer deste Conselho nº 11/72, citado supra, nota 14; sobre a temática, em geral, também ALFREDO JOSÉ DE SOUSA/SILVA PAIXÃO, op. cit., págs. 635 e s.7.

Neste termos se compreende que a lei mande graduar os créditos de avales no lugar pertencente basicamente aos impostos.

Já os créditos da Segurança Social, sem embargo da sua irrecusável importância no plano do interesse geral, não lograram alcançar, no programa político-legislativo detectável a partir dos módulos legais, a mesma prioridade concursual.

É disso flagrante exemplo o artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, que convém agora recordar:

"Artigo 10º
(Privilégio mobiliário)

1 - Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.

2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior".

Temos, aliás, para nós - ponto de vista que não vem, de resto, questionado, parecendo implicitamente aceite - que a expressão "créditos referidos" na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil não deve compreender-se à letra, limitando-se o seu alcance, restritivamente, aos créditos expressamente mencionados no referido preceito, à custa das conexões normativas relevantes e fazendo tábua rasa dos elementos sistemático e teleológico da interpretação.

Ponha-se à prova entendimento adverso.

Se o Estado concorresse com a Segurança Social, reclamando créditos por impostos e créditos sub-rogados em execução de avales, não poderiam, parece-nos, graduar-se os últimos em terceiro lugar, reservando-se o primeiro e o segundo lugares para os créditos tributários e da Segurança Social, respectivamente.

Semelhante graduação, obtida em subserviência à letra da referida expressão, violaria frontalmente a Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73, que manda graduar os créditos de avales com os créditos fiscais e no lugar destes.

E resultaria, ademais, ofensiva da ordem de prioridades dos interesses sociais implicados, consoante flui escalonada da conjugação daquela norma com o citado artigo 10º.

Desta combinação promana, portanto, que os créditos da Segurança Social se graduam logo após os créditos do Estado por impostos e os créditos que se graduam no lugar destes, tais os créditos originados nos avales.

Mas não se esgota neste aspecto o único alcance do artigo 10º.

O nº 2 do mesmo normativo define ainda a primazia dos créditos da Segurança Social, ou do privilégio que lhes assiste, sobre qualquer penhor, posto que de constituição anterior, e, portanto, necessariamente, sobre o crédito pignoratício da Caixa-Geral de Depósitos.

Não pode deixar de atribuir-se à estatuição o seu real e especial significado, quando se pense que o valor do penhor como garantia real vai ao ponto de conferir ao credor preferência sobre os demais credores, incluindo o credor dotado de privilégio mobiliário geral, como a Segurança Social - e o Estado -, embora unicamente pelo valor da coisa móvel ou do direito que constitui o seu objecto (artigo 666º, nº 1; cfr. também o artigo 749º do Código Civil) e se atente, ademais, no mínimo de publicidade apenas assegurado à garantia pignoratícia.

Posto o que, cumpre colher uma visão integrada na topografia da norma em questão.

No intuito imediato de definir a posição relativa dos créditos da Segurança Social em confronto com outros créditos, necessariamente vai implicada a definição das posições destes em relação à Segurança Social e entre si.

E não apenas por razões de pura lógica formal, por uma razão lógica, digamo-lo mais precisamente, de "transitividade".

O legislador não procedeu decerto a essa jardinagem arbitrariamente, mas reportando-se a escalas de valores e de interesses sociais que o determinaram, na sua ponderação relativa, a favorecer determinadas relações inscritas nos dispositivos do artigo 10º, em detrimento de outras igualmente possíveis.

Em consequência das opções político-legislativas adoptadas nesse campo, resulta manifesto que as exigências próprias da Segurança Social averbaram uma interessante colocação, fazendo-se preferir a créditos dotados de elevado coeficiente de prioridade.

Mas não lograram atingir um primeiro grau, cedendo ainda o passo às prerrogativas do Estado enquanto tal.

Dois referentes axiológicos, sopesados em relação de subordinação, ditariam assim a posição da Segurança Social.

Pode, porventura, neste contexto, imputar-se à intencionalidade legal, objectivamente manifestada na economia modesta de um mesmo artigo de lei, sombra de indiferença pela gradação de semelhantes referentes, pela relação, neles originada, entre créditos privilegiados do Estado e créditos pignoratícios, no mesmo texto deliberadamente equacionados?

E pode acaso recusar-se-lhe a consciência e coerência elementar de haver aceite e querido uma especial composição dessas relações que transparece logicamente da norma, quando outra seria imposta por regras gerais adrede formuladas?

Pensamos que a resposta é negativa a ambas as interrogações.

O artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80 configura, pois, a graduação de créditos que nos ocupa: primeiro o Estado, depois a Segurança Social e finalmente a instituição de crédito detentora do penhor (6(68No sentido desta graduação, SILVA PAIXÃO, Falência, págs. 356 e s., embora estando em causa um crédito fiscal do Estado; acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Abril de 1984, (Pleno), e de 17 de Outubro do mesmo ano, citados supra, nota 5, considerando-se no primeiro um crédito fiscal do Estado, mas não se especificando no segundo a natureza do crédito concorrente da "Fazenda Nacional".8.

Não existe, por conseguinte, a lacuna vislumbrada pela Caixa.

E a ordem de precedência que defende é ilegal, por ofensa da Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73 e do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, consideradas estas normas na sua necessária conjugação.


2. As coisas não se modificam, aliás, substancialmente quando, abstraindo da intervenção da Segurança Social, se considere o concurso limitado a reclamações da Caixa e do Estado.

Não se vê, desde logo, em lógica elementar, atento quanto se disse, como poderia a mera retirada da Segurança Social possuir a virtualidade de operar por si a ultrapassagem do Estado pela Caixa.

Julgamos ter ficado esclarecido que o regime definindo a geral prevalência do penhor, normas tais como os artigos 666º, nº 1, e 749º do Código, eram sobrepujadas, na sua generalidade, pelas especialidades consubstanciadas na Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73 e no artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80.

E parece inconcebível que a teleologia e as conexões sistemático-normativas reveladoras de uma certa escala de valores na perspectiva do interesse público, possam sofrer modificação essencial pela circunstância, aleatória, de os respectivos intérpretes - mutáveis - entrarem em cena simultânea ou alternadamente.

Desvendam-se a nossos olhos gradações e prioridades positivadas em abstracto pela lei, num quadro axiológico que as cambiantes de realidade não podem, só por serem tais, subverter.

Por isso que o concurso entre o Estado e a Caixa, no circunstancialismo resultante de tudo o que anteriormente se escreveu, se resolva ainda pela preferência do Estado.


3. Objectar-se-á que este tipo de concurso não cabe na previsão do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, pelo que seria impossível recortá-lo aí sem um inextricável "salto lógico".

Tratar-se-ia, mais precisamente, de que o nº 2 do artigo em causa apenas aos créditos privilegiados da Segurança Social, e não aos do Estado, atribui prioridade sobre o penhor.

Que dizer?

Na hermenêutica do artigo 10º começámos por aproximar a letra do preceito, necessário ponto de partida de toda a interpretação.

As sugestões liminarmente colhidas conduziram ao entendimento preferível segundo os parâmetros disponíveis aludidos no artigo 9º do Código Civil, com relevo para os elementos sistemático e teleológico.

Importa agora reverter à literalidade da norma para testar a suficiência do suporte oferecido à solução alcançada, concedendo, do mesmo passo, ao imperativo lógico-estrutural, há pouco deixado em suspenso, a atenção despertada pela objecção referida.

É inquestionável que o artigo 10º define posições relativas de categorias de créditos nele configuradas.

Neste sentido se estabelece - embora a pretexto da salvaguarda de interesses da Segurança Social - que os créditos desta cedem perante os créditos do Estado, mas preferem aos penhores.

Ora, perante esta ordem de preferências não pode duvidar-se da prevalência de semelhante regime sobre a normação geral dos artigos 666º, nº 1, e 749º do Código Civil - prioridade do penhor sobre o privilégio mobiliário -, que de outro modo seria aplicável.

Foi, justamente, por se ter presente o regime geral que se quis um regime especial de sinal contrário.

As regras dos artigos 666º, nº 1, e 749º passaram assim, bem ou mal, a sofrer a concorrência da disciplina especial vertida no artigo 10º - pretenda-se esta uma disciplina excepcional, tanto dá para a dilucidação do concurso de normas.

Restará apurar qual o âmbito desta solução.

Observe-se que o artigo 10º não define propriamente "modalidades" de concursos de créditos, mas tão-somente prioridades de garantias, todas as possíveis combinações entre estas sendo abrangidas no programa normativo.

Para nós, o preceito analisa-se então na seguinte estrutura: concorrência de créditos do Estado, da Segurança Social ou dotados de penhor (previsão); preferência dos créditos pela referida ordem (consequência jurídica).

Já demos conta da teleologia que presidiu a uma similar ordenação.

Ora, no plano lógico-formal, não pode pura e simplesmente negar-se que a previsão se integre quando concorram em concreto tão-só créditos da primeira e terceira categorias.

Seria ir demasiado longe e deformar a previsão da norma - "die Grenze des moglichen Wortsinnes ist auch die Grenze der Auslegung" (6(69ZIPPELIUS, op. cit., pág. 43.9-, cingi-la ao caso de concreto concurso das três categorias.

Facilmente se reconhecerá inexistir, no contexto literal, indicação relevante no sentido de semelhante restrição.

Pensa-se, por isso, que o concreto concurso limitado ao Estado e à Caixa ainda recorta a previsão do artigo, oferecendo, por conseguinte, a sua letra o apoio indispensável, de acordo com o artigo 9º, nº 3, do Código Civil, à interpretação justificada pelos argumentos sistemático e teleológico.

E tanto basta para que esta se deva ter como juridicamente fundada.

Cremos, aliás, ser esse o entendimento capaz de harmonizar as exigências normativas em presença, obviando às distorções e insegurança propiciadas por outras graduações, nomeadamente as sustentadas pela Caixa.

Afirmar, de resto, em contrário, que o Decreto-Lei nº 103/80 apenas visou proteger os interesses da Segurança Social e não os do Estado é, no mínimo, ignorar todo o jogo de ponderação de valores que esteve na base da formulação do artigo 10º, consoante análise há momentos desenvolvida, para além de, em abstracto, se exacerbar, numa medida porventura inaceitável, o elemento subjectivo da interpretação, insinuando, aliás, limites ao poder legiferante constitucional e infra-constitucionalmente infundados.

Veja-se que, em caso de concurso restrito ao Estado e á Segurança Social, a própria Caixa-Geral de Depósitos reconhece a preferência do Estado nessa hipótese.

Não será isto prova de que os interesses do Estado ainda relevam do âmbito do questionado artigo 10º?

Apesar de se terem alvejado, em primeira linha, os interesses da Segurança Social?

A objecção introdutoriamente equacionada considera, porém, ex adverso, que o nº 2 do citado normativo atribui prioridade, sim, sobre os penhores, mas nitidamente, tão-só ao privilégio da Segurança Social. Não ao do Estado.

Respondemos, no mesmo plano lógico-formal, que não se pode pretender dissociar o nº 1 do nº 2 do artigo 10º, dedicando a cada um dos segmentos, por seu turno, leituras parcelares, herméticas, com prejuízo da sua íntima conexão.

É elementar reconhecer que "as proposições singulares da lei não quedam isoladas umas ao lado das outras, antes constituem muitas vezes normas incompletas que apenas nas suas conexões revelam a norma completa", "o que é perfeitamente claro quando na hipótese ou na caracterização do efeito jurídico de uma norma se remete para outra" (verweisender Rechtssatz) (7(70LARENZ, Methodenlehre, pág. 140.0.

Cremos que a observação colhe em pleno o segundo número do artigo 10º.

Trata-se manifestamente de uma "norma incompleta" (unvollstandiger Rechtssatz; sprachlich vollstandiger Satz, als Rechtssatz aber unvollstandig) (7(71LARENZ, Methodenlehre, págs. 137 e ss.; ZIPPELIUS, op. cit., págs. 27 e ss. e 112 e s.; cfr. também supra, nota 16.1, cuja previsão, na autonomia que é possível outorgar-lhe, vai buscar a sua essencialidade nuclear ao contexto específico do nº 1 (verweisender Rechtssatz) (7(72LARENZ, Methodenlehre, págs. 140 e ss.; ZIPPELIUS, op. cit., págs. 31 e ss.2.

É óbvio. Dizer "este privilégio prevalece sobre qualquer penhor" carece de todo o sentido se não se souber que privilégio é esse que sobre qualquer penhor prevalece.

A tal interrogação responde, porém, o nº 1, justamente nessa medida integrando, de forma irrecusável, a previsão do nº 2.

Não se pense, todavia, essencial à completude deste segundo número apenas aquela parte do número antecedente que declara tratar-se de privilégio conferido a créditos da Segurança Social.

A norma continuaria a restar incompleta.

A criação de um privilégio supõe, com efeito, a definição da preferência que conaturalmente lhe vai implicada mediante a atribuição de certo grau na escala das possíveis garantias ou direitos concorrentes, detentores de análoga virtualidade.

Não teria qualquer significado limitar-se o preceito em causa a atribuir aos créditos da Segurança Social um privilégio mobiliário geral.

Como se saberia então que precedência observar no confronto de outras garantias com vocação endereçada à mesma classe de bens?

Daí que o nº 2 do artigo 10º receba do nº 1, além dos atributos da natureza - privilégio mobiliário geral - e da titularidade da garantia - créditos das caixas de previdência por contribuições e respectivos juros de mora -, ainda, necessariamente, as coordenadas - as primeiras coordenadas - da sua localização na topografia das garantias concorrentes: privilégio mobiliário geral com graduação logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.

É, de resto, assim que o legislador procede quando decide dotar alguma posição jurídica com determinada preferência.

Ponderem-se, apenas, a título exemplificativo, os seguintes casos paralelos: artigo 1117º, nºs 1 e 3 do Código Civil (preferência dos arrendatários comerciais na alienação do prédio arrendado, com graduação "por ordem decrescente das rendas", e "imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo" no direito de superfície); artigo 1409º, nº 1 (preferência do comproprietário na alienação a estranhos de quota dos consortes, com graduação "em primeiro lugar entre o preferentes legais"); artigo 1535º, nº 1 (preferência do proprietário do solo na alienação do direito de superfície, com graduação "em último lugar"); artigo 686º, nº 1 (preferência do credor hipotecário "sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo"); artigos 745º e ss. (ordem de graduação das diversas classes de privilégios creditórios).

Mercê da remissão, com o conteúdo apontado, para o nº 1, se preenche, pois, a incompletude do nº 2 do artigo 10º:

"2- Este privilégio [mobiliário geral dos créditos das caixas de previdência, com graduação logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil] prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior".

Pode acaso sustentar-se não ser viável vislumbrar, projectada na correcta literalidade e conformação lógica deste número, sombra de prioridade dos créditos do Estado sobre os penhores?

Pensa-se que a resposta é negativa.

Mas admita-se por hipótese a afirmativa.

Se apenas a Segurança Social - não o Estado - preferisse ao credor pignoratício, então, na pretendida aplicação isolada do nº 2, este preferiria àquele, por força do regime geral dos artigos 666º, nº 1, e 749º do Código Civil. E não se compreenderia, na conformação das relações concebidas nessa tónica, à luz da ideia da transitividade, que a Segurança Social não preferisse, por sua vez, ao Estado.

Sucede, porém, ser o Estado que prefere à Segurança Social, como claramente ressalta do nº 1.

A falsidade da conclusão apenas pode inculcar - argumentativamente, tal a postura em que discorremos - falsidade nas premissas.


VI

1. Sabemos que o ponto de vista da Caixa é diametralmente oposto.

O seu crédito, dotado de penhor, preferiria, em qualquer das hipóteses de concurso, ao crédito com privilégio do Estado.

Ora, como se salientou em momento oportuno (supra, III, 4.), a Caixa entende condicionar a representação do Estado ao abrigo do artigo único do Decreto-Lei nº 608/76, de 24 de Julho, à aceitação, pela Direcção-Geral do Tesouro, do esquema de graduação que defende.

De outro modo, a entender-se que prevalece sobre o dela o crédito do Estado, verificar-se-ia um conflito de interesses que obstaria à aludida representação.

Parece-nos acertada esta conclusão, embora a questão não tenha sido colocada correctamente, além do mais, porque o conflito existe, independentemente de a tese da Caixa ser ou não aceite pela Direcção-Geral.

Vejamos.

2. A colisão de interesses entre representante e representado, ou entre representados com o mesmo representante, constitui um limite básico do instituto da representação, com inúmeras precipitações tanto no nosso direito como nos ordenamentos estrangeiros.

Não seria possível dar aqui conta sequer da mínima parte desses casos, mas é viável anotar um ou dois exemplos mais frisantes.

É o princípio da colisão de interesses que explica, por exemplo, a proibição do "negócio consigo mesmo" (artigo 261º do Código Civil).

E é o mesmo conflito entre qualquer dos pais e o filho sujeito ao poder paternal, ou entre os filhos, que justifica a nomeação de curadores especiais na hipótese contemplada no artigo 1881º do Código Civil.

O mesmo se diga da defesa e representação do incapaz ou do ausente em processo civil, confiada, em princípio, ao Ministério Público pelo artigo 15º, nº 1, do Código respectivo, a qual a lei entrega a um defensor oficioso quando o Ministério Público represente o autor (nº 2).

Nos últimos casos indicados a lei limita, diversifica ou exclui a representação em virtude do conflito de interesses entre representante e representado - ou entre representados - para evitar a exposição do representado a danos resultantes do facto de a prossecução dos seus interesses ser confiada ao portador de interesses contrapostos, e, porventura, ainda para evitar a este, defendendo-o inclusive contra si próprio, a situação delicada em que ficaria se devesse prosseguir simultaneamente interesses reciprocamente contrastantes.

Como se configura, porém, precisamente, o princípio da colisão de interesses e o tipo ou tipos de conflitos de interesses que podem limitar e diversificar a representação?

3. O Código Civil italiano contém duas disposições homólogas do artigo 1881º, nº 2, do nosso Código Civil: a última alínea do artigo 320º e o artigo 347º, que sucessivamente se transcrevem:

"Se surgir conflito de interesses entre filhos sujeitos ao mesmo poder paternal, ou entre eles e o pai, o juiz tutelar nomeia aos filhos um curador especial."

"É nomeado um único tutor a vários irmãos e irmãs, a não ser que circunstâncias particulares aconselhem a nomeação de mais tutores.
Se houver conflito de interesses entre menores sujeitos à mesma tutela, o juiz tutelar nomeia aos mesmos um curador especial."

Entende a doutrina transalpina que o conflito de interesses aludido nestas normas surge, em geral, sempre que as pessoas referidas sejam portadoras de interesses contrapostos cuja realização simultânea se torne impossível.

Mais precisamente, é necessário que um dos sujeitos tenha, em relação ao objecto do negócio a realizar, um interesse a cuja integral satisfação não possa haver lugar sem se agravar, em maior ou menor medida, a condição ou posição do outro.

Assim, o conflito de interesses resolve-se, em última análise, no perigo de dano a que o representado é exposto na eventualidade de o representante, prosseguindo o interesse contrário, não cuidar de modo exclusivo o seu interesse.

Face a uma situação semelhante, que impede o funcionamento da representação, o Código italiano não se limita à pura e simples repressão, admitindo por exemplo, a anulação do negócio celebrado pelo representante em estado de conflito de interesses; vai ao ponto de estabelecer, nas normas aludidas, os meios idóneos à remoção preventiva dos inconvenientes que poderiam resultar da situação anormal (7(73G. DELLA FONTANA, Curatore speciale, "Novissimo Digesto Italiano", vol. V, Torino, 1964, págs. 52 e s., que acompanhámos muito de perto.3.

Precisam também os autores italianos que o conflito de interesses a que se vem aludindo não tem que revestir carácter económico, podendo surgir entre valores não patrimoniais e mesmo morais (7(74ALDO DELL'ORO, Della Tutela dei Minori, "Commentario del Codice Civile a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe Branca", anotação 3 ao artigo 347º, págs. 57 e s.; W D'AVANZO, Rappresentanza (Diritto civile), "Novissimo Digesto Italiano", vol XIV, Torino, 1967, págs. 824 e s.4.

Discute-se, porém, se o conflito deve ser "actual" ou se basta que seja "eventual", ou "potencial", isto é, se se exige um conflito verdadeiro e próprio ou se será suficiente o simples perigo de um conflito. Na primeira hipótese, o conflito traduz-se num efectivo prejuízo do dominus (conflito directo), na segunda há apenas o perigo de futuro prejuízo (conflito indirecto).

Autores há para quem o conflito existe logo que surge a simples possibilidade de um dano, pelo que deve rejeitar-se a exigência de actualidade. Um conflito de interesses pode concretizar-se mesmo num simples perigo de dano (conflito indirecto).

E isto porque, a exigir-se o efectivo prejuízo, a relevância do conflito de interesses dependeria da verificação dos efeitos deste, redundando em não se tomar em conta o conflito, mas tão-só as suas consequências.

O que, além do mais, contradiria a lei, que fala de "conflito de interesses e não de "danos causados ao dominus" (7(75No sentido exposto, D'AVANZO, ibidem.5.

Ainda marcando a suficiência da simples potencialidade do conflito, atribui-se, por outro lado, relevo, no sentido da sua prova, a simples presunções derivadas de situações determinadas, como as relações de parentesco entre o representante e o terceiro portador do interesse conflituante com os interesses do representado (7(76D'AVANZO, ibidem.6.

Outra situação particular em que o Código italiano presume mesmo a existência de um conflito de interesses é prevista no artigo 1395º, alínea primeira, disposição homóloga do nosso artigo 261º, que se reproduz:

"É anulável o contrato que o representante conclui consigo mesmo, considerado na sua própria pessoa ou como representante de uma outra parte, a menos que o representado o tenha especificamente autorizado, ou o conteúdo do contrato seja determinado de modo a excluir a possibilidade de conflito de interesses".

A doutrina italiana não deixa de acentuar, uma vez mais, a respeito desta norma, as mesmas ideias, antes expostas, que caracterizam o conflito, sobretudo a tónica da eventualidade.

Deste modo, haverá o conflito suposto no artigo 1395º quando o representante se encontra em situação de poder proporcionar vantagens a si ou a outrem valendo-se da procuração, com "perigo de dano" para o representado (7(77GIOVANNI BALBI, Contrato con se stesso, "Novissimo Digesto Italiano", vol. IV, Torino, 1964, págs. 695 e s.7.

E não deixa de haver esse conflito a que o preceito confere relevo - salienta-se -, "pelo facto de o representante haver cuidado adequadamente o interesse do representado" (7(78BALBI, ibidem.8.

Algumas normas - que encontram paralelo no sistema português - vedam, inclusivamente, ao representante a faculdade de, enquanto tal, agir, em consideração de posições jurídicas formalmente contrapostas e prescindindo da existência de efectivo e real conflito de interesses.

Trata-se de normas especiais ditadas pela necessidade de eliminar, não apenas o conflito, mas toda a aparência do mesmo.

Assim, os administradores de entes públicos, os oficiais públicos, aqueles que por lei ou por acto de autoridade pública administram bens alheios, não podem ser compradores, mesmo em hasta pública, nem directamente, nem por interposta pessoa, dos bens que respectivamente administram ou que são vendidos no exercício das suas funções.

Sem que lhes aproveite, inclusive, a demonstração da não existência de conflito real (7(79BALBI, ibidem.9.

Por outro lado ainda, adjectivando muitas dessas prescrições, o artigo 78º, última alínea, do Código de Processo Civil italiano prevê a nomeação de um curador especial ao representado quando exista conflito de interesses com o representante e esteja em causa a prolação, ao respeito, de uma decisão judicial.

Nomeação que a doutrina reporta, aliás, necessária mesmo no caso de conflito de interesses entre pessoas representadas pelo mesmo representante (8(80P. D'ONOFRIO, Commento al Codice di Procedura Civile, 3ª edição, Torino, 1953, vol. I, pág. 131.0.


4. Por razões idênticas às anteriormente explanadas se explica na Alemanha o § 181 do BGB (Selbstkontrahieren), nos termos do qual não pode o representante, em princípio, representar a outrem num negócio consigo mesmo ou com terceiro que também represente.

Visa-se, do mesmo modo, impedir um possível prejuízo do representado, ou de um dos representados, no caso de conflito de interesses.

O § 181 recusa assim genericamente a possibilidade do auto-contrato, por causa do perigo, com ele conexo, de um conflito de interesses, e não apenas quando exista esse perigo no caso particular de um dos representados (8(81K. LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts, 6ª edição, C. H. BECK, München, 1983, págs. 582 e s.; cfr. também PALANDT/HEINRICHS, Bürgerliches Gesetzbuch, 49ª edição, C.H. Beck, München, 1990, págs 169 e ss.; F. JÜRGEN SACKER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. I, 2ª edição, München, 1984, págs. 1375 e ss.1.


5. Pensa-se, ponderando os subsídios doutrinários recolhidos, que não pode deixar de se aceitar existir um conflito de interesses entre a Caixa-Geral de Depósitos e o Estado, que impõe a diversificação da representação deste nos feitos judiciais em que ambos concorram ao património de um devedor comum.

Ainda que a Direcção-Geral do Tesouro aceitasse a posição da Caixa, é evidente que tal não poderia vincular nesse sentido, nem o Estado, nem a instância judicial a que, em último termo, sempre competirá a definição dos direitos em presença.

Daí que bem possa a final resultar uma composição assaz diversa do acordo, consubstanciando já um conflito efectivo, a revelar a existência prévia, em qualquer caso, de colisão potencial.

Natural, por isso, que a representação do Estado seja diversificada e confiada aos cuidados do Ministério Público.


VII

Termos em que se conclui:

1 - De harmonia com a Lei nº 1/73, de 2 de Janeiro, o aval prestado a financiamentos concedidos pela Caixa-Geral de Depósitos, ou outras instituições de crédito, a empresas privadas reveste a natureza de garantia pessoal e acessória, mediante a qual o Estado avalista assume, perante a instituição credora, o dever de efectuar a prestação debitória ou a parte da prestação debitória garantida, no caso de incumprimento do devedor;

2 - Prestado aval apenas a uma fracção da dívida, o Estado, satisfazendo à Caixa a parte garantida, verificado o incumprimento, cumpre tudo a quanto se obrigou, ficando desonerado em face daquela e sub-rogado nos seus direitos frente ao devedor (artigo 592º, nº 1, do Código Civil e Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73);

3 - A prestação nestas condições realizada, consubstanciando todo o objecto da obrigação impendente sobre o Estado e o respectivo adimplemento ponto por ponto, não traduz mero cumprimento parcial e, portanto, parcial satisfação dada ao credor, no sentido do artigo 593º, nº 2, do Código Civil, pelo que a sub-rogação não se representa como um caso da hipótese configurada neste artigo;

4 - Mercê da sub-rogação, transfere-se para o Estado a titularidade do crédito na parte garantida e solvida, assim como as garantias e outros acessórios do direito transmitido (artigos 593º, nº 1, e 582º, nº 1, e 594º, conjugados, do Código Civil, e Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73), tal o penhor originalmente constituído a favor da Caixa para garantia da obrigação principal;

5 - O crédito advindo à titularidade do Estado por via da sub-rogação fica, ademais, garantido por privilégio mobiliário geral sobre os bens do devedor, nos termos da Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73;

6 - O aludido crédito do Estado, dotado deste privilégio, gradua-se, por força da remissão ditada pela citada Base XII, nº 2, para o artigo 747º, nº 1, alínea a), do Código Civil, com os créditos por impostos e no mesmo lugar destes;

7 - Os créditos por contribuições à Segurança Social beneficiam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil (artigo 10º, nº 1, do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio), mas com preferência a qualquer crédito pignoratício, ainda que o penhor tenha sido anteriormente constituído;

8 - Nos termos dos preceitos conjugados do artigo 10º, nº 1, do Decreto-Lei nº 103/80, e da Base XII, nº 2, da Lei nº 1/73 - que reconhece aos créditos do Estado resultantes da execução de avales a mesma dignidade e grau concursual dos créditos fiscais -, os créditos privilegiados da Segurança Social, conforme a anterior conclusão 7., são graduados logo a seguir aos créditos fiscais e aos créditos de avales do Estado;

9 - Em homenagem à ordem e gradação de valores perfilhada pela lei e tornada subjacente ao artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, os créditos privilegiados de impostos e de avales do Estado preferem aos créditos privilegiados da Segurança Social e estes aos créditos pignoratícios, cedendo os últimos, por seu turno, perante essas duas classes de créditos, seja o concurso de credores concretamente extensivo a todas as aludidas modalidades ou só a algumas delas;

10 - A figura do conflito ou colisão de interesses entre representante e representado, impondo a limitação, diversificação ou exclusão da representação confiada, define-se pela existência de um perigo de dano a que o representado é exposto na eventualidade de o representante, prosseguindo o interesse contrário, não cuidar de modo exclusivo o interesse daquele;

11 - Verifica-se um semelhante conflito na hipótese de a Caixa-Geral de Depósitos, ou outra instituição de crédito, assumir a representação do Estado ao abrigo do artigo único do Decreto-Lei nº 608/76, de 24 de Julho, quando os dois entes hajam de intervir em concurso de credores nas posições delineadas nas anteriores conclusões 1. a 9., devendo em tal situação ser a representação exercida pelo Ministério Público.
Anotações
Legislação: 
L 1/73 DE 1973/01/02 BI - BIX BX BXI BXII.
CCIV867 ART782 ART823. DL 387/88 DE 1988/10/25 ART37 ART38.
CPC67 ART15. DESP CONJ IN DR 1S DE 15/03/1976 PAG528.
DL 43710 DE 1961/05/24 ART4 N2.
DL 47344 DE 1967/11/25 ART8 N1.
CCIV66 ART9 ART10 ART11 ART236 ART261 ART582 ART589 ART590 ART591 ART592 ART593 ART594 ART606 ART627 ART631 ART638 ART644 ART666 ART678 ART696 ART735 ART737 ART747 ART749 ART763 ART767 ART1117 ART1409 ART1535 ART1881. DN 231/78 IN DR 1S DE 1978/09/15.
DL 346/73 DE 1973/07/03.
DL 51/75 DE 1975/02/07 ART1 ART2 ART3 ART6.
DL 516/76 DE 1976/07/03 ART1.
DL 608/76 DE 1976/06/24 ARTUNICO.
DL 103/80 DE 1980/05/09 ART10.
Jurisprudência: 
AC STATP DE 1984/04/11 IN BMJ N336 PAG412.
AC STA DE 1984/10/17 IN AD N279 PAG294.
P CC 8/82 DE 1982/03/18 IN PCC VOLUME19 PAG3.
RCR 57/82 DE 1982/03/18 IN DR 1S N19 DE 1982/04/05.
Referências Complementares: 
DIR FINANC / DIR CIV * DIR OBG.*****
CCIV AL ART181 ART268.
CCIV BE ART990.
CCIV FR ART1252 ART2013.
CCIV IT ART320 ART347 ART1205 ART1395.
CPCIT ART78.
Divulgação
Número: 
DR168
Data: 
23-07-1992
Página: 
6762
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