Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:
I
Na sequência do parecer nº 80/98 deste Conselho Consultivo, votado na sessão de 25 de Março de 1999 ([1]), veio o Professor (...) requerer a Sua Excelência o Ministro das Finanças a concessão de pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, ao abrigo do disposto nos artigos 27º e 28º do Decreto–Lei nº 404/82, de 24 de Setembro ([2]), requerimento remetido à Caixa Geral de Aposentações pelo Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado do Orçamento ([3]).
A Caixa Geral de Aposentações, por sua vez, remete a Sua Excelência o Secretário de Estado do Orçamento um parecer elaborado no Gabinete jurídico daquela instituição, acompanhado “dos elementos probatórios carreados para o processo pelo interessado” ([4]).
O parecer daquele Gabinete jurídico, após desenvolver o enquadramento legal da questão, conclui nos termos seguintes:
“Tudo visto, parece dever levar-se ao conhecimento de Sua Excelência o Secretário de Estado do Orçamento que o reconhecimento do direito de o Senhor Professor (...) perceber uma pensão por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao País depende de despacho conjunto de Suas Excelências o Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças, precedendo parecer favorável da Procuradoria-Geral da República”.
II
Analisados os documentos que nos foram remetidos como suporte do pedido de parecer, constata-se que os mesmos são exclusivamente constituídos pela provas documentais carreadas pelo requerente (...), bem como a indicação de um rol de testemunhas a serem inquiridas aos factos por si relatados.
Nenhuma diligência, porém, foi efectuada pelo órgão instrutor, nem sequer se mostra elaborado relatório final donde conste o pedido do interessado, a proposta de decisão e a síntese das razões de facto e de direito justificativas do entendimento adoptado, conforme o prevê o artigo 105º do Código do Procedimento Administrativo.
III
1. Este corpo consultivo teve já a oportunidade de se pronunciar, no parecer nº 82/96 ([5]), a propósito das alterações introduzidas ao artigo 28º do Decreto–Lei nº 404/82, pelo Decreto–Lei nº 97/96, de 18 de Julho, sobre “se e como deve ser organizado o processo administrativo e sua consequências no apuramento da matéria de facto, verificação de requisitos formais e ónus a prova”, bem como “modo de efectuar a demonstração da exemplar conduta moral e cívica do requerente, um dos requisitos exigidos pelo artigo 3º do citado Decreto–Lei nº 402/82, para a concessão da pensão por serviços excepcionais”.
O parecer que citámos concluiu, no que ora releva:
“1ª Na organização do processo para obtenção de pensão por serviços excepcionais e relevantes - Decreto–Lei nº 404/82, de 24 de Setembro -, a Administração (militar ou civil) deve observar o que ora se encontra regulado no Código do Procedimento Administrativo, salvo quando naquele diploma se preveja algum “procedimento especial” que se lhe sobreponha;
“2ª Também no que respeita à repartição do ónus da prova se observarão as disposições do CPA, designadamente do artigo 88º, por não se encontrarem em contradição com regras do Decreto–Lei nº 404/82, maxime, o seu artigo 19º;
“3ª (...);
“4ª (...);
“5ª A apresentação de prova pelo requerente quanto ao requisito da “exemplar conduta moral e cívica”, a que se refere o artigo 3º do Decreto–Lei nº 404/82, não dispensa a Administração de oficiosamente proceder às diligências necessárias à sua verificação;
“6ª (...);
“7ª (...).”
2. O diploma atinente às pensões por serviços excepcionais e relevantes que vimos citando não sofreu entretanto alterações que possam pôr em causa o acerto destas conclusões que, assim, devem manter-se.
Haverá então de ser observado pelo órgão instrutor, para além da instrução do processo com as diligências tidas por convenientes, o disposto no artigo 105º do C.P.A, bem como todas as regras de procedimento e de processo a que se refere a Parte III, na medida em que não se lhe sobreponham quaisquer regras especiais previstas, no mesmo domínio, no Decreto–Lei nº 404/82 ([6]).
2. Poderá perguntar-se se se aplica ou em que medida se aplica, na organização e decisão dos processos para concessão destas pensões, o Código do Procedimento Administrativo - aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, revisto pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro.
Definido, pelo artigo 1º, nº 2, daquele Código, o processo administrativo como “o conjunto de documentos em que se traduzem os actos e formalidades que integram o procedimento administrativo”, por sua vez, no artigo 1º, nº 1, define-se o procedimento administrativo como “a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução”.
Trata-se de realidades incindíveis - processo e procedimento - representando esta o conteúdo e aquela o continente da actuação da Administração no seu relacionamento com terceiros, exigindo-se, em qualquer destas facetas, rigor e transparência nos diversos passos que encaminham e suportam a decisão final.
As disposições do CPA aplicam-se a todos os órgãos da Administração Pública no relacionamento da sua actividade administrativa de gestão pública com os particulares, enunciando-se no nº 2 do artigo 2º quais sejam esses órgãos para efeitos do Código, começando-se pelos “órgãos do Estado e das Regiões Autónomas que exerçam funções administrativas” (alínea a)).
“Pretende-se - no dizer do preâmbulo do diploma - .... regular expressamente a actuação intersubjectiva de gestão pública da Administração, enquanto, por outro lado, a restante actividade administrativa, sem ser directamente regulada, não deixa de ficar subordinada aos princípios gerais da acção administrativa”.
Com efeito, se os princípios gerais da actividade administrativa constantes do Código e as normas que concretizam preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer actuação da Administração Pública, acrescenta-se no preceito do nº 7 do artigo 2º citado:
“No domínio da actividade de gestão pública, as restantes ([7]) disposições do presente Código aplicam-se supletivamente aos procedimentos especiais, desde que não envolvam diminuição das garantias dos particulares”.
Ou seja, se a tramitação procedimental para certa matéria se encontrar prevista em diploma especial, observar-se-á este em primeira linha e supletivamente as regras do CPA, com a ressalva estabelecida.
No preâmbulo do Decreto-Lei nº 6/96 esclarece-se que se visou clarificar “o âmbito de aplicação do Código de modo a tornar claro que as disposições procedimentais do Código são aplicáveis subsidiariamente aos procedimentos especiais”.
Para o que aqui interessa poder-se-á concretizar algo mais.
O imperativo constitucional do artigo 268º, nº 3, ao vincular o legislador ordinário a estabelecer regras de processamento da actividade administrativa, asseguradoras da racionalidade dos meios a usar pelos serviços e da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhe respeitem, aponta desde logo para a subordinação genérica a um esquema que privilegie aqueles parâmetros no relacionamento de qualquer segmento da Administração com o particular.
Assim que haverá de ser observado, não apenas o preceito do artigo 105º do CPA - relatório final a elaborar pelo órgão instrutor quando não é o decisor -, mas todas as regras de procedimento administrativo e de processo a que se refere a Parte III, na medida em que não se lhe sobreponham quaisquer regras especiais previstas, no mesmo domínio, no Decreto-Lei nº 404/82 ([8]).
IV
3. Debruçando-nos especialmente sobre o capítulo III do Decreto–Lei nº 400/82 verificamos tratar ele do “processo para a concessão de pensão”, estruturado nas seguintes divisões:
3. DIVISÃO I – “Da petição”
3. DIVISÃO II – “Trâmites processuais”
3. DIVISÃO III – “Especialidades do processo serviços excepcionais e relevantes”
3. DIVISÃO IV – “Da execução da decisão”
Parece claro que as disposições deste Capítulo III, ordenadas sob as divisões II e IV, também se aplicam, em tudo o que for compatível com as especialidades do processo, aos pedidos de pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País e não apenas ao processo para concessão de pensão de preço de sangue.
Por relevante à questão que ora nos ocupa, interessa reter o disposto nos artigos 17º, 19º e 27º daquele diploma:
“Artigo 17º
“A concessão da pensão depende de requerimento do interessado ou de quem legalmente o represente, no qual se indiquem a residência, nome, número, posto, cargo e unidade ou corporação a que pertencia o falecido”.
“Artigo 19º
“1. Os interessados instruirão os seus requerimentos com as certidões, atestados e demais documentos que provem os factos demonstrativos do direito à pensão, entregando-os à autoridade civil ou militar da localidade onde residem, a qual deles passará recibo, enviando-os directamente para o ministério competente.
2. O processo e documentos necessários para os instruir são gratuitos e isentos do imposto do selo.
3. As autoridades militares e civis facilitarão a aquisição dos documentos necessários para a instrução dos processos”.
Na DIVISÃO III, dispõe, então, o artigo 27º:
“O processo para a concessão de pensão por serviços excepcionais ou relevantes prestados ao País é organizado, com base em requerimento do interessado ou em ordem do Governo, no ministério de que depender ou dependia a pessoa a quem respeitar o efeito ou serviço justificativo dela”.
2. No que concerne à instrução e prova dos factos, cuida o Código do Procedimento Administrativo nos artigos 87º a 93º, impondo-se apelar ainda ao disposto no artigo 56º, sobre o princípio do inquisitório. Os órgãos administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerarem convenientes para a instrução, procedimento de alguma maneira exigido por aqueles altos princípios da justiça e da imparcialidade, referidos no artigo 6º do mesmo Código.
3. Importa então saber se o disposto no artigo 19º do Decreto–Lei nº 404/82, supra transcrito, impõe ao particular – requerente – o “monopólio da prova”, afastando o dever que impende sobre a Administração de indagar os factos relevantes à decisão a tomar, consagrado nos já citados nos artigos 87º; 89º; 90º; 91º; 92º; 93º; 56º e 6º, todos do C.P.ª ([9]).
FERREIRA PINTO e GUILHERME DA FONSECA ([10]) opinam que “tendo a Administração a obrigação de decidir uma dada questão e não se provando certos factos que justificavam uma decisão favorável a um interessado que, por isso, os devia provar, tem de decidir contra ele”.
Assim que, embora o ónus da prova no procedimento administrativo se mostre em regra, temperado pelo princípio do inquisitório a cargo do órgão administrativo instrutor, há que atentar sempre no seu relacionamento com o sentido da decisão final.
Tudo ponderado, a exigência vertida no artigo 19º do Decreto–Lei nº 404/82, já referido, impondo aos interessados a instrução dos “seus requerimentos com as certidões, atestados e demais documentos que provem os factos demonstrativos do direito à pensão”, não anda longe nem se contrapõe, à que resulta do artigo 88º do CPA que determina caber aos “interessados provar os factos que tenham alegado”, sem prejuízo do dever de a Administração averiguar os factos cujo conhecimento seja conveniente a uma justa e rápida decisão da causa, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito – artigo 87º, nº 1, do mesmo Código.
No entanto, posto que a Administração se possa socorrer de todos os meios de prova admitidos em direito, não poderá, por outro lado, minimizar o cumprimento de certas formalidades visando garantir a fidedignidade desses meios de prova – cfr. artigos 341º a 395º do Código Civil, maxime artigos 363º e 373º a 376º.
Precisando a interpretação do artigo 88º do CPA, M. Esteves de Oliveira et alii ([11]) dizem: “... a haver aqui um ónus de prova dos factos, ele recai sobre o interessado a quem aproveitam (não sobre quem os tenha alegado), como aliás acontece no processo judicial”.
E logo colocam o acento tónico no dever de a Administração “proceder a todas as investigações que repute necessárias para encontrar as bases da sua decisão...”, salvo se, manifestamente, recair sobre o interessado o “monopólio” da prova.
O princípio, porventura pouco rigoroso, de “quem alega prova” surge assim temperado pelo princípio do inquérito ou da oficiosidade da intervenção da Administração.
Atente-se, por outro lado, que naquele Decreto–Lei nº 404/82 se prevêm diligências cuja realização é expressamente cometida à Administração em ordem a uma correcta solução do pedido.
O que se vem dizendo é de molde a concluir que também aqui as regras do CPA são aplicáveis, já que não existem outras “especiais” que se lhe sobreponham.
E se alguma consideração se pode acrescer no âmbito específico das pensões de sangue ou por serviços excepcionais e relevantes à Pátria, será no sentido de se reforçar o entendimento de que, na indagação dos factos pelo requerente, deverá verificar-se o concurso ou a participação activa da Administração e não lançar sobre os ombros daquele, exclusivamente, o peso da prova dos factos, tanto mais que o particular carece de competência para instrução do processo – artigo 86º do CPA ([12]).
V
Como já se deu notícia, a entidade instrutora não procedeu a nenhuma diligência de instrução nem apresentou o relatório a que alude o artigo 105º do CPA.
O apuramento dos factos terá de resultar do empenhamento conjunto da entidade instrutora e do requerente, sem o que este Conselho Consultivo não poderá pronunciar-se sobre o pedido ora em análise.
Pelo exposto:
ouso sugerir a V. Exª a devolução do processo para a instrução do mesmo pela entidade competente, caso não entenda em seu alto e prudente critério submeter a questão ao Conselho Consultivo.
[1]) Exemplar junto do processo e cujas conclusões são as seguintes:
“1º - O reconhecimento de méritos excepcionais de cidadãos nacionais na divulgação da cultura e da língua portuguesas é susceptível de ser avaliado no âmbito do artigo 3º, nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro, que aprovou o actual regime jurídico das pensões por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País;
“2º - O direito à pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País há-de resultar da prática de actos reveladores de que o seu autor se tornou credor do reconhecimento nacional em virtude da excepcionalidade e relevância dos mesmos, a apurar em processo próprio e de acordo com a tramitação a que aludem os artigos 27º e 28º do Decreto-Lei nº 404/82, de 24 de Setembro.”
[2]) Revogado pelo Decreto–Lei nº 466/99, de 6 de Novembro, que, no entanto, só entrará em vigor no próximo dia 1 de Janeiro de 2000 (artigo 35º).
[3]) Cfr. ofício nº 0020848, de 21 deJulho de 1999, da Caixa Geral de Aposentações.
[4]) Ofício citado na nota anterior.
[5]) Ainda inédito e que passaremos a seguir, praticamente na íntegra.
[6]) A título de exemplo, poderá fazer se o confronto entre os artigos do Decreto–Lei nº 404/82 que dispões sobre legitimidade e o artigo 53º do CPA, onde se detectam especialidades daqueles.
[7]) O nº 6 refere-se às disposições relativas a organização e actividade administrativas a aplicar em todas as actuações da AP no domínio da gestão pública. Este número é novo. E se a actividade administrativa vem inscrita na Parte IV do Código, já o conceito de “organização administrativa” não decorre com tanta clareza, sendo de presumir que se tenha querido abranger pelo menos o disposto no Capítulo I da Parte II do mesmo Código. De qualquer modo, um sentido ampliativo na aplicação do diploma parece resultar evidente da nova redacção deste artigo 2º.
[8]) A título de exemplo, poderá fazer-se o confronto entre os artigos do Decreto-Lei nº 404/82 que dispõem sobre legitimidade e o artigo 53º do CPA, onde se detectam especialidades daquele.
[9]) Cfr. FREITAS DO AMARAL e outros, “Código de Procedimento Administrativo Anotado, Coimbra, 3ª edição, ESTEVES DE OLIVEIRA e outros “Código do Procedimento Administrativo comentado” pág. ....
[10]) “Código do Procedimento Administrativo, anotado e comentado, 3ª edição, Porto, 1996, pág. 93.
[11]) “Código do Procedimento Administrativo, 2ª Edição, actualizada, revista e aumentada, pág. 422 e seg.
[12]) Sobre ónus da prova em casos de pedido de pensão de preço de sangue no tocante a nexo de causalidade e sua eventual interrupção - cfr. Pareceres nºs 105/85, de 11.11.85, DR, II Série, de 22.03.86, e 32/86, de 16.07.87, DR, II Série, de 28.12.87.