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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
8/2010, de 28.04.2010
Data de Assinatura: 
28-04-2010
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério dos Negócios Estrangeiros
Relator: 
MANUEL MATOS
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CONVENÇÃO
DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
ESTADO
EXTRADIÇÃO
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
HABEAS CORPUS
PRESCRIÇÃO
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
CRIME CONTRA A HUMANIDADE
DIREITOS HUMANOS
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE
Conclusões: 
1.ª A Convenção Internacional para a Protecção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, aberta à assinatura em Paris, em 6 de Fevereiro de 2007, não se apresenta em geral desconforme com o ordenamento jurídico português nos planos constitucional e infraconstitucional;

2.ª O instrumento referido na conclusão anterior merece as considerações e observações constantes nos pontos IV, V e VI.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Procurador-Geral da República,
Excelência:




I

Por ofício subscrito pelo Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, é solicitada a elaboração, com a maior brevidade possível, de um «parecer técnico» sobre a Convenção Internacional para a Protecção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, com vista à instrução do respectivo processo de ratificação por Portugal[1].

Tendo Vossa Excelência determinado a sua distribuição pelo Conselho Consultivo, com carácter de urgência[2], cumpre emitir, em tal condicionalismo, parecer, o qual, por força das limitações decorrentes do estatuto desta instância consultiva, com competência restrita a matéria de legalidade [artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público], visa essencialmente a compatibilidade do texto daquela Convenção com as normas e princípios da ordem jurídica portuguesa.




II

1. A Convenção Internacional para a Protecção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, que também se designará nesta informação somente por Convenção, foi adoptada em 20 de Dezembro de 2006, durante a 61.ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, pela Resolução A/RES/61/177, tendo ficado aberta à assinatura em Paris, em 6 de Fevereiro de 2007.

Visando o enquadramento da matéria objecto do instrumento jurídico em análise, importa, desde já, que se convoque a definição de «desaparecimento forçado», contida no seu artigo 2.º.

«Para os efeitos da presente Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, o apoio ou com o consentimento do Estado, seguido da recusa em reconhecer a privação de liberdade, ou através do encobrimento do destino ou do paradeiro das pessoas desaparecidas, assim colocando tais pessoas fora da esfera da protecção da lei.»

De acordo com o preceito transcrito, o conceito de desaparecimento forçado encerra três elementos constitutivos essenciais: (1) a privação da liberdade; (2) realizada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, o apoio ou com o consentimento do Estado; (3) a recusa em reconhecer a privação da liberdade ou a ocultação do destino ou da localização da pessoa desaparecida[3].

A prática do desaparecimento forçado ou involuntária é considerada por todos como uma das mais graves e odiosas violações dos direitos fundamentais da pessoa humana, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e enunciados em ambos os Pactos Internacionais sobre os Direitos do Homem. Ela constitui uma violação complexa e múltipla dos direitos do Homem por se traduzir, designadamente, numa gravíssima ofensa da dignidade da pessoa humana, do direito à vida, do direito à liberdade e segurança, do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, do direito à protecção da lei, do direito à não sujeição a tortura ou a outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes[4].

Constitui, tem sido sublinhado, «uma forma de sofrimento duplamente paralisante: para as vítimas, frequentemente torturadas e em constante receio pelas suas vidas, e para os membros das suas famílias, que ignoram o destino dos seus entes queridos e cujas emoções oscilam entre a esperança e o desespero, torturando-se com dúvidas e esperando, por vezes durante anos, por notícias que podem nunca chegar. As vítimas estão bem cientes de que as suas famílias não sabem o que lhes sucedeu e que as hipóteses de alguém vir em sua ajuda são reduzidas. Subtraídas à protecção da lei e “desaparecidas” da sociedade, elas são de facto privadas de todos os seus direitos, ficando à mercê dos seus captores»[5].

2. O recurso ao desaparecimento forçado como prática sistemática para a criação de um estado de terror nas populações teve lugar durante a 2.ª Guerra Mundial, quando milhares de pessoas foram transferidas secretamente dos territórios ocupados da Europa para a Alemanha ao abrigo de um decreto – o Nach und Nebel Erlass, de 7 de Dezembro de 1941.

Na 2.ª metade do século XX, o desaparecimento forçado constituiu uma prática sistemática em diversos países latino-americanos.

Actualmente, essa prática continua a ser um problema global que não se restringe a uma única região. Tendo sido um recurso de ditaduras militares, os desaparecimentos são agora perpetrados em situações complexas de conflitos internos, em regimes que sofreram mudanças políticas radicais e como meio de repressão de opositores[6].

3. A comunidade internacional vem referenciando e combatendo a prática dos desaparecimentos forçados, tendo sido já adoptadas relevantes deliberações sobre o tema. A este propósito, e em síntese:

O primeiro documento que denunciou a existência desta prática dos desaparecimentos forçados foi o Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Chile da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 1974.

Em 29 de Fevereiro de 1980, pela Resolução 20/XXXVI, a Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, por inspiração da Assembleia Geral, estabeleceu o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, constituindo o «primeiro mecanismo temático a ser criado no âmbito do Programa de Direitos Humanos das Nações Unidas para tratar de violações específicas de direitos humanos de natureza particularmente grave, praticadas à escala mundial»[7].

A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos declarou, pela Resolução 666, de 18 de Novembro de 1983, que «a prática do desaparecimento forçado nas Américas é uma afronta à consciência do Hemisfério e constitui um crime contra a humanidade».

Também a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, pela Resolução 828/1984, de 26 de Setembro, considerou que o desaparecimento forçado constitui um crime contra a humanidade, «incompatível com os ideais de qualquer sociedade humana», e flagrante violação de um vasto conjunto de direitos humanos reconhecidos em instrumentos de direito internacional.

Em 18 de Dezembro de 1992, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou a Resolução 47/133, contendo a Declaração sobre a Protecção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados[8].

Em 6 de Fevereiro de 1994, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos aprovou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, instrumento jurídico que constitui um marco significativo no direito internacional humanitário. Aí se impõe aos Estados a adopção das «medidas legislativas que forem necessárias para tipificar como delito o desaparecimento forçado de pessoas e impor-lhe a pena apropriada que leve em conta a sua extrema gravidade», delito de «será considerado continuado ou permanente, enquanto não se estabelecer o destino ou paradeiro da vítima» (artigo III).

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adoptado em 17 de Julho de 1998, qualifica o desaparecimento forçado de pessoas como um crime contra a humanidade, «quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque» [artigo 7.º, n.º 1, alínea i)].

Este instrumento de direito internacional, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/2002, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2002, de 18 de Janeiro de 2002, define o desaparecimento forçado de pessoas como «a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa em reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção da lei por um longo período de tempo» [artigo 7.º, n.º 2, alínea i)].

O último instrumento de direito internacional visando o combate aos desaparecimentos forçados é a Convenção para a Protecção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, aberta à assinatura em Paris, em 6 de Fevereiro de 2007, e que vai ser objecto de análise mais detalhada, ainda que com as limitações inerentes à urgência atribuída à presente informação[9].


III

A Convenção é constituída por 45 artigos não epigrafados, distribuídos por três Partes e antecedidos por um preâmbulo.

A Parte I (artigos 1.º a 25.º) contém as disposições de natureza substantiva; a Parte II (artigos 26.º a 36.º) versa sobre a criação, funcionamento e competências do «Comité para os Desaparecimentos Forçados»; por fim, a Parte III (artigos 37.º a 45.º) acolhe as normas sobre aplicação, vigência e interpretação da Convenção, bem como as disposições finais.

Interessa, porém, conhecer o teor da Convenção:

«CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A PROTEÇÃO DE TODAS AS PESSOAS CONTRA OS DESAPARECIMENTOS FORÇADOS

Preâmbulo

Os Estados Partes na presente Convenção,

Considerando ser obrigação dos Estados, conforme consignado na Carta das Nações Unidas, promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,

Tendo presente a Declaração Universal dos Direitos do Homem,

Relembrando o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, bem como os restantes instrumentos internacionais relevantes no âmbito dos direitos humanos, do direito humanitário e do direito penal internacional,

Relembrando, igualmente, a Declaração sobre a Protecção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, adoptada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas na sua Resolução 47/133, de 18 de Dezembro de 1992,

Conscientes da extrema gravidade de que se reveste o desaparecimento forçado, o qual constitui um crime e, em determinadas circunstâncias previstas no direito internacional, um crime contra a humanidade,

Determinados a prevenir os desaparecimentos forçados e a combater a impunidade relativamente a crimes de desaparecimento forçado,

Considerando o direito de qualquer pessoa a não ser submetida a desaparecimento forçado, o direito das vítimas à justiça e à reparação.

Afirmando o direito de qualquer vítima a conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da pessoa desaparecida, bem como o direito a pedir, receber e transmitir informações nesse sentido,

Acordam no seguinte:

PARTE I

Artigo 1.º

1. Ninguém poderá ser submetido a um desaparecimento forçado.
2. Nenhuma circunstância excepcional, quer se trate de estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra situação de emergência pública, poderá ser invocada para justificar o desaparecimento forçado.

Artigo 2.º

Para os efeitos da presente Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, o apoio ou com o consentimento do Estado, seguido da recusa em reconhecer a privação de liberdade, ou através do encobrimento do destino ou do paradeiro das pessoas desaparecidas, assim colocando tais pessoas fora da esfera da protecção da lei.

Artigo 3.º

Cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas para investigar os actos previstos no artigo 2.º, praticados por pessoas ou grupos de pessoas agindo sem a autorização, o apoio ou o consentimento do Estado, e para trazer os responsáveis à justiça.

Artigo 4.º

Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para garantir que o desaparecimento forçado constitui um crime segundo o seu direito penal.

Artigo 5.º

A prática generalizada ou sistemática de desaparecimentos forçados constitui um crime contra a humanidade, nos termos do direito internacional aplicável, e com as consequências nele previstas.

Artigo 6.º

1. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para responsabilizar criminalmente pelo menos:

a) Qualquer pessoa que cometa, ordene, solicite ou instigue à prática, tente cometer, seja cúmplice ou participe num crime de desaparecimento forçado;
b) Um superior hierárquico que:

i) Conheça ou conscientemente ignore informação que indique claramente que subalternos sob a sua autoridade e controlo efectivo estão a cometer ou prestes a cometer um crime de desaparecimento forçado;
ii) Exerça responsabilidade e controlo efectivos sobre actividades relacionadas com o crime de desaparecimento forçado; e
iii) Não tenha tomado todas as medidas necessárias e razoáveis, no âmbito da sua competência, para prevenir ou reprimir a prática de um desaparecimento forçado ou para apresentar a questão às autoridades competentes para o investigar e proceder judicialmente;

c) O disposto na alínea b) deste número não prejudica a aplicação dos mais elevados padrões de responsabilidade exigíveis em direito internacional a um chefe militar ou a alguém que desempenhe efectivamente funções de chefe militar.

2. Nenhuma ordem ou instrução emanada de uma autoridade pública, civil, militar ou outra, pode ser invocada para justificar um crime de desaparecimento forçado.

Artigo 7.º

1. Cada Estado Parte tomará medidas para punir o crime e desaparecimento forçado através de sanções apropriadas que tenham em consideração a sua extrema gravidade.
2. Cada Estado Parte pode estabelecer:

a) Circunstâncias atenuantes, nomeadamente a favor de pessoas que, tendo estado implicadas na prática de um desaparecimento forçado, contribuam eficazmente para a recuperação com vida da pessoa desaparecida ou para tornar possível o esclarecimento de casos de desaparecimento forçado ou identificar os autores de um desaparecimento forçado;
b) Circunstâncias agravantes, nomeadamente, em caso de morte da pessoa desaparecida ou de desaparecimento forçado de mulher grávida, de menores, de pessoas com incapacidades ou de outras pessoas particularmente vulneráveis, sem prejuízo da instauração de outros procedimentos criminais.

Artigo 8.º

Sem prejuízo do disposto no artigo 5.º,

1. Um Estado Parte que aplique o estatuto da prescrição relativamente a um desaparecimento forçado tomará as medidas necessárias para garantir que o prazo de prescrição do procedimento criminal:

a) É de longa duração e proporcional à extrema gravidade do crime;
b) Começa a contar a partir do momento em que o crime de desaparecimento forçado cessa, tendo em consideração a sua natureza contínua.

2. Cada Estado Parte garante o direito das vítimas de desaparecimento forçado a um recurso efectivo no decurso do prazo de prescrição.

Artigo 9.º

1. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para estabelecer a sua competência para o conhecimento do crime de desaparecimento forçado:

Quando o crime for cometido em qualquer território sob a sua jurisdição ou a bordo de um navio ou de uma aeronave registados no seu Estado;
Quando o presumível autor da infracção for seu nacional;
Quando a pessoa desaparecida for seu nacional e o Estado Parte o considere adequado.

2. Cada Estado Parte tomará igualmente, as medidas consideradas necessárias para estabelecer a sua competência para o conhecimento do crime de desaparecimento forçado, quando o presumível autor se encontrar em qualquer território sob a sua jurisdição, a menos que o extradite ou o entregue a outro Estado, de acordo com as suas obrigações internacionais, ou a um tribunal penal internacional a que reconheça competência.
3. A presente Convenção não exclui qualquer jurisdição penal adicional exercida em conformidade com o direito interno.

Artigo 10.º

1. Cada Estado Parte que, depois de examinar a informação disponível para o efeito, considerar que as circunstâncias o justificam, procederá à detenção de qualquer pessoa suspeita de ter cometido um crime de desaparecimento forçado que se encontre no seu território, ou tomará outras medidas que se mostrem necessárias para garantir a sua presença. A detenção e as outras medidas, aplicáveis em conformidade com a lei do Estado Parte, apenas poderão ser mantidas pelo tempo necessário para garantir a presença da pessoa em processos penais, de entrega ou de extradição.
2. Um Estado Parte que tenha tomado as medidas previstas no n.º 1 deste artigo procederá de imediato à instauração de um inquérito preliminar ou a investigações tendentes ao apuramento dos factos. Notificará os Estados Partes referidos no artigo 9.º, n.º 1, das medidas que tomou em conformidade com o n.º 1 deste artigo, incluindo a detenção e as circunstâncias que a justificaram, bem como dos factos apurados no âmbito do inquérito preliminar ou das investigações, indicando se pretende exercer a sua competência.
3. Qualquer pessoa detida nos termos do n.º 1 deste artigo pode comunicar imediatamente com o representante mais próximo do Estado de que é nacional ou, tratando-se de um apátrida, com o representante do Estado em que tenha a sua residência habitual.

Artigo 11.º

1. Se o Estado Parte, em cujo território o presumível autor de um crime de desaparecimento forçado for encontrado, não o extraditar ou entregar a outro Estado Parte em conformidade com as suas obrigações internacionais, nem o entregar a um tribunal penal internacional ao qual o Estado Parte tenha reconhecido competência, deve submeter o caso às suas autoridades competentes, para efeitos de procedimento criminal.
2. Estas autoridades tomarão a sua decisão da mesma forma que no caso de uma infracção de direito comum de natureza grave, nos termos da legislação desse Estado Parte. Relativamente aos casos referidos no artigo 9.º, n.º 2, os níveis de prova exigíveis para instauração do procedimento criminal e condenação não serão, em caso algum, menos rigorosos do que os aplicados aos casos referidos no artigo 9.º, n.º 1.
3. Qualquer pessoa perseguida por um crime de desaparecimento forçado tem direito a um tratamento equitativo em todas as fases do processo. Qualquer pessoa julgada por um crime de desaparecimento forçado tem direito a um julgamento justo perante um tribunal competente, independente e imparcial estabelecido por lei.

Artigo 12.º

1. Cada Estado Parte garante a qualquer pessoa que alegue ter conhecimento de que alguém foi vítima de desaparecimento forçado o direito de denunciar os factos perante as autoridades competentes, as quais examinarão a alegação imediata e imparcialmente e, quando necessário, empreenderão sem demora uma investigação exaustiva e imparcial. Caso se mostre necessário, devem ser tomadas medidas apropriadas para garantir que o denunciante, as testemunhas, os familiares das pessoas desaparecidas e o seu advogado, bem como as pessoas que participem na investigação, sejam protegidas contra maus-tratos ou actos de intimidação, em consequência da denúncia ou de quaisquer provas apresentadas.
2. Se houver motivos fundados para crer que uma pessoa foi submetida a desaparecimento forçado, as autoridades referidas no n.º 1 deste artigo procederão a uma investigação, mesmo que não tenha sido apresentada denúncia formal.
3. Cada Estado Parte garante que as autoridades referidas no n.º 1 do presente artigo:

a) Têm os poderes e os meios necessários para conduzir uma investigação de forma eficiente, incluindo o acesso à documentação e a outras informações pertinentes para a sua investigação;
b) Têm acesso, se necessário mediante autorização prévia de uma autoridade judicial, que decidirá o mais rapidamente possível, a qualquer local de detenção ou outro onde haja fundadas razões para crer que a pessoa desaparecida se possa encontrar.

4. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para prevenir e reprimir actos que visem impedir a realização de uma investigação. Garante, nomeadamente, que as pessoas suspeitas de terem cometido um crime de desaparecimento forçado não estejam em condições de influenciar o andamento da investigação através de pressão ou actos de intimidação ou represálias dirigidas ao denunciante, às testemunhas, aos membros da família da pessoa desaparecida ou aos seus advogados, ou a intervenientes na investigação.

Artigo 13.º

1. Para efeitos de extradição entre os Estados Partes, o crime de desaparecimento forçado não será considerado um crime político ou um crime conexo com um crime político, ou um crime inspirado por motivos políticos. Por conseguinte, um pedido de extradição com fundamento em tal crime não pode ser recusado apenas por esse motivo.
2. O crime de desaparecimento forçado considerar-se-á incluído nas infracções passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição celebrado entre os Estados Partes antes da entrada em vigor da presente Convenção.
3. Os Estados Partes comprometem-se a incluir o crime de desaparecimento forçado nas infracções passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição a ser celebrado ulteriormente entre eles.
4. Um Estado Parte que, condicionando a concessão da extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição de outro Estado Parte com o qual não tenha celebrado qualquer tratado de extradição, poderá considerar a presente Convenção como a base jurídica necessária para a extradição relativamente ao crime de desaparecimento forçado.
5. Os Estados Partes que não condicionem a concessão da extradição à existência de um tratado reconhecem o crime de desaparecimento forçado como passível de extradição entre eles.
6. A extradição será sujeita, em todos os casos, às condições previstas na legislação do Estado Parte requerido ou em tratados de extradição aplicáveis, incluindo, nomeadamente, as condições relativas ao requisito da pena mínima para a extradição e as razões pelas quais o Estado Parte requerido pode recusar a extradição ou sujeitá-la a determinadas condições.
7. Nenhuma disposição da presente Convenção poderá ser interpretada como impondo a obrigação de extraditar se o Estado Parte requerido tiver fundadas razões para crer que o pedido foi feito com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em razão do sexo, da raça, da religião, da nacionalidade, da origem étnica, das opiniões políticas ou da pertença a um determinado grupo social, ou se a satisfação do pedido, por qualquer destas razões, causar dano a essa pessoa.

Artigo 14.º

1. Os Estados Partes prestar-se-ão mutuamente o mais amplo auxílio judiciário nos processos judiciais instaurados relativamente a um crime de desaparecimento forçado, incluindo o fornecimento de todas as provas ao seu dispor e que se mostrem necessárias para o processo.

2. O auxílio judiciário mútuo estará sujeito às condições previstas no direito interno do Estado Parte requerido ou nos tratados aplicáveis ao auxílio judiciário mútuo, incluindo, nomeadamente, as condições relacionadas com os motivos pelos quais o Estado Parte requerido poderá recusar a concessão do auxílio judiciário mútuo, ou sujeitá-lo a condições.

Artigo 15.º

Os Estados Partes cooperarão entre si e conceder-se-ão mutuamente o mais amplo auxílio judiciário a fim de prestarem assistência às vítimas de desaparecimento forçado, bem como na procura, localização e libertação de pessoas desaparecidas e, em caso de morte, na sua exumação, identificação e entrega dos restos mortais.

Artigo 16.º

1. Nenhum Estado Parte expulsará, repatriará, entregará ou extraditará uma pessoa para outro Estado quando haja motivos sérios para crer que essa pessoa corre risco de ser vítima de desaparecimento forçado.
2. Para determinar a existência de tais motivos, as autoridades competentes terão em conta todas as circunstâncias relevantes, incluindo, se for o caso, a existência, no Estado em causa, de um conjunto de violações sistemáticas graves, flagrantes ou generalizadas dos direitos humanos ou de violações graves do direito humanitário internacional.

Artigo 17.º

1. Ninguém será detido em segredo.
2. Sem prejuízo de outras obrigações internacionais do Estado Parte em matéria de privação de liberdade, cada Estado Parte, na sua legislação:

a) Determinará as condições mediante as quais podem ser emitidas ordens de privação de liberdade;
b) Designará as autoridades competentes para emitir ordens de privação de liberdade;
c) Garantirá que qualquer pessoa privada de liberdade será mantida nessa situação apenas em locais de privação de liberdade oficialmente reconhecidos e supervisionados;
d) Garantirá que qualquer pessoa privada de liberdade será autorizada a comunicar com a sua família, o seu advogado ou qualquer outra pessoa à sua escolha, e a ser visitada por estes, sujeita apenas às condições estabelecidas por lei, ou, tratando-se de estrangeiro, a comunicar com as suas autoridades consulares, em conformidade com o direito internacional aplicável;
e) Garantirá o acesso das autoridades e instituições competentes e legalmente autorizadas aos locais onde haja pessoas privadas de liberdade, se necessário mediante autorização prévia de uma autoridade judicial.
f) Garantirá à pessoa privada de liberdade ou, no caso de suspeita de desaparecimento forçado, uma vez que a pessoa privada de liberdade não está em condições de exercer este direito, que quaisquer pessoas com interesse legítimo, tal como os familiares da pessoa privada de liberdade, os seus representantes ou os seus advogados, podem, em todas as circunstâncias, instaurar um processo junto de um tribunal, de modo a que o tribunal possa decidir, sem demora, sobre a legalidade da privação da liberdade e ordenar a libertação dessa pessoa se essa privação for ilegal.

3. Cada Estado Parte garantirá a criação e a manutenção de um ou mais registos oficiais actualizados e/ou registos de pessoas privadas de liberdade, os quais devem ser prontamente disponibilizados, mediante requerimento, a qualquer autoridade judicial ou outra autoridade ou instituição competente para o efeito pela legislação do Estado Parte em causa, ou por qualquer outro instrumento jurídico internacional relevante de que o Estado em causa seja parte. Das informações nele contidas constarão, pelo menos:

a) A identidade da pessoa privada de liberdade;
b) A data, a hora e o local em que a pessoa foi privada de liberdade e a identidade da autoridade que a privou da liberdade;
c) A autoridade que ordenou a privação de liberdade e os motivos da privação de liberdade;
d) A autoridade responsável pela supervisão da privação de liberdade;
e) O local de privação de liberdade, a data e a hora de admissão nesse local, bem como a autoridade responsável pelo local de privação de liberdade;
f) Os elementos relativos ao estado de saúde da pessoa privada de liberdade;
g) Em caso de morte durante a privação de liberdade, as circunstâncias e a causa da morte, bem como o destino dos restos mortais da pessoa falecida;
h) A data e a hora de libertação ou transferência para outro local de detenção, o destino e a autoridade responsável pela transferência.

Artigo 18.º

1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 19.º e 20.º, cada Estado Parte garantirá a qualquer pessoa com interesse legítimo nestas informações, tal como os familiares da pessoa privada de liberdade, seus representantes ou advogados, acesso, pelo menos, às seguintes informações:

a) A autoridade que ordenou a privação de liberdade;
b) A data, a hora e o local em que a pessoa foi privada de liberdade e a admissão no local de privação de liberdade;
c) A autoridade responsável pela supervisão da privação de liberdade;
d) O paradeiro da pessoa privada de liberdade, incluindo, em caso de transferência para outro local de privação de liberdade, o destino e a autoridade responsável pela transferência;
e) A data, a hora e o local de libertação;
f) Os elementos relativos ao estado de saúde da pessoa privada de liberdade;
g) No caso de morte durante a privação de liberdade, as circunstâncias e a causa da morte, bem como o destino dos restos mortais da pessoa falecida.

2. Serão tomadas as medidas apropriadas, se necessário, para proteger as pessoas referidas no n.º1 deste artigo, bem como as pessoas participantes na investigação, de quaisquer maus-tratos, intimidações ou sanções em consequência da procura de informações relativas a uma pessoa privada de liberdade.

Artigo 19.º

1. Informações de carácter pessoal, incluindo dados médicos e genéticos, que sejam recolhidos no âmbito da busca de uma pessoa desaparecida, não podem ser utilizadas ou disponibilizadas para fins diferentes da busca da pessoa desaparecida, sem prejuízo da utilização de tais informações em processos criminais relacionados com um crime de desaparecimento forçado ou do exercício do direito a obter reparação.
2. A recolha, o processamento, a utilização e o armazenamento de informações de carácter pessoal, incluindo dados médicos e genéticos, não poderão violar ou ter como efeito a violação dos direitos humanos, as liberdades fundamentais ou a dignidade da pessoa humana.

Artigo 20.

1. O direito à informação previsto no artigo 18.º só pode ser restringido, com carácter excepcional, quando estritamente necessário, e nos casos previstos na lei, quando uma pessoa estiver sob a protecção da lei e a privação da liberdade estiver sujeita a controlo judicial, e se a transmissão da informação afectar negativamente a privacidade ou a segurança da pessoa, impedir a investigação criminal, ou por outras razões semelhantes em conformidade com a lei, e em conformidade com o direito internacional aplicável e com os objectivos desta Convenção. Em caso algum poderão ser admitidas restrições ao direito de informação referido no artigo 18.º que possam constituir uma conduta definida no artigo 2.º ou uma violação do artigo 17.º, n.º 1.
2. Sem prejuízo da consideração da legalidade da privação da liberdade de uma pessoa, os Estados Partes garantirão às pessoas referidas no artigo 18.º, n.º1, o direito a um processo judicial rápido e efectivo, como meio de obter, sem demora, as informações referidas no artigo 18.º, n.º 1. Este direito não pode, em quaisquer circunstâncias, ser suspenso ou restringido.

Artigo 21.º

Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para garantir que as pessoas privadas de liberdade são libertadas de modo a permitir uma verificação fiável de que foram efectivamente libertadas. Cada Estado Parte tomará igualmente as medidas necessárias para assegurar a integridade física dessas pessoas e a capacidade para exercerem plenamente os seus direitos à data da libertação, sem prejuízo de quaisquer obrigações a que tais pessoas possam estar sujeitas nos termos do direito nacional.

Artigo 22.º

Sem prejuízo do disposto no artigo 6.º, cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para prevenir e punir as seguintes condutas:

Atraso ou obstrução dos recursos referidos no artigo 17.º, n.º 2, alínea f), e no artigo 20.º, n.º 2;
Ausência de registo da privação de liberdade de qualquer pessoa, ou do registo de quaisquer informações que o funcionário responsável pelo registo oficial soubesse ou devesse saber serem inexactas;
Recusa em fornecer informações sobre a privação de liberdade de uma pessoa, ou a disponibilização de informações inexactas, independentemente do preenchimento dos requisitos legais relativos à disponibilização de tais informações.

Artigo 23.º

1. Cada Estado Parte garantirá que a formação do pessoal responsável pela aplicação da lei, civil ou militar, pessoal médico, funcionários públicos ou outras pessoas que possam estar envolvidas na guarda ou no tratamento de qualquer pessoa privada de liberdade inclui a educação e informação necessárias sobre as disposições relevantes da presente Convenção, por forma a:

a) Impedir o envolvimento de tais funcionários em desaparecimentos forçados;
b) Realçar a importância da prevenção e das investigações no tocante a desaparecimentos forçados;
c) Garantir que a necessidade urgente de resolver casos de desaparecimentos forçados seja reconhecida

2. Cada Estado Parte garantirá que as ordens ou instruções que determinem, autorizem ou encorajem qualquer desaparecimento forçado são proibidas. Cada Estado Parte garantirá que uma pessoa que se recuse a obedecer a tais ordens não será punida.
3. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para garantir que as pessoas referidas no n.º 1 deste artigo, que tenham razões para crer que ocorreu ou está a ser planeado um desaparecimento forçado, comuniquem o caso aos seus superiores e, quando necessário, às autoridades competentes ou órgãos com poderes de revisão do processo ou recurso.

Artigo 24.º

1. Para efeitos da presente Convenção, entende-se por «vítima» a pessoa desaparecida e qualquer indivíduo que tenha sido lesado em consequência directa de um desaparecimento forçado.
2. Toda a vítima tem direito a conhecer a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida. Cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas para o efeito.
3. Cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas para procurar, localizar e libertar pessoas desaparecidas e, em caso de morte, localizar, respeitar e entregar os seus restos mortais.
4. Cada Estado Parte garantirá no seu sistema jurídico que as vítimas de desaparecimento forçado têm direito a obter uma reparação imediata, justa e adequada.
5. O direito à reparação referida no n.º 4 deste artigo abrange danos materiais e morais e, se for caso disso, outras formas de reparação, tais como:

a) Restituição;
b) Reabilitação;
c) Satisfação, incluindo restauração da dignidade e reputação;
d) Garantias de não-repetição.

6. Sem prejuízo da obrigação de prosseguir a investigação, até ao conhecimento do destino da pessoa desaparecida, cada Estado Parte tomará as medidas necessárias relativamente à situação jurídica das pessoas desaparecidas cujo destino não tenha sido esclarecido, bem como dos seus familiares, nomeadamente no domínio da segurança social, de questões financeiras, de direito da família e do direito de propriedade.
7. Cada Estado Parte garantirá o direito a formar e a participar livremente em organizações e associações cujo objectivo seja o de determinar as circunstâncias de desaparecimentos forçados e o destino de pessoas desaparecidas, bem como a assistência às vítimas de desaparecimentos forçados.

Artigo 25.º

1. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para prevenir e punir, de acordo com o seu direito penal:

a) A subtracção de crianças sujeitas a desaparecimento forçado, cujo pai, mãe ou representante legal tenha sido sujeito a desaparecimento forçado, ou crianças nascidas durante o período de cativeiro de uma mãe sujeita a desaparecimento forçado;
b) A falsificação, o encobrimento ou a destruição de documentos que atestem a verdadeira identidade das crianças referidas na alínea anterior.

2. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias para procurar e identificar as crianças referidas na alínea a) do n.º1 deste artigo e para as devolver às suas famílias de origem, em conformidade com os procedimentos legais e acordos internacionais aplicáveis.
3. Os Estados Partes auxiliar-se-ão mutuamente no que se refere à procura, identificação e localização das crianças referidas no n.º 1, alínea a) deste artigo.
4. Dada a necessidade de proteger o superior interesse das crianças referidas na alínea a) do n.º 1 deste artigo e o seu direito a preservar ou a ver restabelecida a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e as relações familiares, conforme determinado na lei, os Estados Partes que reconheçam um sistema de adopção ou outra forma de colocação de crianças procederão à implementação de procedimentos legais que visem a revisão dos processos de adopção ou colocação e, se necessário, a anulação de qualquer adopção ou colocação de crianças que tenha tido origem num desaparecimento forçado.
5. Em todas as circunstâncias, e em particular em todas as questões relacionadas com o presente artigo, o superior interesse da criança deverá ser o principal factor a ter em conta, e uma criança que tenha capacidade para formar a sua própria opinião terá o direito de a expressar livremente, devendo essa opinião ser considerada em função da sua idade e maturidade.


PARTE II


Artigo 26.º

1. Será criado um Comité para os Desaparecimentos Forçados (doravante designado «o Comité»), cujas funções se encontram previstas na presente Convenção. O Comité será composto por dez peritos de elevada idoneidade moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que cumprirão as suas funções a título pessoal, com independência e imparcialidade. Os membros do Comité serão eleitos pelos Estados Partes, de acordo com uma distribuição geográfica equitativa. Será tida em devida consideração a utilidade da participação nos trabalhos do Comité de pessoas com experiência jurídica relevante e com representação equilibrada de sexos.
2. Os membros do Comité serão eleitos, por voto secreto, de entre uma lista de pessoas designadas pelos Estados Partes, escolhidas de entre os seus nacionais, em reuniões bienais dos Estados Partes convocadas pelo Secretário-Geral das Nações Unidas com essa finalidade. Nessas reuniões, cujo quórum é constituído por dois terços dos Estados Partes, as pessoas eleitas para integrar o Comité são aquelas que obtiverem o maior número de votos e a maioria absoluta de votos dos representantes dos Estados Partes presentes e votantes.
3. A primeira eleição realizar-se-á, o mais tardar, seis meses após a data da entrada em vigor da presente Convenção. Quatro meses antes da data de cada eleição, o Secretário-Geral das Nações Unidas dirigirá uma carta aos Estados Partes convidando-os a apresentarem os seus candidatos num prazo de três meses. O Secretário-geral preparará uma lista, por ordem alfabética, de todas as pessoas assim designadas, indicando o Estado Parte que nomeou cada candidato, e submeterá esta lista a todos os Estados Partes.
4. Os membros do Comité são eleitos por um período de quatro anos. Apenas podem ser reeleitos uma vez. Contudo, o cargo de cinco dos membros eleitos na primeira eleição expira ao fim de dois anos; imediatamente após a primeira eleição, os nomes destes cinco membros serão tirados à sorte pelo presidente da reunião referida no n.º 2 deste artigo.
5. Em caso de morte ou resignação de um membro do Comité, ou que por qualquer outro motivo que o impeça de exercer as suas funções no Comité, o Estado Parte que o designou, em conformidade com os critérios estabelecidos no n.º 1 deste artigo, nomeará outro candidato escolhido de entre os seus nacionais para desempenhar o cargo, sujeito a aprovação da maioria dos Estados Partes. Esta aprovação considerar-se-á obtida, salvo se metade ou mais dos Estados Partes responder negativamente num prazo de seis semanas a contar da data em que foram informados pelo Secretário-Geral das Nações Unidas da nomeação proposta.
6. O Comité estabelecerá o seu regulamento interno.
7. O Secretário-Geral das Nações Unidas proporcionará ao Comité o pessoal e os meios necessários para o desempenho eficaz das suas funções. O Secretário-Geral das Nações Unidas convocará a primeira reunião do Comité.
8. Os membros do Comité terão direito às facilidades, privilégios e imunidades reconhecidas aos peritos em missão na Organização das Nações Unidas, conforme estabelecido nas pertinentes secções da Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas.
9. Cada Estado Parte cooperará com o Comité e apoiará os seus membros no cumprimento dos respectivos mandatos, no âmbito das funções do Comité que o Estado Parte tenha aceite.

Artigo 27.º

Realizar-se-á uma Conferência de Estados Partes, no mínimo quatro anos e no máximo seis anos, após a entrada em vigor da presente Convenção, com o objectivo de avaliar o funcionamento do Comité e de decidir, em conformidade com o procedimento descrito no artigo 44.º, n.º 2, se é apropriado transferir para outro órgão – sem excluir qualquer eventualidade – o acompanhamento da presente Convenção, de acordo com as atribuições previstas nos artigos 28.º a 36.º.

Artigo 28.º

1. No âmbito das competências concedidas pela presente Convenção, o Comité cooperará com todos os órgãos, organismos e agências especializadas e fundos das Nações Unidas, com os órgãos responsáveis por tratados, instituídos por instrumentos internacionais, com os procedimentos especiais das Nações Unidas e com as relevantes organizações ou órgãos intergovernamentais regionais, bem como com todas instituições, agências ou organismos estatais relevantes envolvidos na protecção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados.
2. No cumprimento do seu mandato, o Comité desenvolverá consultas a outros órgãos responsáveis por tratados instituídos por relevantes instrumentos internacionais de direitos humanos, em particular o Comité de Direitos Humanos criado pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, tendo em vista assegurar a coerência das respectivas observações e recomendações.

Artigo 29.º

1. Cada Estado Parte submeterá ao Comité, através do Secretário-Geral das Nações Unidas, um relatório sobre as medidas tomadas para efectivar as suas obrigações nos termos da presente Convenção, num prazo de dois anos a contar da data da entrada em vigor da presente Convenção para o Estado Parte em causa.
2. O Secretário-Geral das Nações Unidas disponibilizará este relatório a todos os Estados Partes.
3. Cada relatório será considerado pelo Comité, que emitirá os comentários, as observações ou as recomendações que entenda apropriados. Os comentários, as observações ou as recomendações serão comunicados ao Estado Parte em causa, que poderá não lhes responder, por sua própria iniciativa ou a pedido do Comité.
4. O Comité pode, igualmente, pedir aos Estados Partes que forneçam informações complementares sobre a implementação desta Convenção.

Artigo 30.º

1. Um pedido de busca e localização da pessoa desaparecida pode ser apresentado ao Comité, com carácter de urgência, por membros da família da pessoa desaparecida ou seus representantes legais, seu advogado ou qualquer pessoa por eles autorizada, ou ainda por qualquer pessoa com interesse legítimo.
2. Se o Comité considerar que um pedido urgente apresentado em conformidade com o n.º 1 deste artigo:

a) Não é manifestamente infundado;
b) Não constitui abuso de direito a apresentação de tais pedidos;
c) Já foi devidamente apresentado aos órgãos competentes do Estado Parte em causa, tal como às autoridades habilitadas a proceder às investigações, quando essa possibilidade existir;
d) Não é incompatível com o disposto na presente Convenção; e
e) Não está a ser apreciado ou decidido noutro processo de investigação internacional da mesma natureza,

solicitará ao Estado Parte em causa que lhe forneça informações sobre a situação das pessoas procuradas, num prazo estabelecido pelo Comité.

3. De acordo com as informações prestadas pelo Estado Parte em causa, em conformidade com o n.º 2 deste artigo, o Comité pode transmitir recomendações ao Estado Parte, nomeadamente um pedido para que este tome todas as medidas necessárias, incluindo medidas provisórias, que permitam localizar e proteger a pessoa em causa em conformidade com a presente Convenção, e informar o Comité, num determinado prazo, sobre as medidas tomadas, tendo em consideração a urgência da situação. O Comité informará a pessoa que apresente o pedido de intervenção urgente sobre as suas recomendações e sobre as informações que lhe foram fornecidas pelo Estado logo que estejam disponibilizadas.
4. O Comité continuará os seus esforços para trabalhar com o Estado Parte em causa enquanto o destino da pessoa procurada não estiver esclarecido. A pessoa que apresenta o pedido será mantida informada.

Artigo 31.º

1. Um Estado Parte pode, no momento da ratificação da presente Convenção ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência do Comité para receber e apreciar comunicações de ou em nome de pessoas sob a sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação por este Estado Parte de disposições da presente Convenção. O Comité não admitirá qualquer comunicação relativa a um Estado Parte que não tenha feito essa declaração.
2. O Comité considerará uma comunicação inadmissível quando:

a) A comunicação é anónima;
b) A apresentação dessa comunicação constitua um abuso de direito ou seja incompatível com as disposições da presente Convenção;
c) A mesma questão esteja a ser apreciada e decidida outro processo de investigação internacional da mesma natureza; ou quando
d) Todos os recursos internos disponíveis ainda não tiverem sido esgotados. Esta norma não ter aplicação quando o recurso se prolongar injustificadamente.

3. Se o Comité considerar que a comunicação cumpre os requisitos previstos no n.º 2 deste artigo transmitirá a comunicação ao Estado Parte interessado, solicitando-lhe que apresente observações e comentários num prazo estabelecido pelo Comité.
4. Em qualquer momento posterior à recepção de uma comunicação e antes de ser tomada uma decisão sobre o fundo da questão, o Comité pode transmitir ao Estado Parte interessado, para apreciação urgente, um pedido para que tome as medidas provisórias que se mostrem necessárias para evitar possíveis danos irreparáveis para as vítimas da alegada violação. O exercício desta faculdade pelo Comité não implica uma decisão sobre a admissibilidade ou sobre o mérito da comunicação.
5. O Comité reunirá à porta fechada sempre que apreciar comunicações nos termos deste artigo, e informará o autor da comunicação das respostas fornecidas pelo Estado Parte em causa. Quando decidir finalizar o processo, o Comité comunicará o seu parecer ao Estado Parte e ao autor da comunicação.

Artigo 32.º

Um Estado Parte na presente Convenção pode, em qualquer momento, declarar que reconhece a competência do Comité para receber e apreciar comunicações em que um Estado Parte invoca que outro Estado Parte não está a cumprir as suas obrigações decorrentes da presente Convenção. O Comité não receberá comunicações relativamente a um Estado Parte que não tenha efectuado tal declaração, nem comunicações de um Estado Parte que não tenha efectuado tal declaração.

Artigo 33.º

1. Se o Comité receber informações fiáveis indicando que um Estado Parte está a violar seriamente as disposições da presente Convenção, pode, após consulta com o Estado Parte em causa, solicitar a um ou mais dos seus membros que efectue uma visita e informe o Comité sem demora.
2. O Comité notificará o Estado Parte interessado, por escrito, da sua intenção de organizar uma visita, indicando a composição da delegação e o objectivo da visita. O Estado Parte responderá ao Comité num prazo razoável.
3. Mediante um pedido fundamentado do Estado Parte, o Comité pode decidir adiar ou cancelar a visita.
4. Se o Estado Parte concordar com a visita, o Comité e o Estado Parte em causa trabalharão em conjunto para definir as modalidades da visita e o Estado Parte disponibilizará ao Comité todas os meios necessárias para a realização da visita.
5. Após a visita, o Comité comunicará ao Estado Parte interessado as suas observações e recomendações.


Artigo 34.º

Se o Comité receber informações que entenda conterem indicações fundadas de que o desaparecimento forçado está a ser praticado de forma generalizada ou sistemática no território sob a jurisdição de um Estado Parte, pode, após solicitar ao Estado Parte em causa todas as informações relevantes sobre a situação, dar conhecimento urgente da questão à Assembleia Geral das Nações Unidas, através do Secretário-Geral das Nações Unidas.

Artigo 35.º

1. A competência do Comité é limitada a desaparecimentos forçados iniciados após a entrada em vigor da presente Convenção.
2. Se um Estado se tornar parte na presente Convenção após a sua entrada em vigor, as suas obrigações para com o Comité restringir-se-ão a desaparecimentos forçados iniciados após a entrada em vigor da presente Convenção para o Estado Parte em causa.

Artigo 36.º

1. O Comité apresentará um relatório anual das suas actividades no âmbito da presente Convenção aos Estados Partes e à Assembleia Geral das Nações Unidas.
2. Antes de uma observação sobre um Estado Parte ser publicada no relatório anual, o Estado Parte em causa será informado com antecedência e disporá de um período de tempo razoável para responder. Este Estado Parte pode requerer a publicação dos seus comentários ou observações no relatório.


PARTE III


Artigo 37.º

Nenhuma das disposições da presente Convenção prejudicará a aplicação doutras disposições mais favoráveis à protecção das pessoas contra desaparecimentos forçados e que possam constar:

a) Da legislação de um Estado Parte;
b) Do direito internacional em vigor nesse Estado.

Artigo 38.º

1. A presente Convenção está aberta à assinatura de todos os Estados Membros da Organização das Nações Unidas.
2. A presente Convenção está sujeita a ratificação por todos os Estados Membros da Organização das Nações Unidas. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.
3. A presente Convenção está aberta a adesão de todos os Estados Membros da Organização das Nações Unidas. A adesão far-se-á mediante o depósito de um instrumento de adesão junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 39.º

1. A presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia posterior à data do depósito junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas do vigésimo instrumento de ratificação ou de adesão.
2. Para cada Estado que ratifique ou adira à presente Convenção após o depósito do vigésimo instrumento de ratificação ou de adesão, a presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia posterior à data do depósito do instrumento de ratificação ou de adesão desse Estado.

Artigo 40.º

O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas notificará todos os Estados Membros da Organização das Nações Unidas e todos os Estados que assinaram ou aderiram à presente Convenção:

a) Das assinaturas, ratificações ou adesões, nos termos do artigo 38.º;
b) Da data da entrada em vigor da presente Convenção, nos termos do artigo 39.º.


Artigo 41.º

As disposições da presente Convenção aplicar-se-ão a todas as partes de Estados federais, sem quaisquer limitações ou excepções.

Artigo 42.º

1. Qualquer diferendo entre dois ou mais Estados Partes relativamente à interpretação ou aplicação da presente Convenção que não possa ser resolvido pela via da negociação ou dos processos expressamente previstos na presente Convenção será submetido a arbitragem, a pedido de um deles. Se, num prazo de seis meses a contar da data do pedido de arbitragem, as Partes não alcançarem um acordo quanto à organização da arbitragem, qualquer das Partes pode submeter o diferendo ao Tribunal Internacional de Justiça, mediante pedido formulado em conformidade com o Estatuto do Tribunal.
2. Um Estado pode, no momento da assinatura, ratificação ou adesão à presente Convenção, declarar que não se considera vinculado pelo n.º 1 deste artigo. Os outros Estados Partes não ficarão vinculados pelas disposições do n.º 1 deste artigo relativamente a qualquer Estado Parte que tenha feito essa declaração.
3. Qualquer Estado Parte que tenha feito uma declaração em conformidade com o disposto no n.º 2 deste artigo pode, em qualquer momento, retirar essa declaração mediante notificação dirigida ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 43.º

A presente Convenção não prejudica as disposições do direito humanitário internacional, incluindo as obrigações das Altas Partes Contratantes relativamente às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, e dos seus dois Protocolos Adicionais, de 8 de Junho de 1977, nem a oportunidade de que os Estados Partes dispõem de autorizar o Comité Internacional da Cruz Vermelha a visitar locais de detenção em situações não previstas pelo direito humanitário internacional.

Artigo 44.º

1. Qualquer Estado Parte na presente Convenção pode propor uma alteração e submete-la ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. O Secretário-Geral comunicará, então, a alteração proposta aos Estados Partes na presente Convenção, solicitando-lhes que indiquem se apoiam a realização de uma conferência de Estados Partes para efeitos de considerar e votar a proposta. No caso de, num prazo de quatro meses a contar da data de tal comunicação, pelo menos um terço dos Estados Partes apoiar a realização de tal conferência, o Secretário-Geral convocará a conferência sob os auspícios da Organização das Nações Unidas.
2. Qualquer alteração adoptada por uma maioria de dois terços dos Estados Partes presentes e votantes na conferência será submetida pelo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas a aceitação de todos os Estados Partes.
3. Uma alteração adoptada em conformidade com o n.º 1 deste artigo entrará em vigor quando dois terços dos Estados Partes na presente Convenção a tiverem aceite em conformidade com os respectivos processos constitucionais.
4. Quando entrarem em vigor, as alterações serão obrigatórias para os Estados Partes que as tiverem aceite; os restantes Estados Partes continuarão vinculados às disposições da presente Convenção, bem como a qualquer alteração anterior que tenham aceite.

Artigo 45.º

1. A presente Convenção, cujos textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo são igualmente autênticos, será depositada junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.
2. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas enviará cópia autenticada da presente Convenção a todos os Estados referidos no artigo 38.º.


IV

1. A Parte I da Convenção acolhe, como já foi dito, as disposições substanciais, devendo destacar-se, neste domínio, os dois primeiros preceitos.

1.1. No artigo 1.º é reconhecido um novo direito do Homem: o direito de não se ser submetido a um desaparecimento forçado[10]. Este direito é inderrogável conforme prescreve o n.º 2: nenhuma circunstância poderá ser invocada para justificar o desaparecimento forçado.

O artigo 2.º contém a definição de «desaparecimento forçado». Os elementos constitutivos desta prática já foram apontados.

De acordo com o preceito transcrito, o conceito de desaparecimento forçado encerra três elementos constitutivos essenciais, já apontados e que agora se recordam: (1) a privação da liberdade; (2) realizada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, o apoio ou com o consentimento do Estado; (3) a recusa em reconhecer a privação da liberdade ou a ocultação do destino ou da localização da pessoa desaparecida.

A colocação das vítimas do desaparecimento «fora da esfera de protecção da lei» não constitui um elemento intencional do delito, como sucede com o conceito de desaparecimento forçado constante do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, apresentando-se, antes, como uma consequência decorrente da combinação entre a privação da liberdade e a negação dessa privação ou da recusa em fornecer informações sobre o destino da pessoa privada da liberdade.

Na definição constante do artigo 2.º da Convenção, o desaparecimento forçado é imputável ao Estado. Os actos aí previstos deverão ser executados por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização ou apoio do Estado, ou com o seu consentimento.

Perante situações em que essa prática é realizada por agentes não estaduais, ou seja, por pessoas ou grupos de pessoas agindo sem a autorização, o apoio ou o consentimento do Estado, o artigo 3.º da Convenção estabelece uma obrigação no sentido de o Estado adoptar as medidas apropriadas para a respectiva investigação «e para trazer os responsáveis à justiça».

O artigo 5.º da Convenção qualifica a prática generalizada ou sistemática de desaparecimentos forçados como crime contra a humanidade, nos termos do direito internacional aplicável.

1.2. A prática do desaparecimento forçado constitui, como já se salientou, uma violação complexa e múltipla dos direitos do Homem, ofendendo gravemente a dignidade da pessoa humana e todo um conjunto de direitos fundamentais que dela decorrem: o direito à vida, o direito à liberdade e segurança, o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, o direito à protecção da lei, o direito à não sujeição a tortura ou a outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Os bens e valores que a Convenção pretende que sejam acautelados, defendidos e reprimidos constituem valores que a Constituição da República Portuguesa (CRP) acolhe. A dignidade da pessoa humana constitui uma das bases da República Portuguesa, conforme proclama o artigo 1.º da CRP. Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, no preceito constitucional, «a dignidade da pessoa humana ergue-se como linha decisiva de fronteira («valor limite») contra totalitarismos (…) e contra experiências históricas de aniquilação existencial do ser humano e negadoras da dignidade da pessoa humana»[11].

Para os autores que vimos citando, a dignidade da pessoa humana «tem um valor próprio e uma dimensão normativa específicos. Desde logo, está na base de concretizações do princípio antrópico ou personicêntrico inerente a muitos direitos fundamentais (direito à vida, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito à integridade física e psíquica, direito à identidade pessoal, direito à identidade genética)»[12].

A dignidade da pessoa humana é, por seu lado, ainda de acordo com GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, «um standard de protecção universal que obriga à adopção de convenções e medidas internacionais contra a violação da dignidade da pessoa humana e à formação de um direito internacional adequado à protecção da dignidade da pessoa humana não apenas como ser humano individual e concretamente considerado, mas também da dignidade humana referente a entidades colectivas (humanidade, povos, etnias)»[13].

O ordenamento jurídico-constitucional português é, de todo, incompatível com a violação da dignidade da pessoa humana em que se traduz a prática do desaparecimento forçado.

Na verdade, Portugal é uma República que se baseia na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo um Estado de direito democrático, baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 2.º da CRP). É sua tarefa fundamental garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático (artigo 9.º da CRP).

Outros preceitos constitucionais autonomizam direitos que a prática do desaparecimento forçado viola intensamente: A vida humana é inviolável (artigo 24.º). A integridade moral e física das pessoas é inviolável, ninguém podendo ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos (artigo 25.º). A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1). Todos têm direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º), ninguém podendo ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão (artigo 27.º, n.º 2).

Do exposto, ter-se-á de concluir no sentido de que a finalidade visada pela Convenção em análise se coaduna plenamente com o nosso ordenamento jurídico-constitucional, nada havendo a apontar-lhe nessa sede.

2. A Convenção estabelece, em seguida, normas nos domínios da regulamentação penal, da dimensão preventiva, da vítima e seus direitos e da subtracção de crianças decorrente de desaparecimento forçado.

A regulamentação penal é, por sua vez, enfrentada sob quatro diferentes ângulos: (a) a incriminação do desaparecimento forçado e sua integração no direito interno dos Estados; (b) a protecção contra a impunidade, com o exame das questões da prescrição e da amnistia; (c) a organização dos processos penais a nível nacional; (d) a organização da cooperação entre os Estados para a repressão dos desaparecimentos forçados.

2.1. A vertente incriminatória do desaparecimento forçado está contemplada nos artigos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º da Convenção.

O artigo 4.º contém um imperativo de incriminação ao estabelecer que cada Estado Parte deverá tomar as medidas necessárias para a tipificação no seu direito penal do crime de desaparecimento forçado.

O artigo 5.º tipifica como crime contra a humanidade a «prática generalizada ou sistemática de desaparecimentos forçados», nos termos do direito internacional aplicável.

Em consonância com aquele imperativo, o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), consagra o dever da adopção das medidas necessárias para responsabilizar criminalmente qualquer pessoa que cometa, ordene, solicite ou instigue à prática, tente cometer, seja cúmplice ou participe num crime de desaparecimento forçado. Na alínea b) do mesmo preceito, prevê-se a responsabilidade criminal do superior hierárquico pelos comportamentos omissivos ali descritos. O n.º 2 consagra o princípio segundo o qual nenhuma ordem ou instrução pode ser invocada para justificar um crime de desaparecimento forçado.

Finalmente, o artigo 7.º alude à regra da proporcionalidade que deve existir na punição do crime de desaparecimento forçado. A sua punição deverá ter em conta a sua «extrema gravidade», podendo, entretanto, ser estabelecidas circunstâncias atenuantes e agravantes em função de determinadas circunstâncias que se verifiquem.

Será que o ordenamento português dispõe já de tipo incriminador do desaparecimento forçado?

Existem alguns pontos de correspondência entre a prática do desaparecimento forçado e algumas previsões tipificadas no Código Penal (CP). Assim sucede com o crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos previsto e punido pelos artigos 243.º e 244.º, ou com os ilícitos criminais tipificados nos artigos 154.º e 155.º (coacção), 158.º (sequestro), 159.º (escravidão), 160.º (tráfico de pessoas), 161.º (rapto), 162.º (tomada de reféns).

No entanto, a descrição típica das condutas que vêm de ser referir não coincide com a prática do desaparecimento forçado cuja incriminação autónoma se pretende na Convenção. Já na informação n.º 33/99[14] deste Conselho, elaborada no âmbito da ratificação da Convenção relativa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, se considerou que o desaparecimento forçado de pessoas, comportamento referido no seu artigo 7.º, não se encontrava, então e enquanto tal, referido em nenhuma previsão penal interna.

Na sequência da ratificação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 2002, pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/2002, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2002, de 18 de Janeiro de 2002, a Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho[15], veio a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, integrando-o, nas específicas circunstâncias que prevê, no elenco dos crimes contra a humanidade. Assim, o artigo 9.º do dito diploma dispõe, no que releva para a presente informação, que:

«Artigo 9.º
Crimes contra a humanidade

Quem, no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, praticar:

[…];
i) Desaparecimento forçado de pessoas, entendido como a detenção, a prisão ou o sequestro promovido por um Estado ou organização política, ou com a sua autorização, apoio ou concordância, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção da lei por um longo período de tempo;
[…];
é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.»

Comparando a descrição da conduta incriminada pela norma transcrita com a conduta definida no artigo 2.º da Convenção, tem de se reconhecer que elas não coincidem. Desde logo, o bem jurídico cuja tutela se pretende no artigo 9.º da Lei n.º 31/2004 é a comunidade internacional. Como salienta MARIA JOÃO ANTUNES, as previsões aí contidas correspondem «à necessidade de tipificar determinadas condutas que violam valores que a comunidade internacional reconhece como essenciais ao seu desenvolvimento»[16]. No mesmo sentido, se pronuncia SUSANA AIRES DE SOUSA ao referir que, «para além dos bens jurídicos individuais atingidos pelos comportamentos criminalizados naquela norma [artigo 7.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional], tutela-se ainda aquele reduto de dignidade que transcende o homem individual e é pertença da comunidade internacional: a humanidade. É este plus que confere àqueles actos uma ilicitude agravada»[17].

O desaparecimento forçado de pessoas surge ali tipificado como crime – como crime contra a humanidade – quando enquadrado no âmbito de um ataque sistemático ou generalizado dirigido contra a população civil.

A definição desse delito surge-nos com um âmbito muito mais restrito em comparação com a revelada no artigo 2.º da Convenção em análise que prescinde daquele enquadramento.

Decorre do exposto que, não obstante a previsão penal contida no citado artigo 9.º da Lei n.º 31/2004, a eventual ratificação da Convenção deverá determinar a consagração de um tipo legal autónomo no ordenamento jurídico-penal português – o crime de desaparecimento forçado com o desenho típico condensado no seu artigo 2.º, assim se satisfazendo a «obrigação de criminalização» prevista em tal preceito, bem como no artigo 7.º, n.º 1, do mesmo instrumento convencional.

Em matéria de imputabilidade, as várias modalidades de responsabilização criminal referidas no artigo 6.º da Convenção coadunam-se com o disposto nos artigos 26.º e 27.º do Código Penal.

2.2. No domínio da protecção contra a impunidade, o artigo 8.º da Convenção estabelece dois princípios fundamentais quanto à prescrição do crime de desaparecimento forçado que cumpre sublinhar.

Em primeiro lugar, o prazo da prescrição do procedimento criminal deve ser de «longa duração», numa relação de proporcionalidade com a «extrema gravidade do crime» [artigo 8.º, n.º 1, alínea a)]. Este princípio não contende com as regras definidas no artigo 118.º do Código Penal, preceito que enuncia prazos de prescrição do procedimento em função da gravidade do crime cometido, revelada pela medida da respectiva pena prevista[18].

O outro princípio está acolhido na alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito. O prazo da prescrição neste crime inicia-se a partir do momento em que o desaparecimento forçado cessa, já que se está perante um crime permanente. Trata-se de uma disposição que tem correspondência no artigo 119.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, segundo o qual o prazo da prescrição só corre, nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação.

2.3. Os artigos 9.º a 12.º da Convenção estabelecem algumas disposições relativas à organização interna dos processos penais para o conhecimento do crime de desaparecimento forçado.

O artigo 9.º dispõe sobre as obrigações de jurisdição de cada Estado Parte relativamente ao crime de desaparecimento forçado.

A atribuição da competência à jurisdição nacional nos casos referidos na alínea a) do n.º 1, exprime o princípio da territorialidade que está consagrado no ordenamento penal português, estando acolhido no artigo 4.º do Código Penal, com ressalva de «tratado ou convenção internacional em contrário».

A alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito aponta, ainda, para a fixação de competência do Estado parte sempre que o presumível autor do crime for seu nacional. O artigo 5.º do Código Penal consagra vários princípios que tornam a lei portuguesa aplicável a crimes cometidos no estrangeiro que podem, segundo AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, englobar-se na designação comum de «princípios complementares ou subsidiários»[19]. Uma das situações que se afastam do princípio geral consagrado no artigo 4.º corresponde à enunciada no artigo 9.º, n.º 1, alínea b), da Convenção. No entanto, na lei penal portuguesa faz-se depender a competência em relação às infracções cometidas por nacionais fora do território da verificação de determinadas condições, enunciadas no artigo 5.º, n.º 1, alínea e), do Código Penal[20]. Muito embora estas condições não figurem no preceito da Convenção em exame, o artigo 5.º do Código Penal ressalva as disposições do direito convencional ou dos tratados, bem como determinados ilícitos.

A observação que antecede aplica-se, também, à previsão contida na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º da Convenção, onde se prevê o estabelecimento da competência de cada Estado Parte na situação em que a pessoa desaparecida é seu nacional.

Consequentemente, considera-se que estas normas convencionais, tal como a norma constante do artigo 11.º da Convenção, estão em consonância com as normas do direito interno português relativas à aplicação da lei penal e à definição da competência.

O artigo 10.º da Convenção estabelece a obrigação de o Estado Parte proceder à detenção de qualquer pessoa suspeita de ter cometido um crime de desaparecimento forçado que se encontre no seu território ou adoptar as medidas que se mostrem necessárias para garantir a sua presença (n.º 1), procedendo, de imediato, à instauração de um inquérito ou à realização de investigações tendentes ao apuramento dos factos (n.º 2).

Por seu lado, o artigo 12.º, n.º 2, da Convenção determina que as autoridades procedam a uma investigação se houver motivos fundados para crer que uma pessoa foi submetida a desaparecimento forçado, mesmo que não tenha sido apresentada denúncia formal, assim atribuindo natureza pública à infracção.

Também estas normas se mostram conformes à Constituição e ao nosso direito processual penal, já que vigora o princípio da oficiosidade e da obrigatoriedade da acção penal em caso de crimes públicos e está prevista a detenção para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em acto processual, bem como a adopção de medidas cautelares, de identificação, ou mesmo medidas de coacção, dependentes da verificação de determinados pressupostos legais [artigo 27.º, n.º 3, da CRP e artigos 241.º, 242.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP)].

Na mesma linha, também o 11.º, n.º 3, da Convenção, ao exigir que qualquer pessoa perseguida por um crime de desaparecimento forçado tem direito a um «tratamento equitativo em todas as fases do processo» e a um «julgamento justo perante um tribunal competente, independente e imparcial estabelecido por lei», se mostra conforme ao nosso sistema constitucional e processual penal.

A Constituição dedica o artigo 32.º às garantias do processo criminal e consagra os direitos de defesa, a presunção de inocência, o contraditório, princípios fundamentais que não admitem derrogação em função da natureza ou da gravidade da infracção. Este preceito constitucional é concretizado no artigo 61.º do CPP onde estão elencados os direitos do arguido que incluem o direito de presença, o direito a ser ouvido, o direito ao silêncio (sobre os factos que lhe são imputados), o direito à assistência por defensor, o direito de informação, o direito de recurso[21].

O artigo 12.º, n.º 1, da Convenção, garante a qualquer pessoa que alegue ter conhecimento de que alguém foi vítima de desaparecimento forçado o direito de denunciar os factos perante as autoridades competentes. Reafirmando o princípio da oficiosidade e da obrigatoriedade da acção penal quanto a este crime, quwe deverá assumir natureza pública, o preceito determina que aquelas autoridades devem examinar a denúncia apresentada e empreender, sem demora, uma «investigação exaustiva e imparcial».

Prevê-se ainda que, se necessário, devem ser tomadas «medidas apropriadas para garantir que o denunciante, as testemunhas, os familiares das pessoas desaparecidas e o seu advogado, bem como as pessoas que participem na investigação sejam protegidas contra maus-tratos ou actos de intimidação, em consequência da denúncia ou de quaisquer provas apresentadas».

Não suscitam reparos as medidas de protecção de intervenientes processuais contra maus-tratos ou actos de intimidação previstos na Convenção, medidas que o ordenamento português já contempla. Neste domínio, cumpre salientar o regime estabelecido na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho[22], quanto à aplicação de medidas para protecção de testemunhas, em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo[23].

O n.º 3 do artigo 12.º, relativo aos poderes e meios necessários à investigação a atribuir às autoridades competentes, também não merece qualquer reparo pois está conforme ao sistema de investigação criminal regulado pela lei processual penal.

2.4. Os artigos 13.º a 16.º da Convenção versam sobre a cooperação entre os Estados para a repressão do crime de desaparecimento forçado.

O artigo 13.º enuncia algumas regras em matéria de extradição.

Assim, de acordo com o disposto no n.º 1 desse preceito, o crime de desaparecimento forçado não será considerado um crime político ou um crime conexo com um crime político, ou um crime inspirado por motivos políticos, não sendo aceitável a recusa de extradição apenas por esse motivo.

A extradição será também recusada se o Estado requerido tiver fundadas razões para crer que o pedido foi feito com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em razão do sexo, da raça, da religião, da nacionalidade, da origem étnica, das opiniões políticas ou da pertença a um determinado grupo social, ou se a satisfação do pedido, por qualquer destas razões, causar dano a essa pessoa (n.º 7).

Estas disposições harmonizam-se inteiramente com a regra consagrada no n.º 6 do artigo 33.º da CRP e, no direito interno infraconstitucional, com a disciplina jurídica da cooperação internacional em matéria penal estabelecida pela Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto[24] [cfr. artigo 6.º, n.º 1, alínea b)].

As demais disposições do artigo 13.º da Convenção também estão conformes ao regime da extradição contido na citada Lei n.º 144/99, não se vislumbrando, aliás, qualquer risco de desconformidade na medida em que o próprio preceito prevê no seu n.º 6 que «a extradição será sujeita, em todos os casos, às condições previstas na legislação do Estado Parte requerido ou em tratados de extradição aplicáveis».

O artigo 14.º, sobre o auxílio judiciário mútuo também não suscita qualquer reparo. O mesmo se diga das disposições contidas nos artigos 15.º e 16.º da Convenção.

3. Os artigos 17.º a 23.º da Convenção estabelecem disposições que visam prevenir a ocorrência de desaparecimentos forçados na sequência de medidas de detenção decretadas. Ou seja, visa-se impedir que a detenção ou a colocação em prisão de uma pessoa possam degenerar num desaparecimento forçado, tal como definido no artigo 2.º.

A Lei Fundamental reconhece a todos o direito à liberdade e à segurança. Nos termos do artigo 27.º, n.º 2, da CRP, ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. As situações de excepção ao princípio enunciado, encontram-se taxativamente referidas no n.º 3 do mesmo preceito, sendo que, de acordo com o n.º 4, toda a pessoa privada de liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.

Os artigos 28.º a 32.º consagram amplas garantias às pessoas visadas por um processo criminal, cumprindo referenciar o direito de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal (artigo 31,º).

No direito ordinário português, o Código de Processo Penal concretiza as garantias que devem rodear a aplicação e execução das medidas de coacção, nomeadamente a limitação da liberdade das pessoas (cfr. artigos 191.º e segs.). Por outro lado, a execução da pena de prisão é objecto de pormenorizada regulamentação no CPP (artigos 477.º e seguintes) e no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, devendo sublinhar-se a competência deferida ao tribunal de execução das penas para acompanhar e fiscalizar a execução da pena ou medida privativa da liberdade.

Todo esse acervo normativo acolhe integralmente as referidas disposições da Convenção, não se formulando, portanto, qualquer juízo de desconformidade entre elas e o sistema jurídico português.

4. O artigo 24.º da Convenção é dedicado às vítimas do desaparecimento forçado e seus direitos. O n.º 1 acolhe um conceito amplo de vítima, abrangendo não só a pessoa desaparecida, como «qualquer indivíduo que tenha sido lesado em consequência directa de um desaparecimento forçado».

É reconhecido às vítimas de desaparecimento forçado o direito a uma «reparação imediata, justa e adequada», devendo ser atendidos quer os danos patrimoniais, quer os danos morais.

Também neste domínio se observa uma plena correspondência com o sistema legal português da responsabilidade civil por factos ilícitos (cfr. artigos 483.º e seguintes do Código Civil), devendo sublinhar-se o princípio consagrado no artigo 22.º da CRP:

«O Estádio e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes por acções ou omissões pratiocadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».

Este preceito encontra-se concretizado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

5. A parte substancial da Convenção encerra com o artigo 25.º dedicado às crianças vítimas de desaparecimento forçado ou cujos pais ou representantes legais a ele tenham sido sujeitos ou crianças nascidas durante o cativeiro da mãe sujeita a desaparecimento forçado.

As disposições aí contidas têm plena conformidade com o que se encontra estabelecido no ordenamento interno português. A «anulação» da adopção de uma criança na sequência de um desaparecimento forçado, prevista no n.º 4 daquele preceito, pode obter-se através da revisão da sentença que a tiver decretado, em conformidade com o que já dispõe o artigo 1990.º do Código Civil, nomeadamente com fundamento na falta de consentimento dos pais do adoptado ou de consentimento por eles prestado viciado por coacção moral



V

1. A Parte II da Convenção, constituída pelos artigos 26.º a 36.º, versa sobre a criação, funcionamento e competências do «Comité para os Desaparecimentos Forçados».

Prevê-se que esse Comité seja composto por dez peritos de elevada idoneidade moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que cumprirão as suas funções a título pessoal, com independência e imparcialidade, eleitos pelos Estados Partes de acordo com uma distribuição geográfica equitativa (artigo 26.º, n.º 1).

Compete ao Comité para os Desaparecimentos Forçados:

(1) Receber e examinar os relatórios dos Estados Partes sobre as medidas tomadas para efectivar as suas obrigações decorrentes da Convenção, formulando, seguidamente, os comentários, observações ou as recomendações que entenda apropriados, podendo ainda pedir aos Estados informações complementares sobre a implementação desta Convenção – artigo 29.º, n.os 1, 3 e 4;

(2) Receber pedidos de busca e localização da pessoa desaparecida, com carácter urgente, e, verificados os pressupostos enunciados no artigo 30.º, n.º 2, solicitar ao Estado Parte em causa que, em prazo fixado, lhe forneça informações sobre a situação das pessoas procuradas – artigo 30.º;

(3) Receber e apreciar comunicações de ou em nome de pessoas que aleguem ser vítimas de uma violação de disposições da presente Convenção por um Estado Parte que tenha declarado reconhecer tal competência ao Comité – artigo 31.º;

(4) Receber e apreciar comunicações em que um Estado Parte alega que outro Estado Parte não está a cumprir as suas obrigações decorrentes da presente Convenção, caso os Estados tenham declarado reconhecer tal competência ao Comité – artigo 32.º;

(5) Sendo as informações fiáveis quanto à violação séria por um Estado Parte das disposições da Convenção, após consulta, proceder à organização de uma visita – artigo 33.º;

(6) No caso de informações com indicações fundadas de que o desaparecimento forçado está a ser praticado de forma generalizada ou sistemática no território de um Estado Parte, solicitar ao Estado em causa todas as informações relevantes sobre a situação, dando conhecimento urgente à Assembleia Geral das Nações Unidas – artigo 34.º.

Estas disposições não suscitam quaisquer reparos quanto à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico português.

2. Cumpre, no entanto, sublinhar que as competências do Comité para os Desaparecimentos Forçados referidas nos artigos 31.º e 32.º dependem da prévia formulação pelo Estado Parte de uma declaração pela qual lhe reconhece tais competências.

O Comité não admitirá qualquer comunicação a que alude o artigo 31.º relativa a um Estado Parte que não tenha feito essa declaração. De igual modo, no âmbito do artigo 32.º, o Comité não receberá comunicações relativamente a um Estado Parte que não tenha efectuado aquela declaração, nem comunicações de um Estado Parte que não a tenha efectuado.

A formulação destas declarações, a fazer por ocasião da ratificação, traduzindo o sentido do Estado relativamente a aspectos que considere relevantes do ponto de vista do interesse nacional, releva sobretudo de um juízo de decisão política, subtraído à apreciação de legalidade estrita e compatibilidade com a ordem jurídica nacional que é própria desta instância consultiva[25].


VI

1. A Parte III da Convenção é constituída pelos artigos 37.º a 45.º, disposições que não suscitam qualquer reparos quanto à respectiva compatibilidade com o ordenamento jurídico português.

2. Refira-se, entretanto, a necessidade de se ponderar quanto à formulação de uma declaração de não vinculação à forma de resolução dos diferendos sobre a interpretação ou aplicação da Convenção – arbitragem, contemplada no n.º 1 do artigo 42.º. De facto, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, um Estado pode, no momento da assinatura, ratificação ou adesão à presente Convenção, declarar que não se considera vinculado pelo n.º 1 deste artigo. Os outros Estados Partes não ficarão vinculados pelas disposições desse preceito relativamente a qualquer Estado Parte que tenha feito essa declaração.


VII

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª A Convenção Internacional para a Protecção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, aberta à assinatura em Paris, em 6 de Fevereiro de 2007, não se apresenta em geral desconforme com o ordenamento jurídico português nos planos constitucional e infraconstitucional;

2.ª O instrumento referido na conclusão anterior merece as considerações e observações constantes nos pontos IV, V e VI.

Lisboa, 28 de Abril de 2010

O Procurador-Geral Adjunto


(Manuel Pereira Augusto de Matos)


[1] Ofício do Gabinete do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, n.º 1873, de 29 de Março de 2010. A urgência solicitada é justificada no dito ofício «pelo facto de Portugal ter assinado esta Convenção em Fevereiro de 2007, tendo desde então vindo a reiterar o compromisso político de proceder à respectiva ratificação, designadamente no contexto da recente avaliação de Portugal pelo mecanismo de revisão periódica universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas».
[2] Despacho de 1 de Abril de 2010.
[3] Sobre este tópico, v. GABRIELLA CITRONI e TULLIO SCOVAZZI, “Recent developments in international law to combat enforced disappearances”, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n.º 3, Fevereiro, 2009, pp. 89-111.
[4] OLIVIER DE FROUVILLE, “La Convention des Nations Unies pour la Protection de toutes les Personnes contre les Disparitions Forcées: les enjeux juridiques d’une negociation exemplaire”, Droits Fundamentaux, n.º 6, janvier-Décembre, 2006 (Première partie), FEDERICO ANDREU-GUZMÁN, “The Draft International Convention on the Protection of All Persons from Forced Disappearance”, The Review of the ICJ – Impunity, crimes against humanity and forced disappearance, n.º 62-63, Geneva, September 2001, ambos disponíveis em http://www.icaed.org., e Direitos Humanos – Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, Ficha Informativa sobre Direitos Humanos, n.º 6 Rev 2, – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), edição do Gabinete de Documentação e Direito Comparado (GDDC) da Procuradoria-Geral da República.
[5] Direitos Humanos – Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, Ficha Informativa sobre Direitos Humanos, n.º 6, cit., p. 2.
[6] Aspectos assinalados no Relatório de 2005 do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, mencionado por GABRIELLA CITRONI e TULLIO SCOVAZZI, ob. cit., p. 90.
[7] Sobre a génese e funcionamento deste Grupo de Trabalho, v. Direitos Humanos – Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, Ficha Informativa sobre Direitos Humanos, n.º 6, cit., p. 5.
[8] Texto disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-decl-desparecimentos-forcados.html.
[9] Portugal assinou esta Convenção em 6 de Fevereiro de 2007. Conforme informação contida no website da United Nations Treaty Collection (http://treaties.un.org), em 12 de Abril de 2010, a Convenção tinha 83 países signatários, sendo que 18 deles já a haviam ratificado ou aderido à mesma ().
[10] Assim, OLIVIER DE FROUVILLE, ob. cit., p. 13.
[11] Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 198.
[12] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ibidem.
[13] Ob. cit., p. 200.
[14] De 27 de Janeiro de 2000.
[15] Diploma que, conforme sumário oficial, «adapta a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário».
[16] Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 559.
[17] Estudo disponível em http://www.defensesociale.org/XVcongreso/pdf.
[18] Quando o desaparecimento forçado de pessoas integre o crime contra a humanidade p. e p. pelo artigo 9.º, alínea i), da Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho, o respectivo procedimento é imprescritível, conforme o disposto no seu artigo 7.º.
[19] Direito Penal – Parte Geral, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 216.
[20] O agente ser encontrado em Portugal; os factos serem também puníveis pela legislação do local onde foram cometidos, e constituírem crimes que admitam extradição e esta não possa ser concedida.
[21] V. Informação n.º 17/2007, de 21 de Maio de 2007, relativa à Convenção Internacional para a Eliminação de Actos de Terrorismo Nuclear, onde figuram disposições de teor semelhante às que se vêm examinando.
[22] Alterada pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho.
[23] As medidas de protecção podem abranger também os familiares das testemunhas, as pessoas que com elas vivam em condições análogas às dos cônjuges e outras pessoas que lhes sejam próximas (artigo 1.º, n.º 2, da citada Lei). Refira-se ainda que se adopta um conceito amplo e abrangente de testemunha. Assim, para os efeitos desse diploma, considera-se testemunha «qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo (…)» [artigo 2.º, alínea a)].
[24] Alterada pelas Leis n.os 104/2001, de 25 de Agosto, 48/2003, de 22 de Agosto, 48/2007, de 29 de Agosto, e 115/2009, de 12 de Outubro.
[25] Como nota informativa, retenham-se as declarações formuladas por vários Estados, nomeadamente pela França, ao abrigo dos artigos 31.º e 32.º da Convenção, disponíveis em http://treaties.un.org/:
- «…em conformidade com as disposições do n.º 1 do artigo 31.º, [a França] reconhece a competência do Comité para os Desaparecimentos Forçados para receber e examinar as comunicações apresentadas por pessoas ou em seu nome sob a sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, pela França, das disposições da Convenção»;
- «… em conformidade com as disposições do artigo 32.º, [a França] reconhece a competência do Comité para os Desaparecimentos Forçados para receber e examinar as comunicações pelas quais um Estado Parte não está a cumprir as suas obrigações decorrentes da presente Convenção».
Anotações
Legislação: 
RAR 3/2002 DE 202/01/18 ; DPR 2/2002 DE 2002/01/18 ; CP82 ART243 ART244 ART154 ART155 ART158 ART159 ART160 ART161 ART162 ; L 31/2004 DE 2004/07/22 ART7 ; L 93/99 DE 1999/07/14 ; L 29/2008 DE 2008/07/04 ; L 144/99 DE 1999/08/31 ; L 115/2009 DE 2009/10/12 ; L 67/2007/12/31 CPP ART191 ART471
Referências Complementares: 
DIR CONST * DIR FUND / DIR CRIM / DIR INT PUBL * DIR HOMEM * TRATADOS / DIR PENIT / DIR PROC PENAL*****
RESOL CONS EUROPA 828/1984 DE 1984/09/26 ; RESOL NAÇÕES UNIDAS 47/133 DE 1992/12/18
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