Simp English Español

Está aqui

Dados Administrativos
Número do Parecer: 
137/1996, de 09.06.1999
Data do Parecer: 
09-06-1999
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
MEDIDA DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
EXECUÇÃO
REVOGAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO DA PENA
SUBSIDIARIEDADE
EXECUÇÃO DE PENAS
MEDIDA RESTRITIVA DA LIBERDADE
MEDIDA DEFLEXIBILIZAÇÃO
MEDIDA DE SEGURANÇA
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
LICENÇA DE SAÍDA
INTERNAMENTO EM REGIME ABERTO
INCOMUNICABILIDADE DO DETIDO
RECLUSO
REGIME ABERTO
REGIME FECHADO
DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE IN0CÊNCIA
Conclusões: 
A flexibilidade na execução de medidas privativas de liberdade configurada no artigo 58º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, é inaplicável à execução da prisão preventiva.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Ministro da Justiça,
Excelência:




I

Dispõe o artigo 58º do Decreto–Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto – diploma que veio reestruturar os serviços destinados à execução das medidas privativas de liberdade -, na redacção do artigo 2º do Decreto–Lei n.º 49/80, de 22 de Março:

«Artigo 58º
Flexibilidade na execução

1 – A fim de tornar a execução das medidas privativas de liberdade mais flexível, nomeadamente nos aspectos referentes ao restabelecimento de relações com a sociedade, de forma geral e progressiva, pode o recluso internado em estabelecimento ou secção de regime aberto ser autorizado pela Direcção-Geral, sob proposta do respectivo director:
a) A sair do estabelecimento, com ou sem custódia, a fim de trabalhar ou frequentar estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional;
b) A sair do estabelecimento durante determinadas horas do dia, com ou sem custódia.
2 – As medidas de flexibilidade na execução só podem ser concedidas se não for de recear que o recluso se subtraia à execução da pena ou que se aproveite das possibilidades que tais benefícios lhe proporcionam para delinquir, desde que a concessão da licença de saída não prejudique seriamente a segurança e a ordem públicas, nem ponha em causa as razões de prevenção geral e especial que sempre cabem à execução das medidas privativas de liberdade.»

No entendimento seguido pela Administração Prisional – pondera Vossa Excelência – as medidas de flexibilização previstas neste preceito são exclusivamente aplicáveis a reclusos em cumprimento de penas de prisão.

Mas, na sequência do parecer n.º 98/89 deste Conselho Consultivo ([1]) – acrescenta - «ficou clara a possibilidade da sua aplicação a indivíduos a cumprir medidas de segurança privativas de liberdade».

Nestas condições, pretende Vossa Excelência que este corpo consultivo se pronuncie agora sobre a aplicabilidade das aludidas medidas de flexibilização a indivíduos em situação de prisão preventiva.

Cumpre emitir parecer.


II

1. A Constituição garante o direito à liberdade física, formulando o princípio segundo o qual «ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança» (artigo 27º, nº.s 1 e 2).

Exceptua-se «a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso, entre outros, de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos» [artigo 27º, n.º 3, alínea b)].

Em reforço do princípio o n.º 2 do artigo 28º declara, porém, categoricamente que «a prisão preventiva tem carácter excepcional, não podendo ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei».


2. O Código de Processo Penal densifica e dá tradução aos ditames constitucionais ao definir no seu Livro IV («Das medidas de coacção e de garantia patrimonial»; artigos 191º a 228º) o regime da prisão preventiva, uma das medidas de coacção ali reguladas com vista a assegurar exigências do processo, maxime a comparência do arguido em momentos fundamentais do iter processual.

Os artigos 191º e 193º são nesse sentido expressivos:

«Artigo 191º
(Princípio da legalidade)

1. A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.

2. (...)»


«Artigo 193º
(Princípio de adequação e proporcionalidade)

1. As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

2. A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

3. A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.»

O n.º 1 do artigo 191º consagra o princípio da legalidade e da tipicidade das medidas de coacção, do mesmo passo que afirma o princípio – particularmente significativo no tocante à prisão preventiva – da sua necessidade, ao estipular que só exigências processuais de natureza cautelar podem justificar limitação, total ou parcial, da liberdade das pessoas ([2]).

O n.º 1 do artigo 193º formula, por seu lado, os princípios da adequação das medidas às exigências cautelares intercedentes – que os índices teleológicos do artigo 204º revelam – e da proporcionalidade à gravidade do crime e das sanções hipoteticamente aplicáveis.

Observa-se, aliás, que os princípios da adequação e da proporcionalidade não se limitam a condicionar a escolha das medidas, tornando-se inclusive extensivos à sua própria execução.

Neste sentido, o n.º 3 do artigo 193º estabelece que a execução das medidas de coacção não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais compatíveis com as finalidades cautelares visadas, «o que – opina-se – deve ter particulares reflexos no que respeita ao regime de execução da prisão preventiva» ([3]).

É o contraponto nuclear entre meios de coacção indispensáveis a uma eficaz administração de justiça penal e respeito pela dignidade humana, implicando os direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Pondera-se a este respeito que o critério operador da compatibilização dialéctica há-de lograr-se pela “optimização” ou “concordância prática” ([4]) dos interesses conflituantes, “o que significará que o recurso aos meios de coacção em processo penal deve respeitar os princípios da sua necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção possível”.

“Princípios que nada mais são do que emanação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido que impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser socialmente necessária mas também suportável” ([5]) – “comunitariamente suportável” ([6]).

O n.º 2 do artigo 193º acentua esse carácter excepcional e subsidiário ([7]) da prisão preventiva que flui do artigo 28º, n.º 2, da lei básica, bem como de textos internacionais positivadores de direitos humanos – v.g., o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ([8]) - e o artigo 202º reafirma-o enfim como pressuposto negativo da sua imposição:

“Artigo 202º
(Prisão preventiva)

1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos; ou
b) (…) ([9])
2. (…)”

Condição necessária de aplicação da prisão preventiva é, assim, a inadequação ou insuficiência das demais medidas de coacção: termo de identidade e residência (artigo 196º); caução (artigo 197º); obrigação de apresentação periódica (artigo 198º); suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos (artigo 199º); proibição de permanência, de ausência e de contactos (artigo 200º); obrigação de permanência na habitação (artigo 201º).

A aplicação de prisão preventiva – e da generalidade das medidas de coacção – depende, ademais, da verificação, alternativa ([10]), de qualquer dos requisitos gerais – pericula libertatis – enunciados nas alíneas a) a c) do artigo 204º ([11]):

“Artigo 204º
(Requisitos gerais)

Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.”


3. Justifica-se em breve pausa de reflexão introduzir duas ordens de considerações e ensaiar uma síntese.

A primeira consideração para observar que os requisitos mencionados, para além de conditio sine qua non de imposição das medidas, constituem índices que as caracterizam teleologicamente na sua vocação garantística de escopos processuais determinados.

A segunda vai endereçada à revelação de certas conexões funcionais entre as medidas de coacção.

Embora o artigo 204º trate de requisitos comuns a todas elas – abstraindo do termo de identidade e residência -, no sentido de a sua verificação poder legitimar a imposição de qualquer uma, não se pense, porém, numa equiparação normativa das medidas aludidas.

Quer na óptica da sua gravosidade, quer da inerente eficácia cautelar existe entre as medidas de coacção uma natural graduação que o direito acolhe coligando-lhe adequados efeitos jurídicos.

Atente-se apenas nas relações entre a prisão preventiva – que está no cerne das preocupações da consulta – e as demais medidas.

Consubstanciando em abstracto a restrição máxima de liberdade a que o arguido pode ser sujeito, a prisão preventiva é a medida de coacção mais gravosa e, do mesmo passo, a mais eficaz na consecução das exigências processuais visadas.

Por isso a natureza excepcional que os normativos constitucionais e infraconstitucionais lhe assinalam: não deve ser decretada, nem mantida, sempre que medida mais favorável possa ser aplicada; só pode ser imposta quando as demais medidas forem inadequadas ou insuficientes ([12]).

Em resumo.

Nenhuma medida de coacção pode ser aplicada – salvo o termo de identidade – se não se perfilar, por exemplo, um perigo de fuga, de perturbação do processo, de continuação da actividade criminosa.

A aplicação de qualquer das medidas visa, precisamente, esconjurar a concretização do perigo.

Nem todas elas são, porém, igualmente ponderosas nesse sentido, um juízo dependente de circunstâncias de facto, a emitir casuisticamente.

A prisão preventiva é irrecusavelmente a mais eficiente.

Mas, em simultâneo, a mais gravosa.

Daí que só deva ser aplicada e mantida desde que outras medidas menos penosas se mostrem inadequadas ou insuficientes ([13]).

Mantida, note-se, porque a subsidiariedade essencial que lhe vai implicada persiste durante todo o prazo da sua execução – seja o prazo de 6 meses, seja a duração limite de 4 anos e 6 meses que o prazo pode atingir no nosso sistema (artigo 215º , n.º 4, do Código de Processo Penal).

E, justamente, o instituto da revogação e substituição da prisão preventiva por alteração das circunstâncias constitui a síntese paradigmática das relatividades e contingências que se deixaram assinaladas.

Dispõe efectivamente o artigo 212º do Código na parte que ora interessa:



“Artigo 212º
(Revogação e substituição das medidas)

1. As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) (…)
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2. (…)
3. Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4. (…)”

Aceite-se que se trata de previsões transponíveis em abstracto para a generalidade das medidas de coacção, incluindo a prisão preventiva.

E, assim, uma tese se insinua já no espírito do intérprete.

Em elementar pré-compreensão do artigo 58º do Decreto-Lei n.º 265/79, recorde-se, inicialmente extractado, a flexibilidade na execução das medidas privativas de liberdade a que alude a consulta suporia uma modificação da situação do recluso propícia à reintegração na vida livre.

Tal substrato seria nessa medida equivalente à cessação dos pressupostos da prisão preventiva ou a uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação ([14]).

Impor-se-ia, por conseguinte, a revogação ou substituição da prisão preventiva por medida menos grave, tornando em qualquer caso inoportuna e despropositada a flexibilização.

Quid iuris, porém, desde que subsiste hipoteticamente a faculdade de o juiz determinar “uma forma menos gravosa da sua execução”?

Oferece-se, nestas condições, o ensejo adequado à abordagem da outra vertente estrutural da problemática que nos ocupa, visando examinar os termos da execução da prisão preventiva.

É tarefa a que se vai dedicar a exposição subsequente.


III

1. Diploma fundamental no tema é o Decreto-Lei n.º 265/79, de 16 de Setembro, que levou a efeito uma reforma da instituição prisional, chamando a si a restruturação dos serviços encarregados da execução de medidas privativas de liberdade.

No cerne da consulta estão justamente as medidas de flexibilidade previstas no seu artigo 58º e a questão da sua aplicabilidade aos reclusos em situação de prisão preventiva.


2. Justifica-se, porém, na aproximação desse núcleo problemático, procurar previamente obter uma visão integrada do diploma e tentar aperceber certos dos seus princípios rectores, vocacionais na dilucidação da dúvida formulada.


2.1. A sistemática do Decreto–Lei n.º 265/79, compreendendo 227 artigos, organiza-se em 21 Títulos, cuja vistoria proporciona imediata elucidação das matérias reguladas.

Assim, o Título I (artigo 1º) circunscreve, sob esta mesma epígrafe, o «Âmbito de aplicação» aos estabelecimentos dependentes do Ministério da Justiça.

O Título II (artigos 2º a 16º) consigna os «Princípios gerais».

O Título III (artigos 17º a 28º) disciplina em três capítulos, respectivamente, aspectos do «Alojamento, vestuário e alimentação».

O Título IV (artigos 29º e 48º) regula, em dois capítulos, as «Visitas e correspondência».

O Título V (artigos 49º a 62º-B) - muito alterado pelo artigo 2º do Decreto–Lei n.º 49/80, de 22 de Março - rege, em quatro capítulos, acerca das «Licenças de saída do estabelecimento», sector que concita na economia do presente parecer especial atenção.

O Título VI (artigos 63º a 79º) contém a normação relativa ao «Trabalho, formação e aperfeiçoamento profissionais» - três capítulos, sobre essas duas vertentes e sobre o regime da remuneração.

O Título VII (artigos 80º a 82º) ocupa-se do «Ensino».

O Título VIII (artigos 83º a 88º) estatui acerca do «Tempo livre».

O Título IX (artigos 89º a 94º) prescreve as regras concernentes à «Assistência moral e espiritual».

O Título X (artigos 95º a 107º) as relativas à «Assistência médico-sanitária».

E o Título XI (artigos 108º a 121º) as respeitantes ao importante domínio da «Segurança e ordem».

O Título XII (artigos 122º a 127º) providencia quanto aos «Meios coercivos».

Enquanto o Título XIII (artigos 128 a 137º) estabelece o regime das «Medidas disciplinares».

O Título XIV (artigos 138º a 151º) procura, por sua vez, assegurar a defesa dos reclusos mercê do «Direito de exposição, de queixa e de interposição de recurso».

O Título XV (artigos 152º a 155º) provê sobre o instituto da «Libertação».

O Título XVI (artigos 156º a 198º) vai especialmente dedicado aos «Serviços prisionais» - regulando em outros tantos capítulos, desde a «Inspecção», os «Estabelecimentos para a execução das medidas privativas de liberdade», e os «Estabelecimentos especiais, centros de observação e anexos psiquiátricos», passando pela «Estrutura e lotação dos estabelecimentos», até aos «Serviços, direcção e órgãos dos estabelecimentos» e ao «Pessoal».

O Título XVII (artigo 199º) rege os denominados conselhos de «Assessores» formados por pessoas, estranhas aos estabelecimentos, movidas por um sentimento comum de solidariedade.

O Título XVIII (artigo 200º) prevê o desenvolvimento de actividade científica com intervenção dos institutos de criminologia na tónica «Investigação criminal e execução da pena», matéria, aliás, modificada pelo Decreto-Lei nº 96/95, de 10 de Maio.

O Título XIX (artigo 201º a 216º-A) compendia um conjunto de «Regras especiais» nos capítulos do «internamento em centros de detenção de maiores imputáveis até 25 anos», do internamento de «mulheres para a execução das medidas privativas de liberdade», e da «execução da prisão preventiva», este com um interesse muito particular para os objectivos da consulta, como se verá.

O Título XX (artigos 217º a 222º) disciplina a «Execução das medidas de segurança privativas de liberdade».

E por fim o Título XXI, contendo as «Disposições finais e transitórias» dos artigos 223º a 227º.


2.2. Colhida uma panorâmica do Decreto-Lei n.º 265/79, determinados princípios estruturantes do sistema, na óptica de conexões relevantes com o tema da consulta, devem agora ser evidenciados.

O artigo 2º enuncia nos nºs 1 e 2 as finalidades da execução das medidas privativas de liberdade em dois planos.

Por um lado, numa tónica geral de ressocialização, há-de a execução destas medidas “orientar-se de forma a integrar o recluso na sociedade, preparando-o para, no futuro, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem que pratique crimes” (n.º 1).

Por outro lado, a execução “serve também a defesa da sociedade, prevenindo a prática de outros factos criminosos” (n.º 2).

O artigo 3º, n.º 3, reafirma esta segunda finalidade, mais especificamente sintonizada na teleologia da prisão preventiva do que a primeira, precisando que “na modelação da execução das medidas privativas de liberdade não devem ser criadas situações que envolvam sérios perigos para a defesa da sociedade ou da própria comunidade prisional”.

Mas o n.º 1 do mesmo artigo introduz o contraponto já aflorado a propósito do n.º 3 do artigo 193º do Código de Processo Penal, ao advertir que a “execução deve ser orientada de modo a respeitar a personalidade do recluso e os seus direitos e interesses jurídicos não afectados pela condenação.”

O n.º 1 do artigo 4º vem em síntese a definir a posição do recluso configurando uma gradação entre os dois parâmetros: “o recluso mantém a titularidade dos direitos fundamentais do homem, salvo as limitações resultantes do sentido da sentença condenatória, bem como as impostas em nome da ordem e segurança do estabelecimento”.

Não pode em derradeiro termo duvidar-se de que estas directrizes sejam aplicáveis aos reclusos em situação de prisão preventiva.

Imediatamente, em virtude do disposto no artigo 216º-A, integrado no Capítulo IV (“Regras especiais para a execução da prisão preventiva”; artigos 209º a 216º-A) do Título XIX (“Regras especiais”):


“Artigo 216º-A

Ao internamento em prisão preventiva são aplicáveis as normas relativas ao regime das penas privativas de liberdade, na medida em que a lei não dispuser o contrário.”

Depois, porque logo a primeira das disposições especialmente dedicadas à prisão preventiva proclama os mesmos princípios em similar interconexão:

“Artigo 209º
Princípio geral

1- O detido em prisão preventiva goza de uma presunção de inocência e deve ter um tratamento em conformidade.

2- A prisão preventiva é executada por forma a excluir qualquer restrição da liberdade que não seja estritamente indispensável à sua finalidade e à manutenção da disciplina, da segurança e da ordem no estabelecimento.”

Neste conspecto se reconheceu já em parecer deste Conselho ([15]) que a ordem e a segurança do estabelecimento “são valores fundamentais e predominantes do regime de execução da prisão, mesmo da preventiva”, surgindo “como limites ao exercício dos direitos fundamentais dos reclusos (artigo 4º, n.º 1), à sua permanência em comum [artigo 17º, n.º 2, alínea c)], à liberdade de decoração do quarto de internamento (artigo 19º, n.º 3), às visitas (artigos 31º e 34º, n.º 1), à correspondência [artigos 40º, n.º 2, 43º, n.º 1, alínea a), e 45º, n.º 2, alínea a)], à escolha do trabalho (artigo 63º, n.º 7), à ocupação dos tempos livres (artigos 83º, n.º 3, e 87º), ao acesso aos jornais e revistas (artigo 85º, n.º 2), à rádio e televisão (artigo 86º, n.º 1), à participação em actos religiosos (artigo 90º, n.º 3), à intimidade (artigo 16º, n.º 1)”.

“De todas as disposições citadas ressalta como linha de força a ideia – prossegue o mesmo parecer – de que em caso de inultrapassável conflito entre os direitos dos reclusos e a necessidade de garantir a ordem e a segurança do estabelecimento e da população prisional, devem prevalecer, em última instância, estes valores”.


3. Esboçada a infraestrutura axiológica em que se inscreve a execução da generalidade das medidas privativas de liberdade, importa ainda completar o quadro das regras especiais para a execução da prisão preventiva consignadas no Capítulo IV do Título XIX.


3.1. As novas regras adrede aí fixadas – ponderou o parecer acabado de citar – arrancaram da ideia, salientada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 265/79 (nº 3), de que o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

Escreveu-se a propósito ([16]):
«Consistindo, como se sabe, a prisão preventiva, em si, numa excepção ([17]) ao princípio de que até à condenação se presume a inocência do arguido e dado o perigo que daí pode resultar para os direitos dos indivíduos, estabelece a generalidade das legislações não só as circunstâncias em que esta medida pode ter lugar como o leque de finalidades que deve servir (artigo 291º, § 2º, alíneas a), b) e c) do Cód. Proc. Penal).
«Trata-se, quanto a estas últimas, para além das razões de natureza processual (traduzidas por um lado, no perigo de que a manutenção do arguido em liberdade perturbe a instrução do processo e, por outro lado, no risco fundado da sua fuga), de razões de ordem pública que se traduzem no risco de perturbação da paz pública, seja através do cometimento de novas infracções pelo arguido, seja pela possível vingança dos lesados sobre ele.

«Não admira pois que, se a prisão preventiva exige regras especiais para a sua execução, elas testemunham, ao mesmo tempo, um dos aspectos em que surge mais saliente a diferenciação do instituito em face da prisão propriamente dita.»

Alheia, pois, às “intencionalidades de prevenção geral, especial ou de justiça”, posto, “não constituir uma verdadeira pena”, nem visar, por conseguinte, “qualquer ideal de ressocialização” – tal como sublinham os autores e o parecer que se têm vindo a citar - , assim se compreende a recepção no códice regulador do mundo prisional, sob o signo compromissório dos princípios vertidos no artigo 209º, de um catálogo de normas de execução peculiares à prisão preventiva, decantadas inclusivamente em foros internacionais cultores dos direitos humanos.

Observe-se, porém, que, a despeito das garantias de direitos fundamentais emergentes desse complexo normativo, nem por isso o sistema deixa de qualificar-se por um coeficiente não despiciendo de penosidade.


3.2. Basta atentar na disciplina definida basicamente nos artigos 210º e 211º.

Dispõe neste sentido o artigo 210º ([18]):


“Artigo 210º
Regime de execução de prisão preventiva

1 – O regime normal de execução da prisão preventiva é o da vida em comum do detido com pequenos grupos de outros detidos e o isolamento durante a noite.

2 – O disposto no número anterior não é aplicável aos detidos:

a) Em regime de incomunibilidade, nos termos da lei;

b) Que o solicitem ao respectivo director, expressamente e por escrito;

c) Que se mostrem inadaptados ao regime normal ou que se presumam especialmente perigosos em função dos factos que determinam a prisão ou do seu passado criminal;

d) Cujo estado físico ou psíquico o não permita.

3 – Os pressupostos de aplicação do regime definido nas alíneas c) e d) do número anterior devem ser reapreciados, de mês a mês, pelo director do estabelecimento.

4 – O requerimento a que se refere a alínea b) do n.º 2 pode a todo o tempo ser objecto de desistência.

5 – Nos casos previstos no n.º 2, o detido pode ser internado noutra categoria de estabelecimento prisional, com autorização da Direcção-Geral, mantendo-se, no entanto, o regime próprio de prisão preventiva e, sempre que possível, mantendo-se também a separação de outras categorias de reclusos.”

O regime normal de execução da prisão preventiva é, pois, “o da vida em comum com pequenos grupos de outros detidos, e o isolamento durante a noite.”

Este regime deixa, contudo, de se aplicar nas hipóteses configuradas pelas quatro alíneas do n.º 2, dando então lugar, inclusivamente, a um regime mais severo.

É o caso da sujeição às medidas de incomunicabilidade reguladas no artigo 211º:


“Artigo 211º
Incomunicabilidade

1 – Os detidos em prisão preventiva podem ficar sujeitos, por ordem da autoridade competente e nos termos do disposto no Código de Processo Penal, ao regime:

a) De incomunicabilidade absoluta;
b) De incomunicabilidade restrita, sendo-lhes apenas vedado comunicar com determinadas pessoas;

2 – Sempre que qualquer recluso tenha de ficar em regime de incomunicabilidade, deve a autoridade competente dar a respectiva ordem por escrito, discriminando taxativamente as limitações fixadas quando se trate de incomunicabilidade restrita.

3 – O disposto nos números anteriores não obsta à aplicação do n.º 3 do artigo 6º e do artigo 107º ([19]), nem impede o detido de comunicar com o director, o médico, o assistente religioso, com funcionários (…) (…)

4 – Quando o isolamento for gravemente prejudicial para o detido, nomeadamente para a sua saúde física e mental, o director do estabelecimento, ouvido o respectivo médico, exporá o caso à autoridade à ordem de quem o recluso se encontra, ficando esta responsável pelos inconvenientes que resultarem se não forem autorizadas as medidas propostas.

5 – O disposto no nº 3 obriga os referidos funcionários ao necessário segredo de justiça.”

Regime mais severo que o regime normal da prisão preventiva pode eventualmente, consoante as circunstâncias ocorrentes, aplicar–se ainda aos presos preventivos, maxime aos portadores da perigosidade hipotizada na alínea c) do n.º 2 do artigo 209º.

Cogite-se apenas nas “medidas especiais de segurança” a que alude o artigo 111º ([20]):


“Artigo 111º
Medidas especiais de segurança

1 – Podem ser aplicadas ao recluso medidas especiais de segurança quando, devido ao seu comportamento ou seu estado psíquico, exista perigo sério de evasão ou da prática de actos de violência contra si próprio ou contra pessoas ou coisas.

2 – São autorizadas as seguintes medidas especiais de segurança:

a) Proibição do uso de determinados objectos ou a sua apreensão;
b) Observação do recluso durante o período nocturno;
c) Separação do recluso da restante população prisional;
d) Privação ou restrições à permanência a céu aberto;
e) Utilização de algemas;
f) Internamento do recluso numa cela especial de segurança.

3 – A aplicação das medidas previstas no número anterior é autorizada quando de outro modo não seja possível evitar ou afastar o perigo da tirada ou da fuga de reclusos ou quando exista perturbação considerável da ordem e da segurança do estabelecimento.

4 – As medidas especiais de segurança mantêm-se apenas enquanto durar o perigo que determinou a sua aplicação.

5 – As medidas referidas no n.º 2 não podem ser utilizadas a título de medida disciplinar.”

As restantes regras especiais aplicáveis aos detidos em prisão preventiva constam dos artigos 212º e seguintes.

Fora das situações de incomunicabilidade, obviamente, e de medidas especiais de segurança que tal impeçam, «podem receber visitas todos os dias, sempre que possível, observados os requisitos fixados no regulamento interno» (artigo 212º); «podem usar vestuário próprio» em certas condições (artigo 213º) e «receber, a expensas suas, alimentos confeccionados fora do estabelecimento» (artigo 214º).

Os presos preventivos «não podem ser obrigados a trabalhar» (artigo 215º, n.º 1). Mas «podem, a seu pedido, ser autorizados a trabalhar, a frequentar cursos de formação e aperfeiçoamento profissional, de ensino, bem como participar nas demais actividades de carácter instrutivo, cultural, recreativo e desportivo que forem organizadas no estabelecimento» (n.º 2).

O «internamento dos maiores imputáveis até 25 anos» - dispõe o artigo 216º, n.º 1 - «deve, quando possível, ser feito em secções ou estabelecimentos próprios para jovens», com um «objectivo predominantemente educador» (n.º 2) ([21]).

O Capítulo IV em exame remata com o artigo 216º-A, já conhecido, intercalado na versão original do Decreto–Lei n.º 265/79 pelo artigo 8º do Decreto–Lei n.º 49/80 sem motivação preambular esclarecedora.

3.3. Nenhuma menção contém, todavia, o mesmo Capítulo a licenças de saída.

A própria frequência de cursos, de ensino, e a participação em actividades de carácter instrutivo, cultural, recreativo e desportivo é, como se viu, restrita às que forem organizadas no estabelecimento.

Aliás, os instrumentos internacionais inspiradores não aludem igualmente a essas licenças ([22]).

Os tópicos aflorados apontam, por consequência, no sentido de que as saídas do estabelecimento não são medidas vocacionais do regime normal de execução da prisão preventiva, estando por isso mesmo excluídas da remissão prevista no artigo 216º-A.

Provavelmente as motivações teleológicas justificativas da aplicação da medida de coacção em análise, à luz do artigo 204º do Código de Processo Penal, resultariam arriscadamente comprometidas mercê da concessão de licenças de saída.


4. Contudo, é num esquema especialmente favorável de saídas do estabelecimento prisional que se traduzem as medidas de flexibilidade a que se reporta a consulta.


4.1. Como há momentos se deixou entrever, trata-se de matéria regulada no Título V, sob a epígrafe «Licenças de saída do estabelecimento» (artigos 49º a 62º-B) – conforme alterações de vulto nele introduzidas pelo artigo 2º do Decreto–Lei n.º 49/80 -, compreendendo quatro capítulos: «Princípios comuns» (Capítulo I; artigos 49º a 57º); «Licenças de saída de estabelecimento ou secção de regime aberto» (Capítulo II; artigos 58º a 60º); «Licenças de saída de estabelecimento ou secção de regime fechado» (Capítulo III; artigo 61º); «Licenças de saída por motivos especiais e licenças de saída em preparação para a liberdade» (Capítulo IV; artigos 62º a 62º-B).

Reproduza-se de novo por comodidade o artigo 58º:

«Artigo 58º
Flexibilidade na execução

1 – A fim de tornar a execução das medidas privativas de liberdade mais flexível, nomeadamente nos aspectos referentes ao restabelecimento de relações com a sociedade, de forma geral e progressiva, pode o recluso internado em estabelecimento ou secção de regime aberto ser autorizado pela Direcção-Geral, sob proposta do respectivo director:
a) A sair do estabelecimento, com ou sem custódia, a fim de trabalhar ou frequentar estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional;
b) A sair do estabelecimento durante determinadas horas do dia, com ou sem custódia.
2 – As medidas de flexibilidade na execução só podem ser concedidas se não for de recear que o recluso se subtraia à execução da pena ou que se aproveite das possibilidades que tais benefícios lhe proporcionam para delinquir, desde que a concessão da licença de saída não prejudique seriamente a segurança e a ordem públicas, nem ponha em causa as razões de prevenção geral e especial que sempre cabem à execução das medidas privativas de liberdade.»


4.2. Anote-se, em primeiro lugar, que das medidas de flexibilidade previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 podem beneficiar os reclusos internados em estabelecimento ou secção de regime aberto.

Como se observou em parecer deste Conselho ([23]), «os estabelecimentos de regime aberto constituem uma espécie de estabelecimentos para a execução de medidas privativas de liberdade segundo a classificação em função da segurança».

Estatui a propósito o artigo 159º:

“Artigo 159º
Classificação em função da segurança

1 – Quanto à segurança, os estabelecimentos podem ser :
a) De segurança máxima;
b) Fechados;
c) Abertos;
d) Mistos.

2. Podem ser criadas secções de segurança independentes para o internamento de reclusos que se revelem inadaptados ao regime geral de tratamento.

3. Compete ao Ministro da Justiça, sob proposta do director-–geral dos Serviços Prisionais, fixar a classificação dos estabelecimentos previstos no número anterior.»

Os critérios de segurança dos estabelecimentos fechados e abertos e de internamento dos reclusos numa ou noutra das espécies vêm por sua vez definidos no artigo 14º:


«Artigo 14º
Estabelecimentos abertos e fechados

1 – O recluso que não reúna as condições referidas no n.º 2 é internado em estabelecimento fechado.

2 – O recluso pode ser internado, com o seu consentimento, num estabelecimento ou secção de regime aberto, quando estejam preenchidos os pressupostos deste, isto é, quando não seja de recear que ele se subtraia à execução da pena ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe proporciona para delinquir.

3 – O recluso pode também ser internado num estabelecimento de regime fechado, ou regressar a este, quando isso se revelar necessário ao seu tratamento ou sempre que pelo seu comportamento se mostrar que não satisfaz as exigências do regime aberto.

4 – O internamento em regime fechado é executado em condições de segurança capazes de prevenir o perigo de evasão dos reclusos.

5 – O internamento em regime aberto é executado prescindindo-se, total ou parcialmente, de medidas contra o perigo de evasão dos reclusos.»

Pois bem. Atendendo aos critérios de segurança e de internamento aludidos e aos motivos justificativos da prisão preventiva enunciados no artigo 204º do Código de Processo Penal, propende-se a pensar que um preso preventivo não pode adequadamente ser internado em estabelecimento ou secção de regime aberto.

Só as condições de segurança próprias do regime fechado permitem eficazmente prevenir o perigo de evasão, que possibilitaria, por seu turno, a fuga, as perturbações processuais e da ordem pública, ou a reiteração da actividade criminosa – a começar pela própria evasão, ela mesma um crime previsto e punido pelo artigo 352º do Código Penal – que podem ter justificado a prisão preventiva.

Mas, não podendo provavelmente os presos preventivos ser internados em regime aberto, falha então um dos pressupostos de aplicação das medidas de flexibilidade.

Ademais, estas medidas – aplicáveis, de resto, no exercício de competências da Administração Prisional - tendem “ao restabelecimento de relações com a sociedade, de forma geral e progressiva”, escopo de reinserção social estranho à prisão preventiva, cuja flexibilização quedaria nesta tónica sem fundamento teleológico.

Finalmente, as medidas de flexibilidade só podem ser concedidas desde que se comprovem os requisitos enunciados no n.º 2 do artigo 58º, mas a verificação destes equivaleria à insubsistência ou atenuação dos pressupostos enunciados no artigo 204º do Código de Processo Penal, impondo provavelmente, mercê inclusive dos princípios da necessidade, adequação e subsidiariedade que fluem dos artigos 193º, nºs 1 e 2, e 202º do mesmo Código, a revogação da prisão preventiva ou a sua substituição por outra medida de coacção.


4.3. As razões aduzidas persuadem argumentativamente no sentido da inaplicabilidade do artigo 58º à execução da prisão preventiva.

A utilização das medidas de flexibilidade configuradas nesse preceito contrastaria, por todo o exposto, com a natureza da prisão preventiva como medida de coacção processual penal e com a tipicidade legal da sua execução.

Os princípios da necessidade, adequação e subsidiariedade que caracterizam o regime legal da prisão preventiva, portadores de dignidade constitucional, e reflectindo-se em concretização executiva no universo prisional, afiguram-se inconciliáveis com a flexibilização em causa.

Por isso mesmo, a faculdade residual que assista ao juiz de determinar uma forma menos gravosa de execução, nos termos do n.º 3 do artigo 212º do Código de Processo Penal (cfr. supra, II, 3.), não poderia substancialmente equivaler às aludidas medidas de flexibilidade.

5. Salienta no entanto a consulta que o parecer nº 98/89 reconheceu a possibilidade de aplicação das medidas de flexibilização a internados em cumprimento de medidas de segurança privativas de liberdade.

Trata-se, porém, de situação normativamente diferente da prisão preventiva, uma vez que a flexibilidade das medidas de segurança é de forma expressa admitida por lei.

E com razões, precisamente, de reinserção social, a que a execução da prisão preventiva se revela teleologicamente indiferente.

Estatui neste sentido a disposição introdutória do Título XX - «Execução das medidas privativas de liberdade» - do Decreto-Lei nº 265/79:


«Artigo 217º
Objectivo do internamento

O internamento resultante de uma medida de segurança visa a defesa da sociedade, devendo ser orientado a reintegrar o internado na vida livre.»

Consentaneamente, dispõe o artigo 221º do mesmo diploma, preceito sem paralelo na disciplina legal da prisão preventiva:


«Artigo 221º
Preparação para a liberdade

A fim de preparar a libertação do internado, pode tornar-se a execução da medida de segurança mais flexível, nomeadamente pela concessão de licenças de saída, nos termos do disposto nos artigos 49º e seguintes.»

Escreveu-se a propósito no parecer nº 98/89 (ponto 7):

«Assim sendo, a possibilidade (ou não) de internamento de inimputáveis em estabelecimentos abertos - como, aliás, a sua sujeição às demais medidas de flexibilidade na execução do internamento - decorrerá, como resulta de todo o exposto, do direito penitenciário atrás invocado, que o Código Penal não derrogou.
«Face aos citados artigos 218º ([24]) e 221º do Decreto-Lei nº 265/79, não se podem oferecer dúvidas de que os inimputáveis internados podem beneficiar do discutido regime aberto (artigos 9º e seguintes), bem assim de licenças de saída precárias concedidas pela administração penitenciária (artigo 49º, nº 3, do referido diploma legal), desde que observados os respectivos pressupostos de concessão dessas medidas de flexibilidade.»

Eis, nos termos expostos, as conclusões formuladas no parecer:

«1º O Código Penal e o Código de Processo Penal vigentes respeitam os princípios e regras do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto, no tocante à execução da medida de internamento de inimputáveis a que se referem os artigos 91º e seguintes daquele primeiro diploma legal; consequentemente,
2º Não obstante a revogação tácita do nº 2 do artigo 42º do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro, pelo Código de Processo Penal, os inimputáveis internados nos termos do artigo 91º do Código Penal poderão cumprir essa medida de segurança em regime aberto, ex vi do artigo 218º do Decreto-–Lei nº 265/79, desde que se verifiquem os pressupostos definidos no artigo 14º, nº 2, deste diploma legal;
3º Na execução da referida medida de segurança, ex vi e nos termos do artigo 221º do Decreto-Lei nº 265/79, poderão ser concedidas aos inimputáveis, pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais ou pelo director do respectivo estabelecimento, as licenças de saída a que se refere o nº 3 do artigo 49º desse diploma legal, desde que sejam observados os requisitos estabelecidos nas respectivas disposições legais.»



IV


Do exposto se conclui:

A flexibilidade na execução de medidas privativas de liberdade configurada no artigo 58º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, é inaplicável à execução da prisão preventiva.


VOTOS
(Isabel Celeste Alves Pais Martins) – Voto o parecer com restrição quanto à afirmação, dele constante, de que subsiste hipoteticamente a faculdade de o juiz determinar uma forma menos gravosa da execução da prisão preventiva (cfr. II, 3, e III, 4.3.).
O artigo 212º, nº 3, in fine, do Código de Processo Penal, não consente uma interpretação que apoie essa tese.
A nosso ver, a possibilidade de o juiz determinar uma forma menos gravosa de execução de uma medida de coacção, no caso de se verificar uma atenuação das exigências cautelares, que não determine a própria substituição de medida aplicada, só ocorre quanto às medidas tipificadas nos artigos 198º, 199º e 200º do Código de Processo Penal.
Só estas medidas de coacção – porque comportam um leque de obrigações ou porque consentem modos de execução mais ou menos gravosos -, permitem ao juiz quer a escolha das obrigações a que o arguido ficará sujeito, quer a escolha do modo, mais ou menos restritivo da liberdade, de cumprimento dessas obrigações.
______________
[1]) «Diário da República», II Série, n.º 180, de 6 de Agosto de 1990, págs. 8763 e seguintes.
[2]) JOÃO CASTRO E SOUSA, Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal, «Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Processo Penal», Livraria Almedina, Coimbra, 1997, pág. 151; numa perspectiva histórica e comparatística vejam–se no tema os pareceres do Conselho nº 111/90, de 6 de Dezembro de 1990, e nº 12/92, de 30 de Março de 1992, inéditos.
[3]) CASTRO E SOUSA, op. cit., pág. 157, considerando neste plano insuficientes para dar cumprimento ao n.º 3 do artigo 193º, as «regras especiais para a execução da prisão preventiva constantes da Lei Prisional (Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, com as alterações do Decreto-Lei n.º 49/80, de 22 de Março)»; ODETE MARIA DE OLIVEIRA, As medidas de coacção no novo Código de Processo Penal, «Jornadas» citadas na nota anterior, pág. 169.
[4]) CASTRO E SOUSA, op. cit., pág. 150 e nota 2, citando COSTA ANDRADE.
[5]) CASTRO E SOUSA, ibidem.
[6]) ODETE MARIA DE OLIVEIRA, op. cit., pág. 188, citando FIGUEIREDO DIAS.
[7]) Assim, MIGUEL NUNO PEDROSA MACHADO, Revogação da prisão preventiva – Sua relação com a definição do objecto do processo – O crime continuado e a aplicação do artigo 212º, nº 1, alínea a), do novo Código de Processo Penal, «Direito e Justiça», vol. V, 1991, págs. 281 e segs. (cfr. pág. 290), com ampla recensão bibliográfica nacional e estrangeira no tema da prisão preventiva; RODRIGUES MAXIMIANO, A Prisão Preventiva, uma apreciação do projecto do novo Código de Processo Penal, «Jornadas de Processo Penal», «Cadernos da Revista do Ministério Público», nº 2, 1987, págs. 175 e segs. (cfr. pág. 178).
[8]) Sobre o artigo 5º, nºs. 1, alínea c), e 3, deste segundo instrumento, cfr. IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Editorial Notícias, Aequitas, Lisboa, 1995, págs. 68 e seguintes.
[9]) A alínea b), em conexão com a alínea c) do nº 3 do artigo 27º da Constituição alude à prisão preventiva de «pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão», situação atípica a que não dedicaremos particular atenção.
[10]) MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 9ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 427; RODRIGUES MAXIMIANO, op. cit., pág. 190.
[11]) Para uma análise teorética destes requisitos, cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, Lisboa/S. Paulo, 1993, págs. 210 e seguintes.
[12]) GERMANO MARQUES DA SILVA, op. cit., pág. 219, observa a propósito que “a lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas, cuja diversa gravidade deve ser sempre tida em conta pelo juiz no momento da escolha da que julgue mais idónea a salvaguardar as exigências cautelares em cada caso”.
[13]) “O modo como no processo penal se aplicam medidas de coacção – sublinha GERMANO MARQUES DA SILVA, op. cit., pág. 244 -, mormente as privativas de liberdade, é bem a medida do culto de liberdade de um povo e, por isso também, do grau de implantação na sociedade dos ideais democráticos.”
[14]) A específica consideração pela “atenuação das exigências cautelares” – ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, op. cit., pág. 252 – justifica-se pelo favor rei. “O legislador pretendeu acentuar que as medidas aplicadas não devem manter-se para além do necessário” e, por isso, “impõe o reexame oficioso, de três em três meses – cfr., efectivamente, o disposto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, da subsistência dos seus pressupostos, decidindo então o juiz se ela deve manter-se, ser substituída ou revogada.”
Ademais, o reexame trimestral imposto pelo artigo 213º tem de ser entendido como “uma garantia suplementar, para o arguido preso, de que não poderá decorrer esse período sem ver a sua situação oficiosamente revista; não excluindo, porém, a possibilidade de o ser mais cedo, quando tal se justifique, de acordo com a regra geral do artigo 212º” (Acórdão nº 3/96 do plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, «Diário da República», I Série-A, de 14 de Março de 1996, pág. 511).
[15]) Parecer n.º 107/85, de 14 de Outubro de 1985, “Diário da República”, II Série, nº 272, de 26 de Novembro de 1985, págs. 11130 e segs., e “Boletim do Ministério da Justiça”, n.º 354, págs. 163 e segs. (cfr. especialmente págs. 176/177).
[16]) EDUARDO CORREIA/ANABELA MIRANDA RODRIGUES/ANTÓNIO MANUEL DE ALMEIDA COSTA, Direito Criminal - III (1), Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1980, págs. 216 e seguintes, passo acolhido também no parecer nº 107/85, que chama igualmente a atenção, no tocante especificamente ao regime prisional dos reclusos em cumprimento de pena, para ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade. Seu Fundamento e Âmbito, separata do vol. XXIII do Suplemento ao “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”, Coimbra, 1982.
[17]) SOUTO DE MOURA, A questão da presunção de inocência do arguido, «Revista do Ministério Público», Ano 11º, nº 42, pág. 44, prefere falar de uma «constrição» ou «contenção das decorrências lógicas do princípio da inocência».
[18]) A redacção do artigo 210º em vigor deve-se por último às alterações nele introduzidas pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 414/85, de 18 de Outubro, desprovidas, tanto quanto é possível entender, de significado hermenêutico para a inteligência do parecer. O artigo 7º do Decreto-Lei n.º 49/80, de 22 de Março, modificara anteriormente a alínea a) do n.º 2, em termos que a nova redacção do Decreto-lei n.º 414/85, de resto, absorveu.
[19]) O n.º 3 do artigo 6º garante ao recluso, logo após o ingresso no estabelecimento prisional, o direito de informar a família ou quem legalmente o represente da sua situação; enquanto o artigo 107º providencia acerca de notificações e comunicações em caso de doença ou de óbito.
[20]) Acerca da aplicação dessas medidas e, designadamente do “internamento em cela especial de segurança” regulado no artigo 113º – dentre elas indubitavelmente a mais grave – aos reclusos em situação de prisão preventiva, veja-se, com mais detalhe, o parecer n.º 107/95 (pontos 5. e segs.).
[21]) Entre estes estabelecimentos refira-se, a título exemplificativo, o Estabelecimento Prisional Especial de Viseu, recentemente criado pelo Decreto–Lei n.º 190/97, de 29 de Julho.
[22]) Assim, v.g., as disposições específicas sobre prisão preventiva contidas nas «Regras mínimas para o tratamento de prisioneiros» adoptadas em 30 de Agosto de 1955 pelo I Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamentos dos Delinquentes, e as compendiadas na Resolução nº (73)5, de 19 de Janeiro de 1973, do Conselho da Europa, que visou adaptar aquelas às exigências de política penal da actualidade. Cfr. com outros desenvolvimentos o parecer n.º 107/85 e ainda o parecer n.º 104/90, de 21 de Fevereiro de 1991, «Diário da República», II Série, nº 196, de 27 de Agosto de 1991, págs. 43 e segs., e «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 404, págs. 35 e segs. (ponto II, 2.).
[23]) Parecer n.º 104/90 (ponto IV, 2, nota 31), que analisou a natureza jurídica das medidas previstas no artigo 58º, em face de dúvidas de constitucionalidade relacionadas com a sua aplicação pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, para concluir tratar-se apenas de uma especial modalidade de execução da pena privativa de liberdade, em lugar de se traduzir numa alteração ou modificação desta que a incluiria na reserva constitucional da jurisdição .
[24]) Preceito simétrico do artigo 216º-A, que se transcreve:

«Artigo 218º
Aplicação de outras normas

Ao internamento resultante da aplicação de uma medida de segurança são aplicáveis, por analogia, as normas sobre a execução das penas privativas de liberdade, na medida em que nada se dispuser em contrário.»
Anotações
Legislação: 
CONST97 ART27 N1 N2 N3 B ART28.
DL 265/79 DE 1979/08/01 ART2 N1 N2 ART3 N1 N3 ART4 N1 ART14 N1 N2 N3 N4 N5 ART58 N1 A B N2 ART159 N1 A B C D N2 N3 ART209 N1 N2 ART210 N1 N2 A B C D N3 N4 N5 ART211 N1 A B N2 N3 N4 N5 ART111 N1 A B C D E F N2 N3 N4 N5 ART212 ART213 ART214 ART215 N1 N2 ART216 ART216-A ART217 ART221.
DL 49/80 DE 1980/03/22 ART2 ART8.
CPP87 ART191 N1 ART193 N1 N2 N3 ART196 ART197 ART198 ART199 ART200 ART201 ART202 N1 A ART204 A B C ART212 N1 B N3 ART215 N4.
CP95 ART352.
Referências Complementares: 
DIR CONST * DIR FUND / DIR PROC PENAL.*****
CEDH
PIDCP
REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DE PRISIONEIROS DE 1955/08/30.
RES DO CONSELHO DA EUROPA N (73)5 DE 19/01.
Divulgação
Data: 
17-01-2000
Página: 
1006
16 + 0 =
Por favor indique a resposta à questão apresentada para descarregar o pdf