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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
97/2001, de 00.00.0000
Data de Assinatura: 
Tipo de Parecer: 
Informação-Parecer
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CONVENÇÃO INTERNACIONAL
CONVENÇÃO CIVIL SOBRE CORRUPÇÃO
CORRUPÇÃO
CONSELHO DA EUROPA
COMBATE À CORRUPÇÃO
SECTOR PRIVADO
DANO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
VÍCIO DA VONTADE
PROTECÇÃO
TESTEMUNHA
Conclusões: 
A - A Convenção civil sobre a corrupção, feita em Estrasburgo em 4 de Novembro de 1999, no âmbito do Conselho da Europa, não colide com as normas e os princípios constitucionais e de ordem pública portugueses.

B - Esta Convenção deve ser considerada em conjugação com a Convenção Penal sobre a Corrupção, feita igualmente no âmbito do Conselho da Europa em 27 de Janeiro de 1999.

C - As adaptações do direito interno exigidas pela Convenção serão mínimas se previamente tiver havido as adaptações resultantes da adesão à Convenção Penal.

D - O vício na vontade a que se refere o artigo 8.º, n.º 2, não encontra paralelo no nossa ordem jurídica, pelo que haverá que inserir uma regra que o preveja.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Ministro da Justiça ,
Excelência:



1.


Dignou-se Vossa Excelência solicitar ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República parecer sobre a Civil law Convention on Corruption/ Convention civile sur la corruption, feita em Estrasburgo em 4 de Novembro de 1999, no âmbito do Conselho da Europa.

O Parecer a emitir, sujeito às limitações decorrentes do estatuto do Conselho Consultivo, com competência restrita a matéria de legalidade [artigo 37.º, alíneas a) e b) do Estatuto do Ministério Público, na redacção da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto], visa, essencialmente, verificar da compatibilidade da Convenção em análise com as normas e os princípios constitucionais e de ordem pública portugueses, tendo em vista a adesão de Portugal à mesma.

No ofício em que o pedido vem formulado faz-se referência a dois pareceres anteriores, um da Polícia Judiciária [1], outro do Gabinete de Documentação e Direito Comparado desta Procuradoria-Geral da República [2], ambos emitidos em Agosto de 1999, sobre o à data ainda projecto de convenção. Estes pareceres vêm anexados, pelo que se lhes fará menção na medida em que releve para a economia deste parecer.

Essa menção será tanto mais justificada quando, de acordo com o mesmo ofício, foi na sequência das posições neles tomadas que “o Ministro da Justiça de então, Sr. Dr. José Vera Jardim, susteve a adesão de Portugal à convenção até à resolução das dificuldades levantadas naqueles pareceres no direito interno”.



2.



2.1. O texto da Convenção foi produzido em francês e inglês fazendo igualmente fé qualquer dessas versões. Discutiremos a Convenção com base nessas versões, que daremos por conhecidas, procedendo a tradução para português, da nossa responsabilidade, sempre que se verificar que é útil.

A Convenção foi elaborada no âmbito do Conselho da Europa, mas nessa elaboração participaram sete Estados não membros da organização - Bielorússia, Bósnia/Herzegovina, Canadá, Estados Unidos da América do Norte, Japão, México e Estado da Santa Sé - e uma organização internacional - a Comunidade Europeia.

A Convenção entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um período de três meses a contar da data em que catorze signatários tenham expressado o seu consentimento a ficar vinculados (artigo 15.º, n.º 3). À data desta informação, e conforme recolha na página oficial do Conselho da Europa na Internet [3], tinha já havido vinte e sete assinaturas, mas apenas se lhe tinham seguido três ratificações.


2.2. No preâmbulo da Convenção sublinha-se o entendimento por parte dos Estados membros do Conselho da Europa, dos outros Estados signatários e ainda da Comunidade Europeia de que a “corrupção representa uma grave ameaça para a preeminência do direito, a democracia e os direitos do Homem, a equidade e a justiça social, impede o desenvolvimento económico e faz perigar o funcionamento correcto e leal das economias de mercado”.

Reconhece-se, igualmente, as “consequências negativas da corrupção para os indivíduos, as empresas e os Estados, bem como as organizações internacionais” e afirma-se a convicção da “importância do direito civil no contributo para a luta contra a corrupção, nomeadamente permitindo às pessoas que tenham sofrido danos obter uma indemnização equitativa”.

O preâmbulo recorda as conclusões da 19.ª, 21.ª e 22.ª conferências dos ministros Europeus da Justiça, toma em conta o “Programa de acção contra a corrupção adoptado pelo Comité de Ministros em Novembro de 1996”, e o “estudo relativo à possibilidade de elaborar uma convenção sobre as acções civis para indemnização pelos prejuízos resultantes de actos de corrupção, aprovado pelo Comité de Ministros em Fevereiro de 1997”; tem em atenção a Resolução (97) 24 sobre os 20 princípios directores da luta contra a corrupção, adoptada pelo Comité de Ministros em Novembro de 1997, a Resolução (98) 7 autorizando a adopção do Acordo parcial e alargado que cria o “Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO)”, adoptado pelo Comité de Ministros em Maio de 1998, e a Resolução (99) 5 que cria o GRECO, adoptada em 1 de Maio de 1999.

O exórdio da Convenção termina a recordar a Declaração final e o Plano de acção adoptados pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados membros do Conselho da Europa na segunda cimeira de Estrasburgo, em Outubro de 1997”.

Embora não surja directamente referido neste preâmbulo, convirá relembrar que parte dos princípios e metas estabelecidos foram-no, em modo similar, na Convenção Penal sobre a Corrupção feita igualmente no âmbito do Conselho da Europa a 27 de Janeiro de 1999 [4]. Tem importância recordar esta Convenção pois que nos vai ser útil para a compreensão das proposições formuladas agora nesta. Por isso, na apreciação que se vai encetar também se dará por conhecido o respectivo conteúdo.

Mas se a luta contra a corrupção com medidas no plano penal se pode considerar uma evidência, a possibilidade de apelar ao direito civil para a participação neste combate envolve outras variáveis, não sendo, assim, fortuito que a presente Convenção suceda e não antecipe aquela.

Na Resolução do Conselho de Ministros (97) 4, que o preâmbulo sinaliza, foram adoptadas vinte directrizes para a luta contra a corrupção. Apenas a directriz 17. respeita imediatamente ao direito civil - nela os Estados acordam em “Assegurar que o direito civil toma em consideração a necessidade de combater a corrupção e, particularmente, prevê remédios efectivos para aqueles cujos direitos e interesses são por ela afectados.”

O instrumento internacional em análise debruça-se sobre uma vertente específica de intervenção do direito civil – pretende-se a consagração pelas Partes do direito das pessoas que sofreram danos em virtude de actos de corrupção defenderem os seus direitos e interesses, incluindo, naturalmente, a possibilidade de obter reparação desses prejuízos.

Numa primeira aproximação, crê-se poder afirmar que os escopos definidos no preâmbulo e o objecto da Convenção delimitado no artigo 1.º apresentam-se compatíveis com os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.

Mas haverá, evidentemente, que proceder a uma análise que ultrapasse esta conclusão prima facie.


2.3. A presente convenção desdobra-se em 23 artigos, distribuídos por 3 capítulos:

Capítulo I - Medidas a tomar ao nível nacional – artigos 1.º a 12.º;

Capítulo II – Cooperação internacional e acompanhamento da aplicação – artigos 13.º e 14.º;

Capítulo III – Disposições finais – artigos 15.º a 23.º

Numa ordem inversa, pode-se desde já registar que nos capítulos II e III não se observam dispositivos susceptíveis de criar qualquer obstáculo à assinatura da Convenção por Portugal.

Trata-se, na maior parte, de disposições/tipo, das que normalmente são inseridas em convenções internacionais, como imediatamente se apercebe pela epígrafe de cada um dos artigos que os componhem – cooperação internacional (13.º), acompanhamento (14.º), assinatura e entrada em vigor (15.º), adesão à convenção (16.º), reservas (17.º), aplicação territorial (18.º), relações com outros instrumentos e acordos (19.º), alterações (20.º), regulação dos conflitos (21.º), denúncia (22.º), notificações (23.º).

Anotar-se-á que, tal como para a Convenção Penal sobre a Corrupção, artigo 24.º, também nesta se comete o acompanhamento da aplicação da Convenção pelas partes ao Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO), artigo 14.º.

Porém, diversamente do que ocorre naquela, artigo 37.º, na presente convenção não são admitidas reservas - artigo 17.º

Esta inadmissibilidade de reservas só terá repercussão na decisão de assinar a Convenção se alguma for perspectivável.

Descurando, pois, qualquer análise detalhada dos capítulos II e III, convirá passar ao articulado do primeiro capítulo.

Parece-nos adequado seguir agora, na apreciação da Convenção, a ordem do respectivo articulado, procedendo às observações em jeito de convenção anotada.


2.4. Dispõe o artigo 1.º:

"Cada Parte prevê no seu direito interno acções eficazes a favor das pessoas que tenham sofrido dano resultante de acto de corrupção a fim de lhes permitir defender os seus direitos e interesses, incluindo a possibilidade de obter a reparação do dano."

Vigora na nossa ordem jurídica, plasmada no artigo 2.º do Código de Processo Civil, a regra de que a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele.

E a Constituição consagra no artigo 268.º, n.º 4, a garantia aos administrados da tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos, arredando uma das áreas em que se tem visto excepção parcial àquele princípio.

Assim, prever o artigo 1.º da Convenção que à violação de um direito deve corresponder acção que permita a reparação, não representa qualquer novidade, correspondendo ao regime geral do direito nacional.


2.5. No artigo 2.º define-se o acto de corrupção:

"Para os fins da presente convenção entende-se por corrupção o facto de solicitar, oferecer, dar ou aceitar, directa ou indirectamente uma comissão ilícita ou qualquer outra vantagem que não seja devida ou a promessa de uma tal vantagem indevida que afecte o exercício normal de uma função ou o comportamento requerido do beneficiário da comissão ilícita, vantagem indevida ou da sua promessa."

Começe-se por atentar que o preceito não obriga as Partes a qualificar como corrupção os actos nele identificados. O artigo 2.º limita-se a apresentar uma definição que é essencial à compreensão do seu âmbito.

Aquilo a que as Partes se vinculam é a providenciar no sentido de que os lesados em virtude das condutas identificadas no artigo 2.º tenham ao seu dispor as medidas genericamente previstas no artigo 1.º. Se as Partes qualificam ou vêm a qualificar os actos identificados no artigo 2.º de forma diversa da que é feita pela convenção não importa, o que interessa é que essas condutas estejam ou venham a estar inscritas na legislação respectiva de modo a permitir o accionamento que o artigo 1.º programa.

Por exemplo, nada impede que em cada direito interno as situações elencadas no artigo 2.º tenham uma qualificação diversa, um diferente nome jurídico, como tráfico de influência, concussão, abuso de funções, usurpação de funções, peita, suborno ou outro.

Observar-se-á, também, que a previsão quanto fim ou resultado da acção está formulada em termos muito amplos, dir-se-á, até, um pouco indeterminados - “distorts the proper performance of any duty or behaviour required of the recipient”/“affecte l’exercice normal d’une fonction ou le comportement requis du bénéficiaire”.

Ela não utiliza nem os termos dos artigos 2.º e 3.º da Convenção Penal -“to act or refrain from acting in the exercise of his or her functions/afin qu’il accomplisse ou s’abstienne d’accomplir un acte dans l’exercice de ses fontions”, nem os termos do artigo 7.º e 8.º da mesma Convenção - “to act or refrain from acting in breach of their duties/afin qu’elle accomplisse ou s’abstienne d’accomplir un acte en violation de ses devoirs”.

É de crer que esta amplitude é propositada, de modo a permitir a flexibilidade necessária a eventual formulação diversa, no direito interno, conforme se tratar de actos com intervenção pública ou actos do puro domínio privado [5].

No direito nacional este tipo de actos encontra previsão, pelo menos, nos artigos 335.º (tráfico de influência), 372.º (corrupção passiva para acto ilícito), 373.º (corrupção passiva para acto lícito), 374.º, (corrupção activa), 377.º (participação económica em negócio), 379.º (concussão), todos do Código Penal.

Mas em todas estas condutas tipificadas na lei penal, existe sempre, em maior ou menor grau, um elemento público como elemento constitutivo do crime – ou através de entidades públicas, no caso do tráfico de influência – ou através da intervenção de funcionários ou equiparados (no sentido do artigo 386.º do mesmo), em todos os restantes.

Pela Lei n.º 13/2001, de 4 de Junho, foi transposta para o direito interno a Convenção sobre a Luta contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros nas Transacções Comerciais Internacionais, adoptada em Paris em 17 de Dezembro de 1997 [6]. Introduziu-sinserindo-se um artigo 41.º A no Decreto-Lei n.º 28/84.

Como resulta do próprio nome, a Convenção tem em vista a luta contra a corrupção nas transacções comerciais internacionais. Mas também aqui há um elemento público, trata-se das transacções comerciais com intervenção directa ou indirecta de agentes públicos – artigo 1.º da Convenção.

Conforme se pode ver da transposição efectuada, nomeadamente através do aditamento de um artigo 41.º-A, no Decreto-Lei n.º 28/84, podem corruptor e beneficiário ser ambos particulares, mas parece supor-se, em qualquer caso, a intervenção, ainda que ténue, de um agente público, mesmo que só pelo mero conhecimento do beneficio de terceiro, se agir ou deixar de agir (mais claramente o artigo 1.º da Convenção).

Ora, pelo artigo 2.º da presente Convenção, o acto de corrupção deixa de ter um necessário elemento constitutivo público ou equiparado. Ele vale tanto para condutas que envolvam agentes públicos, como para condutas que envolvam unicamente agentes privados.

Não é inovatório este avanço. Basta recordar duas iniciativas recentes:

Com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, o respectivo Conselho adoptou a Acção comum de 22 de Dezembro de 1998, relativa à corrupção no sector privado [7], pela qual cada Estado-membro se compromete a adoptar as medidas necessárias à criminalização das condutas de corrupção passiva e de corrupção activa no sector privado – artigos 2.º, 3.º e 4.º;

E na por várias vezes referida Convenção Penal sobre a Corrupção os artigos 7.º e 8.º tratam directamente da corrupção no sector privado, o primeiro da corrupção activa, o segundo da corrupção passiva. Nos seus termos as Partes adoptarão as medidas legislativas e outras que entendam necessárias para classificar como infracções penais condutas, do tipo ora enunciado no artigo 2.º da Convenção Civil, no âmbito de uma actividade comercial do sector privado, isto é, sem relação imediata ou mediata com o sector público.

Debruçando-se sobre essa Convenção Penal, assinada, mas ainda não ratificada por Portugal, a Informação/Parecer n.º 100/98, de 5 de Setembro de 2000, deste Conselho Consultivo, ponderou, reportando-se ao artigo 7.º: “é uma verdadeira revolução que se pretende introduzir na tradicional conceptualização do elemento típico objectivo do crime de corrupção” e acrescentou-se que tal revolução “não afronta qualquer princípio fundamental do ordenamento jurídico português, nomeadamente constitucional, pelo que, à parte a profunda alteração conceptual a introduzir necessariamente na lei penal portuguesa, inexistem objecções à [sua] aceitação, por Portugal”.

Do mesmo modo, não se vê aqui que haja qualquer obstáculo de ordem constitucional ou outro à consideração da ilicitude em geral de uma conduta da natureza das previstas no artigo 2.º, mesmo que apenas com intervenção de particulares.

Se o Estado português adoptar as medidas a que se comprometeu em sede da Acção comum, ou aquelas a que se vinculará se vier a ratificar a Convenção Penal sobre a Corrupção, perderão certa força algumas das dificuldades suscitadas nos pareceres prévios a que fizemos inicial alusão.


2.6. Neste contexto, o artigo 3.º sobre a indemnização dos prejuízos nada prescreve que não esteja coberto pelo direito nacional. Na verdade, aceite que há danos em resultado dos actos ilícitos identificados no artigo 2.º, o lesado terá direito à reparação nos termos gerais do nosso direito.

Deve verificar-se que nem este artigo 3.º nem qualquer outro preceito da convenção ditam o modo como cada Estado regulará a garantia do direito de acção. Por isso, não oferece dúvidas a compaginação do princípio da adesão do artigo 71.º do Código de Processo Penal a este preceito.

Também se entende que o dever de cobrir danos não patrimoniais que o n.º 2 do artigo 3.º comete vem inscrito de maneira suficientemente larga que se coaduna com a disposição genérica do n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, o qual manda atender aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.


2.7. No artigo 4.º trata-se da responsabilidade.

O n.º 1 apresenta os pressupostos da obrigação de indemnização em termos correntemente considerados para a responsabilidade civil - o acto ilícito, o prejuízo, o nexo de causalidade entre este e aquele e o nexo de imputação [8], ou, noutra formulação, o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano, um nexo de causalidade entre o facto e o dano [9].

É certo que vem suscitada uma dificuldade nos pareceres introdutoriamente mencionados a propósito do conceito de "medidas razoáveis" utilizado neste n.º 1. Não se vê que ela seja completamente pertinente. O preenchimento do conceito há-de ser visto à luz do direito interno. A formulação a ter em conta para esse preenchimento quando não há outro critério legal é a do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil: " A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso."

Exactamente, um critério legal específico para as situações de responsabilidade civil extracontratual do Estado encontra-se sugerido no artigo 10.º da Proposta de Lei n.º 95/VIII [10], que visa um novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas: “A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor” [11].

Por sua vez, o n.º 2 consagra a regra da responsabilidade solidária quando há várias pessoas responsáveis pelos danos, o que corresponde ao regime legal português consagrado no artigo 497.º do Código Civil.


2.8. Também o artigo 5.º se apresenta consoante com o direito português.

Trata-se de previsão de mecanismo para o pedido de indemnização por actos de agentes públicos. É o Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, que rege genericamente a responsabilidade civil extra-contratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público por danos causados no domínio do actos de gestão pública.

Uma das questões que tem sido suscitada é a resultante do artigo 7.º deste decreto-lei, ou seja, a limitação do quantum indemnizatur, em acção fundada em acto administrativo ilegal, aos danos que não se tenha podido evitar através de prévia impugnação contenciosa.[12]

Já se disse que está pendente na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 95/VIII [13]. A vingar a normação nela projectada a questão será ultrapassada.

Seja como for, a previsão do artigo 5.º da Convenção é suficientemente aberta para albergar mesmo a solução actual do Decreto-Lei n.º 48.051.


2.9. Ainda o artigo 6.º, sob a epígrafe “Contributory negligence/ Faute concurrente”, se apresenta perfeitamente consentâneo com o disposto no artigo 570.º do Código Civil respeitante à concorrência de facto culposo do lesado para a produção ou agravamento dos danos.


2.10. Do artigo 7.º respeitante a prazos de prescrição também não se extrai a necessidade de qualquer modificação do direito nacional.

A primeira parte do n.º 1 apresenta um prazo mínimo de prescrição de três anos em condições que o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil acolhe.

A segunda parte do n.º 1 admite a prevalência do que designámos no nosso direito por prescrição ordinária, se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso. Para esta prescrição prevê a Convenção que não seja de menos de 10 anos. Pois que a prescrição ordinária do nosso Código Civil é de 20 anos, artigo 309.º, encontra-se o nosso direito em condições de albergar a norma sem alterações.

O n.º 2 limita-se a mandar aplicar o direito nacional sobre a suspensão e a interrupção da prescrição, não suscitando, portanto, qualquer comentário.


2.11. O artigo 8.º respeita à validade dos contratos.

O disposto no n.º 1 compagina-se com o disposto no artigo 280.º do Código Civil para todos os negócios jurídicos - É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja contrário à lei.

Ora, pois que a lei estabelecerá a ilicitude das condutas previstas no artigo 2.º da Convenção, mesmo que apenas entre privados, fica imediatamente nulo sem necessidade de disposição especial o negócio cujo conteúdo consista na realização desses actos, porque ilícitos. É que, como também se prevê no artigo 405.º do Código Civil, a liberdade contratual tem de actuar dentro dos limites da lei.

O n.º 2 parece querer introduzir um vício da vontade que não encontra paralelo no nossa ordem jurídica. O caso mais aproximado é o da coacção moral, isto é, a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. Trata-se aí de declaração anulável - artigo 256.º, do Código Civil [14].

Mas note-se que no presente o acto de corrupção pode não constituir qualquer ameaça, antes revestir-se apenas como a promessa ou a oferta de um benefício indevido, e é o benefício alcançado ou a alcançar que desguarnece a integridade do declarante levando-o a emitir a declaração. Não há, pois, qualquer receio de um mal, antes, pelo menos, a perspectiva de um benefício.


2.12. Dispõe o artigo 9.º sobre a “Protection of employees/Protection des employés”

Já o artigo 22.º da Convenção Penal se preocupa com a protecção dos colaboradores da justiça e testemunhas. E o nosso direito contém lei própria para a protecção de testemunhas em processo penal – Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.

Tem, no entanto, esta lei um escopo bem delimitado, regula a aplicação de medidas para a protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo – artigo 1.º. É, portanto, uma protecção essencialmente contra a eventualidade de actos criminosos de retaliação.

Diversamente, aqui pretende-se mais que se adoptem mecanismos protegendo o trabalhador relação na sua relação com a entidade patronal. Que esta não possa utilizar a denúncia de suspeita de corrupção para sancionar o trabalhador.

Há dois níveis a ter em conta.

Se se tratar de acto previsto como crime, de que o funcionário toma conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas, a denúncia é obrigatória – artigo 242.º do Código de Processo Penal. Ora, se o denunciante se limita a cumprir uma obrigação, evidentemente que não poderá ser sancionado por esse cumprimento.

Se, fora daquele quadro, mas ainda em sede de acto previsto como crime, o trabalhador tem fundamento razoável para suspeitar de corrupção e a relata de boa fé às autoridades, age ao abrigo de uma faculdade – artigo 244.º do mesmo Código – faculdade cuja utilização a Convenção visa dinamizar.

Ora, a denúncia só é punida se for caluniosa, isto é, se for realizada com consciência da falsidade da imputação – artigo 365.º, do Código Penal. De nenhum modo é esta denúncia caluniosa que se pretende proteger pela Convenção, pois o que se quer é salvaguardar o trabalhador que de boa fé e na base de suspeitas razoáveis denuncia os factos. Na verdade, se o trabalhador recear que pode vir a ser sancionado, como efeito de ricochete da sua colaboração para a erradicação das práticas de corrupção, então nenhuma colaboração espontânea será de esperar [15].

O mesmo se dirá da denúncia que o trabalhador faça não às entidades processuais penais, mas, por exemplo, à sua entidade patronal.

O mais importante, será, pois, prevenir formas encapotadas de sancionamento.

Não se esqueça, todavia, que na apreciação da actuação do trabalhador, ter-se-á que ter em conta, por exemplo, o tipo de informação que ele projecta para o exterior da entidade em que a relação de trabalho se processa. É que poderão estar envolvidos outros valores, como o sigilo profissional e o dever de confidencialidade.

A lei tem vindo a regular com cuidado estas situações e, no campo meramente civil, o dever de cooperação para a descoberta da verdade aparece apenas em sede de processo – artigo 519.º do Código de Processo Civil.

Mesmo no campo penal a lei tende mais a uma cedência do dever de segredo de certas entidades, nas fases de inquérito, instrução e julgamento relativos designadamente aos crime de corrupção, mas mediante autorização ou ordem do juiz - cfr. o artigo 5.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, na redacção da Lei n.º 90/99, de 10 de Julho.


2.13. O artigo 10.º traça o objectivo da fidelidade do balanço e contas à situação real das empresas.

É um objectivo prosseguido no próprio interesse de cada parte, que adequará as medidas mais apropriadas. No caso português é exemplo, entre muitos, dessa busca da credibilidade do exame das contas das empresas e outras entidades a reformulação do regime jurídico dos revisores oficiais de contas que levou à criação da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, pelo Decreto-Lei n.º n.º 487/99, de 16 de Novembro.


2.14. Os artigos 11.º e 12.º concernem, respectivamente, à obtenção de provas e às medidas cautelares.

Não se vinculam as Partes à adopção de nenhum procedimento ou medida em particular. Por isso, também cada Parte verificará da melhor maneira de obter os desideratos neles fixados. O nosso processo civil pode sofrer as actualizações que a experiência vier a ditar mas já contém instrumentos, designadamente o dever de cooperação para a descoberta da verdade e o regime dos procedimentos cautelares, que prosseguem o mesmo objectivo.


3.

Em conclusão:

A - A Convenção civil sobre a corrupção, feita em Estrasburgo em 4 de Novembro de 1999, no âmbito do Conselho da Europa, não colide com as normas e os princípios constitucionais e de ordem pública portugueses.

B - Esta Convenção deve ser considerada em conjugação com a Convenção Penal sobre a Corrupção, feita igualmente no âmbito do Conselho da Europa em 27 de Janeiro de 1999.

C - As adaptações do direito interno exigidas pela Convenção serão mínimas se previamente tiver havido as adaptações resultantes da adesão à Convenção Penal.

D - O vício na vontade a que se refere o artigo 8.º, n.º 2, não encontra paralelo no nossa ordem jurídica, pelo que haverá que inserir uma regra que o preveja.





[1] Ofício n.º 788, de 6 de Agosto de 1999, da Direcção Central para o Combate à Corrupção, Fraudes e Infracções Económico-Financeiras, da Polícia Judiciária.
[2] Informação n.º 823/99, de 27 de Agosto de 1999, do Gabinete de Documentação e Direito Comparado.
[3] http://conventions.coe.int.
[4] Esta convenção já obteve 10 das 14 ratificações de que depende a sua entrada em vigor, cfr. fonte anterior.
[5] No direito inglês o primeiro tipo está essencialmente previsto no Public Bodies Corruption Practices Act 1889, e o segundo no Prevention of Corruption Act 1906. O Prevention of Corruption Act 1916 criou certas presunções de corrupção em actos com intervenção pública.
[6] De actualizar, portanto, a informação constante do ponto 8 do parecer do Gabinete de Documentação e Direito Comparado. A Convenção foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 32/2000, de 31 de Março, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 19/2000, da mesma data; o instrumento de ratificação foi depositado em 21 de Novembro de 2000, conforme Aviso n.º 253/2000 de 21 de Dezembro de 2000.
[7] JO L 358/2, de 31.12.98.
[8] Cfr. Fernando Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Lições no ano de 1971-72, Edição da Associação Académica,Universidade de Lisboa, pág. 513.
[9] Cfr. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9.ª edição, pág. 544.
[10] Diário da Assembleia da República II Série-A de 18 de Julho de 2001.
[11] Sobre esta questão, recentemente, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Responsabilidade da Administração Pública, em separata da Revista do Ministério Público, n.º 86, ponto 4., sugerindo que a diligência do titular ou agente seja “avaliada segundo elevados padrões de competência técnica, profissionalismo e eficiência”.
[12] Cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob. cit., pontos 5, 6 e 7.
[13] Diário da Assembleia da República II Série-A de 18 de Julho de 2001.
[14] Sobre os vícios da vontade, cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, Almedina, 1999, Capítulo IV. A coacção moral em especial a págs. 518-522.
[15] E sabe-se como a denúncia é rara, cfr. José de Souto Moura, Corrupção (Para uma abordagem jurídica e judiciária), em Textos do Centro de Estudos Judiciários, 1991-92/1992-93, pág. 79.
Anotações
Legislação: 
CONST76 - ART268 N4
L60/98 de 1998/08/27 - ART37 A) B)
CPC67 -ART519
CCIV66 - ART2 ART256 ART280 ART309 ART405 ART487 N1 N2 ART496 N1 ART497 ART498 N1 ART570
CP82 - ART335 ART365 ART372 ART373 ART374 ART377 ART379 ART386
L13/2001 DE 2001/06/04
DL28/84 DE 1984 - ART41-A
CPP87 - ART71 ART242 ART244
DL48051 DE 1967/11/21- ART7
L93/99 DE 1999/07/14
L36/94 DE 1994/09/29 ART5
L90/99 DE 1999/07/10
DL487/99 E 1999/11/16
Referências Complementares: 
DIR CIV * DIR OBG * RESP CIV / DIR CRIM / DIR PROC PENAL /*****
CONV PENAL SOBRE CORRUPÇÃO DO CONSELHO DA EUROPA DE 27/01/99- ART2 ART3 ART7 ART8 ART22 ART24 ART37
CONV SOBRE A LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO DE AGENTES PÚBLICOS ESTRANGEIROS NAS TRANSACÇÕES COMERCIAIS INTERNACIONAIS DE 17 DE DEZEMBRO DE 1997 - ART1 ART2*****
RES(97)24 CM SOBRE OS 20 PRINCÍPIOS DIRECTORES DA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO DE NOVEMBRO DE 1997
RES(98)7 CM AUTORIZANDO A ADOPÇÃO DO ACORDO PARCIAL E ALARGADO QUE CRIA O GRUPO DE ESTADOS CONTRA A CORRUPÇÃO DE MAIO DE 1998
RES(99)5 QUE CRIA O GRUPO DE ESTADOS CONTRA A CORRUPÇÃO DE 1 DE MAIO DE 1999
ACÇÃO COMUM RELATIVA À CORRUPÇÃO NO SECTOR PRIVADO DE 22 DE DEZEMBRO DE 1998 - ART2 ART3 ART4
Divulgação
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