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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
62/1993, de 14.01.1994
Data do Parecer: 
14-01-1994
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
PGR
Entidade: 
Procurador(a)-Geral da República
Relator: 
GARCIA MARQUES
Descritores e Conclusões
Descritores: 
INSTITUTO DE SEGUROS DE PORTUGAL
ALTOS CARGOS PÚBLICOS
CARGO POLÍTICO
INCOMPATIBILIDADE
EMPRESA DE CAPITAIS PÚBLICOS
IMPEDIMENTO
EMPRESA PÚBLICA
DECLARAÇÃO
GESTOR
FISCALIZAÇÃO
VEREADOR EM REGIME DE PERMANÊNCIA
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
PRESIDENTE DE CÂMARA MUNICIPAL
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
DIREITO TRANSITÓRIO
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
FACTO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO
SITUAÇÃO JURÍDICA
RETROACTIVIDADE IMPRÓPRIA
APLICAÇÃO IMEDIATA
RETROACTIVIDADE DA LEI
Conclusões: 
1 - A Lei n 64/93, de 26 de Agosto, revogou a Lei n 9/90, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n 56/90, de 5 de Setembro (artigo 15), omitindo a previsão de qualquer "regime transitório";
2 - Atento o regime constante da Lei n 64/93, não podem ser autorizados a desempenhar funções remuneradas em órgãos sociais de empresas associadas de uma empresa pública: a) o presidente dessa empresa pública; b) o vogal da direcção da referida empresa pública, desde que exerça funções executivas (artigos 3, alíneas a) e b), e 7, ns 1 e 3, este em conjugação com o disposto pelo n 4 do artigo 4 da Lei n 9/90, na redacção dada pela Lei n 56/90);
3 - As normas da Lei n 64/93 que criam ou alargam incompatibilidades são aplicáveis a situações de exercício cumulativo de funções existentes à data da sua entrada em vigor;
4 - A aplicação das referidas normas, consubstanciando, embora, uma aplicação com efeitos retrospectivos, não afecta de forma inadmissível o princípio da confiança inerente ao conceito de Estado de direito democrático e não infringe o disposto no artigo 18, n 3, da Constituição da República Portuguesa;
5 - As autorizações de acumulação de funções, concedidas ao abrigo da legislação revogada pela Lei n 64/93 aos titulares de altos cargos públicos em exercício, que passaram a ser abrangidos pelo novo regime de incompatibilidades, caducaram;
6 - Os titulares de altos cargos públicos em exercício à data da publicação da Lei n 64/93 deviam cumprir as obrigações nela previstas nos 60 dias posteriores à sua entrada em vigor - artigo 10, n 3, do Código Civil.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:
 
1.
O Conselho Directivo do Instituto de Seguros de Portugal, em face da publicação da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, que revogou a Lei nº 9/90, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90, de 5 de Novembro, constatando que o novo diploma não consagra um regime transitório para os titulares de altos cargos públicos em exercício, solicitou a Vossa Excelência "esclarecimento sobre a eventual obrigatoriedade de renovação das declarações de inexistência de incompatibilidades ou impedimentos, prestadas sob o domínio da lei antiga, pelos membros deste Conselho Directivo" (1).
Na sequência de informação prestada pelo Gabinete, dignou-se Vossa Excelência solicitar parecer ao Conselho Consultivo, que cumpre, assim, emitir (2).
 
2.
2.1. Posteriormente, o Senhor Presidente do Conselho de Gerência do Metropolitano de Lisboa, E.P., escreveu a Vossa Excelência, expondo dúvidas de interpretação suscitadas pela entrada em vigor da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, designadamente no que se refere ao tratamento de situações constituídas face ao direito anteriormente vigente.
Concretizando, questiona-se se os membros daquele Conselho de gerência que, à data da entrada em vigor daquele diploma, exerciam funções remuneradas em empresas participadas, ao abrigo do disposto no artigo 4º, nº 4, da Lei nº 9/90 (com a redacção introduzida pela Lei nº 56/90), poderão continuar a auferir a correspondente remuneração, até ao termo desse mandato (3).
Juntou-se cópia de parecer solicitado a Freitas do Amaral, elaborado com a colaboração de João Caupers (4).
Por despacho de 20 de Dezembro passado, dignou-se Vossa Excelência mandar juntar ao processo a referida exposição, acompanhada pelo aludido parecer, motivo por que se justificará dar, desde já, conhecimento das questões colocadas na consulta do Metropolitano de Lisboa, E.P., bem como das conclusões alcançadas no parecer.
 
2.2. Foram formuladas as seguintes questões, centradas no problema da determinação do âmbito temporal de aplicação das normas que integram o novo regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos:
"1ª- Na falta de um regime transitório expresso, o novo regime jurídico das incompatibilidades e impedimentos aplica-se imediatamente a todos os seus destinatários ou, tão-somente, aos que iniciarem um novo mandato?
"2ª- Caso se entenda que a nova lei se aplica aos mandatos em curso à data da sua entrada em vigor, devem os respectivos titulares efectuar as declarações previstas nos artigos 10º e 11º? Em que prazo?
"3ª- O presidente e os demais gestores de uma empresa pública podem ser autorizados a desempenhar funções remuneradas em órgãos sociais de empresas a elas associadas, tal como acontecia na vigência de legislação anterior (Lei nº 9/90 [...], com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90 [...])?;
"4ª- A entrada em vigor da nova lei determina a caducidade das autorizações de acumulação validamente concedidas ao abrigo da legislação anterior?".
 
2.3. Foram, entretanto, estabelecidas, no referido estudo jurídico, as seguintes conclusões:
"A) Quer com base nos princípios gerais de interpretação, quer por força do princípio da interpretação conforme à Constituição, as normas da Lei nº 64/93 que criam ou alargam incompatibilidades são inaplicáveis a situações de exercício cumulativo lícito de funções existentes à data da sua entrada em vigor;
"B) Os gestores de uma empresa pública não podem ser autorizados a desempenhar funções remuneradas em órgãos sociais de empresas associadas daquela;
"C) As autorizações de acumulação de funções validamente concedidas ao abrigo da legislação revogada pela Lei nº 64/93 não caducaram".
 
3.
A Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, veio definir, como se disse, um novo regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, regime que veio substituir, na sua totalidade, o que constava da Lei nº 9/90, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90, de 5 de Setembro, que, expressamente, revogou (artigo 15º).
Na origem das dúvidas suscitadas, que estão na génese do presente parecer, encontra-se um problema específico da Lei nº 64/93. Com efeito, contrariamente à legislação anterior sobre a matéria, o novo diploma não contém qualquer disposição sobre o respectivo âmbito temporal de aplicação, ou seja, não inclui qualquer regime transitório.
O legislador de 93 nada dispôs quanto a soluções de direito transitório, omitindo qualquer ressalva dos efeitos no respeitante às situações jurídicas constituídas ao abrigo da lei antiga mas que subsistissem à data da entrada em vigor da Lei nº 64/93.
Como se escreve na informação nº 63/93 do Gabinete de Vossa Excelência, desta omissão legislativa "resulta um conjunto de dúvidas que têm sido formuladas à Procuradoria-Geral da República e das quais a expressa pelo Conselho Directivo do Instituto de Seguros de Portugal foi a primeira a ser formalizada".
Tal omissão, susceptível de consubstanciar ou não uma lacuna precisada de integração, aconselha que se analisem as linhas matrizes dos regimes jurídicos que se sucederam no tempo, até à entrada em vigor da Lei nº 64/93.
 
3.1. A Lei nº 9/90 resultou de um projecto de lei, aprovado, por unanimidade, pela Assembleia da República na sessão de 24 de Outubro de 1989. O diploma correspondeu a um texto alternativo elaborado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a partir da Proposta de Lei nº 277/V (5), apresentado pelo Partido Socialista, sobre incompatibilidades dos membros do Governo (6).
O projecto de lei nº 277/V teve em vista a necessidade de concretização da imposição legiferante fixada no artigo 120º, nº 2, da CRP, no sentido de os órgãos legislativos competentes definirem o estatuto dos titulares dos cargos políticos no que respeita a direitos, regalias e imunidades, bem como a deveres, responsabilidades e incompatibilidades.
Como sublinhava o deputado Alberto Martins, na apresentação do projecto de lei, o objectivo essencial deste era a moralização da vida pública (7).
Mediante proposta do Partido Social Democrata, o âmbito material de aplicação do projecto, que apenas contemplava os titulares dos cargos políticos, foi alargado aos titulares de altos cargos públicos. Tal extensão, que mereceu o generalizado apoio dos diferentes grupos parlamentares, veio ao encontro do estabelecido pelo nº 5 do artigo 269º da Constituição da República, que contém uma exigência de estabelecimento do sistema de incompatibilidades, de modo a garantir não só o princípio da imparcialidade da Administração (artigo 266º, nº 2), mas também o princípio da eficiência (boa administração) (8).
As soluções encontradas tiveram em conta, por um lado, os interesses fundamentais da democracia, e, por outro, a necessidade de encontrar "a justa medida, de modo que os condicionalismos não venham a ser de tal modo amplos que possam vir a representar um verdadeiro e permanente impedimento do cidadão ao exercício de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados" (9).
A solução final mereceu a adesão generalizada dos diversos grupos parlamentares, sendo saudada como um contributo significativo não só para o cumprimento de uma exigência constitucional, como para a visibilidade e clarificação do exercício das funções políticas e públicas.
O resultado das votações na especialidade, realizadas na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, revela que se verificou praticamente unanimidade na aprovação dos diversos preceitos.
 
3.2. Vejamos, em breve síntese, as disposições nucleares da Lei nº 9/90.
O artigo 1º procedia, no nº 1, à enumeração dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, para os efeitos da lei [alíneas a) a k)], contendo o nº 2 uma disposição que equiparava a titulares de altos cargos públicos "todos aqueles cuja nomeação, assente no princípio da livre designação pelas entidades referidas no número anterior, se fundamente em razões de especial confiança ou responsabilidade e como tal sejam declarados por lei".
Os artigos 2º e 3º enunciavam as incompatibilidades e os impedimentos, incluindo-se entre aquelas "o exercício remunerado de quaisquer outras actividades profissionais ou de função pública que não derive do seu cargo e o exercício de actividades de representação profissional" [alínea a)]; "a integração em corpos sociais de empresas ou sociedades concessionárias de serviços públicos...; [alínea b)]; "o desempenho de funções em órgão executivo de fundação subsidiada pelo Estado [alínea c)]"; "a detenção de partes sociais de valor superior a 10% em empresas que participem em concursos públicos de fornecimento de bens ou serviços no exercício de actividades de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e outras pessoas colectivas de direito público".
Por sua vez, o artigo 4º admitia algumas excepções, entre as quais o exercício, a título gratuito, de funções docentes no ensino superior e de investigação científica (nº 2), bem como o desempenho de funções em órgãos sociais de empresas associadas a uma empresa pública ou de capitais maioritariamente públicos por parte de gestor desta (nº 4).
Os artigos 5º e 6º tinham por objecto o "regime sancionatório" e a "anulabilidade" dos actos e contratos praticados em violação dos artigos 2º e 4º.
A fiscalização do cumprimento da lei cabia à Procuradoria-Geral da República, junto da qual deveria ser feito, pelos titulares dos cargos referidos no artigo 1º, o depósito da declaração de inexistência de incompatibilidades ou impedimentos, para o que se fixava o prazo de 60 dias a partir da tomada de posse (artigo 9º), competindo aos tribunais judiciais o julgamento das infracções (artigo 7º) (10).
O artigo 10º, continha diversas disposições de natureza transitória, justificando-se, atenta a matéria da consulta, proceder à sua transcrição:
"1- Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos em exercício à data da publicação da presente lei cumprirão as obrigações nela previstas nos 60 dias posteriores à respectiva entrada em vigor.
"2- Os titulares dos cargos indicados nas alíneas f) e h) do nº 1 do artigo 1º da presente lei (11) não estão abrangidos pelas incompatibilidades referidas na alínea a) do artigo 2º até ao fim do seu actual mandato.
3- Enquanto não tiver lugar a extinção do Conselho de Comunicação Social, nos termos da Constituição e da lei, são aplicáveis aos respectivos membros as disposições da presente lei.
O artigo 11º remetia para lei especial a definição do regime de incompatibilidades aplicável aos deputados à Assembleia da República. Enfim, o artigo 12º prescrevia acerca da entrada em vigor da lei, a qual teria lugar no prazo de 60 dias após a sua publicação. Da conjugação do disposto no artigo 12º com o estabelecido no nº 1 do artigo 10º resultava que, findos os 60 dias para a entrada em vigor da lei, os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos em exercício à data da publicação da lei, teriam 60 dias para cumprirem as obrigações dela constantes.
 
3.3. Não obstante o resultado praticamente unânime das votações na especialidade, o PSD apresentou, em 26 de Abril de 1990, ou seja, ainda antes da entrada em vigor da Lei nº 9/90, o Projecto de Lei nº 524/V, que visava alterar os artigos 1º, 4º e 10º da referida Lei (12).
 
3.3.1. Resulta da justificação apresentada pelo partido proponente que, ao preparar-se a execução da lei, ter-se-ia verificado a necessidade de proceder a clarificações e correcções técnicas, sem as quais o diploma geraria efeitos perversos, alguns dos quais consumando violações ao princípio da igualdade (13).
Escreve-se no parecer supra indicado (cfr. ponto 2.2.) de Freitas do Amaral e de João Caupers: "A leitura da proposta social democrata, não só não permite esclarecer as respectivas motivações, como lança as maiores dúvidas sobre as suas verdadeiras razões. Através da núvem de confusão parece divisar-se um propósito principal - que, de resto, não escapou às oposições parlamentares: tratava-se, em boa e simples verdade, de restringir o âmbito de aplicação da Lei nº 9/90, deste excluindo, designadamente, os membros dos gabinetes ministeriais e os gestores públicos (cfr. "Diário da Assembleia da República", I Série, 5 de Maio de 1990, pp. 2394 e segs.)".
3.3.2. Vejamos as principais alterações introduzidas pela Lei nº 56/90, de 5 de Setembro, que viria a representar o resultado da referida iniciativa legislativa:
a) Incluiram-se no catálogo dos titulares dos cargos constantes do nº 1 do artigo 1º, passando, pois, a ser atingidos pelo regime das incompatibilidades, além do Presidente da República, os presidentes de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos [alínea j)], os membros dos conselhos de administração das referidas sociedades, bem como os vogais da direcção de institutos públicos autónomos, desde que exercessem funções executivas [alínea d)], e ainda os subdirectores-gerais e equiparados [alínea m)];
b) O pessoal dos gabinetes dos membros do Governo ficou fora do âmbito de aplicação da lei, remetendo-se para diploma próprio a regulamentação do respectivo regime de incompatibilidades (artigo 1º, nº 2);
c) Passou a permitir-se o exercício remunerado de funções docentes no ensino superior ou de investigação científica em acumulação com o exercício de diversos cargos políticos e de altos cargos públicos. Com efeito, o nº 2 do artigo 4º passou a dispor que "nos casos previstos nas alíneas e), f), g), i), j), l) e m) do nº 1 do artigo 1º, o disposto na alínea a) do artigo 2º (14) não obsta ao exercício de funções de docente do ensino superior e de investigador científico ou similar, nos termos previstos à data da entrada em vigor da presente lei" (15);
d) Os tribunais judiciais deixaram de ser competentes para julgar as infracções ao regime legal das incompatibilidades - cfr., cotejando-os, os artigos 5º e 7º da versão originária da Lei nº 9/90, e o artigo 5º da mesma lei, na redacção dada pela Lei nº 56/90;
e) Passou a prever-se expressamente que os deputados do Parlamento Europeu ficavam submetidos ao regime de incompatibilidades dos deputados à Assembleia da República - artigo 7º, na redacção da Lei nº 56/90;
f) Protegidos por um regime transitório ampliado, ficaram excluídos da incompatibilidade os então governadores e vice-governadores civis e, até ao termo dos respectivos mandatos, os presidentes e vereadores a tempo inteiro das câmaras municipais, os presidentes dos institutos públicos autónomos, das empresas públicas e das sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, os directores-gerais, subdirectores-gerais e equiparados e ainda, quando exercessem funções executivas, os gestores públicos, os membros dos conselhos de administração de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos e os vogais das direcções dos institutos públicos autónomos (16).
Em contrapartida, mantiveram-se sem alterações, entre outros aspectos, os seguintes:
- a competência fiscalizadora da Procuradoria-Geral da República - cfr. os artigos 9º e 6º da Lei nº 9/90, respectivamente, na versão inicial e na redacção da Lei nº 56/90;
- a possibilidade de o gestor de empresa pública ou de empresa de capitais maioritariamente públicos desempenhar funções em órgãos sociais de empresas a ela associadas (17);
- os titulares dos cargos em apreço, em exercício à data da publicação da lei, continuavam a dever cumprir as obrigações nela previstas, nos 60 dias posteriores à sua entrada em vigor (18).
 
4.
Na origem da Lei nº 64/93 perfilam-se os Projectos de Lei nº 322/VI, apresentado pelo CDS (19), e 331/VI, apresentado pelo PSD (20), tendo a sua discussão e aprovação na generalidade ocorrido na reunião plenária da Assembleia da República de 24 de Junho de 1993, em conjunto com outros projectos de lei sobre matérias afins, mas sem relevo na economia do presente parecer (21).
4.1.1. Pode ler-se no parecer elaborado por Freitas do Amaral e João Caupers, respondendo à consulta do "Metropolitano de Lisboa, E.P.", que "a leitura das intervenções dos deputados que se pronunciaram sobre o texto do projecto no plenário da Assembleia, exactamente no último dia da sessão legislativa, demonstra, sem margem para dúvidas, que o objectivo essencial dos autores da proposta era isentar o presidente e os vereadores a tempo inteiro das câmaras municipais do regime de incompatibilidades que a lei então vigente sobre eles fazia recair".
 
4.1.2. Estava em causa o conteúdo do artigo 6º do texto final da CACDLG (22), relativamente ao qual foram apresentados, na reunião plenária de 15 de Julho de 1993, requerimentos de avocação, pelo PCP e pelo PS. Acompanhemos alguns trechos das intervenções, a propósito, efectuadas pelos Deputados António Filipe (PCP) e Alberto Costa (PS):
Disse o primeiro:
"O artigo 6º do texto aprovado em comissão, relativo ao regime de incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos e altos cargos públicos, com o voto favorável do PSD (e a abstenção do PS), tem como objectivo isentar os presidentes e os vereadores de câmaras municipais da sujeição ao regime de incompatibilidades que recai sobre os titulares de cargos políticos.
[...]
"O PSD apresentou um projecto de lei de revisão do regime de incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, invocando a necessidade de moralização do exercício desses cargos, só que, na realidade, pretende exactamente o contrário.
"Assim, não se trata já de uma lei sobre incompatibilidades, mas de uma lei sobre compatibilidades dos presidentes das câmaras e vereadores das câmaras municipais" (23).
Submetido à votação, o requerimento de avocação apresentado pelo PCP foi rejeitado com votos contra do PSD e votos a favor do PS, do PCP, do CDS-PP e do PSN.
Fundamentando o requerimento de avocação apresentado pelo PS, disse, por sua vez, o deputado Alberto Costa:
"A solução que é prevista consagra, para os presidentes de câmara e vereadores, mesmo em regime de permanência e a tempo inteiro, um regime de excepção que os singulariza em relação ao conjunto de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos abrangidos por este diploma, isentando-os das regras sobre incompatibilidades que passam a valer para os demais.
"É, aliás, uma solução cujo sentido e urgência são determinados pelas conveniências e necessidades sentidas pelo partido maioritário na elaboração das suas listas para as próximas eleições autárquicas e que viabiliza fenómenos de intimidade e dependência entre interesses privados e desempenho público, cujos efeitos negativos na esfera local são conhecidos.
[...]
"A diferença de regimes que por esta via se introduz é tal que torna a norma em causa ofensiva do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. É que não se encontram no âmbito municipal especificidades susceptíveis de justificar, em domínio como o presente, uma tal diferenciação no tratamento legislativo" (24).
Submetido à votação, o requerimento de avocação apresentado pelo PS foi rejeitado, com votos contra do PSD e votos a favor do PS, do PCP, do CDS-PP e do PSN.
 
4.2. A Lei nº 64/93 obedece a uma sistematização diversa da que enformara a Lei nº 9/90. Como ponto distintivo mais saliente, refira-se o facto de o novo diploma regular separadamente a situação dos titulares de cargos políticos, cujo elenco enuncia no artigo 2º, acrescentando o Provedor de Justiça e eliminando, como é óbvio, o Alto-Comissário contra a Corrupção, entretanto extinto, e a dos titulares de altos cargos públicos (artigo 3º).
 
4.2.1. Para os cargos políticos, a regra é o exercício das respectivas funções em regime de exclusividade (artigo 4º, nº 1) (25), apenas se exceptuando (cfr, porém, o nº 2 do artigo 4º, in fine) as funções em actividades derivadas do cargo e as que são exercidas por inerência (nº 3 do artigo 4º) (26).
 
4.2.2. No que se refere aos titulares de altos cargos públicos, a principal inovação da lei consiste na extensão das incompatibilidades ao presidente e aos membros com funções executivas do conselho de administração de sociedades de capitais maioritariamente públicos (e não apenas exclusivamente públicos, conforme a lei anterior - alíneas j) e l) do nº 1 do artigo 1º da Lei nº 9/90, na redacção da Lei nº 56/90). Vejam-se, no sentido indicado, as alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei nº 64/93.
 
4.2.3. Para os altos cargos públicos, o regime geral (e respectivas excepções), em matéria de incompatibilidades, figura no artigo 7º, que dispõe o seguinte:
"1- A titularidade de altos cargos públicos implica a incompatibilidade com quaisquer outras funções remuneradas.
2- As actividades de docência no ensino superior e de investigação não são incompatíveis com a titularidade de altos cargos públicos, bem como as inerências a título gratuito.
3- Os titulares de altos cargos públicos em sociedades anónimas de capitais maioritariamente ou exclusivamente públicos podem requerer que lhes seja levantada a incompatibilidade, solicitando autorização para o exercício de actividades especificamente discriminadas, às entidades que os designaram.
4- As situações previstas no número anterior devem ser fundamentadamente autorizadas pela assembleia geral da empresa, devendo a acta, nessa parte, ser publicada na 2ª série do "Diário da República".
Constata-se, cotejando o artigo 4º, nº 4, da Lei nº 9/90, quer na sua redacção originária, quer na que lhe foi dada pela Lei nº 56/90, com o nº 3 do artigo 7º da Lei nº 64/93, que a nova lei introduz um tratamento diverso para a questão relativa à eventualidade de o gestor de empresa pública ou de capitais maioritariamente públicos desempenhar funções em órgãos sociais de empresas a ela associadas.
Com efeito, ao contrário do regime instituído pela Lei nº 9/90, que não excluía essa possibilidade, a Lei de 1993 veio permitir, tão-somente que os titulares de altos cargos públicos em sociedades anónimas de capitais maioritária ou exclusivamente públicos, embora atingidos pela regra da incompatibilidade [cfr. artigo 3º, alíneas a) e b)], requeiram o levantamento desta, solicitando autorização para o exercício de actividades especificamente discriminadas às entidades que os designarem. O que significa, em contrapartida, que a Lei nº 64/93 não concedeu essa possibilidade aos presidentes e outros gestores de empresas públicas.
 
4.2.4. Saliente-se ainda, na sequência das observações a esse propósito formuladas, que, correspondendo às preocupações denunciadas relativamente aos presidentes e vereadores de câmara municipais, a Lei de 93 autonomiza o tratamento dos autarcas, fazendo cessar as respectivas incompatibilidades. Assim, atento o disposto no nº 1 do artigo 6º, os presidentes e vereadores das câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, podem exercer outras actividades, sendo apenas obrigados a comunicá-las ao Tribunal Constitucional (27) e à assembleia municipal.
 
4.2.5. A Lei nº 64/93 introduziu ainda duas outras alterações que merecem particular destaque.
Referimo-nos, por um lado, à repartição de fiscalização do seu cumprimento pelo Tribunal Constitucional e pela Procuradoria-Geral da República, consoante se trate de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, respectivamente (artigos 10º e 11º), e à omissão de qualquer disposição de carácter transitório, por outro (28).
Confinada a problemática da consulta ao regime de incompatibilidades (29) dos titulares de altos cargos públicos, justificar-se-á a reprodução do artigo 11º. Dispõe ele o seguinte:
"1- Os titulares de altos cargos públicos devem depositar na Procuradoria-Geral da República, nos 60 dias posteriores à tomada de posse, declaração de inexistência de incompatibilidades ou impedimentos, donde constem todos os elementos necessários à verificação do cumprimento do disposto na presente lei, incluindo os referidos no nº 1 do artigo anterior (30).
2- A Procuradoria-Geral da República pode solicitar a clarificação do conteúdo das declarações aos depositários no caso de dúvidas sugeridas pelo texto.
3- O não esclarecimento de dúvidas ou o esclarecimento insuficiente determina a participação aos órgãos competentes para a verificação e sancionamento das infracções.
4- A Procuradoria-Geral da República procede ainda à apreciação da regularidade formal das declarações e da observância do prazo de entrega, participando aos órgãos competentes para a verificação e sancionamento irregularidades ou a não observância do prazo".
O artigo 12º define o regime aplicável em caso de incumprimento da apresentação de declaração prevista nos artigos 10º e 11º (31), estabelecendo-se, por sua vez, no artigo 13º, sob a epígrafe "regime sancionatório", o princípio de que tal regime é aplicável aos titulares de altos cargos públicos (nº 1). Mais se prescreve que a infracção ao disposto no artigo 7º constitui causa de destituição judicial, a qual compete aos tribunais administrativos (nºs 2 e 3). Enfim, o nº 4 preceitua que a infracção ao disposto no artigo 5º sobre o regime aplicável após cessação de funções de cargos políticos, determina a inibição para o exercício de funções, quer de cargos políticos, quer de altos cargos públicos, por período de três anos.
O artigo 15º, por sua vez, determinou a revogação da Lei nº 9/90, com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90.
 
5.
É tempo de nos aproximarmos do fulcro dos problemas suscitados pela inexistência, na Lei nº 64/93, de normativos definidores de um "regime transitório".
Como vimos, [cfr. supra, ponto 3.3.2., alínea f), e nota (16)], a normação anteriormente em vigor continha um regime transitório que exceptuava da regra da incompatibilidade os então governadores e vice-governadores civis e, até ao final do mandato que estivesse a decorrer, os presidentes e vereadores a tempo inteiro das câmaras municipais, os presidentes de institutos públicos autónomos, de empresas públicas ou de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, os directores-gerais, subdirectores-gerais ou equiparados, e ainda, quando exercessem funções executivas, os gestores públicos, membros dos conselhos de administração de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos e vogais das direcções de institutos públicos autónomos (32).
Ao omitir uma disposição equivalente de "direito transitório", a Lei nº 64/93 levanta, desde logo, a dúvida de saber se o novo regime de incompatibilidades abrangerá (ou não) imediatamente os titulares dos cargos que se encontravam elencados no nº 2 do artigo 8º da Lei nº 9/90, na redacção dada pela Lei nº 56/90, tendo presente a extensão normativa resultante da remissão operada pelo nº 1 do artigo 3º da Lei 56/90.
Ou por outras palavras: terá sido intenção da lei atingir com o novo regime de incompatibilidades os titulares dos cargos que, à data da sua entrada em vigor, se encontravam em situação de acumulação lícita (ainda que a título transitório) de funções que o novo diploma veio considerar incompatíveis?
A questão que se coloca consiste, pois, em saber se, em face da omissão de um regime transitório na Lei nº 64/93, as suas normas, na medida em que criem incompatibilidades ou alarguem o âmbito das pré-existentes, ainda que através da revogação do regime transitório da lei anterior, serão aplicáveis às situações existentes à data da sua entrada em vigor, ou se, pelo contrário, se aplicarão exclusivamente àqueles que vierem, após o início da vigência da lei, a ser investidos em cargos ora abrangidos por incompatibilidade (33).
E, como consequência daquela, outra questão se suscita, incidindo sobre a eventual caducidade das autorizações de acumulação validamente concedidas ao abrigo da normação em vigor anteriormente à Lei nº 64/93.
Questão cuja resposta se encontrará, em grande parte, condicionada pela conclusão a que se chegar relativamente ao problema antecedente, esse sim, nuclear, que se traduz em saber se a nova lei é ou não aplicável às situações licitamente constituídas de acordo com a lei antiga.
Em qualquer caso, não deixaremos de, a final, encarar a segunda questão enunciada, tendo, inclusivamente, presentes os termos da pergunta formulada pelo Conselho Directivo do Instituto de Seguros de Portugal - cfr. supra, ponto 1.
 
6
O desenvolvimento da análise aconselha a recolha de alguns subsídios complementares, susceptíveis de proporcionarem posterior reflexão, acerca de dois temas fundamentais: interpretação da lei, por um lado, e aplicação das leis no tempo, por outro.
 
6.1. O artigo 9º do Código Civil prescreve, sobre a interpretação da lei que:
"1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
"2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
"3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".
Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos (34); o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei(35).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (36).
Resumindo, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA dizem que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório de diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei 37.
A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala BAPTISTA MACHADO (38) uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Ou, como diz OLIVEIRA ASCENSÃO, "a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de busca do espírito" (39).
Como escreveu FRANCESCO FERRARA (40), para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se de vários meios.
"Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo".
Escreveu-se no já citado parecer nº 61/91:
"Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
"O elemento sistemático "compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
"O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
"O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar".
 
7.
7.1. Os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma lei nova podem, ao menos em parte, ser directamente resolvidos por essa mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas "disposições transitórias".
Discorrendo acerca do assunto, escreve Baptista Machado:
"Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis" (41).
No entanto, a maior parte das vezes ou para a grande maioria dos casos o legislador nada diz em especial sobre a lei aplicável a situações em que se suscita um problema de conflito de lei no tempo. Deverá então o intérprete socorrer-se dos princípios vertidos no artigo 12º do Código Civil.
Como escreve Menezes Cordeiro, em estudo recente, (42), o direito transitório formal dispõe hoje de um regime geral, inserido no artigo 12º do Código Civil, preceito que funciona "como uma autêntica bitola profunda da ordem jurídica, dando uma medida de valor que se deve ter sempre em conta".
 
7.2. Prescrevendo acerca da aplicação das leis no tempo, dispõe o artigo 12º do Código Civil:
"1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor".
Do preceito reproduzido ressaltam dois princípios: o da não retroactividade da lei (43) e o da sua aplicação imediata.
A lei nova, em princípio, só tem eficácia para o futuro, pelo que, como regra, apresenta eficácia prospectiva, constituindo excepção os casos de eficácia retroactiva. O fundamento do princípio da não retroactividade é geralmente encontrado na necessidade de segurança jurídica, na protecção da confiança, na estabilidade do direito, podendo também encontrar apoio na ideia de que a lei só é obrigatória depois de regularmente elaborada e publicada.
"Destruir o passado, fazer com que aquilo que existiu não tenha existido, é feito que, manifestamente, ultrapassa em muito as forças do homem" (44).
Para o princípio da aplicação imediata da lei nova também se invocam vários fundamentos. Desde o império que dimana da lei nova, como a única vigente no momento da aplicação, passando pela superioridade das leis novas sobre as leis antigas (pelo progresso que, em princípio, revelam), pelo facto de a lei apenas proteger no presente os direitos dos indivíduos, de modo algum os garantindo no futuro, até à razão, decisiva para Paul Roubier, da unidade da legislação num dado país, sob pena de tudo se saldar numa confusão inextricável nas relações jurídicas (45).
Os grandes escolhos na aplicação das leis que se sucedem no tempo levantam-se nos casos de situações jurídicas duradouras, que perduram, de "trato sucessivo", como lhes chama A. Rodrigues Queiró (46).
Escreve, a esse propósito, Galvão Telles:
"Sucede porém que a lei nova não raro encontra diante de si situações da vida, relações sociais, que vêm já do passado, nele lançam as suas raízes. Isto pode pôr limites e condições à imediata aplicação da lei publicada, a fim de que se não perturbe a necessária estabilidade daquelas situações ou relações. Daí a possível sobrevivência do Direito anterior, que se prolonga na sua aplicação mesmo para além do momento em que foi revogado.
"É o problema extremamente difícil do Direito intertemporal, ou da aplicação da lei no tempo, problema que consiste em saber, publicadas sucessivamente duas leis a segunda das quais revoga a primeira, qual delas é a que se aplica às situações que se colocam por assim dizer na fronteira temporal entre as duas" (47).
Vejamos qual o entendimento que resulta, para tais situações, do disposto no nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
Na esteira da doutrina aí citada, transcrevemos do parecer nº 239/77, de 21 de Dezembro de 1977 (publicado no "Diário da República", II série, nº 74, de 30 de Março de 1978, e no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 280, pág. 184):
"Nesse nº 2 estabelece-se a seguinte disjuntiva: a lei nova ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos (e neste caso só se aplica aos factos novos) ou define o conteúdo, os efeitos de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação deram origem (hipótese em que é de aplicação imediata, quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas constitutivas e subsistentes à data da sua entrada em vigor)... .
"Precisamente a ratio legis que está na base desta regra da aplicação imediata é: por um lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas naturalmente em conta pela nova lei, o interesse no ajustamento às novas concepções e valorações da comunidade e do legislador, bem como a existência da unidade do ordenamento jurídico, a qual seria posta em causa e com ela a segurança do comércio jurídico, pela subsistência de um grande número de situações duradouras, ou até de carácter perpétuo, regidas por uma lei há muito abrogada; por outro lado, o reduzido ou nulo valor da expectativa dos indivíduos que confiaram, sem bases, na continuidade do regime estabelecido pela lei antiga uma vez que se trata de um regime puramente legal, e não de um regime posto na dependência da vontade dos mesmos indivíduos" (48).
 
8.
8.1. Formulemos, de novo, a pergunta nuclear para a dilucidação das dificuldades do parecer:
Perante a ausência de um regime transitório na Lei nº 64/93, terá sido vontade da lei atingir com a regra de incompatibilidade as pessoas que, à data da sua entrada em vigor, se encontravam no exercício cumulativo lícito de funções que, pelo novo diploma, vieram a ser consideradas incompatíveis?
Não é difícil, num plano hermenêutico, alinhar argumentos favoráveis a qualquer das teses.
 
8.1.1. Assim, a favor de uma resposta afirmativa poderá dizer-se que, não estabelecendo a lei nova, ao contrário do que acontecia com a lei revogada, um regime transitório, a vontade legislativa foi clara no sentido da aplicação imediata do novo regime a todas as situações de exercício cumulativo lícito de funções, existentes à data da sua entrada em vigor.
Só assim, dir-se-á, se dará o devido relevo à intencionalidade legislativa que teria consistido na opção da recusa de um regime transitório, ao invés do que acontecia no âmbito da lei revogada.
 
8.1.2. Todavia, a favor de uma resposta negativa, poderá dizer-se, em primeiro lugar, que em nenhum momento do debate parlamentar, se discutiu o regime transitório, o que seria normal que acontecesse, se tivesse existido a intenção de o suprimir.
Acresce que se poderá dizer que as circunstâncias que rodearam a elaboração da lei, aprovada, como se disse, no último dia da sessão legislativa, tornam admissível a hipótese de esquecimento.
Em vez de se tratar de uma opção intencional do legislador, a ausência de um regime transitório seria consequência de um esquecimento, explicável em face da ambiência que rodeou a elaboração da lei.
Por outro lado, poder-se-ia dizer que, tendo sido objectivo fundamental da lei a permissão de exercício de outras actividades por parte de presidentes de câmara municipal e de vereadores, a tempo inteiro ou parcial, ou seja, tendo presidido ao diploma uma intenção clara de redução do âmbito da aplicação da regra da incompatibilidade, mediante o afastamento da restrição ao exercício de um direito por parte daqueles titulares de cargos políticos, é compreensível a não inclusão no mesmo, quanto a estes autarcas, de um regime transitório, posto que, não só nenhum princípio desaconselhava a sua aplicação imediata, mas também esta era mesmo imposta pela vontade de aplicar a lei nova aos autarcas a eleger em 12 de Dezembro de 1993.
 
8.2. Não parece possível, com base exclusiva nos elementos de tipo hermenêutico atrás apontados, encontrar resposta para a pergunta formulada, em termos de suficiente consistência jurídica.
Nem sequer será possível, com total segurança, formular um juízo explicativo sobre a causa da omissão do regime transitório no diploma de 93. Embora possam ser, como se viu, aduzidas algumas boas razões no sentido da verificação de esquecimento do legislador, não parece possível, com base nos aludidos critérios de pura natureza interpretativa, assegurar com absoluta convicção que não se tenha tratado de opção desse mesmo legislador (49).
8.2.1. Torna-se, assim, necessário prosseguir, indagando, à luz dos princípios básicos expostos acerca da aplicação das leis no tempo, sobre se a aplicação imediata do regime da lei nova às pessoas cujas situações de exercício cumulativo de funções tinham sido licitamente constituídas durante a vigência da lei revogada, envolve ou não uma verdadeira e autêntica aplicação retroactiva desse regime, fora dos limites consentidos pelo artigo 12º do Código Civil.
Não obstante a dificuldade de "fixação" do próprio conceito de retroactividade, parece que, neste caso, a resposta deverá ser negativa, uma vez que se trata de uma modificação do direito aplicável à relação jurídica estabelecida entre os titulares dos cargos e as entidades às quais prestam serviço (v.g., entre o gestor público e a respectiva empresa pública).
Encontrar-nos-emos, pois, no quadro da previsão da segunda parte do nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
Ponto que justifica uma adicional indagação de natureza teórica.
 
8.2.1. Como se viu, a irretroactividade é um princípio geral do direito que, contudo, admite excepções . Essa admissibilidade é expressa na lei portuguesa, a qual, todavia, desde logo, reduziu a eficácia da lei retroactiva, mediante a presunção de que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (artigo 12º, nº 1).
Dissertando, a propósito dos "tipos de retroactividade", escreve MENEZES CORDEIRO (50):
"I- No domínio do Direito transitório, problemas particulares são colocados pela lei retroactiva. As dúvidas começam logo no próprio conceito de retroactividade.
À letra, a lei é retroactiva quando actue sobre o passado. Esse agir no passado pode assumir diversas formas ou graus de intensidade.
A doutrina especializada tem ido bastante longe nesse domínio; pelas necessidades de concisão vai, de seguida, efectuar-se uma simples distinção de três formas de retroactividade, consubstanciadas noutros tantos graus de ordem decrescente: o terceiro grau máximo, o segundo grau ou grau médio e o primeiro grau ou grau fraco (51).
"II- No terceiro grau de retroactividade, o grau máximo ou forte, a lei é retroactiva quando pretenda agir sobre o caso julgado é uma decisão jurídica definitiva que, formalmente, já não admita mais alterações (52).
Em regra, quando se fala de caso julgado, tem-se em vista a sentença transitada, a qual não admite, como se sabe, recurso ordinário. Tal noção pode, contudo, ser estendida a outros tipos de decisões jurídicas - por exemplo, actos administrativos - que, por razões de Direito, não mais possam ser alteradas. Fala-se, então, em coisa decidida, na terminologia de DIOGO FREITAS DO AMARAL.
"III- No segundo grau de retroactividade ou grau médio, a lei é retroactiva quando actue sobre factos inteiramente decorridos no passado, ainda que sem a cobertura do caso julgado, isto é, da decisão jurídica insusceptível de alteração por vias ordinárias. Assim sucederia, por exemplo, quando uma lei que baixasse a taxa de juros determinasse a restituição de juros vencidos e pagos ao abrigo da lei velha.
"IV- No grau fraco ou primeiro grau de retroactividade, a lei é retroactiva quando actue sobre situações jurídicas pré-existentes, mas que ainda não produziram todos os seus efeitos; a alteração vai centrar-se, então, sobre os efeitos ainda não verificados. Por exemplo, haveria retroactividade fraca no diploma que, ao alterar as taxas de juros, atingisse os contratos celebrados ao abrigo da taxa anterior, mas de modo a abranger apenas os juros ainda não vencidos".
 
8.2.2. Reflectindo também acerca dos "graus de retroactividade", escreve BAPTISTA MACHADO:
"Podemos distinguir pelo menos três graus de retroactividade. A retroactividade de grau máximo seria aquela em que a LN nem sequer respeitasse as situações definitivamente decididas por sentença transitada em julgado ou por qualquer outro título equivalente (sentença arbitral homologada, transacção, etc.) ou aquelas causas em que o direito de acção havia já caducado (res iudicata, vel transacta, vel praescrita).
"Numa palavra, a retroactividade deste tipo não respeitaria sequer as causae finitae ou aquelas que como tais são de considerar.
"A esta segue-se aquela retroactividade que, respeitando embora as causae finitae, não se detém sequer perante efeitos jurídicos já produzidos no passado mas que não chegaram a ser objecto de uma decisão judicial nem foram cobertos ou consolidados por um título equivalente. Tal o que sucederia se uma LN viesse reduzir a taxa legal de juro máximo e estabelecesse a sua aplicação retroactiva em termos de obrigar a restituir os próprios juros vencidos sob a LA (e em face desta perfeitamente legais).
"Por fim, podemos referir a retroactividade normal (aquela a que se refere o nº 1 do artigo 12º (-), que respeita os efeitos de direito já produzidos pela SJ sob a LA. Tal a retroactividade que se verifica se a LN viesse estabelecer um prazo mínimo mais longo para os arrendamentos rurais e mandasse aplicar esse prazo aos contratos em curso no momento do seu IV; ou se a LN viesse reduzir o máximo da taxa legal de juros e se declarasse aplicável aos juros dos contratos de mútuo em curso no momento do seu IV, relativamente aos juros que se viessem a vencer de futuro" (53).
 
8.3. A situação a que nos temos vindo a referir corresponde à retroactividade de grau mínimo, posto que a lei se projectaria sobre situações jurídicas pré-existentes, cujos efeitos ainda não se haviam produzido por completo, caindo, pois, como se disse, na previsão da 2ª parte do nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
De facto, o nº 2 distingue consoante a norma dispõe sobre factos ou seus efeitos ou sobre relações: enquanto, no primeiro caso, a retroactividade consistirá em abranger factos já ocorridos e efeitos já produzidos, no segundo a aplicação das normas às relações constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor não envolve eficácia retroactiva.
Esta forma de aplicação da lei nova é genericamente qualificada como retroactividade imprópria ou inautêntica.
Todavia, não obstante esta forma de retroactividade não ser objecto de qualquer restrição legal expressa, não se devendo, sequer, à luz do Código Civil, considerá-la "retroactividade em sentido próprio", parece ser de entender, com MENEZES CORDEIRO, que, também ela, "deve passar pelo crivo das suas projecções substanciais, podendo, inclusive, chegar-se à formulação de juízos de inconstitucionalidade" (54).
Com efeito, a precipitação do princípio de protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito democrático, ínsito no artigo 2º da Constituição, não se deverá limitar à proibição das formas de retroactividade nos seus graus mais "fortes" ou "autênticos".
Importa, por isso, apurar se, no caso concreto, e dentro de um quadro de interpretação conforme com a Constituição, a atribuição de efeitos retroactivos "fracos" ou "inautênticos", à "regra da incompatibilidade" inscrita na nova lei (Lei nº 64/93) pode ofender aqueles princípios, caso em que deveria ser considerada contrária ao texto fundamental.
9.
Procuraremos alcançar o objectivo que nos propomos, partindo da análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional (T.C.).
 
9.1. No seu acórdão nº 256/90, de 26 de Julho de 1990 (55), o TC pronunciou-se, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a requerimento do Presidente da República, sobre a norma constante do artigo 1º do Decreto da Assembleia da República nº 248/V (texto que, uma vez promulgado, se converteria na Lei nº 56/90), na parte em que dera nova redacção ao artigo 2º do artigo 7º da Lei nº 9/90.
Estava em causa uma incompatibilidade de cargos: especificamente de deputado ao Parlamento Europeu e de titular de órgãos do poder local. O problema consistia justamente em saber se o seu estabelecimento por lei posterior à realização de um concreto acto eleitoral correspondente ao segundo cargo (de presidente de câmara municipal), para além de, eventualmente, só afectar certa e determinada pessoa, não poderia configurar, tendo presente o nº 3 do artigo 18º da Constituição, uma restrição do âmbito de protecção de normas constitucionais consagradoras de direitos, liberdades e garantias, designadamente, as dos artigos 48º, 49º e 50º da CRP.
O TC decidiu, por maioria, no sentido da conformidade constitucional da norma, fundamentalmente, por considerar que a lei não teria sido realmente inovatória (56), nessa medida, não relevando para a problemática ora em análise.
Diversamente, em declarações de voto, os juízes vencidos contestaram este entendimento, sustentando que a lei seria inovadora, e porque, simultaneamente, restritiva e retroactiva, violaria os artigos da Constituição, já indicados.
Para esses juízes, a incompatibilidade que se pretendia decretar, ao operar imediatamente por referência a mandato constituído em momento em que ainda não existia, restringiria de forma inadequada o direito de participação política dos cidadãos e o direito de exercício efectivo de cargos políticos para que foram eleitos.
Assim, alterando o quadro vigente à data das eleições para os dois cargos tornados incompatíveis, infringiria o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático.
 
9.2. Posteriormente, através do acórdão nº 473/92, de 10 de Dezembro de 1992 (57), o TC, em fiscalização abstracta sucessiva, voltou a debruçar-se sobre o mesmo problema, agora a requerimento do Provedor de Justiça, em relação ao preceito correspondente àquele artigo 1º, o artigo 1º da Lei nº 56/90, na parte em que dá nova redacção ao nº 2 do artigo 7º da Lei nº 9/90.
Neste caso, o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação das normas dos artigos 2º, 18º, nºs 2 e 3, 48º, nº 1, 49º, nº 1, e 50º, nº 1, da CRP, da norma do artigo 7º, nº 2, da Lei nº 9/90, na redacção do artigo 1º da Lei nº 56/90.
 
9.3. Atenta a conexão substancial das situações jurídicas apreciadas nos referidos acórdãos, relativamente ao caso em análise no presente parecer, voltaremos àqueles arestos para uma mais atenta ponderação dos argumentos invocados.
Todavia, terá interesse fazer ainda referência aos desenvolvimentos teóricos expendidos no acórdão do TC nº 287/90, de 30 de Outubro de 1990 (58), porque reveladores da orientação da jurisprudência do Tribunal a respeito do nexo jurídico que entre si conexiona a "retroactividade inautêntica" e os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.
Reflectindo sobre uma situação em que "embora não haja retroactividade que afecte um direito, estamos perante um daqueles casos em que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes e não terminadas", ou seja, ponderando acerca de situações que a jurisprudência constitucional alemã tem qualificado como de "retroactividade inautêntica, retrospectiva" escreve-se no referido acórdão:
"Relevante é, porém, que aquele Tribunal tem entendido que também na chamada "retroactividade inautêntica" os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de direito, impõem limites que o legislador tem de respeitar, considerando-se ofendida a protecção da confiança, sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida. Para determinação desses limites constitucionais haveria que ponderar a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, por um lado, e a importância do interesse visado pelo legislador para o bem comum, por outro lado".
 
9.4. Apesar de, nos acórdãos nºs. 256/90 e 473/92, a incompatibilidade a que se refere a norma sindicada atingir dois cargos com mandato de fonte electiva (presidente da câmara municipal e deputado ao Parlamento Europeu), contêm-se, nas referidas decisões e nas declarações de voto anexos, diversas considerações com interesse para o caso sob análise.
São elas, no essencial, como já se viu, as seguintes;
a) a "retroactividade inautêntica" poderá ofender o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de "Estado de direito democrático";
b) as normas geradoras de incompatibilidades terão a natureza de leis restritivas de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, pelo que se encontrariam submetidas ao regime do artigo 18º da CRP, mormente ao seu nº 3, que proíbe, neste domínio, a retroactividade;
c) a "retroactividade inautêntica" deverá considerar-se abrangida por esta proibição.
Procuremos ilustrar as ideias acabadas de sumariar, socorrendo-nos, para o efeito, de considerações formuladas nas declarações de voto anexas ao acórdão nº 256/90 e no acórdão nº 473/92, .
 
9.4.1. Consta da declaração de voto do Conselheiro Mário de Brito o seguinte entendimento:
"Que a lei que cria uma nova incompatibilidade - designadamente a norma em causa, que veda o exercício das respectivas funções, enquanto exercer o mandato de deputado ao Parlamento Europeu, aos presidentes das câmaras municipais - «é uma lei restritiva de direitos» parece não poder pôr-se em dúvida. Com ela são atingidos o «direito de sufrágio», previsto no artigo 49º da Constituição (na sua dimensão da capacidade eleitoral passiva), e o «direito de participação na vida pública», consagrado no artigo 48º.
"Não se vê que tal restrição contenha algo de arbitrário, desproporcionado ou desrazoável, na sua aplicação para o futuro. Isto é: aceita-se que um deputado ao Parlamento Europeu não possa desempenhar simultaneamente o cargo de presidente de câmara para que venha a ser eleito.
"A solução já poderá, todavia, ser outra se, quando é publicada a lei que cria a incompatibilidade, o deputado já tivesse sido eleito para aquele órgão autárquico ou já estiver mesmo a exercer as respectivas funções.
"Tem-se sustentado, na verdade, que, quando a Constituição, no artigo 18º, nº 3, proibe que as leis restritivas de direitos tenham efeito retroactivo, se abrange na proibição, não só a retroactividade autêntica ou própria (aplicação a situações definitivamente consolidadas), como a retroactividade chamada inautêntica ou imprópria (aplicação a situações que, embora iniciadas no domínio da lei anterior, subsistem no domínio da lei nova).
"Será então possível sustentar que a aplicação da nova lei sobre incompatibilidades a um cidadão que já se encontra a exercer um cargo que veio a ser por ela abrangido, ou mesmo a um indivíduo (só) eleito para esse cargo, viola o princípio da confiança ínsito na ideia de "Estado de direito democrático" a que se refere o artigo 2º da Constituição".
 
9.4.2. Da declaração de voto do Conselheiro Armindo Ribeiro Mendes, pode retirar-se, com maior relevo para a economia deste parecer, as seguintes considerações:
"Do meu ponto de vista - e do ponto de vista de uma maioria clara de juízes deste Tribunal - a incompatibilidade introduzida quanto a cargos electivos - se criada ex novo na ordem jurídica portuguesa - configura-se como uma restrição a um direito fundamental de participação política, a qual não obedece ao disposto no artigo 18º, nº 3, da nossa lei fundamental.
"Na verdade, embora a inovação não se revista de carácter retroactivo proprio sensu - a aplicação da incompatibilidade não atinge efeitos passados, mas opera apenas para o futuro, a partir da entrada em vigor da lei parlamentar -, não deixa de comportar algum efeito retroactivo improprio sensu ou efeito retrospectivo, pois vai impedir o exercício simultâneo de dois cargos electivos...".
(...)
"A entrada em vigor e a aplicação imediata a essa pessoa da nova lei das incompatibilidades - na ausência de disposição transitória que defira essa aplicação aos eleitos em futuras eleições - viola as expectativas legítimas desse cidadão decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, no plano do princípio derivado da confiança, e, o que parece mais impressivo, viola o próprio princípio democrático que postula o respeito da ordem jurídica pelas opções livremente expressas pelos eleitores, o acatamento da existência de órgãos representativos escolhidos através de eleições periódicas, num sistema de pluralismo partidário, e a garantia de que os eleitos verão reconhecido o seu direito de manutenção e de exercício livre do mandato, sem intromissões de natureza fáctica ou jurídica".
 
9.4.3. Escreve, por sua vez, o Conselheiro Antero Monteiro Dinis, na sua declaração de voto:
"As novas incompatibilidades agora criadas pela norma sob análise quando se aplicam de imediato a situações categoriais resultantes de um acto electivo afectam de modo intolerável e constitucionalmente não consentido o mandato resultante da respectiva eleição, entrando de forma clara em linha de colisão com o disposto nos artigos 18º, nº 3, 48º e 49º da Constituição.
"Aliás, mesmo para aqueles que entendam não se perfilar aqui uma verdadeira e própria situação de retroactividade, sob a invocação de que a aplicação da lei a mandatos ou situações constituídas ou iniciadas antes da sua entrada em vigor, se bem que ainda subsistentes, não seria susceptível de desencadear o funcionamento da regra do artigo 18º, nº 3, sempre haveria de se aceitar que uma tal lei envolveria insofismável violação do princípio da confiança, corolário da ideia do Estado de direito democrático".
 
9.4.4. Acompanhemos ainda, na parte que interessa, o raciocínio expendido pelo Conselheiro José de Sousa e Brito, na sua declaração de voto:
"A perda para o futuro de um mandato tem um efeito fundamentalmente semelhante à anulação retroactiva do mesmo mandato, uma vez que sempre se entenderiam ressalvados os efeitos entretanto produzidos (artigo 12º, nº 1, do Código Civil). Assim sendo, embora se trate aqui de retroactividade imprópria, isto é, de uma situação em que, em rigor, «não se levanta o problema da retroactividade», na expressão do Tribunal Constitucional federal alemão (BVerfGE 11, 139, 146), justifica-se a aplicação, por analogia, da proibição da retroactividade do nº 3 do artigo 18º da Constituição.
"Aliás, esta proibição é uma aplicação do princípio da protecção de confiança, incluído no princípio do Estado de direito (artigo 2º da Constituição).
(...)
"É igualmente ofendido o princípio democrático [artigos 2º, 9º, alíneas b) e c), 48º, nº 1, e 111º da Constituição], porquanto a possibilidade de qualquer maioria parlamentar retirar para o futuro o mandato de um cidadão eleito para um cargo político, através da criação de uma nova incompatibilidade, permitiria subverter a vontade democrática expressa na eleição.
"É claro que o interesse funcional no bom desempenho de qualquer dos cargos tornados incompatíveis não tem uma relevância tal para o bem comum do ponto de vista dos valores e interesses constitucionalmente protegidos que justifique o sacrifício neste caso dos princípios da confiança e democrático".
 
9.4.5. O Conselheiro Tavares da Costa explanou, no seu voto de vencido, as seguintes ideias fulcrais:
"O legislador, no caso do falado artigo 7º, nº 2, prescindiu do expediente habitualmente utilizado para salvaguarda de situações adquiridas, especialmente significativas quando, como é o caso, se trata de cargos eleitos: o recurso a um regime transitório, mantendo incólume o exercício dos mandatos pendentes.
"... a imprevisibilidade da alteração de critérios contribui reflexamente para afectar o princípio da confiança decorrente desse outro princípio estruturante que é o Estado de direito (artigo 2º).
Nessa medida, de modo imprevisível e desproporcionado - dada a ausência de justificação -, a aplicação imediata do preceito afecta intoleravelmente o "mínimo de certeza" no exercício dos direitos - e nas expectativas legitimamente criadas do novo regime -, constituindo, na realidade, a aplicação retroactiva deste.
"Com efeito, a sua observância imediata nos mandatos electivos, iniciados antes da entrada em vigor da nova lei, não lhes permitindo, transitoriamente, alcançar o seu termo natural, assume-se como forma de retroactividade, imprópria ou inautêntica no dizer dos autores, não se justificando o drástico da solução pela relevância do interesse público e, designadamente, aplicando-se ao titular do cargo eleito uma sanção não tipificada à data do início do mandato...".
 
9.4.6. Por sua vez, o Conselheiro António Vitorino, depois de se debruçar sobre a natureza jurídica das "incompatibilidades", que, na sua essência, serão, segundo entende, formas de limitação ou condicionamento do exercício de direitos fundamentais, reconhecendo, embora, que tais direitos não são absolutos ou incondicionáveis, escreve, na sua declaração de voto, o seguinte:
"...parece perfeitamente legítimo que o legislador invoque o valor da eficácia do exercício das funções de presidente da câmara como interesse constitucionalmente relevante para efeitos do estabelecimento da incompatibilidade em causa.
Ponto é saber se, ao definir tal incompatibilidade, o legislador o fez dentro de domínios aceitáveis, ou se optou por solução que desproporcionadamente restrinja direitos ou imponha ónus que contradigam outros valores constitucionalmente relevantes.
Ora, é meu entendimento que a incompatibilidade em causa, ao operar imediatamente por referência a mandatos em curso que foram constituídos em momento onde tal incompatibilidade inexistia, restringe de forma inadequada o direito de participação política e o direito de exercício efectivo dos cargos para que se foi eleito. E isto porque altera o quadro vigente à data das eleições para ambos aqueles cargos, violando, desta forma, o princípio da confiança dos cidadãos ínsito na ideia de Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição)".
 
9.5. Na linha de fundamentação argumentativa amplamente decorrente das passagens reproduzidas, o acórdão nº 473/92, cujo conteúdo já foi enunciado, no essencial (cfr. supra, pontos 9.2.), entendeu que o caso sub judicio era exemplo não só de ofensa ao princípio do Estado de direito democrático, como, e designadamente, de quebra do mandato político que o cidadão eleitor pretendeu conceder.
Discorrendo acerca da matéria que nos interessa acompanhar, escreve--se no aresto em apreço:
"O legislador, no caso do falado artigo 7º, nº 2, prescindiu, como se viu, do expediente habitualmente utilizado para salvaguarda de situações adquiridas, especialmente significativas quando, como é o caso, se trata de cargos electivos: o recurso a um regime transitório, mantendo incólume o exercício dos mandatos pendentes.
(...)
"Mais ainda, a imprevisibilidade da alteração de critérios contribui reflexamente para afectar o princípio da confiança decorrente desse outro princípio estruturante que é o do Estado de direito (artigo 2º).
"Nessa medida, de modo imprevisível e desproporcionado - dada a ausência de justificação -, a aplicação imediata do preceito afecta intoleravelmente o «mínimo de certeza» no exercício dos direitos - e nas expectativas legitimamente criadas no novo regime -, constituindo, na realidade, a aplicação retroactiva deste.
"Com efeito, a sua observância imediata nos mandatos electivos, iniciados antes da entrada em vigor da nova lei, não lhes permitindo, transitoriamente, alcançar o seu termo natural, assume-se como forma de retroactividade, imprópria ou inautêntica no dizer dos autores, não se justificando o drástico da solução pela relevância do interesse público e, designadamente, aplicando-se ao titular do cargo eleito uma sanção não tipificada à data do início do mandato...
"Trata-se de uma restrição que na sua imediata aplicação - não se vislumbrando que súbita emergência de interesse público a justificaria - se revela desproporcionada e onerosamente excessiva, atentatória do núcleo do direito fundamental em causa e redutora do seu conteúdo essencial (artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição) - cf. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 233 e seguintes, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, p. 630, e Marcelo Rebelo de Sousa, O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, I, Lisboa, 1988, pp. 119 e seguintes)".
 
9.6. Apelando-se, no Acórdão em referência, para a jurisprudência do TC relativa aos termos e limites em que a retroactividade violará o princípio da confiança, volvamos, de novo, a nossa atenção para o acórdão nº 287/90, já citado (cfr. supra, ponto 9.3.), onde esta problemática encontra tratamento.
Aí se escreve o seguinte:
"Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que "apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático" (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 11/83, de 12 de Outubro de 1982, "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 1, págs. 11 e segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão nº 463, de 13 de Janeiro de 1983, (...) e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente, nos Acórdãos 17/84 e 86/84 (...)".
 
10.
 
10.1. Da jurisprudência passada em revista pode extrair-se a seguinte ideia: na medida em que uma norma legal que cria uma incompatibilidade se aplicar imediatamente a titulares de cargos políticos com mandato de fonte electiva, que se encontravam no exercício cumulado de funções permitido pela lei anterior, poder-se-á estar perante uma norma restritiva inconstitucional.
Será possível aplicar os princípios enformadores da referida corrente jurisprudencial à situção ora sob análise?
 
10.2. Algumas objecções preliminares, que poderiam levantar-se, não merecerão, porventura, acolhimento.
Assim, é certo que o entendimento jurisprudencial explanado foi estabelecido a partir de juízos feitos sobre normas criadoras de incompatibilidades. Poderá questionar-se, por isso, se será igualmente válida em relação a uma lei nova que , no essencial, se limita a afastar o regime transitório fixado na lei anterior, ao abrigo do qual era lícito o exercício cumulado dos dois cargos.
Parece que a resposta deverá ser afirmativa, dado que, perante a alteração, pela lei nova, da "regra da incompatibilidade", a "revogação do regime transitório", ao amparo do qual os dois cargos eram exercidos em acumulação, é equivalente, do ponto de vista jurídico, à criação de uma nova incompatibilidade.
Ou seja, não será este um obstáculo à aplicação da referida orientação jurisprudencial ao caso em apreço.
 
10.2.1. É certo que a questão que se coloca no âmbito deste parecer diz respeito ao regime das incompatibilidades de titulares de altos cargos públicos, questão que não poderá deixar de merecer a nossa melhor atenção, tendo presente o diferente quadro genético, estatutário e jurídico dos respectivos agentes em relação aos titulares de cargos políticos com mandato eleitoral. Todavia, sem prejuízo das diferenças que, aí sim, se divisarão, importa reconhecer que, também no âmbito da situação posta à nossa consideração, no presente parecer, se depara uma situação de exercício cumulativo de dois cargos, um dos quais, pelo menos, com limitação temporal, ou seja, com um termo final pré-determinado (mandato ou outro).
Serve isto para dizer que, se, por hipótese, se estivesse perante uma situação de exercício cumulativo de dois cargos públicos, ambos por período indeterminado, não poderia, segundo se pensa, equacionar a questão da violação do princípio da protecção da confiança para tentar evitar que a lei nova tornasse eficaz, de imediato, uma incompatibilidade entre ambos.
Atente-se em que as presentes considerações não pretendem antecipar a posição a assumir quanto ao problema de saber se, no caso concreto, poderá (ou não) ocorrer uma violação inadmissível do princípio da confiança. Sobre isso se reflectirá de seguida.
 
10.3. Passemos, pois, a averiguar se a eventual aplicação das regras relativas a incompatibilidades, constantes da lei nova, às pessoas que, à data da sua entrada em vigor, se encontravam no exercício cumulativo lícito de funções agora tornadas incompatíveis, se há-de ter como "intoleravelmente retroactiva", afectando, de modo inadmissível e arbitrário, os direitos e expectativas legitimamente fundados daqueles cidadãos.
 
10.3.1. Faça-se uma observação prévia, todavia útil para a compreensão do problema.
Não está, nem pode estar em causa, a existência de um qualquer direito por parte dos respectivos titulares ao exercício dos cargos em acumulação.
Obviamente, o legislador pode, sem infringir qualquer princípio constitucional (59), responder negativamente a esta interrogação, depois de, anteriormente, lhe ter dado diferente tratamento.
O que está em causa é o problema de saber se, tendo o legislador decidido substituir a inicial resposta afirmativa por uma resposta negativa, deverá esta atingir as situações jurídicas licitamente constituídas ao abrigo da lei revogada.
10.4. O "membro do conselho de gerência" de uma empresa pública com funções executivas que, na situação hipotizada, fora investido, na vigência da Lei nº 9/90, nas funções de presidente do conselho fiscal de uma sociedade participada pela empresa pública para cumprir um mandato de três anos, organizou a sua vida em redor da expectativa de um rendimento do trabalho composto pela sua retribuição naquela empresa pública somada com a remuneração devida pelas funções acumuladas, durante o período correspondente ao mandato.
Poderia então sustentar-se que, perante essa expectativa legítima, se justificaria um "investimento na confiança", na expressão da jurisprudência constitucional alemão, citada pelo Conselheiro Sousa e Brito, na sua declaração de voto. Confiança em que o legislador não viesse, através da lei nova, a aplicar incompatibilidades supervenientes aos titulares dos cargos exercidos em acumulação, dados os anteriores regimes transitórios constantes da lei revogada (na sua forma originária ou na sua versão posteriormente alterada).
Existiria então ofensa ao princípio da protecção da confiança, quando se pretendesse estender a nova regra restritiva a situações de acumulação iniciadas licitamente ao abrigo de anterior norma permissiva, ainda que de natureza transitória.
 
10.5. Vimos já que a aplicação do regime de incompatibilidades da nova lei a relações jurídicas subsistentes à data da sua entrada em vigor não representa retroactividade em sentido próprio, ao menos, a retroactividade a que se refere o artigo 12º do Código Civil. trata-se daquilo a que, na esteira da jurisprudência constitucional alemã, as posições sumariadas, extraídas dos arestos do nosso TC qualificaram como "retroactividade inautêntica".
Veremos em seguida se será defensável adoptar a orientação perfilhada pelas posições jurisprudenciais expostas quanto aos titulares de cargos políticos com mandato de génese eleitoral relativamente aos titulares de um "mandato" que titule o exercício temporário de um cargo público.
Para quem sustente a tese afirmativa, a aplicação imediata, nos termos expostos, da norma que institui ou alarga uma incompatibilidade conferir-lhe-ia natureza restritiva com eficácia retroactiva, consubstanciando violação do preceituado no nº 3 do artigo 18º da Constituição (60).
 
11.
A tese exposta levanta, a nosso ver, e com o devido respeito, muitas dúvidas e suscita muitas dificuldades.
Vejamos em seguida as questões atinentes à eventual violação do nº 3 do artigo 18º da CRP e do princípio da protecção da confiança, questões, naturalmente, entre si, estreitamente conexionadas.
 
11.1. Dispõe a referida norma constitucional que "as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais."
Como se sabe, o regime próprio dos direitos, liberdades e garantias não proíbe de todo em todo a possibilidade de restrição, por via da lei, do exercício dos direitos, liberdades e garantias. Mas submete tais restrições a vários e severos requisitos. Além da verificação de certos pressupostos materiais, enunciados no nº 2 do artigo 18º, a validade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias depende ainda de três requisitos quanto ao carácter da própria lei: deve revestir carácter geral e abstracto (artigo 18º, nº 3, 1ª parte); a lei não pode ter efeito retroactivo (artigo 18º, nº 3, 2ª parte); a lei deve ser uma lei da Assembleia da República ou, quando muito, um decreto-lei autorizado [artigo 168º, nº 1, alínea b)].
A razão de ser do requisito que proíbe as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias de terem efeito retroactivo está, como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira (61), "intimamente ligada à ideia de protecção da confiança e da segurança aos cidadãos, defendendo-os contra o perigo de verem atribuir aos seus actos passados ou às situações transactas efeitos jurídicos com que razoavelmente não podiam contar. Trata-se, ao fim e ao cabo, de consubstanciar um dos traços do princípio do Estado de direito democrático constitucionalmente afirmado no artigo 2º".
E, embora o princípio da não retroactividade da lei só esteja constitucionalmente afirmado neste nº 3 do artigo 18º e no artigo 29º, a propósito da irretroactividade da lei penal, poderá suscitar-se a questão de saber se o princípio do Estado de direito democrático não reclama considerá-lo como princípio geral válido para todas as leis que diminuam direitos dos cidadãos.
 
11.2. Diga-se que, mesmo que se acolhesse tal entendimento, haveria sempre que apreciar, em concreto, à luz da jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a que nos referimos, se se estaria perante uma "retroactividade intolerável, que afectasse de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos", porque só assim ocorreria violação do princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático.
Ora, parece-nos que no caso sob estudo isso não acontece.
E, desde já, se adianta a convicção de que as considerações produzidas nas declarações de voto anexas ao acórdão nº 256/90, e no próprio acórdão nº 473/92, dirigidas às incompatibilidades de cargos políticos com mandato eleitoral, não são transponíveis para a situação ora em análise, onde não se colocam problemas relativos ao exercício do direito fundamental de participação política (v.g., o direito de participação na vida pública - artigo 48º - ou o direito de sufrágio - artigo 49º).
 
11.2.1. Mas, mesmo em relação à aplicação "inautenticamente retroactiva" das normas sobre incompatibilidades que afectam cargos políticos com mandato de base electiva, vozes autorizadas se levantaram, entendendo que "o domínio das incompatibilidades não contende, ou não contende por via directa, com os direitos, liberdades e garantias".
Foi, por exemplo, esta a posição assumida por JORGE MIRANDA, na já referida anotação ao acórdão nº 256/90 (62), que considerou, outrossim, que tal domínio (incompatibilidades) se situa "no plano dos princípios e interesses objectivos da organização político-constitucional, e é aí - sem prejuízo sempre da regra da proporcionalidade - que deve ser apreciado".
Fundamentalmente por esse motivo, o referido autor, seguindo embora um caminho diferente do percorrido no acórdão, não se pronunciaria pela inconstitucionalidade do Decreto da Assembleia da República apreciado no âmbito do aresto (Decreto nº 248/V).
Acompanhemos o raciocínio expendido por JORGE MIRANDA:
"4. São duas coisas diversas, na verdade, as inelegibilidades (e, positivamente, os requisitos de elegibilidade) e as incompatibilidades.
"As inelegibilidades impedem a eleição e, por consequinte, atingem o direito fundamental de ser eleito. Destinadas, como diz o artigo 50º, nº 3, da Constituição (aditado, sem grande necessidade, na revisão de 1989), a garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e a independência do exercício dos cargos, devem ser interpretadas sempre restritivamente (-).
"De entre as inelegibilidades, algumas (as chamadas inelegibilidades especiais) podem equivaler a incompatibilidades de cargos - é o que acontece quando, à partida, quem seja titular de certo cargo fique impossibilitado de disputar uma eleição (v.g., o governador civil dentro do respectivo distrito). Porém, as incompatibilidades proprio sensu não obstam à eleição, apenas obstam ao concomitante exercício de dois (ou mais) cargos: o eleito está validamente eleito; o que tem é de escolher aquele dos cargos que pretende, de facto, exercer.
(...).
"5. Porque não é vulnerada a capacidade eleitoral passiva, não custa admitir que o legislador ordinário, de acordo com o modo como, em cada momento, encara os interesses e os condicionalismos públicos atinentes aos cargos em presença, venha a modificar o regime de quaisquer incompatibilidades proprio sensu; e não vemos por que motivo - quando tal julgue absolutamente justificado e necessário - não há-de mesmo poder fazê-lo relativamente a mandatos em exercício".
 
11.2.2. Ainda que não se adira à doutrina acabada de condensar, parece indiscutível, pelas razões já aduzidas, que não são transponíveis para o presente caso os fundamentos invocados para sustentar a tese da inconstitucionalidade da norma que veio criar uma nova incompatibilidade quanto a cargos electivos. Aí ainda se poderia configurar uma restrição a um direito fundamental de participação política, que não obedeceria, porventura, ao disposto no artigo 18º, nº 3, da lei fundamental.
No caso ora em apreço, não só não faria sentido invocar a eventualidade da violação do princípio democrático, nos termos em que o mesmo é configurado nas declarações de voto dos Conselheiros Armindo Ribeiro Mendes e Sousa e Brito (cfr. supra pontos 9.4.2. e 9.4.4.), mas também não se divisa qualquer direito fundamental dos titulares dos cargos acumulados que tivesse sido objecto de restrição.
Recorde-se que os nºs 4 e 5 do artigo 269º da CRP estabelecem mesmo, como vimos, o princípio da excepcionalidade da acumulação dos cargos públicos e que não está em causa, como se salientou, a existência de um qualquer direito ao exercício dos cargos em acumulação (cfr. supra, 10.3.1.).
 
11.2.3. Não se duvida de que a aplicação imediata do novo regime às situações de acumulação de cargos públicos licitamente constituídas na vigência da lei revogada atinge compreensíveis expectativas dos respectivos titulares.
Mas será que o princípio de protecção de confiança queda violado de maneira inadmissível?
Pensamos que não.
A lei fundamental exclui a retroactividade das leis, quer quando se trate de uma verdadeira lei de efeitos retroactivos, quer apenas de uma lei de efeitos retrospectivos (que atribui efeitos jurídicos futuros a situações constituídas no passado e subsistentes), por apelo ao princípio da confiança inerente à própria ideia do Estado de direito, "quando se esteja perante uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos"(63).
"Deste modo, à luz daquele princípio, não será intolerável ou inadmissível algum efeito que aos olhos do cidadão se há-de ter como verosímil ou mesmo como possível, e com o qual, consequentemente, de uma forma razoável e avisada se poderia ou deveria contar" (64).
Parece-nos ser este o presente caso.
 
11.3. Situando a análise no plano constitucional de protecção da confiança contra violações inadmissíveis porque intoleráveis ou demasiadamente gritantes, e com as quais, razoavelmente, se não poderia nem deveria contar, a alteração do quadro jurídico das incompatibilidades pela Lei nº 64/93 não permite formular um juízo seguro no sentido da violação daquele princípio.
Pelo contrário, somos levados a pensar que não ocorre o pressuposto da referida violação, posto que nem as alterações à "regra da incompatibilidade" são particularmente significativas, nem revestem natureza inopinada e de todo imprevisível.
A própria supressão do "regime transitório" não deve fazer esquecer as hesitações do legislador a respeito do seu conteúdo, ilustradas na alteração substantiva que ao mesmo havia sido introduzida através da Lei nº 56/90.
Na verdade, numa perspectiva racional, não se poderá afirmar que as alterações operadas no regime de incompatibilidades, incluindo a ausência de um regime transitório (do que decorrerá aplicação retrospectiva das novas normas), sejam de todo inesperadas, quer dizer, estranhas a toda a possibilidade razoável de previsão.
Do que resulta que a aplicação imediata da nova lei, fazendo cessar situações, já de si transitórias, e de natureza sempre excepcional, de acumulação de exercício de dois altos cargos públicos não violam de maneira inadmissível o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito.
Significa isto, que as normas da Lei nº 64/93, na medida em que criem novas incompatibilidades ou alarguem o âmbito das pré-existentes, são aplicáveis às situações existentes à data da sua entrada em vigor.
 
11.4. Extrai-se do exposto que as autorizações de acumulação de exercício de cargos, validamente concedidas ao abrigo da legislação revogada pela Lei nº 64/93, caducaram, relativamente aos titulares agora abrangidos pelo regime de incompatibilidades.
Já assim não será para os casos em que a acumulação continua a ser, sem alteração dos pressupostos, legalmente possível.
Mas se a acumulação dos cargos deixou de ser possível, em face do novo regime, não poderão os respectivos titulares solicitar autorização para tal exercício, e, se o fizerem, deverão os pedidos ser recusados por falta de fundamento legal. Do que resulta que, se a autorização viesse a ser dada, seria ilegal.
 
11.5. O que se deixou dito, a respeito da aplicação da Lei nº 64/93 não significa que as normas relativas ao "regime sancionatório" (artigo 13º) sejam necessariamente aplicáveis aos titulares dos altos cargos públicos eventualmente abrangidos pelas respectivas previsões.
De facto, não se revelaria moral nem juridicamente correcto, aplicar as sanções ali previstas a pessoas que, embora sujeitas à incidência das novas normas, não tenham, de imediato, cumprido as obrigações decorrentes da lei.
Isto porque os referidos titulares podem ter vindo a proceder na convicção, de certo modo compreensível, de que não estão abrangidos pelas normas da lei nova que criam ou alargam incompatibilidades, uma vez que as situações jurídicas que lhes dizem respeito foram licitamente constituídas ao abrigo da lei revogada. Eventualmente, as dificuldades suscitadas pela interpretação do problema em apreço permitirão hipotizar, por parte dos destinatários das normas, situações de eventual erro desculpável, logo, relevante.
Emtal contexto, sujeitar, sem mais, tais pessoas ao regime sancionatório em apreço seria, essa sim, uma medida intolerável em face dos princípios de protecção da confiança e da boa fé, posto que tais cidadãos terão procedido no convencimento da licitude da situação em que permanecem.
Tornar-se-ia, assim, necessário o estabelecimento de um prazo para o cumprimento de tais obrigações.
Inexistindo, na Lei nº 64/93, uma norma similar à do nº 1 do artigo 8º da Lei nº 9/90, na redacção dada pela Lei nº 56/90, norma incluída nas disposições definidoras do "regime transitório", ora omitido, deverá a lacuna ser preenchida de acordo com os cânones determinados no artigo 10º do Código Civil.
E, percorrido esse caminho, caberá ao intérprete, no cumprimento das regras de integração das lacunas da lei, criar uma norma dentro do espírito do sistema (nº 3 do artigo 10º) (65). Para a elaboração dessa norma "ad hoc", parece adequado não perder de vista a específica definição do prazo de sessenta dias, para o efeito cominado, não só na versão originária da Lei nº 9/90, mas também na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 56/90. Parece, pois, avisado, tendo presentes os condicionalismos metodológicos a respeitar por força do disposto pelo nº 3 do artigo 10º, reeditar disposição com conteúdo idêntico ao do anterior nº 1 do artigo 8º da Lei nº 9/90, na redacção da Lei nº 56/90, prescrevendo aos titulares em exercício à data da publicação da lei, o prazo de 60 dias para os efeitos de cumprimento das obrigações nela previstas.
 
Conclusão:
 
12.
 
Termos em que se extraem as seguintes conclusões:
1ª A Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, revogou a Lei nº 9/90, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90, de 5 de Setembro (artigo 15º), omitindo a previsão de qualquer "regime transitório";
 
2ª Atento o regime constante da Lei nº 64/93, não podem ser autorizados a desempenhar funções remuneradas em órgãos sociais de empresas associadas de uma empresa pública:
a) o presidente dessa empresa pública;
b) o vogal da direcção da referida empresa pública, desde que exerça funções executivas (artigos 3º, alíneas a) e b), e 7º, nºs 1 e 3, este em conjugação com o disposto pelo nº 4 do artigo 4º da Lei nº 9/90, na redacção dada pela Lei nº 56/90);
 
3ª As normas da Lei nº 64/93 que criam ou alargam incompatibilidades são aplicáveis a situações de exercício cumulativo de funções existentes à data da sua entrada em vigor;
 
4ª A aplicação das referidas normas, consubstanciando, embora, uma aplicação com efeitos retrospectivos, não afecta de forma inadmissível o princípio da confiança inerente ao conceito de Estado de direito democrático e não infringe o disposto no artigo 18º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa;
 
5ª As autorizações de acumulação de funções, concedidas ao abrigo da legislação revogada pela Lei nº 64/93 aos titulares de altos cargos públicos em exercício, que passaram a ser abrangidos pelo novo regime de incompatibilidades, caducaram;
 
6ª Os titulares de altos cargos públicos em exercício à data da publicação da Lei nº 64/93 deviam cumprir as obrigações nela previstas nos 60 dias posteriores à sua entrada em vigor - artigo 10º, nº 3, do Código Civil.
 
___________________________________
1) Ofício nº 929/CD/93, de 1 de Setembro de 1993.
2) Despacho de 27 de Setembro findo, exarado sobre a informação nº 63/93, de 23 do mesmo mês, do Gabinete do Procurador-Geral.
3) Carta datada de 13 de Dezembro findo, que termina com o pedido de "esclarecimento quanto ao procedimento a adoptar relativamente à situação acima descrita", posto que compete "à Procuradoria-Geral da República a fiscalização do cumprimento do disposto na Lei nº 64/93, no referente aos titulares de altos cargos públicos" (sublinhado agora).
4) Parecer datado de 2 de Dezembro de 1993.
5) Publicado no "Diário da Assembleia da República", V Legislatura, 1ª Sessão Legislativa (1987-1988), II Série, nº 91, de 9 de Julho de 1988.
6) Conjuntamente com o Projecto de Lei nº 277/V, procedeu-se à discussão dos Projectos de Lei nº 278/V (PS), sobre incompatibilidades - alterações do Estatuto dos Deputados - (que esteve na origem da Lei nº 98/89, de 29 de Dezembro) e 312/V (PCP), sobre moralização do exercício do mandato de deputado - cfr. "Diário da Assembleia da República", I Série, nº 14, de 18 de Novembro de 1988, págs. 356 e seguintes.
Sobre os trabalhos preparatórios da Lei nº 9/90, e locais da sua publicação, veja-se o parecer nº 26/90, de 28 de Julho de 1990, nomeadamente o ponto 5.1., e as notas (21) e (22).
7) "Diário da Assembleia da República", I Série, de 18 de Novembro de 1988, pág. 356.
8) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição revista, Coimbra Editora, anotação X ao artigo 269º, pág. 948.
9) "Diário da Assembleia da República", I Série, de 5 de Maio de 1990, pág. 179.
Sobre a Lei nº 9/90, vejam-se os pareceres nºs 26/90, de 28 de Julho de 1990, inédito, 54/90, publicado no "Diário da República", II Série, de 9 de Julho de 1991, 76/91, de 5 de Dezembro de 1991, inédito, e 30/92, de 25 de Junho de 1992, também não publicado.
10) Sob a epígrafe "Do direito de acção", o artigo 8º enunciava as entidades com legitimidade para, em subordinação ao Ministério Público, promoverem o exercício da acção penal.
11) Alínea f): "Governador e vice-governador civil"; alínea h) "Presidente e vereador a tempo inteiro das câmaras municipais".
12) O Projecto de Lei nº 524/V encontra-se publicado no "Diário da Assembleia da República", V Legislatura, 3ª Sessão Legislativa, II Série-A, nº 35, de 26 de Abril de 1990.
Veja-se, a tal propósito, o parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 38, de 5 de Maio de 1990, pág. 1272, e a discussão na generalidade do referido Projecto de Lei no "Diário da Assembleia da República", I Série, nº 71, de 5 de Maio de 1990, págs. 2391 e seguintes.
13) Cfr. o "Diário da Assembleia da República" indicado na parte final da nota anterior, pág. 2392.
14) A Lei nº 56/90 não introduziu alterações ao artigo 2º.
15) Recorde-se que, nos termos do nº 2 do artigo 4º da Lei nº 9/90, na sua versão originária, não se consideravam sujeitos ao regime de incompatibilidades e impedimentos "os docentes de ensino superior e os investigadores científicos ou similares que exerçam a título gratuito as suas funções".
16) Dispõe, com efeito, o nº 2 do artigo 8º, na redacção da Lei nº 56/90, sob a epígrafe "regime transitório": "Os titulares, quando da entrada em vigor da presente lei, dos cargos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 1º, bem como, até ao fim do respectivo mandato, os então titulares dos cargos referidos nas alíneas i), j), l) e m), não estão abrangidos pelas incompatibilidades referidas na alínea a) do artigo 2º, continuando sujeitos ao regime de incompatibilidades vigente à data da entrada em vigor da presente lei".
Dispõe, por sua vez, o artigo 3º da Lei nº 56/90:
"1- O nº 2 do artigo 8º da Lei nº 9/90 [...] é aplicável aos presidentes e membros do conselho de administração de sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos, aos vogais da direcção de institutos públicos autónomos, e aos subdirectores-gerais e equiparados, titulares de tais cargos à data da publicação da presente lei.
"2- Os efeitos da presente lei reportam-se à data da entrada em vigor da lei nº 9/90, de 1 de Março, quanto aos titulares de cargos já abrangidos por aquela lei.
"3- Quanto aos restantes titulares, a presente lei só produz efeitos no prazo de 60 dias após a sua publicação.
17) O nº 4 do artigo 4º não sofreu, assim, alteração.
18) O nº 1 do artigo 8º, na redacção da Lei nº 56/90, corresponde, assim, sem alterações, ao nº 1 do artigo 10º, na redacção originária da Lei. Também o nº 3 do artigo 8º, relativo aos membros do Conselho de Comunicação Social, corresponde, sem qualquer alteração ao nº 3 do artigo 10º da versão inicial da Lei nº 9/90.
19) Publicado no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 37, de 3 de Junho de 1993, págs. 657 e seguintes, relativo ao Estatuto da Função Pública e integrando noventa e três artigos, distribuídos por sete capítulos: "Disposições Gerais"; "Incompatibilidades"; "Transferência do património, rendimentos e interesses dos titulares de cargos públicos"; "Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos"; "Financiamento dos partidos políticos"; "Transferência da utilização de fundos públicos e administração aberta"; e "Disposições transitórias e finais".
20) Publicado no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 41, de 17 de Junho de 1993, págs. 755 e seguintes, sobre o "regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos", constituído por catorze artigos, não epigrafados.
21) "Diário da Assembleia da República", I Série, nº 87, de 25 de Junho de 1993.
Vejam-se ainda, sobre estas iniciativas legislativas, os seguintes trabalhos preparatórios: - Relatórios e pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG), no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 44, págs. 821 e 822, respectivamente, no que se refere aos Projectos de Lei nºs 331/VI e 322/VI; - Relatório e texto final da CACDLG, relativo aos Projectos de Lei em apreço, no "Diário da Assembleia da República", II série-A, nº 46, de 7 de Julho de 1993, págs. 866 (3) e segs.; Rejeição da inclusão na ordem do dia da votação do texto final da CACDLG relativo aos Projectos de lei nºs 322/VI e 331/VI, no "Diário da Assembleia da República", I Série, nº 92, 3 de Julho de 1993, págs. 3070 e segs.; Proposta de aditamento no texto final elaborado pela CACDLG de um nº 2 ao artigo 12º, no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 47, de 16 de Julho de 1993, pág. 870; Aprovação, com votos a favor do PSD e contra do PS, do PCP, do CDS-PP e do deputado independente Mário Tomé, do texto final, elaborado pela CACDLG, relativo aos dois referidos projectos de lei, no "Diário da Assembleia da República", I Série, nº 93, págs. 3110 e segs., maxime, pág. 3117; - Decreto nº 131/IV, no "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº 49, de 30 de Julho de 1993, págs. 914 e segs.
22) Cujo nº 1, de conteúdo muito aproximado do que foi acolhido na Lei nº 64/93, dispunha o seguinte:
"Os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, à assembleia municipal, na primeira reunião desta, a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas".
23) Cfr. o Diário da Assembleia da República, I Série, nº 93, de 16 de Julho de 1993, pág. 3111.
24) Cfr. loc. cit. na nota anterior.
25) Veja-se também o nº 2 do referido artigo 4º, subordinado à epígrafe "Exclusividade".
26) Merece ainda referência o disposto no artigo 5º, sobre o regime aplicável após cessação de funções pelos titulares de cargos políticos.
27) É esta a diferença entre o artigo 6º da Lei e a correspondente disposição do "texto final" da CACDLG - cfr. supra, nota (22).
28) Numa apreciação de síntese, sobre a generalidade do diploma, escrevem FREITAS DO AMARAL e JOÃO CAUPERS, no já citado parecer: "Baseados na proclamação solene de louváveis princípios éticos mas empurrados pela força de realidades quantas vezes veladas, os deputados acabaram por produzir, em regime de marchas forçadas, um péssimo texto, no qual não se sabe se são mais de lamentar as ideias bizarras - como a atribuição de funções sancionatórias ao Tribunal Constitucional - se a incongruência da liberalização das acumulações dos autarcas, se, ainda, o "esquecimento" de um regime transitório".
29) A matéria relativa aos impedimentos é manifestamente apendicular, como facilmente se extrai do facto de ser em sede de "incompatibilidades" que se situam as dificuldades jurídicas colocadas à nossa consideração.
30) Disposição correspondente, no essencial, ao artigo 6º da Lei nº 9/90, na redacção da Lei nº 56/90 (e ao artigo 9º da mesma lei, na sua versão originária), com a óbvia diferença de, no contexto do diploma de 1990, a declaração a depositar na PGR (e o correlativo controlo por parte desta) se referir aos titulares dos cargos políticos e dos altos cargos públicos (todos os indicados no elenco do artigo 1º).
31) Nessa situação, as entidades competentes notificarão o titular do cargo para a apresentação da declaração no prazo de 30 dias, sob pena de, em caso de incumprimento culposo, incorrer em declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial - nº 1 do referido artigo 12º.
32) Cfr. o nº 2 do artigo 8º da Lei nº 9/90, na redacção da Lei nº 56/90.
33) Pense-se em alguém, "membro do conselho de gerência" de uma empresa pública com funções executivas, que, na vigência da Lei nº 9/90, fora investido nas funções de presidente do conselho fiscal de uma sociedade participada pela empresa pública, para cumprir um mandato que se prolongava à data da entrada em vigor da Lei nº 64/93. No domínio temporal da aplicação da Lei nº 9/90 (com as alterações introduzidas pela Lei nº 56/90), embora abrangido pela incompatibilidade (artigo 1º, nº 1, alínea l)], tinha a sua situação coberta por uma autorização, conferida ao abrigo do nº 4 do artigo 4º. Com a entrada em vigor da Lei nº 64/93, passou a ser abrangido pela regra da incompatibilidade (artigo 7º, nºs 1 e 3, este conjugado com o nº 4 do artigo 4º da Lei nº 9/90, na redacção da Lei nº 56/90, e 3º, 3º, alínea b)].
34) A matéria da "interpretação" tem ocupado com frequência a atenção deste corpo consultivo. Vejam-se a título de exemplo, os pareceres nºs. 12/81, publicado no BMJ, nº 307, págs. 52 e segs.; 92/81, publicado no "Diário da República", II Série, de 27 de Abril de 1982 e no BMJ nº 315, pág. 33 e segs.; 103/87, publicado no "Diário da República", II Série, de 6 de Junho de 1989; 61/91, de 14 de Maio de 1992; 66/92, de 27 de Novembro de 1992; 30/92, de 25 de Junho de 1992; e 38/92, de 10 de Março de 1992, inéditos.
35) MANUEL DE ANDRADE "Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis", págs. 21 e 26.
36) PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol. 2º, 5ª edição, pág. 130.
37) "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, págs. 58/59.
38) "Introdução ao direito e ao discurso legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs. 187 e segs.
39) "O Direito, Introdução e Teoria Geral", Lisboa, 1978, pág. 350.
40) "Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 3ª edição, Coimbra, 1978, págs. 127 e segs. e 138 e segs..
41) Ob. cit., pág. 230.
Veja-se também, acerca da problemática do "direito transitório", Oliveira Ascensão, loc.cit., págs. 416 e segs.
42) "Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias", "Cadernos de Ciência de Legislação", INA, nº 7, Abril-Junho de 1993, pág. 7 e seguintes, maxime, págs. 20 e 22.
43) Mas é sabido que o princípio da irretroactividade da lei não é absoluto, não tendo, de há muito, assento constitucional entre nós.
A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável está mesmo consagrada no artigo 29º, nº 4, da CRP e no artigo 2º do Código Penal. O nº 1 do artigo 12º do Código Civil admitiu igualmente, como se viu, a eficácia retroactiva de lei, quando dela claramente resulte.
Acontece, por outro lado, que a determinação do que seja eficácia retroactiva não é questão pacífica.
44) E. PIRES DA CRUZ, "Da aplicação das leis no tempo", 1940, págs. 200 e segs.
45) "Le Droit transitoire", Dalloz e Sirey, 1960, 2ª edição, pág. 223.
46) "Lições de Direito Administrativo", Coimbra, 1976, vol. I, págs.516 e segs.
47) "Introdução ao Estudo do Direito", Lisboa, 1988, vol. I, pág. 209.
48) Veja-se também BAPTISTA MACHADO, págs. 233 e segs. Para maiores desenvolvimentos, cfr., do mesmo autor, "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil", Livraria Almedina, Coimbra, 1968, págs. 95 e segs.
49) Se bem que o problema das lacunas seja tradicionalmente apresentado como um problema dirigido ao seu preenchimento, é óbvio que surge como questão prévia e, assim, prioritária, a da determinação ou apuramento da existência de lacunas. Questão de solução nem sempre simples, atenta a conhecida dificuldade de demarcação de fronteiras entre as actividades interpretativa e integradora. Veja-se sobre o assunto, bem como sobre a distinção entre lacunas "de lege lata" e lacunas "de lege ferenda", o parecer nº 73/91, de 9 de Janeiro de 1992, publicado no "Diário da República", II série, nº 111, de 14 de Maio de 1992.
50) Loc. cit., pág. 24 e segs.
51) OLIVEIRA ASCENSÃO, por exemplo, distingue quatro graus de retroactividade: extrema, quase extrema, agravada e ordinária - cfr. "O Direito...", pág. 442.
52) O autor, chamando, inclusivamente, à colação o artigo 282º, nº 3, da CRP, considera inconstitucional esta forma de retroactividade - cfr. loc. cit., pág. 25.
53) Loc. cit., págs. 226 e 227.
54) Loc. cit., pág. 27. Anteriormente, o autor formulara o entendimento de que "em termos de política legislativa, a retroactividade, mesmo quando admitida, deve ser evitada. A vida segue o seu curso e este, uma vez concretizado, gera quietude e confiança. O pretender alterar o passado, só por si, já representa uma perturbação social nociva, que o legislador só deverá encarar em casos de necessidade absoluta" - loc. cit, pág. 26.
55) Publicado no "Diário da República", 2ª Série, nº 184, de 10 de Agosto de 1990.
56) JORGE MIRANDA, anotando o acórdão, considerou que tal entendimento do Tribunal teria sido, porventura, precipitado ou incorrecto, - cfr. "O Direito", Ano 124º, 1992, I-II (Janeiro-Junho), pág. 361 e segs.
57) Publicado no "Diário da República", I série-A, nº 18, de 22 de Janeiro de 1993.
58) Publicado no "Diário da República" II Série, nº 42, de 20 de Fevereiro de 1991, sobre matéria sem conexão com a relativa ao regime de incompatibilidades.
59) Aliás, os nºs 4 e 5 do artigo 269º da CRP estabelecem o princípio da excepcionalidade da acumulaçãode cargos públicos, remetendo para a lei quer a determinação dos casos em que essa acumulação é autorizada, quer a fixação das incompatibilidades entre o exercício de cargos públicos e o desempenho de outras funções.
60) Em tal sentido se orienta, como se disse, a posição perfilhada no parecer de Freitas do Amaral e de João caupers.
61) "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 153, que, neste ponto, se acompanha.
62) Cfr. o número já indicado da revista "O Direito", pág. 262.
63) Acórdão do TC nº 50/88, de 3 de Março de 1988, publicado no "Diário da República", II Série, nº 188, de 16 de Agosto de 1988.
A concretização do princípio da confiança em norma de decisão com semelhante conteúdo essencial, encontra-se já na jurisprudência da Comissão Constitucional - cfr., v.g., Parecer nº 14/82, in "Pareceres da Comissão Constitucional", vol. 19, pág. 195.
Sobre o princípio da protecção da confiança, vejam-se os Pareceres deste corpo consultivo nºs 102/85, de 10 de Outubro de 1985, publicado no Diário da República, nº 285, de 11 de Dezembro de 1985, 16/92, de 23 de Abril de 1992, 56/92, de 27 de Novembro de 1992, e 5/93, de 11 de Julho de 1993, ainda inéditos.
64) Acórdão do TC nº 259/88, de 9 de Novembro de 1988, in "Diário da República", II Série, nº 35, de 11 de Fevereiro de 1989.
Vejam-se ainda os elementos recenseados no Parecer nº 16/92, já indicado, mormente no ponto VI, 2, e na nota (45).
65) Cfr. BAPTISTA MACHADO, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", págs. 202 e segs. 
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART18 ART269.
L 9/90 DE 1990/03/01.
L 56/90 DE 1990/11/05.
L 64/93 DE 1993/08/26.
CCIV66 ART9 ART12.
Jurisprudência: 
AC TC 50/88 DE 1988/03/03.
AC TC 259/88 DE 1988/11/09.
AC TC 256/90 DE 1990/07/26.
AC TC 473/92 DE 1992/12/10.
Referências Complementares: 
DIR ADM * FUNÇÃO PUBL / DIR CONST * ORG PODER POL / DIR CIV.
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