Senhor Ministro da Defesa Nacional ,
Excelência:
I
Para ser emitido pela Procuradoria-Geral o parecer a que se refere o nº 4º do artigo 2º do Decreto–Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, determinou Vossa Excelência o envio do processo relativo ao Sargento Ajudante de Infantaria da GNR nº (...), (...).
Cumpre, pois, emiti-lo.
II
Do processo extrae-se, com relevo, a seguinte matéria de facto:
- No dia 23/Novembro/88, quando o requerente se encontrava integrado na formatura geral na parada do Centro de Instrução da GNR, na Ajuda, foi atingido por um projéctil e vários estilhaços resultante de disparos inesperadamente efectuados por outro militar da GNR (o Cabo nº (...), (...) que se encontrava posicionado sensivelmente num dos cantos da parada com uma caçadeira e um colete de caça.
- O referido militar disparou continuadamente durante alguns minutos sobre os militares que se encontravam em formatura obrigando estes a projectarem-se no solo e a procurarem abandonar a parada.
- O militar autor dos vários disparos acabou por utilizar uma pistola de que era portador disparando contra si próprio.
- Em consequência deste comportamento, resultaram ferimentos em vários militares (20 – oficiais, sargentos, cabos e soldados), entre os quais o requerente.
- O requerente sofreu várias lesões e consequências destas (“lesões do nervo ciático externo e interno com crises média”; “rigidez tíbio-társica direita”, cicatrizes do pé direito com dificuldade de marcha”; “cicatriz que prejudicam ambos os membros inferiores” e “psicose pós-traumática”) que lhe determinaram um grau de desvalorização permanente de 64,48%.
III
Dispõe o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 43/76 ([1]):
«2. É considerado deficiente das forças armadas portuguesas o cidadão que:
No cumprimento do serviço militar e na defesa dos interesses da Pátria adquiriu uma diminuição da capacidade geral de ganho;
quando em resultado de acidente ocorrido:
Em serviço de campanha ou em circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha, ou como prisioneiro de guerra;
Na manutenção da ordem pública;
Na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública; ou
No exercício das suas funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores;
vem a sofrer, mesmo a posteriori, uma diminuição permanente, causada por lesão ou doença, adquirida ou agravada, consistindo em:
Perda anatómica; ou
Prejuízo ou perda de qualquer órgão ou função;
tendo sido, em consequência, declarado, nos termos da legislação em vigor:
Apto para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez; ou
Incapaz do serviço activo; ou
Incapaz de todo o serviço militar.»
E acrescenta o artigo 2.º, n.º 1, alínea b):
«1. Para efeitos da definição constante do n.º 2 do artigo 1.º deste decreto-lei, considera-se que:
a) (...)
b) É fixado em 30% o grau de incapacidade geral de ganho mínimo para o efeito da definição de deficiente das forças armadas e aplicação do presente decreto-lei.»
Os nºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo 2.º esclarecem:
«2. O “serviço de campanha ou campanha” tem lugar no teatro de operações onde se verifiquem operações de guerra, de guerrilha ou de contraguerrilha e envolve as acções directas do inimigo, os eventos decorrentes da actividade indirecta do inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade terrestre, naval ou aérea de natureza operacional.
3. As “circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha” têm lugar no teatro de operações onde ocorram operações de guerra, guerrilha ou de contraguerrilha e envolvem os eventos directamente relacionados com a actividade operacional que pelas suas características impliquem perigo em circunstâncias de contacto possível com o inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade de natureza operacional, ou em actividade directamente relacionada, que pelas suas características próprias possam implicar perigosidade.
4. “O exercício de funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores” engloba aqueles casos especiais, aí não previstos ([2]), que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito desta lei.
A qualificação destes casos compete ao Ministro da Defesa Nacional, após parecer da Procuradoria-Geral da República.»
2. O Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro, procedeu ao «alargamento do regime jurídico dos DFA aos casos que, embora não relacionados com campanha ou equivalente, justifiquem, pelo seu circunstancialismo, o mesmo critério de qualificação» ([3]).
Entre tais situações encontram-se aquelas que são definidas nas referidas disposições dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º, n.º 4, como resultantes de acidente ocorrido no exercício de funções e deveres militares, e por causa desse exercício, em circunstâncias que envolvam um risco agravado equiparável ao que é inerente às restantes actividades expressamente mencionadas na lei: serviço de campanha, prisioneiro de guerra, manutenção da ordem pública, prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública.
Este corpo consultivo tem interpretado as disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 43/76 no sentido de que «o regime jurídico dos deficientes das Forças Armadas, para além das situações expressamente contempladas no primeiro preceito – de serviço de campanha ou em circunstâncias com ela relacionadas, de prisioneiro de guerra, de manutenção da ordem pública e de prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública – só é aplicável aos casos que, pelo seu circunstancialismo, justifiquem uma equiparação, em termos objectivos, àquelas situações de facto, dado corresponderem a actividades próprias da função militar ou inerentes à defesa de altos interesses públicos, importando sujeição a um risco que, excedendo significativamente o que é próprio do comum das actividades castrenses, se mostra agravado em termos de se poder equiparar ao que caracteriza aquelas situações paradigmáticas».
«Assim implica esse regime não só que o acidente tenha ocorrido em serviço, mas também que a actividade militar que o gera envolva, por sua natureza, objectiva e necessariamente, um risco agravado em termos de poder equiparar-se ao que decorre em situações de campanha ou a elas por lei igualadas.» ([4])
«Este corpo consultivo tem vindo a entender, uniformemente, em sucessivos pareceres, que, na interpretação das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de Janeiro, para além das situações expressamente previstas na lei, o regime jurídico dos deficientes das Forças Armadas só é aplicável nos casos em que haja um risco agravado necessário, implicando uma actividade arriscada por sua própria natureza e que, pela sua índole e considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes, se identifiquem com o espírito da lei, equiparando-se às situações de campanha ou equivalente.
«Como já se salientou, o privilégio do regime dos deficientes das Forças Armadas tem, ínsita, a ideia de recompensar os que se sacrifiquem pela Pátria.
«Não basta, por isso, o mero exercício de funções e deveres militares para que se estabeleça tal equiparação, tornando-se indispensável que no seu desempenho ocorra risco equiparável às situações de campanha ou equivalente, ou seja, às previstas nos três primeiros itens do n.º 2 do artigo 1.º.
«Exige-se uma actividade de risco agravado, superior ao risco genérico que toda a actividade militar encerra, risco a valorar em sede de objectividade, pois se mostra incompatível com circunstâncias ocasionais e imprevisíveis.»
3. Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 351/76, de 13 de Maio, as disposições do Decreto–Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro são extensíveis aos militares da Guarda Nacional Repúblicana.
IV
Como se verifica pelos factos provados, o acidente de que foi vítima o requerente ocorreu num contexto de circunstâncias meramente fortuitas ou ocasionais, e inteiramente motivado por acto de terceiro.
Embora considerado em serviço, o referido acidente não pode, pelas suas próprias características ocasionais, ser considerado com o nível de relevância circunstancial e causal pressuposto pela aplicação do regime próprio dos deficientes das Forças Armadas.
O acidente, como se verifica, ocorreu num quadro de circunstâncias perfeitamente fortuito, por causa de comportamento de feição exclusivamente pessoal e da responsabilidade de um terceiro (acto pessoal, motivado certamente por graves problemas emocionais e psicológicos) e, por isso, sem qualquer ligação com o risco específico próprio da actividade de militar da GNR.
O acidente de que foi vítima o requerente não ocorreu, assim, em situação de risco agravado prevista no artigo 1º, nº 2, e artigo 2º, nº 4 do Decreto–Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro ([5]).
V
Pelo exposto se conclui:
O acidente ocorrido em 23/Nov/88, que afectou o Sargento Ajudante de Infantaria da GNR nº(...), (...), foi produzido em circunstâncias meramente ocasionais, provenientes de um acto voluntário e isolado de terceiro, sem relação com qualquer risco específico próprio da actividade militar, não sendo, por isso, enquadrável no disposto no nº 4 do artigo 2º do Decreto–Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, com referência ao artigo 1º, nº 2, deste diploma legal.
([1]) O artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 43/76 foi recentemente alterado pela Lei n.º 46/99, de 16 de Junho, visando o apoio às vítimas de stress pós-traumático de guerra. Nos termos do artigo 1.º desta Lei, os nºs 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 43/76 permaneceram inalterados, foi introduzido um novo n.º 3 e o anterior n.º 3 passou a constituir o novo n.º 4.
([2]) Redacção rectificada por Declaração publicada no Diário da República, I Série, 2.º Suplemento, de 26 de Junho de 1976.
([3]) Do preâmbulo do diploma.
([4]) Dos pareceres n.º 55/87, de 29.07.87, e n.º 80/87, de 19.11.87, homologados mas não publicados, reflectindo orientação uniforme desta instância consultiva. Cfr. também os pareceres nºs 10/89, de 12.04.89, 33/91, de 24.04.91, 47/94, de 24.11.94, 46/95, de 12.10.95, 71/96, de 23.01.97, 4/97, de 6.03.97, 39/98, de 15.06.98, 19/99, de 29.04.99.
[5]) Cfr. v.g., Parecer deste Conselho nº 126/90, de 21/Dez/90.