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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
67/1996, de 20.03.1997
Data do Parecer: 
20-03-1997
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério das Finanças
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CONFIDENCIALIDADE
NEXO CAUSAL
ADMINISTRAÇÃO FISCAL
INTERRUPÇÃO
ACESSO À INFORMAÇÃO
CAUSA DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE
CULPA
DOLO
SEGREDO PROFISSIONAL
ERRO SOBRE A ILICITUDE
SEGREDO FISCAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
DADOS PESSOAIS
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
CONFLITO DE DIREITOS
CRIME
FUNCIONÁRIO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
VIOLAÇÃO
MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
TUTELA PENAL
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE
ILICITUDE
CAUSALIDADE ADEQUADA
Conclusões: 
1- A confidencialidade fiscal, e o segredo profissional fiscal, plasmados no artigo 17, alínea d), do Código de Processo Tributário e no artigo 27 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), levando implicada a confiança entre o cidadão e a Administração Fiscal, privilegia essencialmente a tutela da intimidade da vida privada, valor com assento constitucional - artigos 26, ns 1 e 2, 35, ns 2 e 3, e 268, n 2, da lei fundamental;
2- No capítulo específico da informação sujeita a tratamento automatizado, nomeadamente, é proibido o acesso a ficheiros e registos informáticos para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, bem como a respectiva interconexão e utilização para finalidade diferente da que determinou a sua recolha, salvo nos casos excepcionais previstos na lei e mediante controlo e autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (CNPDPI) - artigo 35, n 2, da Constituição; artigos 4, n 1, 8, alíneas c), d) e f), e 15, da Lei n 10/91, de 29 de Abril;
3- Em protecção dos dados aludidos na conclusão 2., o artigo 32, ns 1 e 2, da Lei n 10/91 sujeita, inclusivamente, a sigilo profissional, mesmo após a termo das suas funções, os responsáveis peloa ficheiros automatizados, bases e bancos de dados, assim como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais neles registados, sem exeptuar os próprios membros da Comissão Nacional, mesmo após o fim do mandato;
4- O funcionário que, sem estar devidamente autorizado, revele segredo profissional fiscal, comete o crime previsto e punido pelo n 3 do artigo 27, desde que verificados os requisitos de imputação objectiva e subjectiva densificados no ponto III da parte expositiva do presente parecer;
5- Constitui violação de segredo fiscal, para efeitos do citado artigo 27, n 3, a divulgação ou transmissão, por parte da Administração Fiscal, a outros órgãos da Administração Pública, de dados relativos à situação tributária dos contribuintes, salvo quando exista norma especial de que resulte o dever de prestar essa colaboração;
6- A divulgação pública de segredo profissional fiscal através de meios de comunicação social, na prática de crime previsto no n 3 do artigo 27 do RJIFNA, importa, designadamente, a agravação modificativa da pena nele prevista, nos termos do artigo 25, n 2 alínea b), da Lei de Imprensa;
7- Na hipótese, configurada na consulta, de o crime previsto no n 3 do artigo 27 ainda não ter sido cometido e nem sequer se haver iniciado a sua execução são inaplicáveis as medidas cautelares e de garantia prevenidas no Código de Processo Penal;
8- A viabilidade de recurso, nessa situação, a providências cautelares não especificadas - artigos 381 e segs. do Código de Processo Civil - depende das circunstâncias de facto em concreto emergentes.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Ministro das Finanças,

Excelência:


I


Dignou-se Vossa Excelência solicitar parecer a este Conselho Consultivo, com carácter de urgência, "sobre o enquadramento jurídico da violação de segredo fiscal previsto no artigo 27º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras", que dispõe o seguinte:


"Artigo 27º

Violação de segredo fiscal


1- O dever de sigilo sobre a situação tributária dos contribuintes é inviolável, determinando a lei os casos em que a divulgação do segredo fiscal é legítima.


2- Quem, sem justa causa e sem consentimento de quem de direito, dolosamente revelar ou se aproveitar do segredo fiscal de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas será punido, se a revelação ou o aproveitamento puderem causar prejuízo ao Estado ou a terceiros, com prisão até um ano ou multa até 240 dias.


3- O funcionário que, sem estar devidamente autorizado, revele segredo de que teve conhecimento ou que lhe foi confiado no exercício das suas funções com a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo do interesse público ou de terceiros será punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias" (1).


Motivando a consulta, pondera Vossa Excelência:


"O actual regime legal sobre o segredo fiscal tem criado dificuldades sérias no que diz respeito à imputação de responsabilidades decorrentes da sua violação, muito em especial nos termos actuais em que se verifica uma grande agressividade dos órgãos de comunicação social no tratamento destas matérias.


"A nova redacção do artigo 27º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), introduzida pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, vem distinguir, nos seus nºs 2 e 3, as situações de violação de segredo fiscal consoante sejam cometidas, respectivamente, pela generalidade dos cidadãos ou por funcionários."


As questões seguidamente recortadas para serem apreciadas pelo Conselho, à luz do normativo transcrito e dos considerandos precedentes, são estas:


"a) De que forma é estruturada pela nossa lei penal fiscal a imputação objectiva e subjectiva da violação do segredo fiscal por funcionários?


"b) Qual o perímetro do segredo fiscal nas relações inter--orgânicas da Administração Pública?


"c) Poderá haver violação do segredo fiscal nas relações inter--orgânicas da Administração Pública?


"d) O segredo fiscal impede a divulgação pela Administração Fiscal de elementos integrantes do seu conteúdo a outros órgãos da Administração Pública?


"e) Quais as consequências da divulgação pública de elementos abrangidos pelo segredo fiscal por parte de órgãos ou agentes da Administração Pública, em especial quando o meio utilizado se enquadre no conceito de "meios de comunicação social"?


"f) Em caso de conhecimento prévio por parte da Administração Fiscal de que determinado indivíduo ou entidade se prepara para consumar actos que importem a consumação do crime previsto no artigo 27º do RJIFNA, poderá esta lançar mão de providências cautelares? Quais e em que termos?


"g) A divulgação pública, através dos meios de comunicação social, ou não, constituirá condição objectiva de punibilidade ou antes circunstância agravante da medida da culpa para efeitos do artigo 27º do RJIFNA?"


Trata-se, obviamente, de um elenco problemático muito vasto, em virtude do número de questões equacionadas, mas, sobretudo, pela amplitude e generalidade das sínteses propostas.


Não poderia, consequentemente, existir a presunção, até pelos condicionalismos da urgência, de lhes conceder um tratamento exaustivo.


Haverá, portanto, que cingir o estudo das questões à sua essencialidade nuclear, e sempre numa óptica de inevitável abstracção, a qual apenas seria possível concretizar se viessem particularizadas as dificuldades práticas subjacentes à consulta.


Uma derradeira nota.




A temática em causa foi de algum modo abordada e estudada, por último, no parecer deste corpo consultivo nº 20/94 (2), tirado a pedido de Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e ainda pendente de homologação.


Não se estranhará, neste quadro, o privilegiado relevo concedido ao mesmo nas páginas subsequentes, tanto mais que a doutrina do Conselho resultou, em quanto aqui importa, sufragada por unanimidade.


Tal o circunstancialismo em que se emite o presente parecer.




II


1. O artigo 27º do RJIFNA enuncia, portanto, um princípio de inviolabilidade do dever de sigilo sobre a situação tributária dos contribuintes, conferindo-lhe a dignidade de valor jurídico-criminalmente protegido.


Como se compreende a existência de um semelhante segredo?


A Administração Pública numa acepção material - actividade típica desenvolvida no interesse geral da colectividade, com vista à satisfação regular e contínua de necessidades colectivas (3) - reveste na época actual a maior complexidade.


E os serviços administrativos em que se estrutura, para cumprirem o desiderato constitucional plasmado no artigo 266º da lei fundamental - "a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos" -, carecem de organização e apetrechamento adequados à conjuntura de crescente sofisticação e exigência entretecida no seio da sociedade civil.


Deve, nomeadamente, a sua eficiência, regida por "coordenadas de legalidade e transparência", ser incentivada e valorada, sob pena de disfunções no sistema, por critérios de abertura às solicitações que lhes vão endereçadas.


O que, considerada a estreita dependência dos serviços relativamente às "impulsões" do meio social, implica a disponibilidade de circuitos pluridireccionais vocacionados frente às necessidades da informação, quer em sentido ascendente - visando a orientação aperfeiçoada da actividade administrativa -, quer descendente - o acesso dos cidadãos aos dados que os habilitem a reger o seu próprio comportamento (4).


Uma vez mais, esta segunda vertente da informação no serviço público vai encontrar expressão normativa de primeiro grau na Constituição da República.


O artigo 37º, acolhendo a "liberdade de expressão e informação", dispõe no seu nº 1 que todos têm "o direito de informar, de se informar e de ser informados (...) sem impedimentos nem discriminações", direitos cujo exercício - acrescenta o nº 2 - "não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura".


Por seu turno, o artigo 48º, ao definir os parâmetros fundamentais da "participação na vida pública", preceitua que todos os cidadãos têm "o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos".


O artigo 268º, ainda, no Título especialmente dedicado à Administração Pública, confere a todos os cidadãos o direito de serem "informados pela Administração sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas" (nº 1), e, em geral, "o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas" (nº 2).


Observe-se, a propósito, que o Código do Procedimento Administrativo veio recentemente dar tradução infraconstitucional às directrizes da lei básica, enunciando os princípios da "colaboração da Administração com os particulares" (artigo 7º), da "participação" destes na formação das decisões que lhes digam respeito (artigo 8º), da "desburocratização e da eficiência" (artigo 10º) e regulando, em capítulo autónomo, as manifestações mais frisantes do "direito à informação", entre as quais a denominada "administração aberta" que flui directamente do artigo 268º, nº 2, da Constituição:


"Artigo 65º

Princípio da administração aberta


1- Todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo que não se encontre em curso qualquer procedimento que lhes diga directamente respeito, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas.


2- O acesso aos arquivos e registos administrativos é regulado em diploma próprio."(5)


Na complexidade, porém, das relações, valores, direitos, interesses e deveres que se entrecruzam na vida em sociedade, a harmonização ou conjugação das normas constitucionais citadas passa pela ponderação dos seus "limites imanentes" (6).


E na medida em que estes se não encontrem univocamente previstos terá que se averiguar, com recurso à via interpretativa, "se a esfera normativa do preceito em causa inclui ou não uma certa situação ou modo de exercício, isto é, até onde vai o domínio de protecção (a hipótese) da norma".


Assim discorre VIEIRA DE ANDRADE, para logo acrescentar:


"Se num caso concreto se põe em causa o conteúdo essencial de outro direito, se se atingem intoleravelmente a moral social ou valores e princípios fundamentais da ordem constitucional, deverá resultar para o intérprete a convicção de que a protecção constitucional do direito não quer ir tão longe. E, então, o direito tem de respeitar os direitos dos outros, os princípios fundamentais ou as leis, porque não restringem o seu âmbito, tal como é constitucionalmente protegido" (7).


Precisando, por outras palavras, podem perfilar-se conflitos entre os direitos ou interesses legítimos dos administrados e os interesses da Administração, ou de terceiros, confiados à guarda desta.


Na falta de preceito legal que fixe os termos da conciliação, os limites hão-de ser encontrados em face dos "princípios informadores das disposições que regulam o acesso".


A dialéctica esboçada é, como bem se entende, terreno fértil ao surgimento de "obstáculos à informação livre, os segredos", implicando "uma valoração prévia do binómio informação/interesse e uma subsequente opção", necessariamente "fruto da ponderação dos interesses" conflituantes.


Um conjunto de "normas relacionais" procura, ademais, conjugar esses interesses, "seja enumerando os interesses protegidos pelo segredo administrativo, seja elaborando o paradigma a que há-de obedecer a protecção do interesse pela livre circulação da informação".




2. No quadro teleológico descrito se insere uma provisão de protecção da informação tal como consubstanciada no artigo 27º do RJIFNA, específica emanação, no peculiar domínio da administração fiscal, dos parâmetros que vêm de se teorizar genericamente quanto à Administração Pública encarada no seu todo.


Também, com efeito, nesse mais restrito e especializado domínio se subordina a actividade da Administração "ao interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos", e ao "princípio da legalidade" - artigos 16º e 17º, alínea a), do Código de Processo Tributário (CPT).


Também aí se garante aos administrados, entre outros, um "direito à informação" (artigo 20º).


De certo modo em contraponto, a actividade tributária deve, contudo, nos termos do artigo 17º alínea d), respeitar a "confidencialidade dos dados relativos à situação tributária dos contribuintes".


Salta aos olhos a nítida conexão entre o artigo 17º, alínea d), do CPT e o artigo 27º do RJIFNA, sendo a violação de um flagrantemente sancionada à base do outro.


Debruçando-se especialmente sobre o primeiro preceito - doutrina mutatis mutandis aplicável ao segundo -, este corpo consultivo considerou que a confidencialidade fiscal, levando implicada a confiança entre os cidadãos e a Administração, privilegia essencialmente a tutela da intimidade privada (8).


Chamando, com efeito, à colação o artigo 26º, nºs 1 e 2, da Constituição (9), ponderou, desde logo, que a reserva constitucional assegurada nos incisos se traduz em impedimento, quer ao acesso de estranhos, quer à divulgação a outrem de informações disponíveis àcerca da vida privada e familiar das pessoas.


Concluiu, por outro lado, ficarem abrangidas, não apenas as informações de natureza estritamente pessoal, mas ainda as referentes à situação económico-financeira, ao património e aos actos jurídico-negociais incidentes sobre este.


Deu-se, por conseguinte, como assente a inclusão, na esfera da intimidade da vida privada, dos dados informativos concernentes à situação tributária dos contribuintes.




3. Admitindo, ademais, o Conselho que uma significativa parte destes elementos de natureza fiscal estejam informatizados, recordou proibições vertidas nos nºs 2 e 3 do artigo 35º da lei básica, garantindo, na opinião dos autores, a intimidade da vida privada:


"Artigo 35º

(Utilização da informática)

1. (..).


2 É proibido o acesso a ficheiros e registos informáticos para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros e respectiva interconexão, salvo em casos excepcionais previstos na lei.


3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se trate do processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.


4. A lei define o conceito de dados pessoais para efeitos de registo informático, bem como de bases e bancos de dados e respectivas condições de acesso, constituição e utilização por entidades públicas e privadas.


5. (..)


6. (…)"


Claramente ressalta dos nºs 2 e 4 que a protecção dos dados informatizados não é absoluta.


A proibição de acesso a registos e ficheiros informáticos para conhecimento de dados pessoais e respectiva interconexão cede nos casos excepcionais previstos na lei, definindo esta o conceito de dados pessoais, bases e bancos de dados, assim como as condições de acesso, constituição e utilização por entes públicos e privados.


Foi a Lei nº 10/91, de 29 de Abril, que se desincumbiu destas tarefas (10).


Analisado o respectivo articulado no parecer que se vem seguindo, seleccionaram-se os seguintes aspectos de regime, também com relevo no âmbito da presente consulta:


a) consideram-se "dados pessoais", para efeitos de registo informático, "quaisquer informações relativas a pessoa singular identificada ou identificável"; sendo "dados públicos" os "dados pessoais constantes de documento público oficial, exceptuados os elementos confidenciais, tais como a profissão e a morada, ou as incapacidades averbadas no assento de nascimento" (artigo 2º, alíneas a) e b), respectivamente);


b) não pode, em princípio, ser admitido o tratamento automatizado de dados pessoais referentes à vida privada e situação patrimonial e financeira (artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b)); o que não obsta à existência de ficheiros informatizados em matéria fiscal (v.g., IVA, IRS, IRC);


c) é instituída uma Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (CNPDPI), para "controlar o processamento automatizado de dados pessoais, em rigoroso respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades e garantias consagradas na Constituição e na lei (artigo 4º, nº 1), cabendo-lhe, designadamente (artigo 8º):


- autorizar, "nos casos excepcionais previstos na presente lei e sob rigoroso controlo, a utilização de dados pessoais para finalidades não determinantes da recolha", bem assim a "interconexão de ficheiros automatizados, de bases e bancos de dados contendo dados pessoais" (alíneas c) e d));


- "fixar genericamente as condições de acesso à infor-mação" (alínea f));


d) qualquer pessoa "tem o direito de ser informada sobre a existência de ficheiro automático, base ou banco de dados pessoais que lhe respeitem" e, bem assim, o direito, em princípio, de aceder às informações sobre ela registadas nesses suportes (artigos 13º, nº 1, e 27º);


e) os dados pessoais não podem ser utilizados para finalidade diferente da que determinou a sua recolha, salvo autorização concedida por lei (artigo 15º);


f) estão sujeitos a sigilo profissional, mesmo após o termo das funções, os responsáveis pelos ficheiros automatizados, bases e bancos de dados, assim como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais neles registados, incluindo os próprios membros da CNPDPI e depois do fim do mandato (artigo 32º, nºs 1 e 2);


g) dever de fornecimento das informações obrigatórias, nos termos legais, excepto constando de ficheiros organizados para fins estatísticos (artigo 32º, nº 3).


Resta acrescentar que o sigilo informático foi dotado de específica protecção penal vertida nos artigos 41º e segs. do diploma em apreço, que não serão objecto de especial estudo no presente parecer.


Aliás, a complexa análise das relações entre estes preceitos, por um lado, e o artigo 27º, nº 3, do RJIFNA, que polariza as preocupações expressas na consulta, por outro, transcenderia os limites desta e os condicionalismos da urgência.


Conclui-se, em resumo, do artigo 35º da Constituição e da Lei nº 10/91 que os dados pessoais registados nos ficheiros, bases e bancos de dados regulados neste último diploma são, em princípio, inacessíveis a terceiros, apenas podendo ser utilizados para finalidade diferente da que presidiu à sua recolha nos casos excepcionais previstos na lei.


Mas, mesmo aqui, a utilização desses dados depende da autorização da CNPDPI, a quem cabe igualmente definir as condições de acesso às informações respectivas.




4. Permita-se neste momento breve pausa de reflexão.


A tensão dialéctica direitos dos administrados/interesses da Administração Fiscal propicia, no campo da informação concernente aos dados relativos à situação tributária dos cidadãos, a criação de situações de conflitualidade características, cuja resolução passa, tendencialmente, pela prevalência conferida a um dos pólos da relação, ou pela conciliação dos interesses em rota de colisão: de um lado, os administrados e suas pretensões de acesso a elementos informativos valiosos na vida relacional; do outro, a Administração interessada, e vocacionada, para a preservação desses dados, seja prosseguindo especificamente escopos funcionais, seja em fidelidade à privacidade e à confiança pressupostas na detenção das informações.


A Constituição e as leis, em homenagem à dignidade e apreciabilidade dos interesses em confronto, configuram mecanismos intencionalmente dirigidos à sua composição, acima passados em revista.


Define-se, inclusivamente, um segredo profissional fiscal, dotando-o de tutela penal reputada ajustada pela política legislativa, tal como no artigo 27º do RJIFNA.


Um conjunto de questões enunciadas na consulta visa, justamente, densificar a protecção penal vertida nesse normativo.


É o passo que seguidamente se ensaiará.




III


Eis a primeira questão:


"a) De que forma é estruturada pela nossa lei penal fiscal a imputação objectiva e subjectiva da violação do segredo fiscal por funcionários?"




1. Enquanto a imputação objectiva sugere indagação ao nível da tipicidade, a imputação subjectiva aponta para o domínio da culpa.


Iremos, pois, considerar em separado os dois aspectos.


Recorde-se, porém, desde já, o teor do artigo 27º do RJIFNA.


O nº 1 limita-se a uma declaração de princípio acerca da inviolabilidade do dever de sigilo sobre a situação tributária dos contribuintes - salvo nos casos em que, segundo a lei, é legítima a divulgação do segredo.


Em rigor, o inciso não fará parte, propriamente, da descrição penal típica, desde logo porque o dever de sigilo nele considerado inviolável há-de resultar configurado noutros preceitos legais.


Neste sentido, deu-se oportunamente relevo ao artigo 17º, alínea d), do CPT - "confidencialidade dos dados relativos à situação tributária dos contribuintes".


Na primeira parte do parecer houve, por outro lado, o ensejo de recensear e analisar um certo número de disposições delineando deveres de sigilo fiscal, maxime no capítulo dos dados sujeitos a tratamento automatizado.


Em todo o caso, o nº 1 aflora o valor ou bem jurídico protegido mediante a incriminação, ou seja, o segredo fiscal, cuja ratio essendi radica, por seu turno, como se viu, na tutela da confiança e da intimidade da vida privada da pessoa a que os dados respeitam.


O nº 2 do artigo 27º, acolhendo praticamente ao pé da letra o tipo legal do artigo 184º do Código Penal de 1982(cfr. os artigos 195º e segs. do Código Penal vigente), descreve um crime de violação de sigilo fiscal susceptível de ser cometido por qualquer pessoa.


Não nos ocuparemos dele especialmente, uma vez que a questão posta se restringe aos crimes próprios dos funcionários.


É o nº 3 do artigo 27º que contém a descrição típica desses crimes, aliás numa transposição ipsis verbis do tipo do artigo 433º, nº 1, do Código Penal de 1982, salvo no tocante à punição (cfr. o artigo 383º do Código Penal em vigor):




"Artigo 27º

Violação do segredo fiscal


1 - (...)

2 - (...)

3 - O funcionário que, sem estar devidamente autorizado, revele segredo de que teve conhecimento ou que lhe foi confiado no exercício das suas funções com a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo do interesse público ou de terceiros será punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias."


Passe-se então aos dois aspectos implicados na questão formulada.

2. Como se sabe, a acção que está na base do crime é um conceito de valor - a conduta como negação de valores ou interesses pelo homem.


Mas o crime não é só negação de valores, mas a negação de certos valores, os valores jurídico-criminais.


A negação dos valores jurídico-criminais constitui a ilicitude criminal, sede em que releva o problema de saber qual a fonte dos específicos valores a cuja tutela tende o direito criminal mediante as reacções que lhe são próprias.


É ideia adquirida nos modernos sistemas jurídico-criminais a de que os seus juízos valorativos devem ser formulados de maneira tanto quanto possível precisa e exacta, não podendo, por isso, essa valoração ser confiada às concepções jurídico-filosóficas perfilhadas individualmente pelo julgador.


Estão em causa, além do mais, a certeza e a segurança do direito, com delicadas incidências, neste domínio, ao nível de direitos fundamentais do homem.


Para conferir praticabilidade a este pensamento, a técnica legislativa engendrou o mecanismo do denominado "tipo legal do crime".


No tipo legal descreve então o legislador aquelas "expressões da vida humana" que em seu critério encarnam, precisamente, a "negação dos valores jurídico-criminais", que violam, portanto, os "bens ou interesses jurídico-criminais".


Nos tipos legais de crimes "vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos", neles formula "de maneira típica a antijuridicidade, a ilicitude criminal". E, uma vez assim formulados, "impõe-os ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida" para lhes poder atribuir qualidade jurídico-criminal.


Os elementos assim constitutivos do tipo podem, aliás, ser de natureza muito diversa: objectivos e subjectivos, puramente descritivos ou normativos, e até, em regime próprio, como adiante se dirá, condições objectivas de punibilidade e de procedibilidade.


É nisto que consiste a tipicidade criminal, ligada ao princípio "nullum crimen sine lege", que em certos sistemas, como o nosso, alcançou foros de garantia constitucional (11).


A tipicidade jurídico-criminal constitui, com efeito, exigência de primeiro grau da Constituição penal, ínsita no princípio da legalidade em sentido amplo plasmado no artigo 29º, nº 1:




"Artigo 29º

(Aplicação da lei criminal)


1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

(…)»


O artigo 1º do Código Penal estatui, correspondentemente, na vertente que importa considerar:


.

"Artigo 1º

(Princípio da legalidade)


1. Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.


2. (…)


3. Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, (...) (...)."


Neste conspecto, o princípio da tipicidade significa nuclearmente «que a própria lei deve especificar clara e suficientemente os factos em que se desdobra o tipo legal do crime" (12), com subordinação aos seguintes requisitos fundamentais: "suficiente especificação do tipo de crime (...) tornando ilegítimas as definições vagas, incertas, insusceptíveis de delimitação"; "proibição da analogia na definição de crimes"; "exigência de determinação de qual o tipo de pena que cabe a cada crime, sendo necessário que essa conexão decorra directamente da lei" (13).


O princípio exclui, pois, "tanto as fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crimes, como as penas indefinidas ou de moldura tão ampla, que em tal redunde" (14).


Facilmente se compreende, por todo o exposto, a importância, na teoria do crime, da tipicidade, sendo o seu preenchimento indispensável à imputação objectiva da infracção, e a importância, por isso, da análise acerca dos elementos constitutivos do tipo legal do nº3 do artigo 27º.


Vejamo-los.




2.1. Em primeiro lugar, exige-se que o autor do facto seja funcionário.


Trata-se, pois, de um crime específico que - abstraindo de formas de comparticipação (cfr. o artigo 28º do Código Penal) - não pode ser cometido por pessoa desprovida daquela qualidade.


Que deve entender-se por funcionário para os efeitos em questão?


Responde hoje o artigo 386º do Código Penal vigente:


"Artigo 386

(Conceito de funcionário)


1. Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

a) O funcionário civil;

b) O agente administrativo; e

c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

2. Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.

3. A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial."


Segue-se o elemento sem estar devidamente autorizado.


O crime de violação de sigilo fiscal em análise pressupõe que a revelação do segredo por funcionário careça de autorização e ele a não tenha obtido.


A autorização exigível pode ser de um superior hierárquico dotado dos necessários poderes, ou de um órgão ou entidade, tal como a CNPDPI, a que a lei incumba essa competência. Depende do tipo de informações e dos serviços envolvidos.


O elemento nuclear na descrição típica é, porém, constituído pelo segmento revele segredo de que teve conhecimento ou que lhe foi confiado no exercício das suas funções.


Já sabemos em que se traduz o segredo. Determinadas informações acerca da situação tributária dos contribuintes têm carácter confidencial e reservado, não podendo, consequentemente, ser divulgadas ou levadas ao conhecimento de terceiros, nem tendo estes o direito de a elas aceder.


Revelar o segredo é, precisamente, transmitir ou possibilitar o acesso de terceiros a essas informações, divulgá-las num círculo mais ou menos restrito, pouco importa, de terceiras pessoas.


Quer dizer, o funcionário comete o crime quando, carecendo da autorização devida, transmite ou permite o acesso de estranhos a informações cobertas pelo sigilo fiscal.


Mas é indispensável que esses dados informativos tenham advindo ao conhecimento do funcionário ou lhe tenham sido confiados no exercício das suas funções.


De contrário, não se completará o preenchimento do tipo e este não poderá ser objectivamente imputado ao funcionário.


Trata-se de elementar exigência da própria ideia de tipicidade, prescindindo da qual resultaria em derradeiro termo teleologicamente postergada a função de entreposto da valoração jurídico-criminal que assiste ao tipo legal do crime.


O tipo do nº 3 do artigo 27º do RJIFNA compreende finalmente um elemento subjectivo: a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo do interesse público ou de terceiros.


Já de passagem se referiu que os tipos legais de crimes tanto podem compreender elementos de carácter objectivo como subjectivo.


Isto é, à valoração jurídico-criminal que através do tipo se exprime podem interessar elementos dessas duas categorias, quer um acontecimento do mundo externo, quer uma atitude psíquica do agente.


Está-se, nesta última hipótese, perante os denominados "elementos subjectivos da ilicitude", factos subjectivos que interessam àquela valoração objectiva que o tipo legal traduz e não propriamente à culpa (15).


É o caso, precisamente, do tipo legal em apreço. O funcionário só comete o crime se agir com a intenção de obter o benefício ou de causar o prejuízo referido no preceito.


Sublinhe-se que este benefício há-de ser ilegítimo, e, como tal, não merecedor da tutela do direito, sendo, porém, já indiferente a sua destinação ao próprio agente ou a outrem.


O mesmo se diga mutantis mutandis do prejuízo visado pelo agente, que tanto pode redundar em detrimento do interesse público como de terceiros.


Torna-se, porém, desnecessária, em qualquer dos casos, a sua efectiva verificação.


Não obsta ao preenchimento do tipo legal a circunstância de o benefício ou o prejuízo que o agente queria causar terem deixado de se concretizar.




2.2. A retocar o quadro da ilicitude desenhada no nº 3 do artigo 27º do RJIFNA, cabe ainda aludir, dentro da economia de urgência e de abstracção da consulta, à problemática da causalidade e das causas de justificação.




2.2.1. A análise típica revela que o crime descrito não pode ser classificado de mera actividade (ou de pura omissão).


Um evento naturalístico, de efectiva divulgação da informação para além do perímetro definido pela confidencialidade, se prefigura coligado à actividade do agente.


Nestas condições, para que o evento seja objectivamente imputado, deve ainda um nexo causal ser afirmado entre a actividade do agente e o mesmo resultado; que este resultado tenha sido causado por aquela conduta.


Em que termos, porém, se deve ter como verificada essa causalidade?


O artigo 10º do Código Penal responde-nos hoje sufragando sem equívocos a teoria da "causalidade adequada".


"Para que uma acção se possa dizer causa de um resultado é, pois, mister que em abstracto seja adequada a produzi-lo. É preciso que este seja uma consequência normal típica daquela (16).


O processo lógico (17) deve ser "o de uma prognose póstuma, ou seja de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, de um juízo ex ante", "segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação".


Não "segundo as regras da experiência ou segundo as circunstâncias de facto que o agente devia conhecer, mas segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas", sem abstrair, para a sua determinação, daquelas regras e circunstâncias que o agente efectivamente conhecia.


Por outro lado, a adequação da acção à verificação do resultado típico terá de referir-se não apenas ao resultado, mas a todo o "processo causal", de modo que a intervenção dolosa ou negligente de terceiro é susceptível de quebrar o nexo causal, tornando o processo "atípico", com a consequente impossibilidade de imputação objectiva do resultado ao agente.


Figure-se, exemplificativamente, que o agente tem os suportes informativos confidenciais no seu gabinete, e o pessoal de limpeza das instalações procede, como quer que seja, à sua divulgação.


Contudo, a actuação do terceiro, dolosa ou por negligência, pode ser previsível - v.g., o funcionário abandona os elementos de informação em lugar acessível à pessoa a quem interessa conhecê--los.


Não se interrompe, então, necessariamente, o nexo causal, continuando o resultado a ser objectivamente imputável ao funcionário.




2.2.2. Resta, em singela abordagem, o tema das causas de exclusão da ilicitude.


Como se referiu, o tipo legal de crime é o expediente técnico de que o legislador se serve para, de modo seguro e firme, exprimir as valorações jurídico-criminais.


Mas a tipicidade expressa apenas um primeiro momento dessa valoração em que se esgota a ilicitude. A valoração global tendente a um juízo definitivo de antijuridicidade criminal é mais complexa, exigindo a resolução de eventuais conflitos entre a necessidade abstracta de protecção dos bens jurídicos cuja negação os tipos legais exprimem, e a consideração devida a outros interesses ou bens jurídicos (18).


Daí que a ilicitude de certa conduta resultante da sua "subsunção formal" a determinado tipo legal de crime, a ilicitude "formalmente típica", nesse sentido, possa ser "ilidida pela existência de determinadas circunstâncias que, numa valoração total, a excluem".


A teoria do direito criminal foi, assim, conduzida, em certas das suas ramificações, a incluir no tipo legal de crime todos os elementos relevantes para esse juízo global de antijuridicidade. Não só os elementos que descrevem o comportamento imposto ou proibido, propriamente dito, mas também os elementos negativos da falta de circunstâncias que excluem a ilicitude desse comportamento (v.g., legítima defesa, direito de necessidade, conflito de deveres, consentimento, etc.).


Não importando neste momento desenvolver além destas noções a denominada "teoria dos elementos negativos do tipo legal", registe-se tão-somente ser a mesma conducente à concepção, mercê de pressuposta coincidência entre tipicidade e antijuridicidade, de um "tipo de ilicitude", com reflexos não despiciendos na teoria do erro.


As circunstâncias referidas constituem, como quer que seja, causas de justificação do facto.


É, portanto, concebível que algumas delas surjam, nos casos concretos, a excluir a antijuridicidade de comportamentos subsumíveis ao tipo legal descrito no nº 3 do artigo 27º do RJIFNA.


A consulta não aflora, todavia, nenhuma dessas circunstâncias e seria menos correcto, também neste capítulo, prolongar o desenvolvimento da investigação na base de simples conjecturas que, aliás, poderiam redundar em inutilidade.


Adite-se apenas, referencialmente, que as causas de exclusão da ilicitude vêm reguladas hoje nos artigos 31º e segs. do Código Penal (cfr. o artigo 191º do RJIFNA).


O artigo 31º enumera, a título não taxativo, a legítima defesa, o exercício de um direito, o cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade e o consentimento, institutos cuja disciplina os artigos 32º a 39º especialmente detalham.


Sobressaem aqui, porventura, os artigos 36º e 38º, que a título de memória se transcrevem:




"Artigo 36º

(Conflito de deveres)


1. Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.


2. O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime."




"Artigo 38º

(Consentimento)


1. Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes.


2. O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até à execução do facto.


3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.


4. Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa."


Escusado se tornaria sublinhar que todo esse conjunto de dispositivos se deve ter, em princípio, como hipoteticamente aplicável ao domínio do direito penal fiscal, onde emergem os crimes de violação de segredo acerca da situação tributária dos contribuintes de que nos ocupamos.


Basta recordar o disposto no artigo 8º do Código Penal:




"Artigo 8º

(Aplicação subsidiária do Código Penal)


As disposições deste diploma são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar e da marinha mercante e pela restante legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário."


No mesmo sentido, de resto, o artigo 4º, nº 1, do RJIFNA.


3. Passados em revisão pressupostos fundamentais da imputação objectiva do facto ao agente, é o momento de considerar as condições da sua imputação subjectiva, o segundo aspecto focado na questão em estudo, implicando, dissemos, uma indagação no domínio da culpa.


Com efeito, para que o crime exista não basta que uma conduta seja tipicamente ilícita nos termos anteriormente expostos. É necessário também que a mesma "possa ser reprovada ao agente " e, portanto, considerada culposa (19).


Requer-se, dito de outro modo, além daquele juízo de valor que refere a conduta humana a bens ou valores jurídicos plasmados nos moldes dos tipos legais de crimes, outro juízo de valor relativo à culpa, redundando na censura do facto típico à pessoa do seu agente.


Mas, este pensamento da culpa, como "censura ético-jurídica" dirigida a um sujeito por "não ter agido de modo diverso", supõe a aceitação da "liberdade do agente" e do seu "poder de agir de outra maneira".


Uma liberdade apenas relativa, no entanto, pois não pode negar-se que "um conjunto de circunstâncias exógenas e endógenas" facilitam ou dificultam a decisão de cometer o crime.


Exigência, em todo o caso, que o Código de 1886 exprimia na máxima "somente podem ser criminosos os indivíduos que têm a necessária inteligência e liberdade" (artigo 26º).




3.1 Daí que o primeiro requisito da culpa seja a imputabilidade: "conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido doutra maneira".


O conjunto destas qualidades é, em regra, indiciado por uma certa idade mínima, que o Código Penal fixa em 16 anos (artigo 19º).


Atingida esta, pode, todavia, a imputabilidade ser ainda negada por falta de condições bio-psicológicas que exclua a possibilidade de censura.


Considera, nesse sentido, o artigo 20º, nº 1, do mesmo Código inimputável, "quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação".


A imputabilidade é, por conseguinte, elemento essencial ao juízo de censura em que se analisa a culpa.


Elemento necessário, mas insuficiente.


Para que a culpa exista torna-se ainda mister que o facto possa ser subjectivamente imputado ao agente.


Esta imputação subjectiva não se reduz, contudo, a uma mera relação psicológica naturalística, antes deve traduzir "uma certa posição do agente perante o seu facto", capaz de ligar um e outro em termos de permitir a censura ínsita no juízo de culpa.


E tal ligação do agente ao facto pode ter lugar a título de dolo - consubstanciando uma mais intensa conexão subjectiva - ou de negligência - um vínculo mais fraco.


A essencialidade desta ligação através dessas duas formas exprime-a, justamente, o artigo 13º do Código Penal:


"Artigo 13º

(Dolo e negligência)


Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência."


Do artigo 13º flui, ademais, que a negligência só é punível nos casos especialmente previstos na lei. Quer dizer, para que um crime possa ser punido a título de negligência impõe-se que a lei especialmente o preveja, solução, de resto, estabilizada na ordem jurídico-criminal portuguesa desde a Reforma aprovada pelo Decreto--Lei nº 39 488, de 5 de Junho de 1954, com a nova redacção introduzida no artigo 110º do Código Penal então vigente.


Ora, observe-se desde já que o crime tipificado no artigo 27º, nº 3, do RJIFNA não pode deixar de ser qualificado como doloso, uma vez que especialmente não prevê a incriminação da mera culpa.


A não repetição, no seio do tipo, da expressão "dolosamente" incluída no tipo legal do nº 2 não tem qualquer significado.


Imediatamente por isto. Não é o carácter doloso, mas a natureza culposa que deve especialmente ser contemplada.


Aliás, a ligação do elemento subjectivo da ilicitude tipificado no nº 3 à conduta do agente aponta no mesmo sentido.


Seria, na verdade, muito difícil conciliar uma actuação meramente negligente na revelação do segredo com a intenção de, por esse modo, obter um benefício ou causar um prejuízo.


O crime que nos interessa é, pois, um crime doloso.


São, portanto, exigíveis os requisitos gerais do dolo.


O elemento intelectual deverá traduzir o conhecimento, pelo agente, dos elementos constitutivos do crime, quer descritivos, quer normativos, bastando, quanto a estes, o conhecimento dos "efeitos práticos usuais ligados aos elementos jurídicos empregados" (20).


Mas o conhecimento é igualmente extensivo ao significado antijurídico da conduta, reflectindo-se no dolo a "falta de consciência da ilicitude", nos termos consignados no artigo 17º do Código Penal (cfr. também o artigo 16º):




"Artigo 17º

(Erro sobre a ilicitude)


1. Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.


2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada."


Por último, o elemento volitivo ou emocional.


Anote-se apenas, neste domínio, ter inteiro cabimento qualquer das formas de dolo - directo, necessário e eventual - configuradas no artigo 14º do Código Penal, cumpridos os pressupostos nele previstos.




3.2. Preenchidas, nos termos expostos, as condições e pressupostos indispensáveis à formulação do juízo de censura em que se traduz a culpa, caberia considerar agora a vertente das causas que a excluem.


São, no entanto, pertinentes as observações há instantes exaradas acerca das causas de exclusão da ilicitude. A consulta é igualmente omissa quanto a estas, o que nos autoriza a remeter o tratamento respectivo para outra oportunidade em que a sua necessidade seja devidamente equacionada.


Chama-se, todavia, à colação, a rematar, pelo seu eventual interesse, o artigo 37º do Código Penal:


"Artigo 37º

(Obediência indevida desculpante)


Age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas."


E prossiga-se, posto isto, na ponderação das restantes questões.






IV


Uma segunda questão se consubstancia nas alínea b), c) e d), que convém recordar:


"b) Qual o perímetro do segredo fiscal nas relações inter-orgâ-nicas da Administração Pública?


"c) Poderá haver violação do segredo fiscal nas relações inter--orgânicas da Administração pública?


"d) O segredo fiscal impede a divulgação pela Administração Fiscal de elementos integrantes do seu conteúdo a outros órgãos da Administração Pública?"




1. Trata-se, em boa verdade, se bem se interpreta, do mesmo problema, embora equacionado, explicativamente, sob diversos prismas: o de saber se constitui violação do segredo protegido pelo artigo 27º do RJIFNA a sua divulgação ou transmissão pela Administração Fiscal a outras Administrações do Estado.


A resposta é, em princípio, afirmativa.




2. No parecer nº 83/87 (citado supra, nota 3) alinharam-se, em específico contexto, judiciosas reflexões verdadeiramente pertinentes no quadro das relações interorgânicas da Administração Pública delimitado na consulta, que por isso merecem ser conhecidas na íntegra, pese a sua extensão:


"É, por exemplo inaceitável em princípio e em sede de acordo bilateral uma cláusula mediante a qual as autoridades francesas possam exigir das portuguesas qualquer informação sobre a empresa em causa e/ou o seu pessoal, que não seja do domínio público.


"Os parâmetros da colaboração a prestar - e a exigir reciprocidade - hão-de ser respeitados na base de um compromisso que não vá bulir com os interesses que o Estado deve prioritariamente acolher e respeitar, seja por o entender necessário em nome da unidade e orgânica do seu próprio aparelho, seja por assim o impor a defesa dos direitos fundamentais dos seus cidadãos.


"Nesta última área, por exemplo, o espantoso desenvolvimento da informática e da telemática, tornaram, no âmbito das informações nominativas, o consentimento dos próprios de escasso valor justificativo da informação, dada a natureza indisponível dos direitos relativamente aos quais o problema é frequentemente suscitado, relacionado com a intimidade da vida privada e as liberdades públicas (x).


"O acesso a dados pessoais, a possibilidade da sua interconexão e, bem assim, do estabelecimento de fluxos transfronteiras desses dados, tornou imperiosa a defesa dos direitos fundamentais, como, de resto, o artigo 35º da Constituição da República revela.


"Facilmente se adivinham os excessos de uma utilização incontrolada de informações contidas em ficheiros informatizados que a interconexão permite reunir.


"Ao comentar a Convenção Europeia para a Protecção das Pessoas relativa ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal (Estrasburgo, 28/1/81) (-) observou JEAN-PAUL JACQUÉ que o emprego dos ordenadores, e, designadamente, a interconexão de ficheiros, possibilitam a reunião de todas as informações contidas nos ficheiros informatizados, ficando, assim, o Estado, ao centralizar e compilar as informações fornecidas pelos cidadãos, no quadro das suas actividades de gestão, a dispor de indicações sobre a situação familiar, escolar, social, judiciária, sanitária, fiscal e bancária de cada um dos seus nacionais. Desse modo, a intimidade da vida privada desapareceria, tornando-nos a todos "prisioneiros do nosso futuro", situação que a Administração poderia invocar a todo o tempo antes de decidir a nosso respeito, sendo certo que o perigo aumentaria se outras entidades, públicas ou privadas, passassem a dispor desse dados por interconexão (x1).


"A colheita e a divulgação de dados sofre, por conseguinte, uma "óbvia limitação de natureza finalística", de modo à informatização não dever ser usada, em princípio, para outros fins que não sejam aqueles para que foi memorizada - princípio pelo qual "só os dados que se reportem aos fins para os quais o banco de dados for explorado devem ser memorizados", só devendo proceder-ser à sua divulgação, "desde que tal divulgação respeite a finalidade do banco de dados" (x2).


"A utilização pluriforme destes mostra-se ainda, de perigosa potencialidade, pois consoante o tratamento que os mesmos sofram e a sua inter-relacionação, possibilita-se que dados anónimos ou neutros se transformem, de repente, em altamente sensíveis.


"Ilustre-se a asserção com um mero exemplo, de certo modo articulado com o objecto da consulta: os dados respeitantes às condições de saúde dos trabalhadores de uma certa empresa assumem incidência bem diferente se fazem parte de um sistema mantido pelo empregador ou se forem os constantes dos ficheiros da segurança social. Conjugados, um elemento aparentemente neutro, segundo um dos sistemas, pode adquirir particular relevância no outro (x3)".




3. Mais significativo ainda o parecer nº 20/94 (citado supra, nota 2), ao responder directamente à questão - aquela que especificamente agora nos ocupa - da acessibilidade, aos dados confidenciais relativos à situação tributária dos contribuintes - na óptica do artigo 17º, alínea d), do CPT, cujas conexões há momentos tivemos o ensejo de convocar -, por parte dos órgãos da Administração Pública em geral (21).


Ponderando o regime da "administração aberta" consagrada no artigo 268º, nº 2, da Constituição, explicitado no artigo 65º do Código do Procedimento Administrativo e na Lei nº 65/93, de 26 de Agosto, a que oportunamente aludimos, concluiu não envolver a mesma contradição com o dever da confidencialidade fiscal.


E isto porque "os dados referentes à situação patrimonial de um indivíduo, que a Administração tenha recolhido para determinado fim, só podem ser revelados a terceiros - outros sectores da Administração (-) (22), ou particulares (-) - nos casos previstos na lei" (23).


Sintetizou-se, em resumo:


"Inexiste norma que preveja o dever de colaboração (cooperação) entre os órgãos e agentes da Administração Pública em geral (-).


"Assim sendo, e na sequência de todo o exposto, seria impensável admitir que a Administração Fiscal pudesse fornecer informações confidenciais, dados de natureza sigilosa, a quaisquer organismos públicos.


"Os "dados" confidenciais a que se refere a alínea d) do artigo 17º do Código de Processo Tributário - protegidos penalmente pelo artigo 27º, nº 3, do RJIFNA, acrescentamos agora - não poderão ser transmitidos a entidades ou organismos públicos que não beneficiem de normas especiais que se sobreponham àquela alínea d)."


E formulou-se a seguinte conclusão, que no âmbito do presente parecer igualmente se acolhe:


"4. Assim, os órgãos e agentes da Administração Pública não têm acesso aos dados confidenciais previstos na referida disposição legal, salvo quando exista norma especial de que resulte o dever de prestar tal colaboração;"




V


Pela sua afinidade, considerem-se seguidamente as questões incluídas nas alíneas e) e g):


"e) Quais as consequências da divulgação pública de elementos abrangidos pelo segredo fiscal por parte de órgãos ou agentes da Administração Pública, em especial quando o meio utilizado se enquadre no conceito de "meios de comunicação social"?


"g) A divulgação pública, através dos meios de comunicação social, ou não, constituirá condição objectiva de punibilidade ou antes circunstância agravante da medida da culpa para efeitos do artigo 27º do RJIFNA?"


As consequências da divulgação pública do segredo profissional fiscal, no plano criminal, traduzem-se na prática do crime previsto no artigo 27º, nº 3, do RJIFNA, em sintonia com a teoria precedentemente explanada (24).


A violação de segredo implicará, por outro lado, ilícito disciplinar, mercê de violação do dever de sigilo que incumbe em geral aos funcionários (artigo 3º, nºs 1, 4, alínea e), e 9, do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro), susceptível de conduzir a demissão (artigo 26º, nº 4, alínea a)).


Em terceiro lugar, a divulgação de informações fiscais confidenciais pode causar prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, a terceiros ou ao próprio Estado, maxime relacionados com a arrecadação de receitas fiscais.


Figure-se, inclusivamente, que um particular, lesado pela infracção do segredo fiscal, se arroga contra o Estado um direito de indemnização fundada em responsabilidade civil extracontratual.


Ao Estado poderia assistir, solvendo a indemnização, direito de regresso contra o funcionário responsável.


As consequências da divulgação pública do segredo através dos meios de comunicação social - imprensa, rádio e televisão - manifestar-se-iam então ao nível da punição prevista no artigo 27º, nº 3.


Na verdade, a consumação deste crime através daqueles meios determinaria a agravação prevista na alínea b) do artigo 25º da Lei de Imprensa, aprovada originalmente pelo Decreto-Lei nº 85-C/75, de 26 de Fevereiro (25):


"Artigo 25º

Crimes de abuso de liberdade de imprensa


1. Consideram-se crimes de abuso de liberdade de imprensa os actos ou comportamentos lesivos de interesse jurídico penalmente protegido que se consumam pela publicação de textos ou imagens através da imprensa.


2. Aos referidos crimes é aplicável a legislação penal comum, com as seguintes especialidades:

a) (...)

b) O tribunal aplicará a penalidade prevista na disposição incriminadora, agravada em medida não inferior a um terço do seu limite máximo, quando se trate de pena variável, ou simplesmente agravada, nos outros casos."


Restaria o ponto de saber se, para efeitos do artigo 27º, essa divulgação através dos meios de comunicação social constitui "condição objectiva de punibilidade ou antes circunstância agravante da medida da culpa".


É proverbial a dificuldade de distinção entre elementos constitutivos do crime e condições objectivas de punibilidade - e de procedibilidade.


Mas - observa EDUARDO CORREIA (26) -, nem por isso é menos nítida a diferenciação teórica.


No primeiro caso, trata-se de "elementos essenciais à valoração que o tipo legal traduz"; no segundo, de "elementos adicionais requeridos para a punibilidade da conduta", que não prejudicam, por absolutamente independentes, a sua qualidade ilícita e culposa.


Daí que as condições objectivas de punibilidade, sendo elementos estranhos à conduta ilícita e não se mostrando essenciais à censura ético-jurídica, podem manter-se desconhecidas do agente, revelando-se estranhas ao objecto do elemento intelectual do dolo.


Não assim os elementos constitutivos do tipo legal, que necessitam impreterivelmente de ser representados e avaliados pelo autor do facto.


Um critério prático recomenda a supressão mental da circunstância ou facto a considerar (27); "se, em face dessa supressão, se puder considerar inalterada a conformidade do facto com a objectividade jurídica que caracteriza o crime estaremos perante uma condição de punibilidade".


É que "nestas circunstâncias a condição tem apenas por função tornar punível um crime que já existe completo, que já existe em todos os seus elementos".


"Com base na determinação do interesse jurídico tutelado pode chegar a determinar-se quais os eventos que interessam à protecção daquele e quais os que são, no pensamento da lei, estranhos a essa protecção. No primeiro caso tratar-se-á dum elemento do crime, no segundo de uma condição de punibilidade".


Ora, no tipo do nº 3 do artigo 27º do RJIFNA não existe qualquer elemento ou segmento susceptível de um semelhante diagnóstico.


A circunstância, por seu turno, de o crime vir a consumar-se através dos meios de comunicação social também não pode subsumir--se à caracterização das condições objectivas de punibilidade.


Configura-se apenas, como acima se deixou entrever, uma circunstância agravante modificativa da pena, por força do artigo 25º, nº 2, alínea b), da Lei de Imprensa.






VI




A última questão de que nos cumpre cuidar vem configurada pelo modo seguinte:


"f) Em caso de conhecimento prévio por parte da Administração Fiscal de que determinado indivíduo ou entidade se prepara para consumar actos que importem a consumação do crime previsto no artigo 27º do RJIFNA, poderá esta lançar mão de providências cautelares? Quais e em que termos?"


Não são, uma vez mais, oportunas amplas lucubrações.


Sem reducionismos, os estritos termos em que a questão se encontra formulada - não se cometeu ainda o crime e nem sequer se iniciou a sua execução - tornam realmente muito difícil encarar a adopção de qualquer das medidas cautelares ou de garantia prevenidas no Código de Processo Penal, as quais supõem o início do processo crime e até a constituição de arguido - cfr. os artigos 227º e




segs. e 248º e seguintes; o artigo 41º do RJIFNA remete, em princípio, o processamento dos crimes fiscais para aquele Código.


Não se deve, todavia, subestimar a priori a possibilidade, em abstracto, de o Estado recorrer directamente a providências cautelares previstas no Código de Processo Civil, nomeadamente no âmbito do procedimento cautelar comum regulado actualmente nos artigos 381º e segs. daquele Código, desde que se verifiquem os requisitos respectivos, expressos nos usuais tópicos: periculum in mora e fumus boni iuris.


As providências cíveis não deparam, porventura, com impedimentos liminares tão inultrapassáveis como as medidas processuais penais.


Coisa diferente é, todavia, a sua viabilidade concreta.


Tudo depende, em derradeiro termo, das circunstâncias ocorrentes.


Recorde-se, como hipótese de raciocínio, a situação há momentos conjecturada dos prejuízos resultantes para o Estado da violação do segredo fiscal, e a perspectiva de eventual futura acção mediante a qual o direito de indemnização ou um direito de regresso hajam de ser efectivados.


Conclusão:

VII


Termos em que se conclui:


1. A confidencialidade fiscal, e o segredo profissional fiscal, plasmados no artigo 17º, alínea d), do Código de Processo Tributário e no artigo 27º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), levando implicada a confiança entre o cidadão e a Administração Fiscal, privilegia essencialmente a tutela da intimidade da vida privada, valor com assento constitucional - artigos 26º, nºs 1 e 2, 35º, nºs 2 e 3, e 268º, nº 2, da lei fundamental;


2. No capítulo específico da informação sujeita a tratamento automatizado, nomeadamente, é proibido o acesso a ficheiros e registos informáticos para conhecimento de dados pessoais relativos a terceiros, bem como a respectiva interconexão e utilização para finalidade diferente da que determinou a sua recolha, salvo nos casos excepcionais previstos na lei e mediante controlo e autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (CNPDPI) - artigo 35º, nº 2, da Constituição; artigos 4º, nº 1, 8º, alíneas c), d) e f), e 15º, da Lei nº 10/91, de 29 de Abril;


3. Em protecção dos dados aludidos na conclusão 2., o artigo 32º, nºs 1 e 2, da Lei nº 10/91 sujeita, inclusivamente, a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções, os responsáveis pelos ficheiros automatizados, bases e bancos de dados, assim como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais neles registados, sem exceptuar os próprios membros da Comissão Nacional, mesmo após o fim do mandato;


4. O funcionário que, sem estar devidamente autorizado, revele segredo profissional fiscal, comete o crime previsto e punido pelo nº 3 do artigo 27º, desde que verificados os requisitos de imputação objectiva e subjectiva densificados no ponto III da parte expositiva do presente parecer;


5. Constitui violação de segredo fiscal, para efeitos do citado artigo 27º, nº 3, a divulgação ou transmissão, por parte da Administração Fiscal, a outros órgãos da Administração Pública, de dados relativos à situação tributária dos contribuintes, salvo quando exista norma especial de que resulte o dever de prestar essa colaboração;


6. A divulgação pública de segredo profissional fiscal através de meios de comunicação social, na prática do crime previsto no nº 3 do artigo 27º do RJIFNA, importa, designadamente, a agravação modificativa da pena nele prevista, nos termos do artigo 25º, nº 2, alínea b), da Lei de Imprensa;


7. Na hipótese, configurada na consulta, de o crime previsto no nº 3 do artigo 27º ainda não ter sido cometido e nem sequer se haver iniciado a sua execução são inaplicáveis as medidas cautelares e de garantia prevenidas no Código de Processo Penal;


8. A viabilidade de recurso, nessa situação, a providências cautelares não especificadas - artigos 381º e segs. do Código de Processo Civil - depende das circunstâncias de facto em concreto emergentes.




____________________________________

1) Redacção actual introduzida pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, em vigor desde 1 de Janeiro de 1994 (artigo 6º).

A redacção original do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o "Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras", era a seguinte:

"Artigo 27º

Violação de segredo fiscal

1- O dever geral de sigilo sobre a situação tributária dos contribuintes é inviolável, determinando a lei os casos em que a divulgação do segredo fiscal é legítima.

2- Quem, sem justa causa e sem consentimento de quem de direito, dolosamente, revelar ou se aproveitar de segredo fiscal de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas será punido, se aquela revelação ou aproveitamento puder causar prejuízo ao Estado ou a terceiros, com multa até 400 dias."

2) Votado na sessão de 9 de Fevereiro de 1995 e enviado ao Gabinete do membro do Governo consulente, para efeitos de homologação, através do ofício nº 2607, Pº 20/94, de 24 do referido mês. Mediante ofício nº 171616, Pº 20/94, de 23 de Dezembro de 1996, solicitou-se informação relativa à homologação e a eventual publicação do parecer, aguardando-se ainda a resposta.

3) FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, e MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, apud parecer deste corpo consultivo nº 83/87, de 19 de Novembro de 1987, homologado, mas não publicado, que em resumidas paráfrases momentaneamente se acompanha.

4) JACQUES CHEVALLIER/DANIÈLLE LOSCHAK, Introduction à la Science Administrative, e RENATE MAYNTZ, Sociologia dell’amministrazione pubblica, apud parecer nº 83/87.

5) A Lei nº 65/93, de 26 de Agosto, veio justamente regular o previsto acesso, criando uma "Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos", à qual cabe, em geral, zelar pelo cumprimento das suas disposições. Foi alterada pela Lei nº 8/95, de 29 de Março, que disciplinou os serviços de apoio à Comissão, clarificando aspectos do regime de acesso aos documentos.

6) Parecer nº 83/87, que estamos ainda a seguir.

7) J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, citando no mesmo sentido GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, apud parecer nº 83/87.

8) Parecer nº 20/94, citado introdutoriamente (cfr. supra, nota 2), que se passa a acompanhar.

9) Reproduza-se, a título elucidativo, na parte com interesse:

"Artigo 26º

(Outros direitos pessoais)

1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal (...) (...) e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.

3. (...)".

10) Alterada pela Lei nº 28/94, de 29 de Agosto, como adverte a nota 16 do parecer nº 24/90.

O Decreto Regulamentar nº 27/93, de 3 de Setembro, veio, por sua vez, regular o funcionamento das bases de dados sobre pessoas colectivas e entidades equiparadas, em termos que a economia de urgência nos dispensa detalhar, remetendo-se, a propósito, para os pontos 3.4. e 3.6. do Parecer nº 20/94.

11) Acompanhámos EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. I, Reimpressão, com a colaboração de FIGUEIREDO DIAS, Coimbra, 1993, págs. 231 e segs. e 273 e seguintes.

12) MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 9ª. edição, Coimbra, pág. 172.

13) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, pág. 193.

14) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ibidem.

15) EDUARDO CORREIA, op. cit., pág. 282.

Acerca dos "elementos subjectivos do tipo" reflicta-se a teorização desenvolvida por HANS-HEINRICH JESCHECK, Tratado de Derecho Penal. Parte General, tradução espanhola da 3ª edição, de 1978, do Lehrbuch des Strafrechts, por S. MIR PUIG/F. MUÑOZ CONDE, vol. I, Bosch, Barcelona, 1981, págs. 433 e seguintes.

16) EDUARDO CORREIA, op. cit., págs. 257 e segs., cuja lição neste momento voltamos a acompanhar.

17) Observa MAIA GONÇALVES, op. cit., pág. 221, parafraseando EDUARDO CORREIA.

18) Retorna-se, uma vez mais, ao pensamento de EDUARDO CORREIA, op. cit., págs. 311 e seguintes. Sobre o tema, veja-se, mais desenvolvidamente, Direito criminal, vol. II, Reimpressão, com a colaboração de FIGUEIREDO DIAS, Coimbra, 1992, págs. 3 e seguintes.

Cfr. também JESCHECK, op. cit., págs. 439 e seguintes.

19) EDUARDO CORREIA, op. cit., vol. I, págs. 315 e segs., 331 e segs. e 367 seguintes.

20) EDUARDO CORREIA, op. cit., vol., I, pág. 374, louvando-se em BELEZA DOS SANTOS.

(x) Cfr. JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS - "Informática, Liberdades e Privacidade" in "Estudos Sobre a Constituição", 1º volume, Lisboa, 1977, pág. 125.

(x1) JEAN-PAUL JACQUÉ, Annuaire français de Droit International, 1980, pág. 773.

(x2) Passagens transcritas do estudo de JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS citado na nota (x).

(x3) Cfr., a este propósito, SPIROS SIMITIS, "Les garanties générales quant à la qualité des données à caractère personnel faisant l’object d’un traitement automatisé", na obra colectiva "Informatique et droit en Europe", Bruxelles, (1985), pág. 309; J. A. GARCIA MARQUES - "Informática e Liberdades (Alguns Subsídios Complementares)", Lisboa, 1986, pág. 17 (Separata do nº 27 da Revista do Ministério Público).

21) Além destes, estava em causa, paralelamente, a acessibilidade de outros sectores do Estado, tais como os tribunais e o Ministério Público, deputados, Provedor de Justiça - particulares, advogados e solicitadores, igualmente -, sendo as conclusões basicamente em sentido negativo, com particularidades para que se remete.

À densificação do segmento "situação tributária dos contribuintes" dedicou o parecer a quase totalidade dos pontos 7 e 8, resumindo na conclusão 1ª o seguinte conteúdo: "quaisquer informações, quaisquer elementos informatizados ou não que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares, ou pessoas colectivas, comerciantes e não comerciantes".

22) "Seria frustrar toda a relação de confiança - regista a nota 41 - que pressupõe a informação prestada pelo cidadão a um sector da Administração, se fosse possível ver a Administração como um todo uniforme onde os dados sensíveis transitariam sem quaisquer entraves no seu seio".

23) Relembre-se que a regra está formulada expressamente no artigo 15º da Lei nº 10/91 (supra, II, 3.), cujo artigo 8º, alínea c) sujeita ainda a utilização dos dados automatizados, nessa hipótese, a autorização da CNPDPI.

24) Poderia igualmente conceber-se a hipótese de divulgação, por parte de funcionário estranho à Administração Fiscal e, portanto, não vinculado originariamente ao segredo fiscal, a quem a informação tivesse sido transmitida pelo detentor do segredo, em infracção deste.

Nessa hipótese, estando excluída - a não ser sob uma forma secundária de comparticipação - a incriminação pelo nº 3 do artigo 27º - cuja teleologia aponta no sentido da protecção do segredo profissional fiscal -, avultariam, porventura, o crime do nº 2 do mesmo artigo, ou os crimes tipificados nos artigos 195º, 196º e 383º do Código Penal.

Na hipótese do artigo 195º, a revelação da informação através de "meios de comunicação social" daria, por sua vez, lugar à agravação da pena prevista no artigo 197º, alínea b).

25) Disposição igualmente aplicável quando o crime se consumar através da rádio ou da televisão, por remissão, respectivamente, dos artigos 29º, nº 3, da Lei nº 87/88, de 30 de Julho - "Exercício da Actividade de Radiodifusão" -, e 41º, nº 2, da Lei nº 58/90, de 7 de Setembro - "Regime da Actividade de Televisão".

26) Op. cit., vol. I, pág. 370.

27) ROBIN DE ANDRADE, Direito Penal, Lisboa, 1972, vol. II, págs. 169 e seguintes, que se passa a citar.
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART26 ART29 ART35 ART37 ART48 ART266 ART268.
CPA ART7 ART8 ART10 ART65. L 28/94 DE 1994/08/29.
CPTRIB91 ART16 ART17 ART20. DRGU 27/93 DE 1993/09/03.
CP82 ART184 ART433 N1. EDF84 ART3 N1 N4 ART26 N4 A ART37.
CP95 ART1 ART8 ART10 ART13 ART14 ART17 ART19 ART20 N1 ART28 ART31 ART36 ART37 ART38 ART195 ART383 ART386.
CPP87 ART227 ART248. DL 85-C/75 DE 1975/02/26 ART25 B.
CPC67 ART381.
DL 20-A/90 DE 1990/01/15 ART4 N1 ART41 ART27 ART191
DL 394/93 DE 1993/11/24 ART2 ART6.
L 65/93 DE 1993/08/26.
L 8/95 DE 1995/03/25.
L 10/91 DE 1991/04/29 ART2 A B ART4 N1 ART8 ART11 N1 A B ART13 N1 ART15 ART27 ART32 ART41.
Referências Complementares: 
DIR ADM * ADM PUBL / DIR CONST * DIR FUND / DIR PENAL / DIR FISCAL.
Divulgação
Pareceres Associados
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