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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
63/1995, de 24.01.1996
Data do Parecer: 
24-01-1996
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Maioria
Iniciativa: 
Governo
Relator: 
PADRÃO GONÇALVES
Descritores e Conclusões
Descritores: 
LICENÇA DE CONDUÇÃO
TRIBUNAL
CRIME
EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
CONTRA-ORDENAÇÃO
APLICAÇÃO DE NORMA INCONSTITUCIONAL
CONTRAVENÇÃO
FISCALIZAÇÃO ABSTRACTA DA CONSTITUCIONALIDADE
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
REPRISTINAÇÃO RESERVA RELATIVA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
DEFINIÇÃO DE CRIME
REGIME GERAL
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
DESCRIMINAÇÃO
FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA INCONSTITUCIONALIDADE
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA
RECUSA
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
PRINCÍPIO DA CONSTITUCIONALIDADE
Conclusões: 
1- A revisão ou revogação de normas penais incriminadoras constitui, nos termos da alínea c) do n 1 do artigo 168 da Constituição da República, matéria da competência legislativa da Assembleia da República, salvo autorização do Governo;
2- A autorização concedida ao Governo pela Lei n 63/93, de 21 de Agosto, para aprovar um novo Código da Estrada, revogar a legislação vigente sobre essa matéria e proceder à adaptação da legislação complementar, não contemplou a "despenalização" da "condução de veículos automóveis ligeiros de pesados sem para tal estar habilitado", conduta então punida, como crime, pelo artigo 1 do Decreto-Lei n 123/90, de 14 de Abril, com prisão até um ano ou multa até 120 dias;
3- A norma do n 3 do artigo 124 do vigente Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n 114/94, de 3 de Maio, no uso da autorização legislativa conferida pelo artigo 1 da Lei n 63/93 93, que pune com coima de 50 000$00 a 200 000$00 quem conduzir veículo automóvel, ciclomotor, tractor ou máquina agrícola sem para tal estar habilitado, é organicamente inconstitucional, na medida em que, ao derrogar a referida norma do Decreto-Lei n 123/90, invadiu, sem autorização para tanto, a competência exclusiva da Assembleia da República;
4- Na medida em que é organicamente inconstitucional a norma do n 3 do artigo 124 do vigente Código da Estrada não pode ser aplicada pelos tribunais nos feitos submetidos a julgamento (artigo 207 da Constituição da República);
5- Desaplicada a norma do n 3 do referido artigo 124, nos termos e pelas razões constantes das conclusões anteriores, deverá ser aplicada aos infractores, por repristinação, a norma incriminadora do artigo 1 do Decreto-Lei 123/90, com limitações, visto não poder a norma repristinada determinar para o arguido um tratamento sancionário mais grave do que o resultante da aplicação da norma vigente no momento da prática do facto ilícito, constituindo esta uma referência limitativa da medida punitiva a impor ao agente da infracção;
6- Tendo as sanções previstas nas normas desaplicada (n 3 do artigo 124 do Código da Estrada) e repristinada (artigo 1 do Decreto-Lei n 123/90) natureza diversa, não podendo, por isso, a sanção prevista na norma desaplicada constituir referência limitativa da medida punitiva fixada na norma repristinada, e sendo manifesto que a sanção prevista nesta é bem mais desfavorável aos arguidos, na medida em que põe em causa a sua liberdade, deve o Tribunal aplicar a sanção, mais favorável, prevista na norma desaplicada (coima de 50 000$00 a 200 000$00);
7- Nestes termos, tais arguidos - "condutores sem habilitação legal" - não podem ser detidos (artigo 255, n 1 do Código de Processo Penal), mesmo em flagrante delito, pelas autoridades judiciárias ou entidades policiais que tomem conhecimento da infracção praticada, devendo o respectivo auto de notícia dar lugar a inquérito, nos termos dos artigos 262 e seguintes do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:
1.
O Gabinete do Senhor Secretário de Estado da Administração Interna elaborou Informação (nº 65/95, de 20/6/95) sobre o procedimento a adoptar pelas forças de segurança em relação aos condutores de veículos automóveis não habilitados a conduzir (1).
Entendeu-se nessa Informação que a questão levantada encontrava orientação segura no parecer nº 61/94 da Procuradoria--Geral da República acerca da condução automóvel sob influência do álcool visto existir proximidade entre a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90 e o nº 1 do artigo 2º do Decreto-
Lei nº 124/90, ambos de 14 de Abril: os dois preceitos visam acentuar o combate à sinistralidade rodoviária, na medida em que criam novos ilícitos de carácter penal, passando a questão posta - da vigência ou revogação daqueles normativos - pela apreciação dos mesmos preceitos da Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, e do Decreto-
Lei nº 114/94, de 3 de Maio.
O nº 4 do artigo 2º da Lei nº 63/93 concedeu poderes ao Governo para proceder à revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de regras rodoviárias, sem alteração dos tipos de crime nem agravamento dos limites das sanções, mas - continua a Informação - o Governo entendeu não usar essa faculdade.
Por outro lado, não há oposição entre o Decreto-Lei nº 114/94 e o artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, desde logo porque não são normas antagónicas.
Daí que - termina a Informação - "poderão os serviços seguir, "mutatis mutandis", o aludido parecer da PGR".
Tendo o Senhor Secretário de Estado da Administração Interna concordado com tal Informação, foi a mesma comunicada aos Comandos-Gerais da GNR e PSP, que transmitiram a doutrina adoptada aos comandos distritais, para ser adoptada pelas referidas forças de segurança.
Ao ter conhecimento das directivas transmitidas pelo Comando--Geral da PSP ao Comando Distrital do Porto, o Senhor Procurador--Geral Distrital junto da Relação do Porto expôs a V. Exª o seguinte:
"Tenho como certo que a argumentação, tecida nesse parecer (nº 61/94), segundo a qual continua a ser crime a condução acom taxa de alcoolémia superior a 1,2gr/l, não é transportável para a situação de condução sem carta, além do mais, por não ser possível imaginar situações diversas, puníveis umas como crime, outras como contra- ordenação".
Depois de dar conta de que a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto (2) tem sido uniforme quanto à "descriminalização" dessa conduta e que parece dividida a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (3), acrescenta o Senhor Procurador-Geral Distrital:
"A situação afigura-se-me ter alguma gravidade, na medida em que, seguindo as forças de segurança a orientação que lhes foi transmitida, passarão a deter pessoas que, no que se refere ao Distrito Judicial do Porto, e a menos que outro seja o entendimento de V. Exa, serão postas em liberdade pelo Ministério Público por não se verificar estarem reunidos os pressupostos para o seu julgamento em processo sumário".
E termina sugerindo a V. Exª que seja determinada a interposição de recurso extraordinário no interesse da unidade do direito, nos termos do disposto no artigo
447º do Código de Processo Penal.
Tendo V. Exª determinado a distribuição pelo Conselho Consultivo, cumpre emitir parecer.
2
2.1. Dispunha o nº 1 do artigo 46º do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 39672, de 20 de
Maio de 1954:
"1. Só poderão conduzir veículos automóveis nas vias públicas: a) Os titulares das cartas de condução a que se refere o artigo seguinte [...].
........................................................
.........................................
A contravenção do disposto neste número será punida com a multa de 10 000$00 a 500 000$00 e prisão até um mês [...]".
O nº 1 do artigo 47º do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei nº 290/86, de 10 de Setembro, dispunha que as licenças de condução de veículos automóveis se denominavam "cartas de condução", e o nº 2 da mesma disposição estatuía:
"2. As cartas de condução mencionarão sempre as categorias de veículos automóveis que os seus titulares estão autorizados a conduzir e que, para o efeito, são os seguintes:
A - Motociclos com ou sem carro lateral;
B - Veículos automóveis não incluídos na categoria A e cuja lotação ou peso bruto não excedam, respectivamente, nove lugares sentados, incluindo o condutor, ou 3 500 Kg;
C - Veículos automóveis de transporte de mercadorias cujo peso bruto exceda 3 500 Kg;
D - Veículos automóveis de passageiros com mais de nove lugares sentados, incluindo o condutor;
E - Conjunto de veículos articulados em que o veículo tractor pertença a qualquer das categorias B, C ou D, para que o condutor esteja habilitado, mas que não estejam incluídos eles próprios nessas categorias;
F - Tractores agrícolas."
Por outro lado, dispunha o nº 1 do artigo 54º do mesmo diploma legal que só poderiam conduzir velocípedes nas vias públicas os indivíduos habilitados com uma licença de condução apropriada passada por uma câmara municipal ou com uma carta de condução de ciclomotores ou motociclos (4).
2.2. Pela Lei nº 31/89, de 23 de Agosto, a Assembleia da República concedeu autorização ao Governo para legislar em matéria de segurança rodoviária (artigo 1º), ficando o Governo autorizado (artigo 2º) a:
"a) Definir tipos legais de crime e de contravenção, respectivas penas e sanções acessórias [...] para as situações em que o condutor do veículo, em via pública ou equiparada, apresente uma taxa de álcool no sangue superior ao limite legalmente estabelecido [...]"(5).
[...] c) Definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis, motociclos, ciclomotores e velocípedes, nas vias públicas ou equiparadas, por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito; [...]".
A autorização concedida visava (artigo 3º):
"a) Intensificar a fiscalização de alcoolemia e dissuadir o seu abuso; b)
.................................................
............................................ c) Sancionar a condução de quaisquer veículos na via pública ou equiparada por quem se não encontrar devidamente habilitado para o efeito".
2.3. Relativamente à condução de veículos automóveis ligeiros ou pesados, (6), sem habilitação para o efeito, a referida autorização legislativa foi usada no Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril.
Depois de realçar, no seu preâmbulo, que "os elevados índices de sinistralidade com que se defronta o nosso país determinam a adopção de medidas susceptíveis de desincentivarem a prática de infracções que, pela sua gravidade, põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas nacionais", dispôs o Decreto-Lei nº 123/90,nos artigos 1º, 2º, nº 1, e 12º, nº 1:
"Artigo 1º. Quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado, nos termos do artigo 46º do Código da Estrada, será punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias".
"Artigo 2º - 1- Os limites máximos de inibição de conduzir previstos no Código da Estrada e demais legislação complementar passarão para o dobro dos actualmente establecidos com o limite mínimo de
15 dias.
.................................................
.............................................".
"Artigo 12º - 1- É revogado o penúltimo parágrafo do nº 1 do artigo 46º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39672, de 20 de Maio de 1954.
2-
.................................................
...........................................".
2.4. O Ministério Público interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Fevereiro de
1991, que considerou constituir crime a infracção prevista e punível pelo artigo 1º do citado Decreto-Lei nº 123/90, enquanto que o acórdão da mesma Relação, de
12 de Dezembro de 1990, qualificara a mesma infracção como contravenção.
Veio a ser proferido Assento, em sessão de 20 de
Maio de 1992, (7) no sentido de tal infracção constituir crime (e não contravenção).
Fundamentos da doutrina fixada:
- as condições que fizeram surgir o Decreto-Lei nº 123/90, justificando a adopção de medidas susceptíveis de desincentivarem a prática de infracções que põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas nacionais;
- o facto de a alínea c) do artigo 2º da Lei nº
31/89 (Lei de Autorização), ao referir "definir o tipo legal de crime de condução (...) por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito", parece já estar a tomar posição quanto à qualificação da infracção em causa;
- a revogação do penúltimo parágrafo do nº 1 do artigo 46º do Código da Estrada de 1954, onde se caracterizava a infracção como contravenção.
- o facto de o Decreto-Lei nº 117/90, de 5 de Abril, decretado no uso da mesma autorização legislativa, ter qualificado de crime a condução
(sem habilitação) de motociclos, ciclomotores e velocípedes com motor, situação muito menos grave que a condução de veículos automóveis ligeiros ou pesados, nas mesmas circunstâncias.
2.5. O citado parecer nº 61/94, de 27 de Outubro de 1994, deste corpo consultivo (8), apreciou a vigência ou não do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, designadamente no que toca ao disposto nos seus artigos 1º e 2º - que consideravam "estar sob a influência de álcool todo o condutor que apresentar uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual ou superior a 0,50g/l" (artigo 1º) e puniam a condução de veículos apresentando o condutor uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l (artigo 2º) (9) - perante a entrada em vigor do novo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio - cujo artigo 87º proíbe a condução de veículos sob influência de álcool, considerando--se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5g/l (nº 1) e, no nº 2, pune com coima de
20 000$00 a 100 000$00 a condução sob a influência do álcool, salvo se a taxa de álcool for igual ou superior a 0,8g/l, caso em que a coima será de 40 000$00 a 200 000$00.
Veio a concluir-se no referido parecer continuar a ser punida, nos termos dos artigos 1º e 2º do Decreto-
Lei nº 124/90 - disposições não revogadas pelo Código da Estrada de 1994 - a condução de veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, sob a influência de álcool, apresentando o condutor uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, devendo interpretar- se o nº 2 do artigo 87º do novo Código da Estrada no sentido de punir, como contra-ordenação, a condução com taxa de álcool (apenas) até 1,2g/l.
Em termos muito sumários foi a seguinte a fundamentação do parecer:
- Apontar a respectiva Lei de Autorização (Lei nº 63/93, de 21 de Agosto) para que a punição como actos ilícitos de mera ordenação social se reportasse apenas à matéria do novo Código da Estrada (cfr. o artigo 1º e o nº 2, alínea a), do artigo 2º da referida Lei), pelo que, se assim é, a possibilidade de revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de normas de trânsito, tal como resulta do nº 4 do artigo 2º da referida Lei, haveria de ocorrer em diplomas autónomos, e, como se diz nesta disposição, sem alteração dos tipos de crime e sem agravação dos limites das sanções aplicáveis; e o mesmo se diga no que concerne à eventual revisão das normas incriminadoras constantes do Decreto-Lei nº 124/90, relativas à condução sob influência do álcool;
- Não ter havido revogação de sistema ou por substituição no tocante ao regime sancionatório da condução sob efeito de álcool - ao colocarem- se em confronto os regimes do Decreto-Lei nº 124/90, Decreto Regulamentar nº 12/90 e Portaria nº 986/92, por um lado, e as normas sobre a matéria, do novo Código da Estrada, por outro -, se bem que não haja dúvidas quanto à revogação da parte respeitante às anteriores contravenções (artigo 3º do Decreto-Lei nº 124/90),
"transformadas" em contra-ordenações.
- Não ter o Governo usado da faculdade concedida pela AR no nº 5 do artigo 2º da Lei de Autorização - possibilidade de proceder à revisão das normas penais incriminadoras relativas à condução sob influência do álcool constantes do Decreto--Lei nº 124/90 - por certo em virtude da reforma em curso do Código Penal (10), onde tais normas criminais estavam previstas (11), pelo que tais normas penais não foram revogadas.
2.6. Retomemos a matéria em causa - condução de veículos automóveis sem habilitação legal - assentando na parte que interessa:
- O Código da Estrada de 1954 (artigo 46º, nº 1) punia tal infracção, como contravenção, com multa de 100 000$00 a 500 000$00 e prisão até um mês;
- A Lei nº 31/89 concedeu autorização ao Governo para legislar em matéria de segurança rodoviária, nomeadamente "definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis, motociclos, ciclomotores e velocípedes, nas vias públicas ou equiparadas, por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito", visando essa autorização "sancionar (devidamente, entenda-se) a condução desses veículos em tais circunstâncias";
- O Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, no uso dessa autorização legislativa, depois de realçar, no seu preâmbulo, que "os elevados índices de sinistralidade" determinam a "adopção de medidas susceptíveis de desincentivarem a prática de infracções que, pela sua gravidade, põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas nacionais", previu a punição (artigo 1º) com prisão até um ano ou multa até 120 dias "quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado, nos termos do artigo 46º do Código da Estrada";
- Por outro lado, o Decreto-Lei nº 117/90, de 5 de Abril, no uso da mesma autorização legislativa, propôs-se punir, como crime, a condução de motociclos, ciclomotores e velocípedes com motor, com penas até um ano, oito meses e seis meses, ou multa até 120 dias, 80 dias e 60 dias, respectivamente, não tendo tais normas entrado em vigor (artigo 46º) por falta de regulamentação;
- O referido Assento de 20 de Maio de 1992 fixou jurisprudência no sentido de constituir crime a infracção constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril;
- A Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, veio conceder autorização ao Governo para aprovar um novo Código da Estrada;
- O Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, no uso dessa autorização legislativa - como adiante melhor se verá -, aprovou o novo Código da Estrada que, no artigo 124º, pune com coima - logo, como contra-ordenação -, a condução de veículo automóvel, ciclomotor, tractor ou máquina agrícola sem para tal estar habilitado.
A questão posta a este corpo consultivo - punição dos condutores de veículos automóveis não habilitados para o efeito: revogação, ou não, do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90; aplicação (exclusiva ou conjunta), ou não, das normas (artigo 124º e outros) do novo Código da Estrada - passa pela análise e interpretação dos pertinentes normativos da Lei nº 63/93, do Decreto-Lei nº 114/94, que aprovou o Código da Estrada, e deste último diploma, tarefa a que nos dedicaremos de seguida, começando, logicamente, pela Lei nº 63/93 e respectivos trabalhos preparatórios.
2.7. O Governo aprovou, em 22 de Abril de 1993, e apresentou na Assembleia da República uma Proposta de
Lei (12) visando ser autorizado a "aprovar um novo Código da Estrada, a revogar a legislação sobre essa matéria e a proceder à adaptação da legislação complementar" (artigo 1º).
2.7.1. Diz-se na exposição de motivos da referida Proposta:
"1- A legislação vigente em matéria de trânsito nas vias públicas carece de urgente reforma.
"[...] Com a publicação e entrada em vigor do presente Código pretende-se, pelos motivos indicados, actualizar as regras atinentes ao trânsito nas vias públicas, adaptando globalmente o sistema vigente às necessidades actuais.
"2- Não é possível enumerar nesta exposição de motivos, necessariamente sucinta, as soluções básicas, e, bem assim, as alterações mais significativas que se pretendem introduzir no Código.
"Como já se deixou referido procurou-se, em certos aspectos, restabelecer o equilíbrio entre as potencialidades que a evolução do trânsito continuamente acresce e as necessidades de segurança das pessoas e, de um modo geral, proceder à integração das regras de trânsito num todo harmónico e que ofereça garantias de estabilidade.
"Merece, neste âmbito, particular destaque a matéria da responsabilidade, pelo que substancial e formalmente tem de inovadora.
"Na linha da transformação do nosso ordenamento jurídico, adoptou-se o regime das contra- ordenações, introduzindo à legislação base do ilícito de mera ordenação social apenas as alterações que a especialidade da matéria de trânsito e sobretudo as necessidades atinentes à fiscalização aconselhavam.
"É de sublinhar a consagração, como sanção acessória, da medida de inibição de conduzir, aplicável às infracções que, pela sua especial perigosidade, põem em causa a segurança do trânsito.
"[...] 4- Medida inovadora é a cassação da licença de condução, medida de segurança a aplicar pelos tribunais...........................
"De algum modo relacionada com a cassação da licença em razão da inaptidão para conduzir, é a obrigação de submissão a testes para comprovação da aptidão do condutor...................
"[...] - Prevê-se a obrigação de submissão dos condutores a provas para detecção de intoxicação pelo álcool, de estupefacientes e de substâncias equiparadas. A matéria, pela sua especificidade, será objecto de legislação especial.
"Neste domínio, há estados de intoxicação que, pela sua extraordinária perigosidade, deverão ser objecto de normas penais incriminadoras, como sucede já com a condução sob a influência do álcool. Por isso também que a matéria deva ser objecto de legislação especial, não obstante a consagração no Código do princípio da obrigação de submissão aos testes de detecção que venham a ser estabelecidos [...]".
E foi proposto:
"Artigo 1º (Objecto)
Fica o Governo autorizado a aprovar um novo Código da Estrada, a revogar a legislação vigente sobre essa matéria e a proceder à adaptação da legislação complementar".
"Artigo 2º (Sentido e extensão)
1- O Código a aprovar ao abrigo da presente lei adoptará, em matéria de trânsito nas vias abertas ao público, um regime jurídico em conformidade com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e as recomendações dos organismos internacionais especializados, tendo essencialmente em vista a segurança dos utentes.
2- A autorização referida no artigo anterior contemplará: a) A punição, como actos ilícitos de mera ordenação social, da violação das normas disciplinadoras do trânsito nas vias abertas ao trânsito público (13);
.................................................
................................................
3- O Governo procederá à revisão da legislação vigente sobre imobilização de veículos, constante do Decreto-Lei nº 110/90, de 3 de Abril, adaptando-a ao novo Código da Estrada.
4- O Governo poderá proceder à revisão ou revogação das normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito, visando a sua adaptação às normas do Código da Estrada, desde que não sejam agravados os limites das sanções aplicáveis.
5- O Governo poderá proceder à revisão das normas penais incriminadoras relativas à condução sob influência do álcool, constantes do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, podendo alargar os pressupostos de punição à condução sob influência de estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes ou outras substâncias similares e do procedimento para sua detecção e controlo, observando os limites máximos da punição estabelecidos nesse decreto-lei e assegurando aos suspeitos garantias de controlo dos testes de detecção da influência das referidas substâncias".
2.7.2. Ao apresentar a referida Proposta de Lei na Assembleia da República (14), o Ministro da Administração Interna procurou dar uma justificação sobre as opções que o Governo tomava e estavam expressas na Proposta.
Depois de salientar "o problema da segurança rodoviária em Portugal", como "drama" e "vergonha nacional", passou a descrever algumas linhas-mestras do Código da Estrada que o Governo se propunha aprovar, como instrumento necessário para inverter a situação em Portugal, e que eram: inovação em matéria de sanções
(que o Código distingue entre leves, graves e muito graves); consagração da sanção acessória de inibição de conduzir; criação de um registo individual de cada condutor; elevação do montante das coimas; redução das velocidades permitidas; adopção do regime das contra- ordenações e não o das transgressões; controle e punição da condução sob a influência do álcool, estupefacientes ou substâncias equiparadas.
Quanto a esta matéria - condução sob o efeito do álcool - disse prever-se que a taxa de 0,5 dê origem a uma coima e a de 0,8 a essa coima em dobro e que a taxa de 1,2 constitua um crime, sujeito a outro tipo de penas para além das pecuniárias, "como aliás, está previsto no Código Penal" (15).
E nada disse o Sr. Ministro quanto à condução de veículos automóveis por quem não esteja habilitado para tanto, tal como, aliás, os Deputados que intervieram no debate.
2.7.3. Impõe-se, neste momento, conhecer a razão de ser (necessidade) desta Proposta de Lei de autorização legislativa, sabido que estas leis (de autorização) visam habilitar o Governo a legislar em matéria de reserva relativa da Assembleia da República, tal como se dispõe no artigo 168º da Constituição da República, ao estatuir:
"1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
..................................................
..................................................". c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal; d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;
.................................................
.................................................
....
2. As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada;
3. As autorizações legislativas não podem ser utilizadas mais de uma vez, sem prejuízo da sua execução parcelada;
..................................................
...............................................".
Ora, a generalidade das medidas (matérias) objecto da Proposta de Autorização em causa (cfr. o nº
2 do artigo) traduzem-se na definição da natureza do ilícito de mera ordenação social, no que toca à violação das normas disciplinadoras do trânsito nas vias públicas abertas ao público - adaptando-se, em relação a essas contra--ordenações, os princípios gerais do regime jurídico geral, previstos no Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro (16) -, dos correspondentes tipos de sanções e respectivo processo, procurando-se, pois, fixar (adoptar), um regime jurídico (um regime geral) de punição de tais actos ilícitos (cfr. a alínea d) do nº 1 do artigo 168º da CRP), em conformidade com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e as recomendações dos organismos internacionais especializados, tendo essencialmente em vista a segurança dos utentes (cfr. o nº 1 do mesmo artigo 2º).
Por outro lado, os nºs 4 e 5 do artigo 2º da Proposta (e Lei) de Autorização visavam a revisão ou revogação das normas penais incriminadoras relativas a certas matérias, nomeadamente no que toca aos pressupostos e tipos de crimes e respectivas sanções -, cabendo notoriamente essas matérias na alínea c) do nº 1 do referido artigo 168º da CRP.
Sobre esta matéria, isto é, no tocante às alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 168º da CRP, escrevem J.J.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (17):
"IX. De acordo com a al. c), pertence à reserva legislativa da AR todo o direito penal e processual penal, designadamente as matérias envolvidas nos artigos 27º a 32º da Constituição.
Note-se que pertence à reserva da AR tanto a criminalização (ou a penalização) como a descriminalização (ou despenalização) (v. AcTC nº 56/84), incluindo a passagem de infracções do direito criminal para o direito contra- ordenacional (cfr. Ac TC nº 158/88 e 177/88) [...].
"X. Em relação aos restantes direitos sancionatórios explicitamente previstos na Constituição - o direito disciplinar e o de mera ordenação social -, constitui reserva legislativa da AR apenas o respectivo "regime geral" (al. d).
Cabe assim à AR definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções, bem como os seus limites, além das regras gerais do respectivo processo incluindo o processo de execução, mas não a definição de cada infracção concreta e a cominação da respectiva pena [...]".
2.8. A referida Proposta de Lei, convertida na Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, foi aprovada apenas com uma alteração, proposta pelos Deputados do PSD (18), relativamente ao nº 4 do artigo 2º, que ficou assim redigido:
"4- O Governo poderá proceder à revisão ou revogação das normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito, visando a sua adaptação às normas do Código da Estrada, desde que não sejam alterados os tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis".
Vejamos se a análise da Lei nº 63/93, à luz dos trabalhos preparatórios recolhidos, permite concluir que a autorização legislativa concedida ao Governo comportava a inserção, no novo Código da Estrada, de uma disposição como a do nº 3 do seu artigo 124º, derrogando a norma penal incriminadora relativa à condução de veículos automóveis sem habilitação legal, definida, à data, no artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90.
2.8.1. Como resulta da exposição de motivos da referida Proposta de Lei, com a entrada em vigor do novo Código da Estrada pretendia-se, essencialmente,
"actualizar as regras atinentes ao trânsito nas vias públicas", devendo entender-se que as regras relativas à condução sem habilitação legal constituem regras sobre o "trânsito", ao menos num sentido amplo deste termo.
Contudo, na referida exposição de motivos, não se faz qualquer referência à alteração das normas vigentes relativas à punição da condução sem habilitação legal, não parecendo, pois, tal medida, uma prioridade do legislador (do Governo) que, no entanto, se propunha introduzir algumas alterações e inovações em matérias conexas ou afins, como sejam a consagração da medida de inibição de conduzir, como sanção acessória, a cassação da licença de condução, como medida de segurança a aplicar pelos tribunais, a obrigação de submissão dos condutores a testes para comprovação da sua aptidão para conduzir, a obrigação de submissão dos condutores a provas para detecção de intoxicação pelo álcool, por estupefacientes e substâncias equiparadas.
No tocante a esta última matéria - intoxicação pelo álcool e estupefacientes - o Governo salientava que esses estados de intoxicação deveriam ser objecto de normas penais incriminadoras, como já sucedia com a condução sob a influência do álcool, acrescentando-se que essa matéria deveria ser objecto de legislação especial.
Uma indiscutível intenção de desincentivar a prática de infracções no trânsito, a concretizar com a incriminação de comportamentos que, em parte - no que toca à intoxicação pelo álcool -, já eram objecto de normas penais incriminadoras.
Ora, não se vê que houvesse razões para assim se não entender no que toca à condução sem habilitação para tal - causa de tantos acidentes - que tinha sido incriminada há cerca de três anos, com o mesmo propósito de desincentivar a prática de infracções (decorrentes da condução de veículos automóveis).
2.8.2. O artigo 1º da Lei nº 63/93, como já se viu, dispôs que o Governo ficava autorizado a "aprovar um novo Código da Estrada, a revogar a legislação vigente sobre essa matéria e a proceder à adaptação da legislação complementar".
E o nº 2 do artigo 2º, explicitando a primeira parte do artigo 1º, acrescentou que a autorização referida no artigo anterior contemplaria as matérias indicadas nas 35 alíneas seguintes, três das quais se referem a "cartas ou licenças de condução", ou a "habilitação para conduzir", nos seguintes termos:
"o) A adopção, como medida de segurança, da cassação da carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contra-ordenações praticadas e da personalidade do agente, este deva ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado; p) A interdição de obtenção de carta ou licença de condução, por período até três anos, em caso de cassação da carta ou licença e condenação por condução de veículo motorizado sem habilitação legal;
.................................................
.................................................
.... z) A responsabilização dos que facultem a utilização de veículos a pessoas que saibam não estarem devidamente habilitados para conduzir [...]"
Como se vê, a autorização conferida ao Governo, na parte relativa à aprovação de um novo Código de Estrada, não contemplava a revisão da punição do ilícito "condução sem habilitação para o efeito", isto é, sem carta ou licença de condução.
O que bem se compreende na medida em que o futuro Código da Estrada assentaria na punição da violação das normas disciplinadoras de trânsito, como actos ilícitos de mera ordenação social (alínea a) do nº 2 do artigo
2º), e não se viam razões para punir, nesses termos, a "condução sem habilitação legal", que, ainda três anos antes, o mesmo Governo quis punir, como crime, com prisão até um ano ou multa até 120 dias.
2.8.3. O referido artigo 1º da Lei nº 63/93 autorizou também o Governo, como se viu, a "proceder à adaptação da legislação complementar".
A esta matéria se referem os nºs. 3, 4 e 5 do citado artigo 2º, atrás transcritos, no desenvolvimento da norma da parte final do artigo 1º.
A norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90 era legislação complementar do Código da Estrada, cabendo na previsão do referido nº 4 (do artigo 2º), que autorizava o Governo a proceder à revisão ou revogação das normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito.
No que toca a tal revisão ou revogação (das normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito"), "o citado nº 4 é bem preciso (e elucidativo) no sentido de não poderem ser "alterados os tipos de crime, ou agravados os limites das sanções aplicáveis".
Não se previa, pois, nesse nº 4 - como, aliás, na disposição afim do nº 5 do mesmo artigo 2º - a possibilidade de "despenalização" das infracções em causa e, como já atrás se disse - nº 2.8.1.-, não se viam razões para nesse sentido tal se vir a entender - em caso de futura revisão - relativamente à "condução sem habilitação legal", que deveria manter a sua natureza de ilícito criminal.
Nesta conformidade, a proceder-se à revisão do referido artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, que pune, como crime, a "condução de veículos automóveis sem habilitação legal", a norma revista não poderia ser incluída no Código da Estrada, que assenta na punição das infracções como actos ilícitos de mera ordenação social.
2.8.4. Resulta do atrás exposto que a Lei nº 63/93 não autorizou o Governo a incluir no novo Código da Estrada normas sancionatórias sobre "condução sem habilitação legal", como ilícito de mera ordenação social. O que ficou autorizado foi a revisão, necessariamente em diploma complementar, da norma incriminadora sobre essa matéria, constante, ao momento, do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, desde que não sejam alterados os tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis, o que, aliás, não foi feito, até hoje.
2.9.1. O Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, publicado no uso da autorização legislativa conferida pelo artigo 1º da Lei nº 63/93, e ainda nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, aprovou o novo Código da Estrada (artigo 1º) e revogou o Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 39672, de
20 de Maio de 1954, bem como "a respectiva legislação complementar que se encontre em oposição às disposições do Código ora aprovado" (artigo 2º), entrando estas disposições em vigor no dia 1 de Outubro de 1994.
E dispõe o novo Código da Estrada no seu artigo
124º:
"1 - Só pode conduzir um veículo automóvel (19) ou um ciclomotor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
2 - .................................................
...............................................
3 - Quem conduzir veículo automóvel, ciclomotor, tractor ou máquina agrícola sem para tal estar habilitado será punido com coima de 50 000$ a 200 000$00".
2.9.2. A norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, como vimos, constitui legislação complementar do Código da Estrada que, manifestamente, se encontra em oposição à norma do nº 3 do artigo 124º do novo Código da Estrada.
Só que já se viu que o nº 4 do artigo 2º da Lei de Autorização nº 63/93, ao autorizar o Governo a rever ou revogar as normas penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito, caso do referido artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, não permitiu a descriminalização de tais condutas, como a da "condução de veículos automóveis sem habilitação legal", o que resultou - sem autorização -da adopção da norma do nº 3 do artigo 124º do citado Código da Estrada.
Como se escreveu no Acórdão nº 158/88, de 12 de
Julho de 1988, do Tribunal Constitucional (20), sobre pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas do Decreto-Lei nº 187/83:
"[...] a verdade é que, ao mandar punir certas condutas como contra-ordenações, a disposição em causa, simultânea e implicitamente, teve como efeito que tais condutas deixassem de ser punidas como crimes de [...], já que assim eram legalmente qualificados anteriormente [...].
"Ora, como se concluíu no Acórdão nº 56/84 deste Tribunal (publicado no "Diário da República", 1ª Série, de 9 de Agosto de 1984), há-de entender-se que também a eliminação de certas condutas do quadro legal dos crimes se encontra constitucionalmente reservada à Assembleia da República pela alínea c) do nº 1 do artigo 168º.
Afirmou-se então, e reafirma-se agora:
"Esta competência exclusiva da Assembleia da República não se exerce apenas pela positiva, isto é, não se confina à modelação, por via legislativa, de crimes e penas em sentido próprio.
"Realiza-se, também, e em termos altamente significativos, pela negativa, isto é, pela supressão do quadro criminal de tipos de ilícito.
"Seria, na verdade, ilógico e inconsequente que esta última competência lhe não coubesse por inteiro, por várias razões. Em primeiro lugar, a alínea c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição não faz qualquer distinção. Em segundo lugar, a não se entender assim, a competência da AR para criar tipos de crime e penas reduzir-se-ia a zero sempre que o Governo, e de imediato, revogasse as leis penais que editasse, o que resultaria inadmissível. Em terceiro lugar, a implementação do quadro geral de ilícitos criminais e penas, em sentido estrito, reclama que, analisada detidamente a realidade social, se seleccionem, especifiquem e graduem, segundo parâmetros de referência constitucional, os comportamentos humanos infractores de bens jurídicos essenciais e se estabeleçam penas proporcionadas a cada facto; daí que a simples eliminação de um modelo de crime reflexamente altere todo o quadro, o que equivale a dizer que, neste campo, a competência negativa tem, ao cabo e ao resto, profundos efeitos positivos.
"Por estes motivos, e muito em especial pelo facto de estas duas vertentes da competência, a positiva e a negativa, não serem perfeitamente separáveis, impõe-se a interpretação de que só a
AR pode intervir legislativamente em todos estes domínios".
2.10.1. Dispõe o nº 3 do artigo 3º da Constituição da República que "a validade das leis e dos demais actos do Estado [...] depende da sua conformidade com a Constituição".
E dispõe o nº 1 do artigo 277º da Constituição da República que "são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados".
2.10.2. Como escrevem J. J. Gomes Canotilho e
Vital Moreira (21):
"XII. Tradicionalmente, efectua-se uma distinção entre três tipos de inconstitucionalidade: material, orgânica e formal. De facto, a inconstitucionalidade de uma norma consiste na ofensa da disciplina constitucional por qualquer dos seus aspectos: incompetência, vício de forma ou de procedimento, contradição entre o conteúdo da norma e o conteúdo normativo da Constituição.
Em suma, uma norma é inconstitucional sempre que viole qualquer dos aspectos constitucionalmente vinculados.
"A Constituição não conferiu relevo significativo
à distinção entre vícios formais e vícios substanciais e, consequen-temente, entre a inconstitucionalidade formal - infracção das normas sobre a forma e o processo de formação dos actos -, a inconstitucionalidade orgânica - infracção de normas de competência - e a inconstitucionalidade material - vício substancial do conteúdo do acto [...].
2.10.3. E escrevem os mesmos autores, a propósito da autorização legislativa (22):
"XXVII. A autorização legislativa é sempre limitada a uma determinada matéria. A AR não pode autorizar genericamente o Governo a legislar no âmbito da sua reserva relativa de competência; por isso, a Constituição exige que as leis definam o objecto da autorização (nº 2). Depois,
é sempre condicionada, devendo a AR definir o sentido e a extensão dela, não podendo autorizar o Governo a legislar em certa matéria, sem mais: a lei de autorização deve indicar qual o sentido e a extensão da alteração legislativa a introduzir pelo Governo. Tem de haver uma predefinição parlamentar da orientação política da medida legislativa a adoptar. Por exemplo, não basta que a AR autorize o Governo a modificar as penas para certos crimes; importa que defina o tipo de penas e determine se é para as aumentar ou para as diminuir. Destes requisitos decorre directamente o princípio da especialidade das autorizações legislativas, estando claramente proibidas as autorizações genéricas (v.g., autorização para rever os impostos sobre o rendimento; autorização para criar crimes e penas até x anos, etc.). Não é obrigatório, naturalmente, que a autorização contenha um projecto do futuro decreto-lei (como acontece com as autorizações de decretos legislativos regionais), mas ela não pode ser, seguramente, um cheque em banco".
2.10.4. Os elementos recolhidos permitem-nos concluir, sem reservas, que a norma do nº 3 do artigo
124º do vigente Código da Estrada, ao derrogar a norma incriminadora do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, substituindo-a por norma sancionando a mesma conduta com coima, como ilícito de mera ordenação social, é organicamente inconstitucional, visto ter sido editada à luz de uma lei de autorização (Lei nº 63/93) que, efectivamente, não concedeu autorização ao Governo para "descriminalizar" tal conduta, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República - artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição da República.
Vejamos quais as consequências dessa inconstitucionalidade.
2.11. Nos termos do artigo 207º da Constituição da República, "nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados".
2.11.1. Anotando esta disposição escrevem J. J.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (23):
"I. Este preceito significa que a função jurisdicional integra também a fiscalização da constitucionalidade e que os tribunais - todos e cada um deles - têm o poder e o dever de confrontar com a lei fundamental as normas infraconstitucionais que sejam chamados a aplicar, tendo de recusar-se a aplicá-las se elas não forem compatíveis com ela [...].
III. Desde que considere que uma norma é inconstitucional, o tribunal não pode aplicá-la em nenhuma circunstância - recusa de aplicação da norma inconstitucional -, salvo se em recurso o juízo de inconstitucionalidade vier a ser revogado. Tal é o teor expresso deste preceito
("não podem os tribunais aplicar"). Desaplicada a norma por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar a norma que teria de aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional - que tanto pode ser a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ao caso ou directamente uma norma constitucional -, podendo porém dar--se o caso de não subsistir qualquer norma uma vez afastada a norma julgada inconstitucional, devendo então a causa ser julgada em conformidade.
"No entanto, em matéria penal (e, por extensão, em matéria sancionatória em geral), pode haver limitações à aplicação de uma norma penal anterior, quando menos favorável ao arguido do que a norma julgada inconstitucional, por efeito do princípio constante da primeira parte do art.
29º, nº 4 (24), que proíbe a aplicação de pena mais grave do que a prevista na lei vigente no momento da conduta; nesse caso, o facto de a norma julgada inconstitucional ser mais favorável não é motivo de aplicação dela - o que repugnaria de todo em todo ao princípio da constitucionalidade -, mas de limitação do alcance da norma que em vez dela é chamada a ser aplicada ao caso (cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 175/90)".
Mais adiante escrevem os mesmos autores (25), sobre os efeitos da inconstitucionalidade por acção, em anotação ao artigo 277º da Constituição da República:
"XXIII. Se o juízo de inconstitucionalidade afecta a validade da norma desde a sua origem, de tal modo que a declaração de inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc (desde a origem da norma), então há-de ficar sem efeito o próprio acto de revogação efectuado pela norma afinal inconstitucional, pelo que o juízo de inconstitucionalidade implica a repristinação (ou reposição em vigor) das normas que tinham sido revogadas.
"A Constituição apenas prevê a repristinação no caso de declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral (art 282º-1, in-fine). Mas a mesma solução há-de valer para o juízo concreto de inconstitucionalidade, facultando ao tribunal a aplicação da eventual norma anterior, em vez da norma julgada inconstitucional. Pode suceder que a norma repristinada seja ela mesma inconstitucional, surgindo a questão de saber se o tribunal pode proceder imediatamente à respectiva apreciação. No caso do juízo concreto, assim terá de ser, pois o tribunal não pode aplicar normas inconstitucionais e não pode deixar de decidir a causa (art. 207º). Mas no caso de fiscalização abstracta é problemático se pode o TC apreciar a constitucionalidade de normas cuja apreciação não lhe foi solicitada (salvo se tiver havido pedido cumulativo). Aliás, no caso de a norma repristinada ser ela mesma inconstitucional, isso implicará a repristinação das que ela tenha revogado, e assim sucessivamente.
"Pode também ocorrer, em matéria penal ou equiparada, que as normas repristinadas sejam mais gravosas do que as julgadas inconstitucionais. Nesse caso, a repristinação não pode deixar de ter como limite o princípio de que ninguém pode ser punido por uma lei mais gravosa do que a vigente no momento da prática do crime (cfr. art. 29º-4, 1ª parte)".
2.11.2. Nos termos e para os efeitos dos artigos
281º, nº 1, alínea a), e 282º, nº 1, da Constituição da República, e a pedido do Primeiro Ministro, o Tribunal Constitucional, por Acórdão nº 56/84, de 12 de Junho de
1984 (26), declarou, por violação dos artigos 168º, nº 1, alíneas c) e d), e 189, nº 5, da Constituição, a inconstitucionalidade dos artigos 1º, nº 3, 2º, nºs 1 e
2, 3º a 5º, 6º, nºs 1 a 9, 7º, nºs 1 e 2, 8º a 12º e 27º a 29º do Decreto-Lei nº 349-B/79, de 30 de Julho (27), que despenalizou certas infracções nos domínios monetário, financeiro e cambial, que passaram a constituir contra-ordenações.
Escreveu-se nesse Acórdão, em considerações finais:
"27- A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 1º a 6º, 7º, nºs 1 e 2, 8º a 12º e 27º a
29 do Decreto-Lei nº 349-B/83, com força obrigatória geral, como já precedentemente se referiu, envolverá, nos quadros do artigo 281º, nº 1, da Constituição, a repristinação das normas da legislação revogada por aquele diploma legal definidoras de crimes e de transgressões.
Essa repristinação importará, designadamente, que os autores de factos sancionados pela mesma legislação revogada e praticados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 349--B/83 voltem a ser perseguidos criminalmente depois da declaração de inconstitucionalidade.
No entanto, por razões de segurança jurídica, dentro do espírito do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição (28), e na linha do disposto no artigo 282º, nº 4, da Lei Fundamental (29), essa repristinação não poderá ter efeitos absolutos, não poderá valer, em especial, para aqueles que hajam praticado os factos previstos na legislação revogada dentro do período de vazio legislativo balizado pelos Decretos-Leis nºs 356-A/83 e 396/83, e que decorreu entre 3 de Setembro e 2 de Novembro de 1983.
Algo semelhante a esta é a situação daqueles que tenham praticado qualquer uma das contra- ordenações ou qualquer um dos crimes previstos no Decreto-Lei nº 349-B/83, durante o período da sua vigência (de 30 de Julho a 2 de Setembro de 1983) e que - por via da mencionada declaração de inconstitucionalidade e da repristinação de normas que lhe anda ligada -, estariam sujeitos, não havendo restrições de efeitos, a serem mais gravemente sancionados, à luz de preceitos anteriores, pelas condutas então cometidas.
Na moldura dos artigos 29º, nºs 1 e 3, e 282º, nº 4, da Constituição, também aqui se imporá uma contenção do efeito repristinatório daquela declaração".
E foi decidido, em conformidade, nestes termos:
"Pelos motivos expostos, o Tribunal Constitucional:
.................................................
..........................................
"Limita os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, no que respeita à repristinação das normas revogadas pelo Decreto-
Lei nº 349-B/83, em termos de impedir que os autores de factos previstos nos diplomas legais revogados pelo Decreto-Lei nº 349-B/83, e que os hajam praticado entre 3 de Setembro e 2 de Novembro de 1983, possam ser por eles perseguidos, e em termos ainda de impedir que os autores de factos previstos no Decreto-Lei nº 349-
B/83, e que os hajam praticado entre 30 de Julho e 2 de Setembro de 1983, possam ser mais gravemente punidos na moldura da legislação revogada por aquele diploma legal."
De onde decorria que os factos praticados na vigência de tal diploma (e mesmo posteriomente), que veio a ser declarado inconstitucional com força obrigatória geral, deveriam ser punidos nos termos previstos nesse diploma - lei mais favorável -, por razões de segurança jurídica.
2.11.3. O Supremo Tribunal de Justiça apreciou posteriormente casos de desaplicação de normas organicamente inconstitucionais, em matéria penal (30).
Escreveu-se no Acórdão de 2 de Fevereiro de 1988:
"[...] os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição da República ou os princípios nela consignados, conforme o seu artigo 207º.
"Desta forma, consideradas inconstitucionais as normas em causa dos Decretos-Leis nºs 187/83 e 424/86, há que considerar repristinadas as normas correspondentes da anterior legislação sobre a matéria, que são as do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 31664, de 22 de Novembro de 1941, nos termos do artigo 282º, nº 1, da Constituição - seus artigos 36º, nº 5, e 37º, §§
4º. e 38º.
"Mas, tal repristinação não será possível, se vier a afectar preceitos fundamentais, como o do artigo 29º, nº 4, da Constituição, consignado também no artigo 2º, nº 4, do Código Penal - aplicação do regime mais favorável.
"É que dessa forma afastar-se-ia uma norma por inconstitu-cionalidade orgânica para aplicar outra materialmente inconstitucional. Afasta-se uma inconstitucionalidade orgânica para se aceitar uma inconstitucionalidade material, mais grave que aquela (31).
"Por conseguinte, há que aplicar a lei, cujo regime seja mais favorável aos arguidos.
"Segundo o Contencioso Aduaneiro a pena aplicável
é a de prisão até 2 anos, inconvertível em multa, e multa de 6 a 12 vezes a importância dos direitos devidos.
"Segundo os Decretos-Leis nºs 187/83 e 424/86, a pena aplicável é a de prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 150 dias, em caso algum inferior ao triplo do valor representado pela mercadoria.
"Verifica-se, assim, que a pena de multa é maior segundo o Contencioso Aduaneiro, mas é maior a prisão segundo os Decretos-Leis nºs 187/83 e 424/86.
"A prisão do Contenciso Aduaneiro é inconvertível em multa por força da lei, mas a dos Decretos-
Leis nºs 187/83 e 424/86 também o é em concreto (artigo 43º do Código Penal), visto não se verificarem circunstâncias que justifiquem a aplicação do artigo 74º, alínea d), do Código Penal.
"E o que conta fundamentalmente é a pena de prisão por estar em causa a liberdade, valor mais relevante do que a do património em causa na pena de multa, como resulta do artigo 71º do Código Penal.
"[...] É, pois, mais favorável aos réus o regime do Contencioso Aduaneiro que por isso há que aplicar".
2.11.4. Escreveu-se no Acórdão nº 490/89, de 13 de
Julho de 1989, do Tribunal Constitucional (32), proferido em recurso obrigatório (ex vi artigo 280º, nº 5, da Constituição) interposto pelo Ministério Público do citado acórdão de 10 de Fevereiro de 1988 do S.T.J.:
"A este propósito não se pode deixar de tecer algumas considerações sobre a decisão recorrida, que, apesar de ter julgado inconstitucionais tais normas, acabou por aplicá-las, como se referiu.
Além disso, a decisão recorrida, às normas do Decreto-Lei nº 187/83 - que era o diploma vigente
à data da infracção -, preferiu as do Decreto-Lei nº 424/86, com o argumento de este ser mais favorável ao arguido.
"Ora, nem umas nem outras podem ser aplicadas.
Desde logo, é o artigo 207º da CRP que expressamente dispõe que "nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados". Por isso, não se pode aplicar uma norma que se julga ser inconstitucional.
"Consequência necessária e automática do juízo de inconstitucionalidade é a recusa de aplicação da norma. A este propósito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:
"A não aplicação é uma consequência automática directa do juízo de inconstitucionalidade (exceptuando o caso especial do artigo 277º-2º).
Atingido este, o tribunal da causa não pode deixar de se recusar a aplicar a norma, e o TC, uma vez alcançada a convicção da inconstitucionalidade da norma em apreço, não pode deixar de confirmar a decisão que a tenha desaplicado e de revogar a decisão que a tenha aplicado. Em fiscalização concreta, não está prevista a possibilidade de "limitar os efeitos" do juízo de inconstitucionalidade, como sucede na fiscalização abstracta (cfr. Artigo 282º-4º) ("Constituição da República Portuguesa Anotada", vol. II, p. 531).
"Por outro lado, também não se justificaria a aplicação retroactiva do Decreto-Lei nº 424/86, com o argumento de que será mais favorável ao arguido do que o Decreto-Lei nº 187/83, que era o diploma vigente à data da infracção.
"É que, como este Tribunal já decidiu, no Acórdão nº 56/84 (cfr. "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 3º Vol., p. 153), o princípio da retroactividade da lei penal mais favorável não pode naturalmente conduzir à aplicação de normas posteriores inconstitucionais. É, de novo, o referido artigo 207º da Constituição que o proíbe. Este ponto é, de resto, a lição corrente na doutrina:
"Poderá parecer que há que fazer excepção às normas sancionatórias (de direito penal, disciplinar, etc.), pois a não aplicação da norma inconstitucional pode conduzir, por exemplo, à aplicação de sanções mais graves ou à diminuição das garantias de defesa. Mas isso não é razão para o tribunal da causa aplicar a norma julgada inconstitucional. A recusa de aplicação de normas inconstitucionais aos casos concretos é um afloramento da ideia de que a norma inconstitucional é inválida desde a origem. O princípio de direito criminal, de aplicação da norma mais favorável, pressupõe a validade das normas em causa, não podendo prevalecer sobre o princípio da constitucionalidade (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada", vol. II, p. 531).
"Em conclusão: sendo inconstitucionais (e tendo sido mesmo já declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral) as normas em causa, apenas há que confirmar o julgamento de inconstitucionalidade no caso concreto, o qual consequencia a impossibilidade da sua aplicação".
E mais adiante:
"A Relação de Lisboa, primeiro, e o Supremo Tribunal de Justiça, depois - e como já anteriormente se viu - entenderam que não era de aplicar estas normas (33). E fizeram-no por considerarem que a sua aplicação ao feito-crime infringiria o artigo 29º, nº 4, 1ª parte, da Constituição, que determina que ninguém pode sofrer pena mais grave do que a prevista no momento da correspondente conduta.
"Na verdade, quer no acórdão da Relação de Lisboa, quer no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça demonstra-se, com inteiro cabimento, que a pena prevista para o crime de contrabando de circulação no Contencioso Aduaneiro é mais grave que a cominada para tal crime no Decreto-Lei nº 187/83 (o diploma em vigor ao tempo da conduta ilícita imputada ao réu). Com base nesse facto, consideraram que aquelas normas do Contencioso Aduaneiro eram materialmente inconstitucionais, tendo por isso recusado a sua aplicação, aplicando, em vez delas, as normas dos diplomas posteriores, apesar de organicamente inconstitucionais, justificando-se tal preferência por se ter considerado "mais grave" a inconstitucionalidade do Contencioso Aduaneiro.
"Não pode acompanhar-se tal perspectiva. Como se mostrou atrás, não podem aplicar-se as normas dos Decretos-Leis nºs 187/83 e 424/86, pois são inconstitucionais; a inconstitucionalidade dessas normas conduz à repristinação das normas correspondentes do Contencioso Aduaneiro. Não se demonstra que essas normas padeçam de algum vício de inconstitucionalidade: como normas anteriores
à Constituição, aliás, só há que cuidar da sua conformidade material com a Constituição (CRP, artigo 293º), e não se vê incompatibilidade com a Constituição.
"O referido artigo 29º, nº 4, da CRP naturalmente que impede a sua aplicação ultra-activa, nos casos em que isso levasse à aplicação de penas mais graves do que as previstas nas leis vigentes
à data das infracções (no caso, o Decreto-Lei nº 187/83). Mas esse limite à aplicação das normas do Contencioso Aduaneiro decorre, não da sua suposta inconstitucionalidade, mas sim da aplicação directa da referida norma constitucional. A consequência é a aplicação das normas do Contencioso Aduaneiro, com o limite assinalado (ou seja, só podem ser chamadas a aplicar-se na parte em que elas não provoquem a aplicação de penas mais graves do que as previstas pela lei vigente no momento da infracção), e não a sua desaplicação global por inconstitucionalidade (que não existe).
"Deste modo, aquela disposição constitucional, ou seja, a do artigo 29º, nº 4, 1ª parte, estabelece um limite inultrapassável à repristinação. Dito de outro modo, o tribunal que desaplicar uma norma de direito penal, por inconstitucionalidade, deve ter sempre em consideração aquele referido limite constitucional quando proceder à repristinação das normas anteriores, pois estas só podem ser chamadas à colação na medida em que não infringirem aquele limite.
"No caso em análise, há a considerar não ser possível a punibilidade com a pena de prisão prevista no artigo 37º, § 4º, do Contencioso Aduaneiro, pois ela não era aplicável à infracção face ao disposto no artigo 9º, nº 5, do Decreto-
Lei nº 187/83 (tendo em conta que o valor da mercadoria é de 36 000$00, inferior portanto a 100 000$00), sendo certo também que, em relação
à multa, ela não pode exceder os limites previstos no artigo 18º, nº 1, do Decreto-Lei nº 187/83 [...]".
O Acórdão nº 175/90, de 5 de Junho de 1990, do Tribunal Constitucional (34), emitido de igual modo em fiscalização concreta, a pedido do Ministério Público (artigo 280º, nº 5, da Constituição), manteve a doutrina do Acórdão nº 490/89, rematando:
"[...] em obediência ao princípio do tratamento mais favorável consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição (35), as normas repristinadas, concretamente as normas dos artigos 36º, nº 5,
37º e § 4º e 39º do Contencioso Aduaneiro, que em si mesmas não enfermam de qualquer inconstitucionalidade, não podem determinar para o réu um tratamento sancionatório mais grave do que o resultante da aplicação das normas vigentes no momento da prática do facto criminoso. A lei inconstitucionalizada, apesar do seu expurgamento ex tunc, para este específico efeito - o do acatamento do princípio constitucional contido no artigo 29º, nº 4 - há-de ser tomada em consideração como referência limitativa da medida punitiva a impor ao agente da infracção."
2.11.5. Os citados Acórdãos nºs. 490/89 e 175/90 do Tribunal Constitucional recaíram sobre casos de desaplicação de normas penais, por inconstitucionalidade, aliás, já anteriormente declarada com força obrigatória geral, determinando, em consequência, que os acórdão recorridos fossem reformulados em conformidade com a solução dada às questões de inconstitucionalidade, nos termos expostos.
O anterior Acórdão nº 427/86, de 4 de Novembro de
1987 (36), do mesmo Tribunal, versou sobre um caso de desaplicação de norma (artigo 22º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 187/83, de 13 de Maio) que qualificava e sancionava como contra-ordenação factos anteriormente qualificados e punidos como crime pelo Contencioso Aduaneiro aprovado pelo Decreto-Lei nº 31.664, de 22 de Novembro de 1941 (37)
Depois de fundamentar a inconstitucionalidade da referida norma, por violação da norma do artigo 189º, nº
5, Constituição, o aresto limita-se a formular a seguinte decisão:
"Nestes termos, julgam inconstitucional a norma constante do artigo 22º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 187/83, de 13-5, na medida em que qualifica como contra-ordenação facto anteriormente qualificado como crime e, consequentemente, concedem provimento ao recurso e determinam a reformulação da sentença impugnada em conformidade com o agora decidido" (38) (39).
2.12. É chegado o momento de tomar posição no tocante às questões postas a este corpo consultivo.
2.12.1. Concluímos - cfr. o nº 2.10.4. - que a norma do nº 3 do artigo 124º do vigente Código de Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de
Maio, ao derrogar a norma incriminadora do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, substituindo - a por norma sancionando a mesma conduta com coima, como ilícito de mera ordenação, é organicamente institucional.
Assim sendo, nos termos do artigo 207º da Constituição da República, os tribunais não podem aplicar tal norma, por infringir "o disposto na Constituição e os princípios nela consignados".
Ao desaplicar tal norma, por motivo de inconstitucionalidade, os tribunais devem naturalmente aplicar a norma que teriam de aplicar na ausência da norma inconstitucional, e essa norma, a aplicar por repristinação, é a norma incriminadora do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril (40).
Tal como o Tribunal Constitucional - cfr. o nº 2.11.4. -, entende este corpo consultivo que, tratando- se de normas sancionatórias, e em obediência ao princípio do tratamento mais favorável consagrado no artigo 29º, nº 4, da Constituição, a norma repristinada não pode determinar para o arguido um tratamento sancionatório mais grave do que o resultante da aplicação das normas vigentes no momento da prática do facto criminoso. Como se diz no citado Acórdão nº 175/90, "a lei inconstitucionalizada, apesar do seu expurgamento ex tunc, para este efeito específico - o do acatamento do princípio constitucional contido no artigo
29º, nº 4 -, há-de ser tomada em consideração como referência limitativa da medida punitiva a impor ao agente da infracção".
2.12.2. A aplicação da doutrina adoptada não levanta dificuldades de monta quando a norma desaplicada e a norma repristinada prevêem e punem ilícitos da mesma natureza (41), sejam ilícitos criminais, sejam ilícitos contra-ordenacionais, como decorre da jurisprudência atrás citada.
No presente caso estamos perante a desaplicação de uma norma que pune certa conduta como ilícito contra- ordenacional, com coima de 50 000$00 a 200 000$00, e a repristinação de uma norma que pune a mesma conduta como ilícito criminal, com prisão até um ano ou multa até 120 dias.
É sabido que os ilícitos criminal e contra- ordenacional têm natureza distinta. Como decorre do relatório do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, deve atentar-se na "diferente natureza dos bens jurídicos" violados por tais ilícitos e na inferior "ressonância ética" das mesmas contra-ordenações em relação aos crimes.
Como escreve CAVALEIRO DE FERREIRA (42) "são estas características que no relatório se apontam como razão de distinção entre crimes e contra-ordenações e fundamentariam, mais do que uma distinção quantitativa ou qualificativa, uma diversa natureza essencial".
Em conformidade com as diversas natureza e gravidade desses ilícitos, diversas são as correspondentes sanções, quer quanto à sua natureza, quer quanto à sua gravidade: meras sanções pecuniárias (coimas) quanto às contra-ordenações, prisão e ou multa e outras nos ilícitos criminais.
No caso em análise, como vimos, estamos perante uma norma a desaplicar, que pune certa conduta (como contra-ordenação) com uma coima (sanção meramente pecuniária), e uma norma repristinada, a aplicar, punindo a mesma conduta (como ilícito criminal) com prisão, até 1 ano, ou multa até 120 dias, esta susceptível de conversão em prisão subsidiária, nos casos e termos previstos no artigo 49º do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (43).
Para além da diferente natureza dessas sanções ressalta à vista a maior gravidade das sanções correspondentes ao ilícito criminal, tendo em conta que a pena de prisão, bem assim a de multa, dada a sua eventual conversão em prisão, põem em causa a liberdade, valor bem mais relevante do que o do património.
Assim sendo, aplicando a doutrina adoptada na resolução do "conflito" em causa - resultante da desaplicação do nº 3 do artigo 124º do Código da Estrada e da repristinação do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90
-, impõe-se concluir que o Tribunal não pode aplicar a pena prevista no normativo repristinado, por se traduzir, manifestamente, num tratamento mais desfavorável, não permitido pelo nº 4 do artigo 29º da Constituição da República.
Por outro lado, dada a diferente natureza das sanções em causa, a prevista na norma desaplicada (nº 3 do artigo 124º do Código da Estrada) não pode sequer servir de referência limitativa da medida punitiva prevista no artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90.
Daí que o princípio do tratamento mais favorável consagrado no referido artigo 29º, nº 4, da Constituição imponha, no presente caso, a aplicação da sanção prevista na norma desaplicada, no nº 3 do artigo 124º do Código da Estrada (coima de 50 000$00 a 200 000$00).
2.12.3. Assim sendo, como decorre do nº 1 do artigo 255º do Código do Processo Penal (44), os infractores em causa não poderão ser detidos, mesmo em caso de flagrante delito, por qualquer autoridade judiciária ou entidade policial.
Lavrado o respectivo auto, pela autoridade competente, será iniciado inquérito, nos termos dos artigos 262º e segs. do Código de Processo Penal
3.
Termos em que se conclui:
1. A revisão ou revogação de normas penais incriminadoras constitui, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República, matéria da competência legislativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo;
2. A autorização concedida ao Governo pela Lei nº 63/93, de 21 de Agosto, para aprovar um novo Código da Estrada, revogar a legislação vigente sobre essa matéria e proceder à adaptação da legislação complementar, não contemplou a "despenalização" da "condução de veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado", conduta então punida, como crime, pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, com prisão até um ano ou multa até 120 dias;
3. A norma do nº 3 do artigo 124º do vigente Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de
Maio, no uso da autorização legislativa conferida pelo artigo 1º da Lei nº 63/93, que pune com coima de 50 000$00 a 200 000$00 quem conduzir veículo automóvel, ciclomotor, tractor ou máquina agrícola sem para tal estar habilitado, é organicamente inconstitucional, na medida em que, ao derrogar a referida norma do Decreto-
Lei nº 123/90, invadiu, sem autorização para tanto, a competência exclusiva da Assembleia da República;
4. Na medida em que é organicamente inconstitucional, a norma do nº 3 do artigo 124º do vigente Código da Estrada não pode ser aplicada pelos tribunais nos feitos submetidos a julgamento (artigo 207º da Constituição da República);
5. Desaplicada a norma do nº 3 do referido artigo 124º, nos termos e pelas razões constantes das conclusões anteriores, deverá ser aplicada aos infractores, por repristinação, a norma incriminadora do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, com limitações, visto não poder a norma repristinada determinar para o arguido um tratamento sancionatório mais grave do que o resultante da aplicação da norma vigente no momento da prática do facto ilícito, constituindo esta uma referência limitativa da medida punitiva a impor ao agente da infracção;
6. Tendo as sanções previstas nas normas desaplicada (nº
3 do artigo 124º do Código da Estrada) e repristinada (artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90) natureza diversa, não podendo, por isso, a sanção prevista na norma desaplicada constituir referência limitativa da medida punitiva, fixada na norma repristinada, e sendo manifesto que a sanção prevista nesta é bem mais desfavorável aos arguidos, na medida em que põe em causa a sua liberdade, deve o Tribunal aplicar a sanção, mais favorável, prevista na norma desaplicada (coima de 50 000$00 a 200 000$00);
7. Nestes termos, tais arguidos - "condutores sem habilitação legal" - não podem ser detidos (artigo
255º, nº 1, do Código de Processo Penal), mesmo em flagrante delito, pelas autoridades judiciárias ou entidades policiais que tomem conhecimento da infracção praticada, devendo o respectivo auto de notícia dar lugar a inquérito, nos termos dos artigos
262º e seguintes do Código de Processo Penal.


VOTOS


(António Gomes Lourenço Martins) - Vencido quanto à conclusão 6ª.
Acompanhamos a tese do parecer até onde afirma que, na repristinação subsequente à desaplicação da norma inconstitucional, devem ter-se em conta os limites resultantes da norma (organicamente inconstitucional) do Código da Estrada.
Uma vez que o regime sancionatório contraordenacional é de natureza distinta não seria comparável mas como, em definitivo, é mais favorável, na tese do parecer deve aplicar-se.
Com o devido respeito, afigura-se-me que entre multa e coima a especificidade não é tal que impeça a comparabilidade, mesmo quando se atente nas sanções acessórias.
Como se frisa em outro lugar, o resultado final obtido pela maioria que fez vencimento é de aplicação do conteúdo da lei considerada inconstitucional, servindo- se, o que não deixa de ser incongruente, do processo- crime (inquérito).
Dada a fluidez da matéria, porventura carecida de intervenção legislativa, entender-se-ia como mais adequada outra interpretação.
O operador judiciário do direito - e só se entende que as autoridades policiais venham a seguir esta orientação na medida em que lhes seja imposta pela autoridade judiciária competente, neste caso o Ministério Público - não deve aplicar a lei inconstitucional, embora não tenha sido ainda declarada tal inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nem violar o princípio do tratamento mais favorável (artigo 29º, 4 da Constituição da República).
A meu ver, procederá do seguinte modo: considerada inconstitucional a norma do Código da Estrada, aplica a norma correspondente do Decreto-Lei nº 123/90, segundo as regras próprias do processo-crime, mas tendo como limite concreto na fixação da pena o que resulta da sua comparação com a coima prevista na lei (inconstitucional), nomeadamente quanto à multa que não poderá exceder aquele montante pecuniário da coima.
Respeitar-se-iam os princípios sem afronta das regras de processo.


(Eduardo de Melo Lucas Coelho) - Vencido nos termos do voto do meu Excelentíssimo Colega Dr. Salvador da Costa, admitindo, todavia, que o Tribunal Constitucional possa, mas no uso da faculdade prevista no nº 4 do artigo 282º da Constituição, determinar a aplicação da norma (anterior) repristinada de forma tendencialmente correspondente aos limites definidos na norma (posterior) declarada inconstitucional.
Creio, porém, tratar-se de faculdade exclusiva do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta, que de nenhum modo assiste ao tribunal comum quando, em concreto, cumpre o dever - indeclinável - de não aplicar normas inconstitucionais.


(Salvador Pereira Nunes da Costa) - Voto vencido quanto às conclusões 5ª e 6ª pelas razões que, sucintamente, passo a expor:
I
1. O artigo 207º da Constituição determina que nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o nela disposto, incluindo os princípios.
O tribunal que considere uma norma inconstitucional terá que aplicar aqueloutra que vigoraria não fora a sua substituição.
A tese do parecer, sufragada, aliás, pela jurisprudência dos nossos mais altos tribunais, conduz, no fundo, à aplicação da norma repristinada por a norma posterior ser inconstitucional, e à aplicação desta, na medida em que vai funcionar como limite aos efeitos da norma repristinada.
Na solução do parecer o limite superior da moldura sancionatória é, com efeito, extraído da norma considerada inconstitucional.
2. A identificação das normas válidas é uma prioridade em relação à consideração do princípio da lei posterior mais favorável consagrado no nº 4 do artigo
29º da Constituição, sob pena de qualquer órgão do Estado, sem a pertinente competência legislativa, estar habilitado a descriminalizar condutas, porque, embora a norma dele emanada fosse considerada inconstitucional, sempre produziria, na prática, os efeitos que visava.
3. A repristinação pura e simples da norma que se pretendeu revogar não viola, a nosso ver, o princípio constitucional ínsito no nº 4 do artigo 29º da Constituição.
Com efeito, prevê-se, na primeira parte daquele normativo, a sucessão de duas normas penais sobre a mesma conduta, sendo a segunda a mais gravosa, pelo que se o facto foi cometido do domínio da lei anterior não se lhe poderá aplicar a lei nova.
Na segunda parte do preceito, por seu turno, prevê- se a situação inversa, ou seja, a de a lei nova ser mais favorável ao arguido, caso em que, não obstante o facto ter sido cometido no domínio da lei anterior, a mais gravosa, é de aplicar a lei nova mais favorável, retroactivamente.
Assim, o preceito não prevê, e não tinha que prever, por não configurar uma situação de aplicação de leis no tempo, o caso de haver duas leis a regular sucessivamente a mesma situação, sendo a segunda mais favorável, quando o facto tiver sido cometido depois do início da vigência desta última.
4. A Constituição não conferiu relevo significativo à distinção entre vícios formais e substanciais e, portanto entre inconstitucionalidade orgânica e inconstitucionalidade formal e material. A reserva da Assembleia da República em matéria penal contende também com a segurança dos cidadãos e não pode ser menosprezada face à invocada segurança do arguido.
A contemplação do interesse deste, colocado no que reputamos ser o seu devido lugar, circunscreve-se à consideração da sua expectativa numa sua menos severa punição, se conhecia a lei nova mais favorável, e a nada mais.
Se o agente actuou conhecendo a lei nova e actuaria igualmente face à lei antiga, não chegou a determinar a sua conduta pela expectativa de menor punição. Só se a esperança numa menor punição foi motivo a pesar na sua resolução de cometer o acto é que as suas expectativas ficaram goradas.
Será que, neste caso, o delinquente merece da ordem jurídica alguma protecção, apesar de, no calculismo da sua conduta, ela se revelar violadora da ordem jurídico-penal que conhecia?
Obviamente que, configurado o erro, ele seria irrelevante.
Se a falsa representação do direito, aqui consubstanciada na ignorância da inconstitucionalidade das normas novas, conduz à suposição da menor sanção, o legislador desinteressa-se dessa eventual expectativa do agente.
Na mundividência do cidadão comum, a degradação duma conduta de ilícito criminal em ilícito contra- ordenacional aproxima-se da ideia de punição mais leve, e não da de que o comportamento se tornou lícito, certo que o sistema das contra-ordenações ainda é um sistema sancionatório de carácter punitivo.
Serve para dizer que, nos casos em que a prova revelar que o agente actuou motivado pelo facto da sua conduta constituir ilícito menos grave, deverá o julgador levar tal circunstância em conta, para efeitos atenuantes gerais (46).
II
À guisa de conclusão dir-se-á que a decisão de desaplicação do estatuído no nº 3 do artigo 124º do Código da Estrada implica a aplicação no caso concreto, sem limitação ou adaptação, do nº 1 do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, sem prejuízo de a frustação de justificada expectativa do arguido ou menor gravidade da sanção cominanda relevar em sede de medida da pena.
III
Pelo exposto, substituiria as conclusões 5ª e 6ª pelas seguintes:
5ª. Desaplicando o normativo do nº 3 do artigo
124º do Código da Estrada, "repristina", para o caso concreto, sem qualquer limitação, o estatuído no artigo
1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril.
6ª. A frustação da justificada expectativa dos arguidos na menor gravidade da sanção cominanda, é susceptível de relevar em sede determinativa do "quantum" sancionatório.


(Luis Novais Lingnau da Silveira) - 1. Votei o parecer, com a declaração de que considero que às situações nele contempladas se aplica, directa e integralmente, o nº 3 do art. 124º do Código da Estrada, não por virtude da relevância da lei mais favorável, mas, sim, por força das regras gerais consignadas no artigo 29º, nºs 1 e 4, da Constituição, segundo as quais os factos são criminalmente aferidos e punidos em função da lei em vigor à data em que são praticados.
Na verdade, a aludida disposição legal, apesar de organicamente inconstitucional, continua em vigor, por não haver ainda sido declarada, com eficácia geral, desconforme à Lei Fundamental pelo Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º desta.
Ou seja, dito por outras palavras: apesar de afectada na sua validade por vício de inconstitucionalidade, a mencionada regra legal continua, de acordo com o sistema de apreciação da inconstitucionalidade adoptado pela Constituição de
1976, a produzir efeitos até que tal vício seja porventura declarado pelo Tribunal Constitucional.
É, pois, esta a norma que os cidadãos conhecem como vigente, sendo por isso natural que por ela pautem a sua conduta - independentemente de ela poder vir a ser mais tarde judicialmente considerada inconstitucional.
2. Não está, assim, na apreciação actual das condutas que constituem objecto do parecer, em causa qualquer problema de repristinação da lei (mais severa) anterior ao referido artigo 124º. nº 3 do C.E..
Atente-se, a propósito, em que, em contraponto, nos casos tratados na jurisprudência do Tribunal Constitucional citada no parecer (que decidiu segundo o critério de aplicação da lei mais favorável) já ocorrera a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da lei nova - por isso tendo sentido, aí, falar de repristinação da lei antiga.
3. Aliás, entendo que, mesmo que, na hipótese ora em análise, venha a ser declarada, com eficácia geral, a inconstitucionalidade do preceito em questão, tal não obsta a que, à data dos factos em causa, ele estivesse em vigor - e por isso se lhes aplicasse, nos termos do artigo 29º da Constituição.
4. Não pode, é certo, desconhecer-se que o Tribunal que porventura vier a apreciar qualquer das situações concretas em discussão terá, mesmo antes de qualquer declaração genérica do Tribunal Constitucional, e face ao estabelecido no artigo 207º da Constituição, de tomar posição acerca da não aplicação do artigo 124º, nº 3 do C.E., no caso "sub judice", se o considerar inconstitucional.
Mas o que sucede é que, procurando-se ajuizar de qual a atitude acertada a tomar pelas autoridades policiais, estas não poderiam agir em função da decisão que presumissem poder vir a ser a do Tribunal.
E, mesmo que se entenda a intervenção policial, neste âmbito, como pré-judicial, ou funcionalmente relacionada com a actividade do Tribunal, a verdade é que os elementos das forças policiais não têm competência para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade das normas.
Aliás, o próprio Tribunal que vier a apreciar, em concreto, alguma das situações do tipo das contempladas neste parecer, deverá, tudo ponderado, acabar por aferi- las em função do artigo 124º, nº 3 do C.E..
É que esse Tribunal ver-se-á, então, perante dois preceitos constitucionais cuja relevância conjunta se não torna possível: o do artigo 207º, ordenando que não aplique normas inconstitucionais, e o do artigo 29º, que manda que os actos devam ser criminalmente qualificados e punidos em função da lei vigente à data da respectiva prática.
Ora, entre estas duas normas, deve prevalecer, sobre a que ostenta conotação sobretudo formal, a que possui evidente conteúdo material, a ponto de caracterizar um dos "direitos, liberdades e garantias" essenciais para a configuração dum Estado de Direito.

_______________________________
1) A referida Informação foi elaborada na sequência de um pedido de esclarecimento apresentado pelo Comando-
Geral da PSP que considerava ter o artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, sido revogado com a entrada em vigor do Código de Estrada - o qual passou a prever e punir tal infracção com coima -, entendimento que não era perfilhado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, em vários acórdãos, considerara que o referido artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90 não fora revogado, continuando, assim, tal infracção (a condução de veículos automóveis por condutores que para tal não estão habilitados) a ser punível como crime.
2) Foram juntas fotocópias dos acórdãos de 21-12-94 e 4-
1-95, exarados nos processos nºs 9440841 e 9450226, respectivamente, de onde se retira não ter havido dúvidas, por parte do Tribunal, de que a conduta em causa é hoje punível pelo artigo 124º do novo Código da Estrada, como ilícito de mera ordenação social (contra-ordenação) - acórdão de 21-12-94 -, por terem sido revogados o Código da Estrada de 1954 e a respectiva legislação complementar que se encontrasse em oposição às disposições do Código ora aprovado e tal conduta se situar agora na previsão do referido artigo 124º, como contra-ordenação - acórdão de 4-1-
95.
3) Foram juntos os acórdãos de 22-3-95 e 17-5-95, exarados nos processos nºs 33866 e 33588, o primeiro no sentido da não revogação do artigo 1º do Decreto-
Lei nº 123/90, o segundo no sentido da revogação dessa disposição, não constando do acórdão os fundamentos da revogação, que fora apreciada em exame preliminar.
Como fundamento da não revogação (da não descriminalização) foram indicados no referido acórdão de 22-3-95 da Relação de Lisboa os seguintes:
- Não se vislumbra no Decreto-Lei nº 124/94 nenhuma norma que revogue expressamente o artigo 1º do citado Decreto-Lei nº 123/90, que sendo embora um diploma complementar do Código da Estrada de 1954 (cfr. artigo
2º daquele diploma), não está em oposição com o artigo
124º, nº 3, do novo Código da Estrada, pois podem perfeitamente coexistir;
- e não existe oposição de regimes entre o crime previsto no Decreto-Lei nº 123/90 e a contra-ordenação do artigo 124º, nº 3, do actual Código da Estrada, porque está previsto na lei - artigos 20º do Decreto-
Lei nº 433/82 e 135º e 138º do novo Código da Estrada
- que um mesmo facto possa ser considerado simultaneamente crime e contra-ordenação, sendo então o agente punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação;
- assim sendo, o facto de o artigo 124º, nº 3, do novo Código da Estrada considerar a condução de veículo (...), sem para tal estar habilitado, como contra- ordenação, não impede que uma outra lei, no caso o Decreto-Lei nº 123/90, considere parte desses factos como crime, não colhendo o argumento de que, assim, o artigo 124º, nº 3, do novo Código da Estrada fica esvaziado de sentido, pois o artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90 só contempla como criminosa a condução sem carta de veículo automóvel ligeiro e pesado, enquanto que o novo Código da Estrada prevê como contra- ordenação não só esse mesmo facto, como ainda a condução sem carta de ciclomotores, tractores ou máquinas agrícolas, situação similar à que ocorre quanto à condução de veículos sob a influência do álcool.
4) O Decreto-Lei nº 117/90, de 5 de Abril, propôs-se regular a circulação dos veículos de duas ou três rodas (motociclos, ciclomotores e velocípedes), substituindo, designadamente, o artigo 54º do Código da Estrada.
Dispunha o artigo 38º do Decreto-Lei nº 117/90:
"As licenças de condução de ciclomotores e de velocípedes são emitidas pelas câmaras municipais [...]".
Por falta de regulamentação, o referido Decreto-Lei não chegou a entrar em vigor, visto que, como consta do seu artigo 58º, "os artigos 1º a 56º entram em vigor seis meses após a publicação da regulamentação prevista no artigo anterior".
5) Desta tarefa se encarregou o Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, como adiante melhor se verá.
6) No tocante à condução de motociclos, ciclomotores e velocípedes com motor por condutores não habilitados, o Decreto-Lei nº 117/90, de 5 de Abril, veio qualificar tal conduta de crime, punível, conforme os casos, com prisão até 1 ano, 8 meses e 6 meses, ou multa até 120 dias, 80 dias e 60 dias.
Escreveu-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 117/90, decretado no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 1º, alíneas c) e e), do artigo 2º da Lei nº 31/89:
"A rápida evolução do parque nacional de veículos de duas ou três rodas e o progresso que se tem verificado na construção e equipamento dos veículos vêm determinando condições bem diversas das que se registavam há pouco mais de uma dezena de anos.
......................................................
......................................................
...................
Por último, a necessidade de harmonizar a legislação nacional com as normas comunitárias nesta matéria determina que sejam reajustadas, em diploma autónomo, as actuais disposições do Código da Estrada, no que respeita a estes veículos, sem prejuízo do adequado enquadramento jurídico aquando da publicação do novo Código da Estrada."
E dispôs o diploma em causa nos artigos 31º, nº 1, 46º e 51º, nº 1:
"Artigo 31º - 1- A condução nas vias públicas ou equiparadas de motociclos, ciclomotores e velocípedes só é permitida a quem estiver habilitado para o efeito".
"Artigo 46º - 1- A condução de motociclos A3 e A2 em infracção ao disposto no nº 1 do artigo 31º constitui crime punível com prisão até um ano ou multa até 120 dias.
2- A condução de motociclos A1 em infracção à mesma disposição legal constitui igualmente crime punível com prisão até oito meses ou multa até 80 dias.
3- A condução de ciclomotores em infracção àquela disposição legal constitui também crime punível com prisão até seis meses ou multa até 60 dias.
4- A condução de velocípedes com motor em infracção ao disposto no nº 1 do artigo 51º constitui crime punível com prisão até seis meses ou multa até 60 dias".
"Artigo 51º 1- Os titulares de licença de condução de velocípedes com motor à data da entrada em vigor do presente diploma ficam habilitados a conduzir velocípedes com motor, ciclomotores e velocípedes."
Como atrás se disse - cfr. nota (4) - o Decreto-Lei nº 117/90 não chegou a entrar em vigor.
7) Publicado no "Diário da República", I Série-A, de 10/7/92, pág. 3273.
8) Publicado no "Diário da República", II Série, de 14/12/94.
9) O artigo 2º, nº 2, alínea e) do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que reviu o Código Penal, revogou os artigos 2º, 4º, nº 2, alínea a) e 5º, nº 1, do Decreto-
Lei nº 124/90, sendo o ilícito daquele artigo 2º integrado no Código Penal (artigo 292º) em termos muito próximos, sendo punida a condução com a mesma taxa de álcool no sangue - 1,2g/l.
10) A Proposta de Lei com vista à revisão do Código Penal está publicada no Diário da Assembleia da República",
II Série, de 24.02.94. Todavia, à data da discussão da Autorização Legislativa do Código da Estrada, em meados de 1993, já eram conhecidos os trabalhos de revisão do Código Penal, nessa parte.
11) Cfr. nota (9), 2ª parte.
12) Proposta de Lei nº 62/VI, publicada no "Diário da Assembleia da República", II Séria-A, nº 38, de 5 de
Junho de 1993.
13) Seguem-se 34 alíneas, que não interessam sobremaneira
à economia do parecer.
14) Cfr. "Diário da Assembleia da República", I Série, nº
90, de 1/7/93.
15) Referia-se, naturalmente, ao Projecto do Código Penal. Cfr. o artigo 292º do Código Penal que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
16) Alterado pelos Decretos-Leis nºs 365/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro.
17) "Constituição da República Portuguesa Anotada",
3ª edição, 1993, pág. 672.
18) A referida Proposta de alteração, desacompanhada de qualquer justificação, está publicada no suplemento ao "Diário da Assembleia da República", II Série-A, nº
45, de 1 de Julho de 1993.
19) O artigo 109º deste Código classifica os veículos automóveis em "a) motociclos; b) automóveis ligeiros; c) automóveis pesados".
O artigo anterior dispõe que são veículos automóveis todos os veículos de tracção mecânica destinados a transitar pelos seus próprios meios nas vias públicas
(nº 1), exceptuando-se do disposto no número anterior os veículos de duas rodas munidos de motor térmico de propulsão de cilidrada não superior a 50 cm3 e que, por construção, não atinjam em patamar uma velocidade superior a 45 Km/h (nº 2).
20) Publicado em "Acórdãos do Tribunal Constitucional",
12º vol. (1988), págs. 151 e segs..
No mesmo sentido cfr. os Acórdãos nºs 175/85 e 427/86 do Tribunal Constitucional, publicados no "Diário da República", II Série, de 8/1/86 e 5/1/88, respectivamente. Neste último se diz que "esta linha jurisprudencial (foi) sempre ulteriormente mantida
...".
21) Ob. cit., pág. 991.
22) Ob. cit., pág. 678.
23) Ob. cit., págs. 796/797.
24) Nº 4 do artigo 29º da Constituição da República:
"Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da averiguação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido".
25) Ob. Cit., pág. 997.
26) Já atrás citado (cfr. o nº 2.9.2) e publicado, também, em "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 3º vol. (1984), pág. 153.
27) O Decreto-Lei nº 349-B/83, de 30 de Julho, que não teve vacatio legis, foi revogado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 356-A/83, de 2 de Setembro, que entrou em vigor no dia imediato ao da publicação. Por sua vez o artigo único do Decreto-Lei nº 396/83, de 29 de Outubro, que passou a vigorar a 3 de Novembro seguinte, fez renascer toda a legislação revogada pelo Decreto-Lei nº 349-B/83. Como se mostra no referido aresto, verifica-se um vazio legislativo balizado pelos Decretos-Leis nº 356-A/83 e 396/83, que ocorreu entre 3 de Setembro e 2 de Novembro de 1983, na sequência da revogação pura e simples do Decreto-Lei nº 349-B/83.
28) Artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição:
"1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medidas de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
2.
......................................................
......................................................
.....................
3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior".
29) Artigo 282º, nº 4, da Constituição:
"4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos nºs 1 e 2".
30) Cfr. os Ácórdãos de 2/2/88, 10/2/88 e 2/3/88, no "Boletim do Ministério da Justiça", nºs 374, págs. 188 e 196, e 375, pág. 208, respectivamente, todos sobre a mesma matéria (contencioso aduaneiro - crime de contrabando de circulação).
31) Como nota RUI PEREIRA, "A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido", em "Revista Portuguesa de Ciência Criminal".
Ano I, Fasc., 1, 1991, pág. 56, "a nível doutrinário esta tese é sufragada, em Itália, por autores como ANTOLISEI ("Manuale di Diritto Penale, Parte Generale", 9ª ed., 1982, pág. 95), GALLO ("La disapplicazione per invalidità costituzionale della legge penale incriminatrice", RIDP, 1956, pág. 741),
SPASARI ("Diritto Penale e Costituzione", Milano,
1966, pág. 45) e GIUSINO ("Effetti dela Dichiariazione de Incostituzionalitá delle Leggi Penal", RIDP, 1982, pág. 916), que em matéria penal, recusam que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade possam prejudicar o arguido. Entre nós, JORGE MIRANDA ("Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal",
"O Direito", 1989, IV, pág. 699) e TAIPA DE CARVALHO ("Sucessão de Leis Penais", Coimbra, 1990, pág. 289 e segs.).
Escreve JORGE DE MIRANDA no citado local:
"E se a declaração de inconstitucionalidade envolver a repristinação de uma lei menos favorável ao arguido do que a lei declarada inconstitucional?
"Por identidade de razão, por força do mesmo princípio de adequação do tratamento jurídico - criminal à liberdade e segurança individual é óbvio que a lei repristinada não pode ser aplicada ao arguido. Muito menos, se a lei declarada inconstitucional não previsse ou deixasse de punir o facto, visto que, nesse caso, a repristinação da lei anterior redundaria em retroactividade".
32) Publicado em "Acórdãos do Tribunal Constitucional",
14º vol. (1989), págs. 197 e segs.
33) Os artigos 36º e 37º do Contencioso Aduaneiro (Decreto-Lei nº 31664, de 22/11/41).
34) Publicado no "Diário da República", II Série, nº
17, de 21/1/91, pág. 693.
35) Escreve RUI PEREIRA, ob. e loc. cits, pág 63, a este propósito:
"A aplicabilidade da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido pressupõe a existência de um conflito entre dois preceitos constitucionais: o que obriga os tribunais a julgar segundo a Constituição (artigo 207º) e o que lhes manda aplicar o regime mais favorável (artigo 29º, nº
4). Na resolução do conflito, privilegia-se a segunda norma.
"No plano sistemático-formal, esta solução radica no entendimento de que o dever de julgar segundo a Constituição impõe o respeito pelos princípios constitucionais - incluindo, precisamente, o do favorecimento do arguido. Materialmente, parece ter peso decisivo a consideração das expectativas dos cidadãos, que não devem «... pagar os erros, as inadvertências os abusos da função legislativa...:
(como se pronunciou o Conselheiro MESSIAS BENTO, em declaração de voto ao acórdão nº 56/84, "Acórdão do Tribunal Constitucional", 1984-3º, págs. 153 e segs).
36) Publicado no "Diário da República", II Série, de 5-1-
88, pág. 99.
37) O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto pelo Ministério Público, em obediência ao disposto no artigo 280º, nº 5, da Constituição, de decisão do 1º juízo do Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa que condenou o arguido como autor de uma contra- -ordenação de descaminho de direitos, prevista e punida nos artigos 22º, nº 1, al. a), e 24º, nº 1, do Decreto-Lei nº 187/83, na coima de 1 000 000$00 e no pagamento de outras quantias, quando tal norma já fora anteriormente julgada inconstitucional no Acórdão nº 173/85 do T. C..
38) Decorre do Acórdão nº 427/86 que os factos ilícitos em questão tinham sido praticados no decurso da vigência da norma desaplicada (artigo 22º, nº 1, al. a), do Decreto-Lei nº 187/83).
39) Não foi localizada decisão do Tribunal Constitucional que tenha esclarecido os termos decorrentes da desaplicação de norma contra-ordenacional com repristinação de norma penal.
40) Deve ter-se em conta que os tribunais não dispõem de poderes idênticos aos do Tribunal Constitucional, consignados no nº 5 do artigo 282º da Constituição, no sentido de, ao declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, poder fixar os efeitos de inconstitucionalidade com alcance mais restritivo, isto é, a partir de data posterior à entrada em vigor de norma inconstitucional.
41) Assim sucedia nos casos versados nos Acórdãos do S.T.J. referido na nota (30) e nos citados Acórdãos nºs 490/89 e 175/90 do Tribunal Constitucional, em que estavam em causa normas punindo ilícitos criminais.
42) "Lições de Direito Penal", I, 1987, pág. 44.
43) Haverá ainda a considerar, quanto à pena correspondente ao ilícito criminal em causa, outros efeitos gravosos, como seja a possibilidade de a condenação poder fazer incorrer o arguido, posteriormente, em reincidência (cfr. artigo 75º do Código Penal).
44) Artigo 255º, nº 1, do Código de Processo Penal:
"1 - Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão: a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção; b) Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil".
45) Neste sentido, RUI PEREIRA, artigo citado na nota
31ª.
46) Neste sentido, RUI PEREIRA, artigo citado na nota
31ª.
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART3 ART29 ART168 N1 C D ART207 ART277 ART282 N4.
CE54 ART46 N1 ART47 N1 ART54 N1.
CE94 ART87 ART124 N1 N3.
DL 290/86 DE 1986/09/10.
L 31/89 DE 1989/08/23 ART2 ART3.
DL 117/90 DE 1990/04/05.
DL 123/90 DE 1990/04/14 ART1 ART2 N1 ART12 N1.
DL 124/90 DE 1990/04/14 ART1 ART2 N1.
L 63/93 DE 1993/08/21 ART1 ART2 ART4.
DL 114/94 DE 1994/05/03 ART2.
Jurisprudência: 
ASS STJ DE 1992/05/20 PUBLICADO NO DR I S-A DE 1992/07/10.
AC TC 56/84 DE 1984/06/12.
AC TC 427/86 PUBLICADO NO DR II S DE 1988/05/11.
AC TC 158/88 DE 1988/07/12.
AC TC 490/89 DE 1989/07/13.
AC TC 175/90 PUBLICADO NO DR II S DE 1991/01/21.
Referências Complementares: 
DIR CRIM / DIR ESTRAD / DIR ORDN SOC / DIR CONST.
Divulgação
Pareceres Associados
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