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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
34/1993, de 11.10.1994
Data do Parecer: 
11-10-1994
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Justiça
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
CIDADÃO NACIONAL
NACIONALIDADE
CONSERVAÇÃO DA NACIONALIDADE
PERDA DE NACIONALIDADE
APATRIDA
CIDADANIA PORTUGUESA
PRIVAÇÃO DE CIDADANIA
ABUSO DE DIREITO
NASCIMENTO
EX-COLÓNIA PORTUGUESA
INDEPENDÊNCIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO
Conclusões: 
1 - À luz do artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 26, ns 1 e 3, da Constituição da República, a privação, por acto dos poderes públicos, do direito fundamental da nacionalidade tem como limite negativo, sob pena de arbitrariedade, o risco de criação de situações de apatridia;
2 - A perda da nacionalidade portuguesa a que alude o artigo 4 do Decreto-Lei n 308-A/75, de 24 de Junho, deve, por interpretação ou integração em conformidade com o artigo 15 da Declaração Universal (artigo 16, n 2, da Constituição) e com o artigo 26, ns 1 e 3, da mesma lei fundamental, ser entendida com o conteúdo resultante do referido limite;
3 - Atentas as conclusões anteriores, o cidadão português Mário Jorge Almeida Ferreira Pó não perdeu a nacionalidade portuguesa por aplicação do artigo 4 do Decreto-Lei n 308-A/75;
4 - Acresce que os factos descritos na consulta lhe determinaram situações que pressupõem, em princípio, a condição de nacional português, obtendo acolhimento por parte das autoridades portuguesas mercê de actos consilidados pela prática implicando o reconhecimento da mesma cidadania.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça,
Excelência:
 
 
«La nationalité est un lien juridique ayant à sa base un fait social de rattachement, une solidarité effective d'existence, d'intérêts, de sentiments jointe à une reciprocité de droits et de devoirs.
«Elle est, peut-on-dire, l'expression juridique du fait que l'individu auquel elle est conférée, soit directemente par la loi, soit par un acte d'autorité, est, en fait, plus étroitement attaché à la popula-tion de l'État que la lui confère qu'à celle de tout autre État.»
 
 
I
Diz-nos o Gabinete de Vossa Excelência que, não obstante a existência dos estreitos vínculos que definem materialmente a na-cionalidade, na máxima do Tribunal Internacional de Justiça acima recortada (1), determinados Serviços consideram haver perdido a nacionalidade, nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de Junho, o cidadão Mário Jorge Almeida Ferreira Pó, reconhecido durante anos como português pela Administração Pública.
E daí a interrogação: será constitucionalmente legítimo ques-tionar no caso a nacionalidade?
Na Informação de um Assessor de Vossa Excelência equa-ciona-se a situação:
«Assunto: Nacionalidade Portuguesa de Mário Jorge Almeida Ferreira Pó.
«1. Mário Jorge Almeida Ferreira Pó, natural dos ex-territórios ultramarinos, filho de pais portugueses (cujas nacionalidades se encontram asseguradas em face da lei geral aplicável à data dos seus nascimentos), regressou a Portugal, ainda menor, com aqueles, em Janeiro de 1975.
«2. Por tal facto, não lhe podia ter sido aplicável o disposto no artº. 1º (em 24/6/75 já não se encontrava ¾ nem os seus pais ¾ domiciliado nos ex-territórios ultramarinos) ou no artº.2º (também não se encontravam domiciliados em Portugal há mais de 5 anos em 25/4/74), razão por que perdeu a nacionalidade portuguesa ao abrigo do artº. 4º, todos do D.L. nº 308-A/75, de 24/6.
«3. Poderia, contudo, tê-la conservado (tal como aconteceu com alguns dos seus irmãos, nada indicando que, para ele, fosse adoptada solução diferente) se tivesse accionado os mecanismos previstos no artº. 5º daquele diploma.
«4. Mal informado, porém, o seu pai prestou, na Conservatória do Registo Civil de Santarém, declaração no sentido de ser mantida àquele a nacionalidade portuguesa, declaração que, de boa-fé, julgava ser suficiente para o efeito pretendido.
«5. O certo é que, sendo embora tal declaração irrelevante para o fim em vista ¾ por falta de preceito legal em que se apoie ¾ foi suficiente para criar a convicção no Mário Pó e em diversos serviços públicos da Administração Portuguesa de que chegara para conservar a nacionalidade portuguesa. Atestam-no a passagem de Bilhete de Identidade, a prestação de serviço militar e a passagem da Carta de Identificação Militar, o actual provimento em funções públicas e o exercício do direito a voto e a passagem de Cartão de Eleitor.
«6. Foi, entretanto, revogado o D.L. nº 308-A/75, ressalvan-do-se apenas a «sua aplicação a todos os pedidos ... que, formulados nos termos do seu artigo 5º, se encontrem pendentes ... à data da entrada em vigor» da Lei nº 113/88, de 29 de Dezembro. Inviabilizou-se, assim, a sua aplicação ao Mário Pó.
«7. Só em 1990, quando da renovação do Bilhete de Iden-tidade de Mário Pó, concluíram os serviços que este não conservou nem (re)adquiriu a nacionalidade portuguesa.
«8. A Conservatória dos Registos Centrais, não manifestan-do qualquer dúvida sobre a legitimidade e a boa-fé da pretensão de Mário Pó, sugere o recurso à via da naturalização prevista nos artigos 6º e 7º da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro.
«9. Sem excluir que, em última análise, seja essa a via indicada para o efeito, repugna, contudo, que o requerente adquira a nacionalidade portuguesa em vez de esta lhe ser atribuída desde o nascimento.
«10. O recurso ao artº. 41º do D.L. nº 322/82, de 12/8, no sentido de se presumir a nacionalidade portuguesa dos indivíduos nascidos em território sob administração portuguesa antes de 8/10/81, em conformidade com a legislação anterior, desde que ¾ como é o caso do Mário Pó ¾ o respectivo registo de nascimento não contenha a menção de qualquer circunstância que contrarie tal presunção, é aliciante. Não nos parece, contudo, aconselhável na medida em que nem o âmbito de aplicação pessoal da norma abrange casos como o de Mário Pó ¾ recorde-se que, à data, ainda se encontrava em vigor a disposição do D.L. nº 308-A/75 que lhe permitia requerer a conservação da nacionalidade portu-guesa, mecanismo, obviamente, que não podia coexistir com tal presunção, a qual, como se compreende, se existisse, dispensá-lo-ia ¾ nem a referida presunção é inilidível: ora, a existir, bem se poderia dizer que foi ilidida em 1990.
«11. No entanto, será constitucionalmente legítimo questio-nar a nacionalidade portuguesa de indivíduo que o Estado Português sempre considerou como tal ¾ atribuindo-lhe os direitos e sujeitando-o aos deveres dos cida-dãos portugueses ¾ , que sempre de boa-fé se julgou detentor daquele estatuto de nacionalidade e que ape-nas em virtude daquela atitude do Estado Português não accionou atempadamente os mecanismos necessários a conservar a nacionalidade que lhe fora atribuída desde o nascimento? O princípio do Estado de direito democrático (artº. 2º da CRP), impedindo uma violação ¾ para além dos limites do razoável ¾ de direitos (e legítimas expectativas?) adquiridos, conjugado, no contexto da situação de Mário Pó, com o direito à cidadania reconhecido no Artº. 26º, nº 1 da CRP, não impõem o reconhecimento da constituição originária da nacionali-dade portuguesa do requerente?
«12.. Não obstante nos inclinarmos claramente por uma res-posta favorável ao requerente no que se refere à ques-tão colocada em 11., o elevado nível de abstracção da matéria aconselha a que se ouça sobre o assunto o Con-selho Consultivo da Procuradoria-Geral da República».
É, pois, o problema da conformidade constitucional do artigo 4º, do Decreto-Lei nº 308-A/75, que se sugere submeter à aprecia-ção deste corpo consultivo.
Dignando-se Vossa Excelência anuir, cumpre emitir parecer.

II
1. Interessa de imediato conhecer, não apenas o teor do citado artigo 4º, mas todos os demais preceitos pertinentes do Decreto-Lei nº 308-A/75.
A nota preambular compreende os considerandos que se reproduzem:
«Considerando que a Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, regula a atribuição, aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade portuguesa;
«Considerando que o acesso à independência dos territórios ultramarinos sob administração portuguesa, em resultado do processo de descolonização em curso, vem criar, como facto saliente, a aquisição da nova nacionalidade por parte de indivíduos que, até àquela data, tinham a nacionalidade portuguesa;
«Considerando que há conveniência em conceder ou pos-sibilitar a manutenção da nacionalidade portuguesa em ca-sos em que uma especial relação de conexão com Portugal ou inequívoca manifestação de vontade nesse sentido tal justifique».
Segue-se o articulado, compreendendo os artigos 1º a 11º, de que se transcrevem os mais relevantes no âmbito da consulta:
«Artigo 1º-1. Conservam a nacionalidade os seguintes portugueses domiciliados em território ultramarino tornado independente:
a) Os nascidos em Portugal continental e nas ilhas adjacentes;
b) Até à independência do respectivo território, os nascidos em território ultramarino ainda sob administração portuguesa;
c) Os nacionalizados;
d) Os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe nascidos em Portugal ou nas ilhas adjacentes ou de naturalizados, assim como, até à indepen-dência do respectivo território, aqueles cujo pai ou mãe tenham nascido em território ultramarino ainda sob administração portuguesa;
e) Os nascidos no antigo Estado da Índia que declarem querer conservar a nacionalidade portuguesa;
f) A mulher casada com, ou viúva ou divorciada de português dos referidos nas alíneas anteriores e os filhos menores deste.
2. Os restantes descendentes até ao terceiro grau dos portugueses referidos nas alíneas a), c), d), primeira parte, e e) do número anterior conservam também a nacionalidade portuguesa, salvo se, no prazo de dois anos, a contar da data da independência, declararem por si, sendo maiores ou emancipados, ou pelos seus legais representantes, sendo incapazes, que não querem ser portugueses.
«Artigo 2º-1. Conservam igualmente a nacionalidade portuguesa os seguintes indivíduos:
a) Os nascidos em território ultramarino tornado independente que estivessem domiciliados em Portugal continental ou nas ilhas adjacentes há mais de cinco anos em 25 de Abril de 1974;
b) A mulher e os filhos menores dos indivíduos refe-ridos na alínea anterior.
2. Os indivíduos referidos no número anterior poderão optar, no prazo de dois anos a contar da data da independência, pela nova nacionalidade que lhes venha a ser atribuída.
«Artigo 3º (...)
«Artigo 4º. Perdem a nacionalidade portuguesa os indivíduos nascidos ou domiciliados em território ultrama-rino tornado independente que não sejam abrangidos pelas disposições anteriores.
«Artigo 5º. Em casos especiais, devidamente justificados, não abrangidos por este diploma, o Conselho de Ministros, directamente ou por delegação sua, poderá determinar a conservação da nacionalidade portuguesa, ou conceder esta, com dispensa, neste caso, de todos ou alguns dos requisitos exigidos pela base XII da Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, a indivíduo ou indivíduos nascidos em território ultramarino que tenha estado sob administração portuguesa e respectivos cônjuges, viúvos ou descendentes.
«Artigo 6º-1 (...)
2. (...)
«Artigo 7º.(...)
«Artigo 8º (...)
«Artigo 9º. São aplicáveis, como direito subsidiário, a Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, e o Decreto nº 43090, de 27 de Julho de 1960.
«Artigo 10º (...)
«Artigo 11º. Este diploma entra imediatamente em vigor».
 
 
2. Segundo o preceito nuclear do artigo 4º, «perdem a nacionalidade portuguesa os indivíduos nascidos ou domiciliados em território ultramarino tornado independente que não sejam abrangidos pelas disposições anteriores».
Observou-se já que o artigo 4º, em lugar de estipular directamente quem perde a nacionalidade portuguesa, optou antes por uma indicação indirecta, ao estabelecer que o efeito da perda da nacionalidade se produz relativamente a todos os indivíduos não abrangidos pelos artigos 1º e 2º, preceitos que por isso assumem a função instrumental de integração da previsão do artigo 4º (2).
Refere-se no nº 2 da Informação base da consulta que o interessado não foi abrangido pelo artigo 1º nem pelo artigo 2º, perdendo, consequentemente, a nacionalidade portuguesa por força do artigo 4º.
A inaplicabilidade do artigo 1º é, porém, imputada ao facto de Mário Pó já não se encontrar, em 24 de Junho de 1975, domiciliado nos ex-territórios ultramarinos (3).
Sublinhe-se, porém, que a data indicada corresponde à publicação do Decreto-Lei nº 308-A/75, que entrou «imediatamente em vigor», como sabemos.
Ora, de modo algum pode ter-se como líquido, bem pelo contrário, salvo o devido respeito, que seja essa a data relevante na previsão do seu artigo 1º, nº 1.
Atente-se, de facto, na seguinte ordem de considerações.
O acesso à independência dos antigos territórios ultramari-nos portugueses não implicava, sem mais, para as suas populações, a perda da nacionalidade portuguesa de que eram titulares.
Nenhuma regra de direito interno português da nacionalida-de ou de direito internacional convencional internamente recebido, nenhum princípio geral, em suma, de direito internacional público determinavam, para o caso de alteração de soberania sobre um território, a «automática perda da nacionalidade anterior» (4).
Isso não significa pretender que em caso algum devessem essas populações perder a nacionalidade portuguesa, mas só que a não perderam, nem perderiam, seguramente, pelo mero facto da independência do território onde tinham nascido ou onde estavam domiciliados.
Seria, com efeito, «ilógico» e «pouco realista» persistir em considerar nacionais portuguesas as populações em causa, eventualmente contra a sua vontade e apesar de não manterem qualquer ligação com Portugal.
A situação de nacional português não podia, pois, «ser indiferente à descolonização, e ao desmembramento do território estadual por ela originado».
Não era, portanto, de «estranhar que fosse levada a cabo uma redefinição da condição de nacionais portugueses das populações dos territórios tornados independentes».
E parece ter sido esta, na realidade, a missão do Decreto-Lei nº 308-A/75: definir «os reflexos das independências dos territórios africanos na condição de portugueses que as suas populações possuíam.»
Pondera-se que o ideal haveria sido efectivar uma seme-lhante definição mediante os necessários acordos com os novos Estados.
Mas, se isso não foi possível, o Estado português devia, na verdade, ter tomado a seu cargo, como tomou, a regulação da situação no tocante à perda da sua nacionalidade.
Observa-se, porém, que o não terá feito da melhor maneira e usando de adequados critérios, consoante iremos ver dentro de momentos (5).
Antes, porém, conclua-se o raciocínio que se vinha desen-volvendo.
Se o Decreto-Lei nº 308-A/75 teve, por conseguinte, como escopo ¾ de algum modo também aflorado na nótula preambular ¾ , regular, como quer que seja, a incidência das independências dos territórios na nacionalidade portuguesa das respectivas populações, então parece ser o facto da independência, e não a data do Decreto-Lei nº 308-A/75, o elemento decisivo de relevância do factor «domicílio» na previsão do nº 1 do artigo 1º do referido diploma ¾ outra seria a questão dos termos em que funciona a conexão entre independência e domicílio no contexto do aludido normativo.
Ter-se-ia, por exemplo, a todas as luzes como inaceitável considerar não abrangido pelo artigo 1º, nº 1 determinado cidadão português domiciliado até 31 de Dezembro de 1974 na Guiné ¾ cuja independência foi reconhecida por Portugal em 10 de Setembro de 1974 («Diário do Governo», I Série, nº 212, Suplemento, de 11 do mesmo mês e ano) ¾ e regressado a Portugal em 1 de Janeiro de 1975, a pretexto de, em 24 de Junho de 1975, data de publicação do Decreto-Lei nº 308-A/75, não ter domicílio naquele território ultramarino tornado independente.
 
 
3. Reverta-se, no entanto, à teleologia e ao escopo deste diploma legal, há instantes deixados em suspenso.
Através dele pretendeu-se, como vimos, regular e redefinir a nacionalidade portuguesa, com relevo na vertente da perda da nacionalidade, das populações dos territórios ultramarinos que ascendiam à independência, cujas implicações naquele plano não devia o Estado ignorar.
Só que as soluções congeminadas podem não ter sido, porventura, aquelas que melhor assegurariam a salvaguarda dos interesses em jogo.
Um dos mais graves defeitos que têm sido apontados ao Decreto-Lei nº 308-A/75 consiste precisamente no favorecimento à criação de situações de apatridia.
Escreveu-se, de facto, a este respeito (6):
«(...) comme les critères enoncés par le législateur portugais ne sont pas nécessairement symétriques à ceux utilisés par les législateurs des nouveaux territoires devenus indépendants, cela entraîne la perte ex lege de la nationalité portugaise par des miliers d'individus sans qu'ils aient obtenu en même temps une autre nationalité».
E não se trata de mera hipótese académica, pois bastaria, nas palavras de outro autor, «que os novos Estados constituídos nos antigos territórios portugueses não seguissem, na concessão da sua nacionalidade, o critério que o legislador português terá previsto viria a ser adoptado (foi, cremos, o que se passou com as leis de Angola e Moçambique, de cujos artigos 4º e 15º (6-A) respectivamente, resulta que nem todos os naturais daqueles territórios lá domiciliados poderão ser nacionais do novo Estado)», para que a proliferação de cidadãos sem pátria, a expensas do sistema delineado pelo Decre-to-Lei nº 308-A/75, se apresentasse como incontroversa realidade.
Tudo, não obstante as agravantes limitações ao gozo de direitos implicadas na apatridia, bem justificativas dos esforços desenvolvidos pela comunidade internacional no sentido da sua erradicação (7).
E numa orientação, observa-se, divorciada da lição emergente do «direito comparado», ao arrepio, bem assim, dos «precedentes legislativos» conhecidos nos demais países europeus, com destaque para o caso inglês e a experiência francesa, que, regulando a matéria em «condicionalismos muito próximos daqueles em que se moveu o legislador português», tomaram em consideração normativa as aludidas preocupações (8).
Acresce que a tradição jurídica, nos casos de modificações de nacionalidade dos indivíduos derivadas de alterações de soberania, revela que se tornou usual reconhecer-lhes o direito de optarem pela nacionalidade anterior ¾ a forma mais perfeita de consideração pela vontade das pessoas por ocasião de cessões ou desmembramentos de território.
Pois que, «se a nacionalidade não é uma mera ficção legal», pressupondo um «dado sociológico identificável com a ideia de unidade de destino», então o essencial dessa conexão não deve ser deixado em absoluto ao acaso de factores «circunstanciais» ou «mecânicos», como o nascimento ou a residência, antes há-de apelar à «manifestação da vontade dos cidadãos interessados» como elemento genético dos mais relevantes no surgimento da real e efectiva ligação entre o indivíduo e um agregado nacional (9).
E, contudo, o Decreto-Lei nº 308-A/75 haveria minimizado aparentemente esse vector, abstendo-se de conceder qualquer relevo à vontade dos nacionais portugueses a que pretendeu aplicar-se, nas reformulações, conducentes às perdas de nacionalidade e à criação de situações de apatridia, em consequência da sua normação operadas.
Objectar-se-á que o artigo 5º do diploma em questão teve exactamente por finalidade remediar, nas situações porventura mais clamorosas, os efeitos do preceito anterior, conferindo ao Conselho de Ministros o poder (10), em casos especiais, devidamente justificados, não abrangidos pelo diploma, de determinar a conservação da nacionalidade portuguesa, ou de conceder esta, com dispensa de requisitos em princípio exigíveis, a indivíduos nascidos em território ultramarino que tenha estado sob administração portuguesa e respectivos cônjuges, viúvos ou descendentes.
A simples leitura do normativo citado imediatamente revela, porém, na sua indefinição e acentuação discricionária, a precariedade da garantia instituída na óptica da apatridia e da desconsideração da vontade dos interessados.
Sem grande êxito, outros instrumentos procuraram, aliás, reduzir os efeitos perniciosos do Decreto-Lei nº 308-A/75.
Cite-se, a título de exemplo, o Despacho Normativo nº 11/82, de 11 de Fevereiro de 1982, que, regulamentando o poder discricionário do Governo em aplicação do citado artigo 5º, veio exigir aos candidatos à concessão ou conservação da nacionalidade portuguesa, no objectivo, ao que parece, de evitar apatridias, a apresentação apenas de documento comprovativo da renúncia à nacionalidade estrangeira, deixando nitidamente a descoberto os casos em que o interessado perdesse ex vi legis a nacionalidade do novo Estado em questão (11).
As consequências assacadas ao artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75 surgiriam, nesta tónica, imbuídas de um grau elevado de arbitrariedade, tanto mais que, sem necessidade de «abandonar a lógica própria da regulamentação da nacionalidade que o nosso legislador pôs em prática», bastaria dispor que «a perda da nacionalidade portuguesa não produziria efeitos em caso algum em relação a quem não tivesse adquirido a nacionalidade dos novos Estados», para eliminar a possibilidade de surgimento de casos de apatridia (12).
 
 
4. Parece que até se olvidaram princípios e garantias dos direitos do homem dotados de validade geral no seio da comunidade internacional.
Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (13) dispunha já no seu artigo 15º:
«Artigo 15º
1. Todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua na-cionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.»
A afirmação do direito à nacionalidade e a proibição clara da desnacionalização aparecem neste texto claramente identificados «com a necessidade de salvaguardar os direitos das pessoas», e nessa medida erigidos em «limites perante os quais deve ceder a liberdade dos Estados na regulamentação da nacionalidade».
Pode uma maioria negar a «positividade» da proibição e da própria Declaração Universal no concerto dos Estados, mas ela não deixaria de assumir, sustenta-se da banda de outros, a «função juridicamente relevante» de «conduzir o intérprete na interpretação das leis» (14).
A privação da nacionalidade ficaria, por conseguinte, «restringida apenas aos casos em que haja motivos legítimos, sobretudo motivos dos quais o interessado tivesse podido utilmente discutir a legitimidade antes de ser atingido por uma medida irreparável» (15).
Qualquer que seja, porém, a posição que se adopte quanto à positividade da proibição das medidas legislativas de pura e simples desnacionalização, o que se tem como seguro ¾ informa um dos autores que vimos acompanhando (16) ¾ é suscitarem elas, pelas consequências, designadamente, que acarretam, «a condena-ção unânime da doutrina».
5. A Constituição de 1976 rendeu inequívoca homenagem ao parâmetro aflorado em segundo lugar, declarando no seu artigo 16º, nº 2, que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem».
Ponderou-se, com efeito, a respeito do inciso:
«A função do artigo 16º, nº 2 vem a ser dupla. Por um lado, este dispositivo situa os direitos fundamentais num contexto mais vasto e mais sólido que o da Constituição em sentido instrumental, situa-os no contexto da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por outro vai impregnar a Constituição dos princípios e valores da Declaração, como parte essencial da ideia de Direito à luz da qual todas as normas constitucionais ¾ e, por conseguinte, toda a ordem jurídica portuguesa ¾ têm de ser pensadas e postas em prática» (17).
Na sua versão originária a Constituição não incluía especificamente um direito de cidadania ou de nacionalidade no elenco dos direitos fundamentais nela formalmente plasmados.
Sabe-se, porém, que o nº 1 do artigo 16º ¾ «Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional» ¾ acolheu o postulado da «cláusula aberta» pelo que respeita à definição daquele domínio de direitos, arredando desse campo toda a incidência da ideia de tipicidade (18).
Por outro lado, o artigo 4º já aludia à cidadania portuguesa no capítulo introdutório dos «Princípios Fundamentais», reservando o artigo 167º, alínea a) à competência exclusiva da Assembleia da República ¾ salvo, então, autorização ao Governo (artigo 168º, nº 1) ¾ legislar sobre a «aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa».
E o artigo 30º, nº 4, ponderando a vulnerabilidade do estatuto da nacionalidade à incidência dos factores políticos, proibia a privação da cidadania portuguesa por motivos desta natureza.
Com a revisão de 1982 as coisas sofrem ainda sensível modificação.
A «aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa» torna-se matéria da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia (artigo 167º, alínea a)), participando da nova axiologia político-constitucional conducente ao reforço dos poderes legislativos do órgão parlamentar no âmbito material em cujo domínio passava a ficar de todo excluída a intervenção do Executivo.
A importância política que a Constituição quis assim atribuir aos assuntos da nacionalidade ¾ comenta-se (19) ¾ ressalta com preeminência da proclamação, no artigo 26º (Capítulo I, «Direitos, liberdades e garantias pessoais», do Título II, «Direitos, liberdades e garantias»), de um direito fundamental, não inscrito enquanto tal no texto primitivo de 1976, de cada um possuir uma nacionalidade:
 
«Artigo 26º
(Outros direitos pessoais)
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
2. (...)
3. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos».
O direito à cidadania significa, segundo a doutrina constitucional (20), «direito à Pátria, direito à qualidade de membro da República portuguesa». Consiste, pois, no «direito a adquirir (ou a readquirir) a qualidade de cidadão português, se preenchidos os respectivos requisitos, e bem assim no direito de não ser privado dela por acto dos poderes públicos, a não ser nos casos e nos termos previstos na lei (e verificados os demais requisitos do art. 18º-2 e 3)», devendo os motivos da privação «ser pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da relação do cidadão com a colectividade».
Não se trata, portanto, face a todo o exposto, de um direito fundamental novo, criado pela primeira revisão, mas, verdadeiramente, de um «atributo pessoal do ser humano» (21), a valorar como direito fundamental da Constituição originária, que a aludida revisão revestiu formalmente da inerente dignidade.
 
 
6. Precisa-se que a inserção de um similar direito fundamental no texto constitucional de 1982 tornou «impossível privar um cidadão português da sua nacionalidade quando este corra o risco de se converter em apátrida» (22).
E considera-se inclusivamente «muitíssimo duvidosa a constitucionalidade material da legislação a que nos referimos, na medida em que determina privações de nacionalidade que podem causar a apatridia e que não supõem a actuação de vontade dos interessados» (23).
Detenhamo-nos, por um momento, no desenvolvimento desta tese:
«Assim sendo, não poderá desde logo e em caso algum determinar-se a perda da nacionalidade de alguém que por esse facto se veja na situação de apatridia (como acontece no Decreto-Lei nº 308-A/75) devendo ser tida por inconstitucional a disposição que tal consequência acarrete.
«Para além disso, haverá ainda, ao que cremos, que asse-gurar que ninguém se visse privado da sua nacionalidade contra a sua vontade expressa (a menos que tivesse adquirido voluntariamente uma outra nacionalidade).
«Constituindo a nacionalidade portuguesa um direito fundamental, o ser-se privado dela não poderá justificar-se com a simples preocupação de evitar as situações de plurinacio-nalidade.
«Tal preocupação (enquanto implicar a extinção na esfera jurídica de um indivíduo de um direito fundamental) só poderá cobrar relevo ou com a manifestação, ainda que indirectamente expressa, da vontade do próprio, ou em certos contextos especiais (como aqueles a que o diploma em análise é dirigido) em que se verifica a atribuição a um indivíduo ou a um grupo de uma nova nacionalidade.
«Em tais hipóteses o Estado de que ele (ou eles) eram originariamente nacionais poderá forçá-los a optar por uma das duas cidadanias e, em último caso, retirar-lhe a nacionalidade originária desde que ele se não manifeste no sentido de a pretender conservar (cfr., por exemplo, JOSEF L. KUNZ, Nationality ...).
«Cremos exigir-se assim, para que um Estado que consagra a nacionalidade como um direito fundamental dela possa privar um dos seus cidadãos, ou uma expressão positiva e concordante (ainda que por via indirecta) da vontade deste ou, ao menos, a inexistência de uma manifestação em contrário dessa mesma vontade.
«Só desta forma se respeitaria a nacionalidade enquanto direito fundamental, apenas se permitindo que o Estado dela disponha (e tendo em conta os interesses públicos que a tanto aconselham) quando o seu titular a isso se não opuser.
«Eis porque entendemos dever considerar-se inconstitucio-nal o Decreto-Lei nº 308-A/75» (24).
 
 
7. Aceitando-se, embora, a fundamentação expendida, o relevo conferido ao limite negativo da apatridia, ponderada pela desconsideração da vontade, pensa-se, todavia, que a verificação de similar condicionante, imanente à privação da nacionalidade enquanto direito fundamental, não terá como consequência neces-sária um juízo de inconstitucionalidade material do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75.
Não, decerto, porque a revogação deste diploma, levada a efeito pelo artigo único da Lei nº 113/88, de 29 de Dezembro (25), obstasse, em princípio, à sindicabilidade da apontada desconformida-de com a Constituição.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, «a revogação de uma norma jurídica, nem faz cessar, ipso facto, a possibilidade da fiscalização abstracta da sua constitucionalidade, nem faz desaparecer necessariamente, ao menos, a utilidade dessa fiscalização: atenta a eficácia ex tunc de uma eventual declaração de inconstitucionalidade (artigo 282º, nº 1, da Constituição), basta que tal norma, enquanto esteve em vigor, haja produzido efeitos e que estes se mantenham ao tempo em que o Tribunal Constitucional vai proferir a decisão para que esta possa ter sentido e possa revestir-se de utilidade» (26).
Não é, pois, a revogação do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75 que poderia, em derradeiro termo, obstar à fiscalização e declaração da sua inconstitucionalidade.
É a necessidade e a possibilidade de o interpretar e integrar em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, por força do artigo 16º, nº 2, da lei fundamental, e em conformidade com o artigo 26º, nºs 1 e 3, da própria Constituição na versão da sua primeira revisão.
Naquele primeiro plano, interessa, aliás, sublinhar que o alcance útil de um «princípio de interpretação em conformidade com a Declaração Universal» no domínio dos direitos fundamentais se revela, para os constitucionalistas (27), em dois aspectos: «(a) no caso de polissemia ou plurissignificação de uma norma constitu-cional [e de uma norma legal, acrescentamos nós] de direitos fundamentais, deve dar-se preferência àquele sentido que permita uma interpretação conforme à Declaração Universal; (b) na «densificação» dos conceitos constitucionais [ou legais] relativamen-te indeterminados referentes a direitos fundamentais (ex.: dignidade humana, direito de asilo, direito à existência digna) deve recorrer-se ao sentido desses conceitos na Declaração Universal, salvo se esse sentido for contra constitutionem.»
Por outro lado, a Declaração Universal «não serve apenas de parâmetro de interpretação das normas constitucionais e legais dos direitos fundamentais mas também de integração das mesmas normas», o que «vale tanto para as lacunas de previsão de certos direitos, como para as lacunas de regulamentação».
Quanto às primeiras, «trata-se afinal do reconhecimento dos direitos extraconstitucionais, que já resulta do nº 1». Quanto às segundas, «na falta ou insuficiência de regulamentação constitucional ou legal, há-de recorrer-se à disciplina da DUDH que assim vale como norma praeter constitutionem e praeter legem».
Os mesmos princípios regem, mutatis mutandis, em sede de «interpretação conforme a Constituição», tendo à vista especifi-camente a norma do seu artigo 26º.
Uma norma deve ser interpretada de forma a não se colo-car em lógica contradição com regras de hierarquia superior ¾ pon-derou-se já, a propósito, nesta instância consultiva (28) ¾ , sob pena de ser tornada inválida mercê de princípios elementares do concurso de normas (lex superior derogat legi inferiori).
Se possível deve eleger-se aquele, de entre vários sentidos, que, isento de contradição hierárquica, possibilite a conservação da norma, directriz hermenêutica a observar privilegiadamente nas relações da lei ordinária com a lei fundamental (29).
No fundo uma aplicação particular da «unidade jurídica» como elemento interpretativo (30), obedecendo aos cânones gerais da interpretação, tendo como limites a letra e a vontade claramente reconhecível do legislador (31).
 
 
8. Pode neste momento concluir-se, recordando os tópicos anteriormente aflorados, que o limite negativo à privação da nacionalidade, traduzindo apatridia com desconsideração da vontade, vai essencialmente implicado na natureza da nacionalidade, como direito fundamental de todo o ser humano e como direito fundamen-tal dos cidadãos portugueses, à luz, respectivamente, do artigo 15º da Declaração Universal e do artigo 26º da Constituição.
De modo que, assim propendemos a pensar, a perda da nacionalidade a que alude o artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75 deve, por interpretação ou integração, ser nuclearmente entendida com o conteúdo resultante do referido limite.
Podendo, por isso, afirmar-se, transposta a ilação para o caso concreto da consulta, que a privação da nacionalidade portuguesa de Mário Pó apenas se concretizaria, por aplicação do citado artigo 4º, quando daí não pudesse resultar o risco de apatridia nos termos anteriormente expostos.
Os elementos disponíveis não permitem apurar com preci-são se a condição de apátrida se criaria efectivamente no caso, designadamente porque Mário Pó deixasse de adquirir a nacionalidade moçambicana.
Viu-se, no entanto, que a respectiva lei da nacionalidade de modo algum garantia que todos os naturais do novo Estado se tornassem seus nacionais.
Ademais, as informações existentes apontam no sentido de que a vontade do interessado era e tem sido, ao longo dos anos, manifestamente contrária à perda da nacionalidade portuguesa.
Radicado em Portugal desde o seu regresso de Moçambique, em Janeiro de 1975, foi-lhe atribuído o título de identidade de cidadão nacional, cumpriu o serviço militar nas Forças Armadas portuguesas e exerceu o direito de voto como cidadão eleitor, encontrando-se, inclusivamente, provido no exercício de funções públicas, situações que pressupõem, em princípio, a condição de nacional português.
Mais. Os laços jurídicos privilegiadamente firmados com a comunidade nacional, tendo na sua base, como declarava o Tribunal Internacional de Justiça, uma solidariedade efectiva de existência, de interesses e de sentimentos, em reciprocidade de direitos e deveres, por deliberada manifestação de vontade de Mário Pó, obtiveram mútuo acolhimento por parte das autoridades portuguesas, traduzido em actos, consolidados pela prática, implicando o reconhecimento da cidadania portuguesa.
Gerou-se, portanto, se tal se tornasse necessário trazer à colação aquele «diuturnus usus et consensus», entretecido de «condutas habitualizadas e repetidas por largo período de tempo», susceptível de fazer «emergir verdadeiros elementos normativos», isto é, «regras intersubjectivamente vinculantes», determinando um estado de «vinculação normativa» no âmbito da «relação de reciprocidade e interacção» entre o Estado português e o seu nacional, cuja violação pela prática de factos contrários encontraria nos quadros do abuso de direito e da proibição do «venire contra factum proprium» adequada sanção e tutela (32).
Conclui-se, como quer que seja, pela operatividade, no caso de Mário Jorge Almeida Ferreira Pó, do limite impeditivo da privação da nacionalidade como direito fundamental, mercê da aplicação do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de Junho.
 
 
Conclusão:
 
III
Do exposto se conclui:
1. À luz do artigo 15º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 26º, nºs 1 e 3, da Constituição da República, a privação, por acto dos poderes públicos, do direito fundamental da nacionalidade tem como limite negativo, sob pena de arbitrariedade, o risco de criação de situações de apatridia;
2. A perda da nacionalidade portuguesa a que alude o artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de Junho, deve, por interpretação ou integração em conformidade com o artigo 15º da Declaração Universal (artigo 16º, nº 2, da Constituição) e com o artigo 26º, nºs 1 e 3, da mesma lei fundamental, ser entendida com o conteúdo resultante do referido limite;
3. Atentas as conclusões anteriores, o cidadão português Mário Jorge Almeida Ferreira Pó não perdeu a nacionalidade portuguesa por aplicação do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75;
4. Acresce que os factos descritos na consulta lhe determinaram situações que pressupõem, em princípio, a condição de nacional português, obtendo acolhimento por parte das autoridades portuguesas mercê de actos consolidados pela prática implicando o reconhecimento da mesma cidadania.
 

(1) Apud RUI MANUEL MOURA RAMOS, Nacionalidade e descolonização (Algumas reflexões a propósito do decreto-lei nº 308-A/75, de 24 de Junho), «Revista de Direito e Economia», Ano II, nº 1, 1976, pág. 135, nota 50, decisão de 1955 no célebre caso «Nottebohm», cuja análise pode ver-se em PAULA V. C. ESCARAMEIA, Colectânea de Jurisprudência de Direito Internacional, Coimbra, 1992, págs. 151 e seguintes.
(2) MOURA RAMOS, op. cit., pág. 150.
(3) Concretamente em Moçambique, onde nascera em 26 de Maio de 1960 ¾ como se conclui de elementos complementarmente recebidos do Gabinete de Vossa Excelência ¾ e de onde regressou com os pais a Portugal em Janeiro de 1975.
(4) MOURA RAMOS, op. cit., págs. 140 e segs., 143 e segs., 147 e 151, que estamos a acompanhar de perto.
(5) No sentido exposto MOURA RAMOS, op. cit., pág. 151.
(6) ISABEL JALLES, Nationalité et statut personnel dans le droit de la nationalité portugaise, «Nationalité et statut personnel. Leur interaction dans les traités internationaux et dans les legislations nationales» ¾ Travaux des Journées d'études juridiques organisées à Louvain-La-Neuve, les 27-29 octobre 1982, Paris, 1984, pág. 188.
(6-A) O artigo 15º da Lei da Nacionalidade de Moçambique, que entrou em vigor no dia 25 de Junho de 1975 - apud ARNALDO AUGUSTO ALVES, Código do Registo Civil, Anotado, 3ª edição, Coimbra, 1983, pág. 58 -, é do seguinte teor: «Por deliberação do Conselho de Ministros pode o Governo decretar a perda da nacionalidade moçambicana por indignidade nacional aos indivíduos que tenham exercido ou exerçam actividades contrárias aos interesses do povo moçambicano».
(7) MOURA RAMOS, op. cit., «Revista» citada, nº 2, 1976, pág. 341, exemplificando (nota 110) com a «Convenção sobre a redução dos casos de apatridia», adoptada por uma conferência de plenipotenciários reunida em 1959 e de novo em 1961 em aplicação da Resolução nº 896(IX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de Dezembro de 1954, «Boletim do Ministério da Justiça», nº 245, págs. 209 e segs., cujo artigo 8º, nº 1 significativamente dispõe: «Os Estados contratantes não privarão nenhum indivíduo da sua nacionalidade se essa privação o dever tornar apátrida».
(8) MOURA RAMOS, op. cit., «Revista» citada, nº 2, 1976, págs. 346 e 347 e seguintes.
(9) No sentido exposto, MOURA RAMOS, op. cit., «Revista» citada, nº 2, 1976, págs. 342 e seguinte.
(10) Mais tarde delegado nos Ministros da Administração Interna e da Justiça pelas Resoluções do Conselho de Ministros, de 5 de Dezembro de 1975, «Diário do Governo», I Série, nº 290, de 17 de Dezembro do mesmo ano, pág. 2050; nº 9/77, de 15 de Janeiro de 1977; nº 35/78, de 22 de Março de 1978.
(11) ISABEL JALLES, op. cit., págs. 188 e seguinte.
(12) MOURA RAMOS, op. cit., «Revista» citada, nº 2, 1976, págs. 341 e seguinte.
(13) Adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas mediante a Resolução nº 217 A(III), de 10 de Dezembro de 1948, cujo texto pode ver-se no «Boletim» citado supra, nota 7, págs. 7 e seguintes, tendo a sua publicação oficial sido efectuada no «Diário da República», I Série, nº 57, de 9 de Março de 1978.
(14) MOURA RAMOS, op. cit., «Revista» citada, nº 2, 1976, págs. 338 e seguinte; ISABEL JALLES, op. cit., pág. 172.
(15) BERTHOLD GOLDMANN, apud MOURA RAMOS, ibidem.
(16) MOURA RAMOS, ibidem.
(17) JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976, Lisboa, 1978, pág. 186, apud ISALTINO MORAIS/FERREIRA DE ALMEIDA/LEITE PINTO, Constituição da República Portuguesa Anotada e Comentada, Lisboa, 1983, pág. 42, que observam, em remate: «A Declaração Universal dos Direitos do Homem cumpre, pois a função de ponto de referência para efeitos da interpretação e integração das normas constitucionais e legais sobre direitos fundamentais».
No mesmo sentido, ISABEL JALLES, op. loc. cit. supra, nota 14.
Sobre o tema cfr. também GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, págs. 73 e seg., e 3ª edição revista, Coimbra, 1993, págs. 137 e seguintes.
(18) ISALTINO MORAIS/FERREIRA DE ALMEIDA/LEITE PINTO, ibidem; GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, ibidem.
(19) ISABEL JALLES, op. cit., págs. 170 e segs., que estamos a acompanhar.
(20) Cfr., v. g., GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., 3ª edição, pág. 180.
(21) MAUNZ/DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, B. I., C. H. Beck'sche Ver-lagsbuchhandlung, München, 1989, pág. 3-27. ¾ «Wie die Rechtsfähigkeit (...), muss man auch die Staatsangehörigkeit als personales Attribut des Menschen werten (...)».
(22) ISABEL JALLES, op. cit., pág. 172, observando ademais que o princípio já havia sido acolhido na nova lei da nacionalidade ¾ Lei nº 37/81, de 3 de Outubro ¾ , que, apesar de anterior à revisão de 82 (págs. 186 e seg.), integrou os princípios que inspiram o artigo 26º, nº 3, da Constituição, procurando reduzir as possibilidades de apatridia através de várias formas: já conferindo a nacionalidade portuguesa originária aos indivíduos nascidos em território português quando não possuam outra nacionalidade (artigo 1º, nº 1, alínea d)); já decretando a perda da nacionalidade portuguesa para os que declarem não querer ser portugueses, desde que sejam nacionais de outro Estado (artigo 8º).
(23) MOURA RAMOS, Do Direito Português da Nacionalidade, 1ª Reimpressão, Coimbra, 1992, pág. 71, de cuja «Nota prévia» se deduz que o autor escrevia em Abril de 1984.
(24) MOURA RAMOS, Do Direito Português, págs. 71 e seg., nota 1.
(25) Do seguinte teor: «É revogado o Decreto-Lei nº 308-A/75, de 24 de Junho, sem prejuízo da sua aplicação a todos os pedidos de conservação e concessão de nacionalidade que, formulados nos termos do seu artigo 5º, se encontrem pendentes nos serviços públicos competentes à data da entrada em vigor desta lei.»
(26) Acórdão nº 319/89 (Processo nº 107/84), de 14 de Março de 1989, «Diário da República», II Série, nº 146, de 28 de Junho de 1989, pág. 6391, em que, apreciando o pedido do Provedor de Justiça de declaração da inconstitucionalidade da alínea e) do nº 1 do artigo 1º e do artigo 4º do Decreto-Lei nº 308-A/75, o Tribunal decidiu «não tomar conhecimento do pedido» em razão de «inutilidade superveniente».
Para uma análise da posição assumida pela Provedoria de Justiça, veja-se também o «9º. Relatório do Provedor de Justiça à Assembleia da República», 1984, págs. 46 e seguintes.
(27) GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, op. cit., 3ª edição, pág. 138, que passamos a citar.
(28) Parecer nº 82/88, de 13 de Julho de 1988, inédito, apoiando-se doutrinariamente nos autores citados nas notas subsequentes.
(29) REINHOLD ZIPPELIUS, Juristische Methodenlehre, 4ª edição. C. H. Beck, München, 1985, págs. 37 e seg. e 49.
(30) R. ZIPELLIUS,Auslegung als Legitimationsproblem, «Festschrift für Karl Larenz zum 80. Geburtstag», C. H. Beck, München, 1983, págs. 745 e seguinte.
(31) GERARD HASSOLD, Strukturen der Gesetzauslegung, «Festschrift», aludida na nota anterior, pág. 234, citando o Bundesverfassungsgericht; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 4ª edição, Coimbra, 1987, págs. 164 e seguinte.
Cfr. também GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., 3ª edição, pág. 994.
(32) BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança e «venire contra factum proprium», «Revista de Legislação e de Jurisprudência», Ano 117º, nº 3729, págs. 361 e seguintes e passim.
Anotações
Legislação: 
CONST76 ART2 ART4 ART16 N2 ART18 N2 N3 ART26 N1 N3 ART167 A ART168 N1 ART282 N1. DUDH ART15.
DL 308-A/75 DE 1975/06/24 ART1 N1 N2 ART2 N1 N2 ART4 ART5 ART9 ART11.
L 113/88 DE 1988/12/29.
L 37/81 DE 1981/10/03 ART1 D ART6 ART7 ART8.
DL 322/82 DE 1982/08/12 ART41.
DN 11/82 DE 1982/02/11.
RCM DE 1975/12/05. RCM 9/77 DE 1977/01/15.
RCM 35/78 DE 1978/03/22.
Jurisprudência: 
AC TC 319/89 DE 1989/03/14 IN DR II S DE 1989/06/28 PAG6391.
Referências Complementares: 
DIR CONST * DIR FUND / DIR CIV * DIR PERSON * TEORIA GERAL.*****
RES SOBRE A REDUCÇÃO DOS CASOS DE APATRIDIA 896(IX) AG ONU 1954/12/04*****
LEI DA NACIONALIDADE MZ DE 1975/06/20 ART15.*****
CONV SOBRE A REDUÇÃO DOS CASOS DE APATRIDIA ONU NOVA IORQUE 1961/08/30
Divulgação
Número: 
DR186
Data: 
12-08-1995
Página: 
9583
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