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Dados Administrativos
Número do Parecer: 
94/1988, de 12.07.1989
Data do Parecer: 
12-07-1989
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Maioria
Iniciativa: 
Governo
Entidade: 
Ministério da Educação
Relator: 
LUCAS COELHO
Descritores e Conclusões
Descritores: 
UNIÃO DE FACTO
SUBSÍDIO POR MORTE
FUNCIONÁRIO PÚBLICO
LACUNA
Conclusões: 
Não tem direito a receber o "subsidio por morte" a que se refere o Decreto-Lei n 42947, de 27 de Abril de 1960, a pessoa que tenha convivido maritalmente com um servidor do Estado, mesmo que no momento da morte deste se encontre nas condições previstas no artigo 2020 do Codigo Civil.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Educação,
Excelência:

I

1. Por decesso de um funcionário do Ministério da Educação habilitaram-se ao abono do subsídio por morte a mulher que com ele vivia em "união de facto" e uma filha do seu matrimónio.

No seio da Secretaria-Geral suscitaram-se divergências na eleição da candidatura preferencial.

Para o Gabinete Técnico-Jurídico o subsídio deve atribuir-se à filha, pois o "convívio marital" não justifica a concessão à outra concorrente.

Subscreve-se sem reservas a concepção deste corpo consultivo sintetizada em conclusão única do parecer nº 4/82 (1) :

Não tem direito a receber o "subsídio por morte" a que se refere o Decreto-Lei nº 42 947, de 27 de Abril de 1960, a pessoa que tenha convivido maritalmente com um servidor do Estado, mesmo que no momento da morte deste se encontre nas condições previstas no artigo 2020º do Código Civil".

O Adjunto do Secretário-Geral manifesta-se, porém, discordante.

Considerando que a posição do Conselho não fora unânime, propende para a opinião contrária, em orientação adversa à conclusão transcrita.

Pondera, ademais, que alterações entretanto ocorridas no "ordenamento jurídico, quer no âmbito do Direito da Família, quer do Direito da Função Pública e do sistema de valores que lhe está subjacente", evidenciam o maior interesse em "obter da Procuradoria Geral da República um parecer actual" sobre a questão, "que possa constituir orientação futura neste Ministério".

Obtido o assentimento de Vossa Excelência, cumpre emitir parecer.


2. Estando directamente em causa doutrina uma vez firmada nesta instância consultiva, torna-se mister que liminarmente nos inteiremos do seu conteúdo e fundamentos, aludindo obrigatoriamente às razões que não lograram vencimento.

A seu tempo se demandará inventariar as inovações legislativas com relevo no âmbito da consulta, em termos que possibilitem uma pronúncia actualizada.

II

1. No cumprimento do percurso esboçado importa desde logo consignar o princípio, afirmado introdutoriamente no parecer citado, de que "a Administração, subordinada ao princípio da legalidade, não pode por si só reconhecer direitos aos cidadãos", devendo o reconhecimento ou privação de direitos "estar sempre fundado na lei, ainda que o legislador possa conferir à Administração o poder discricionário de os atribuir ou retirar".

A partir desta ideia se buscou metodologicamente enfrentar a questão de saber se a lei atribui em via directa o direito ao "subsídio por morte" de servidor do Estado à pessoa que com este convivera more uxorio e, na negativa, se existe lacuna a integrar mediante as técnicas previstas no artigo 10º do Código Civil.


Considerem-se em resumidas paráfrases as linhas mestras da investigação desenvolvida, pese a densidade discursiva, a mobilizar os melhores recursos do analista.


1.1. Dispõem os artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 42 947, de 27 de Abril de 1960, na parte com interesse:

"Artigo 1º. As pessoas de família a cargo dos servidores do Estado, civis e militares, terão direito a receber, por morte destes, os vencimentos, salários ou quaisquer outras remunerações certas, correspondentes aos lugares que os mesmos ocupavam e em relação tanto ao mês em que se der a morte como ao mês seguinte.
§ 1º (...)
§ 2º (...)" (2) (3) .

"Art. 2º. Os abonos de que trata o artigo anterior serão efectuados à pessoa de família a cargo do servidor por ele previamente indicada em declaração depositada no competente serviço processador; na falta, extravio ou inoperância de tal declaração, será a liquidação feita a um dos membros da mesma família, mediante petição a apresentar, de acordo com a seguinte ordem de precedência:

1ºO cônjuge sobrevivo, se não houver separação, judicial ou de facto;
2ºO mais velho dos descendentes do grau mais próximo;
3ºUm dos ascendentes do servidor, ou, na sua falta, do seu cônjuge, do grau mais próximo;
4ºOutro parente, segundo a ordem de sucessão legítima, e, em igualdade de condições, o mais velho.

§ único (...)"

Na aproximação literal dos textos concluiu-se que a hipótese - a atribuição do "subsídio por morte" ao sobrevivente da "união de facto" - não se mostra contemplada, carente, em derradeiro termo, daquele mínimo de correspondência verbal exigido pelo artigo 9º, nº 2, do Código Civil.

Não seria, porém, caso - até que ponto - de equiparar a "convivência marital" à "sociedade conjugal"?

Isto é, não deverá o intérprete alargar o reconhecimento daquela "convivência", decorrente da normação positiva em matéria de alimentos, de pensões e outros benefícios, também ao "subsídio por morte"?

Realmente, o artigo 2020º do Código Civil (redacção do artigo 126º do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro) confere àquele "que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges", o "direito a exigir alimentos da herança do falecido" - se os não puder obter de outra pessoa nos termos do artigo 2009º, alíneas a) a d), do mesmo Código.

Em matéria de pensões de sobrevivência veio, por sua vez, o Decreto-Lei nº 191-B/79, de 25 de Junho, consagrar algumas "inovações" e, declaradamente, o "acolhimento do princípio da relevância de uniões de facto, de alguma forma equiparáveis à sociedade conjugal, em harmonia com a redacção actual do artigo 2020º do Código Civil" (do preâmbulo).

Por isso se estatuiu haverem direito à aludida pensão "as pessoas que estiverem nas condições do artigo 2020º do Código Civil" (artigo 40º, nº 1, alínea a)) (4 .

Equacionado o problema no parecer nº 4/82 em termos de integração de lacunas, formulou-se paradigmaticamente a interrogação: traduziria a "inovação" representada no Decreto-Lei nº 191-B/79 a afloração positiva de princípios já imanentes na ordem jurídica, ao menos no capítulo das pensões e outros benefícios advindos por morte dos servidores do Estado?


1.2. Propendeu-se para a negativa.

A "união de facto" era olhada com desfavor pela ordem jurídica anterior à Constituição de 1976.

Razão por que também o Decreto-Lei nº 42 947 se apresentava estruturado na base do "estatuto familiar reconhecido por lei", axiologicamente alheio, em tal medida, às situações conjugais de facto.

Difícil, assim, reconhecê-lo nessa óptica originalmente "lacunar".

Com efeito, não pode afirmar-se a existência de lacunas todas as vezes que a lei omite regras visando certos casos, posto haver situações de "silêncio eloquente", em que a ausência de regulamentação corresponde "a um plano do legislador ou da lei".

De lacuna falar-se-á tão-só "quando a lei, a avaliar pela sua própria intenção e imanente teleologia, é incompleta e, portanto, carece de integração, e quando a sua integração não contradiz uma limitação (a determinados factos previstos) porventura querida pela lei".

Não, portanto, se "a lei quis regular conclusiva e exclusivamente uma determinada questão" (5 .

Ora, considerou-se ser este justamente o caso do subsídio por morte.

Ao discipliná-lo, o legislador expurgou com clareza do respectivo domínio as uniões de facto, existindo, do mesmo passo, "razões sérias para admitir que o seu silêncio é eloquente".

Não pôde, por conseguinte, aderir este Conselho à existência, aí, de uma "lacuna primária".

Mais.

Se não era possível admitir uma dessas lacunas "que se verificam logo com o aparecimento da lei", igualmente se afastava a eventualidade de "lacuna secundária ou superveniente".

Havia-se como assente que estoutra sorte de lacunas resulta, numa primeira aproximação, sobretudo de, "em consequência do desenvolvimento económico ou técnico, surgirem novas questões, que o legislador não pode ter visto e que também não podem ser abrangidas pela regulamentação existente de acordo com a sua letra, mas que agora têm de ser reguladas de acordo com a teleologia da lei".

"Fenómenos económicos inteiramente novos" e "progressos técnicos", debalde exigindo à normação vigente satisfatória resposta (6 .

Não era, de novo, o caso, tanto assim que o legislador conhecia seguramente, à data da edição do Decreto-Lei nº 42 947, a sociologia das "situações conjugais de facto".

Contudo, as denominadas "lacunas supervenientes" podem também derivar de uma "alteração dos fundamentos axiológicos imanentes à ordem jurídica".

Decerto, não é pelo facto de qualquer "mudança de concepções de vida" ou, mesmo, da "alteração dos valores dominantes numa sociedade", possam embora implicar "dificuldades de adaptação e aplicação" de normas
jurídico-positivas, que se afirma a existência de uma similar lacuna.

Pode simplesmente ocorrer então que a ordem jurídica necessite de "aperfeiçoamento".

Pode, quando muito, falar-se de uma "lacuna político-jurídica", "de uma lacuna crítica", de "uma lacuna imprópria", quer dizer, de uma lacuna do ponto de vista de um futuro Direito mais perfeito ("de lege ferenda"); não, porém, de uma lacuna autêntica e própria, quer dizer, de uma lacuna no Direito vigente ("de lege lata"). Uma lacuna de lege ferenda apenas pode motivar o poder legislativo a uma reforma do Direito mas não o juiz a um preenchimento da dita lacuna" (7 .

Com razão se escreveu, por isso, entre nós, não ser "ao intérprete que pertence a função de canalizar para dentro do sistema os juízos de valor ainda não incorporados", sendo essa "função própria do legislador" (8 .

Em todo o caso, é possível que mutações na axiologia social façam surgir verdadeiras lacunas supervenientes se, como observou LARENZ (9) ,implicarem alterações da "teleologia da lei (enquanto parte da ordem jurídica como um todo)" ou determinarem a "revogação" da "regulamentação precedente por uma norma de nível hierárquico mais elevado" sem ao mesmo tempo lhe substituírem "uma nova regulamentação legal".

E, precisamente, desde o início de vigência, em meados de 1960, do Decreto-Lei nº 42 947, "muita água correu para o mar".

No entanto, o parecer nº 4/82 afastou, uma vez mais, a possibilidade de uma lacuna nesse plano, repudiando qualquer "ruptura de valores que tenha alterado substancialmente o sistema jurídico" em condições de forçar a equiparação da "situação conjugal de facto" à situação conjugal fundada no casamento.

Mas não deixou de ponderar uma possível "referência objectiva" dessa alteração, a nível normativo, também no intuito de premunir o intérprete contra o "seu próprio quadro de valores" pessoais.

Semelhante referencial poderia colher-se no seio da lei fundamental, se uma norma constitucional interviesse "a eliminar as discrepâncias que a ordem jurídica anterior consagrava, impondo uma equiparação das duas figuras".

A regulamentação legal revelar-se-ia, nessa hipótese, inacabada, restando ao intérprete suprir a incompletude por recurso ao artigo 10º do Código Civil.


1.3. Defrontou-se, consequentemente, o artigo 36º, nº 1, da Constituição:


"Artigo 36º

(Família, casamento e filiação)

1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
5. (...)
6. (...)"

Imediatamente se anotava que o preceito nascera sob o signo da ambiguidade.

Logo na Assembleia Constituinte se ouviu declarar, a seu respeito, que o casamento deixara de ser a "forma única de constituição da família".

Ideia que alguma doutrina retomaria para afirmar o inciso "manifestamente hostil à família (tradicional)", fundada no matrimónio, visto permitir "a constituição da família sem ter havido casamento" (10 .

Não deixaram, porém, de recensear-se opiniões adversas, pronunciando-se no sentido de que a norma constitucional não exprimia afinal coisa diferente da família coligada ao casamento (11 .

Eclecticamente, o parecer que vimos considerando inclinou-se antes para o entendimento de que a Constituição terá pretendido "reconhecer aos cidadãos o direito de constituírem família, mesmo à margem do casamento, nomeadamente através da "união de facto", permitindo que a esta realidade sociológica o legislador pudesse atribuir alguns efeitos jurídicos".

Mas, frisou-se, não mais do que isso.

Não se transitou da ajuridicidade da "união de facto" para uma sua equiparação ao status familiae resultante da instituição matrimonial, "pelo que não se devem ter por contrárias à Constituição as leis que restrinjam quaisquer benefícios sociais apenas ao cônjuge legítimo, ou que o tratem privilegiadamente em relação ao "cônjuge de facto" (12 .

Lapidar, nesta tónica, o esclarecimento recolhido do nº 46 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, diploma que teve por escopo, como se sabe, adaptar o Código Civil às novas exigências constitucionais:

"Não se foi além de um esboço de protecção, julgado ética e socialmente justificado, ao companheiro que resta de uma união de facto que tenha revelado um mínimo de durabilidade, estabilidade e aparência conjugal. Foi-se intencionalmente pouco arrojado.
Havia que não estimular as uniões de facto".

Com efeito, nenhuma das normas inovadas no ano de 1977, em que se reflecte esta justificação - v.g. os artigos 2020º e 2196º -, projecta a união de facto além do apontado limite, precipitando-a no círculo próprio da relação familiar (13 .

Não se passou a vincular os protagonistas da "união de facto", reciprocamente, aos "deveres próprios da relação familiar" ou da "relação conjugal".

Nenhum dos "deveres pessoais dos cônjuges", nenhum dos "direitos ou deveres patrimoniais próprios das pessoas casadas" ficou a assistir-lhes.

Permanecia, ao invés, a liberdade fundamental de rompimento unilateral, em qualquer circunstância, da relação entretecida, por mais duradoura e profundamente enraizada.

Daí que se repudiasse a "consagração pontual de determinados efeitos jurídicos da "união de facto" como "afloramento de um princípio geral imanente na nossa ordem jurídica, reconhecido por uma norma hierárquica superior, de equiparação da união de facto ao casamento", para depois estender, pela mecânica da integração de lacunas, ao "cônjuge de facto", os benefícios próprios do "cônjuge legítimo".

Reputava-se essencial à extensão o elemento inovatório, mercê, ainda uma vez, de adequado instrumento legislativo.

E por tudo se vinha a rejeitar a aplicação do regime da pensão de sobrevivência ao caso do subsídio por morte, formulando-se a conclusão negatória deste benefício ao sobrevivente da "união de facto", já extractada introdutoriamente.


2. A solução não concitou, no entanto, unanimidade no seio deste Conselho.

Uma corrente minoritária mostrara-se sensível à verificação de certa "alteração de valores que, por ser interna ao sistema, determinou o aparecimento de uma lacuna secundária ou superveniente na disciplina do Decreto-Lei nº 42 947, de 27 de Abril de 1960".

Nessa tese, semelhante modificação iniciou-se precisamente com o artigo 36º, nº 1, da Constituição de 1976, que teria "pretendido reconhecer aos cidadãos o direito de constituir família fora do casamento e ao legislador a possibilidade de atribuir efeitos jurídicos a tais uniões".

No uso desta faculdade veio em primeiro lugar o Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, mediante redacção introduzida no artigo 2020º do Código Civil, conceder aos sobreviventes das "uniões de facto" o direito de exigir alimentos da herança, fundamentando significativamente a solução nas "exigências éticas e sociais" a que alude o nº 46 do respectivo exórdio, como há pouco notámos.

As mesmas exigências, no fundo, que terão estado na base, por exemplo, do acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Junho de 1981 (14 , ao aplicar analogicamente o artigo 1110º do Código Civil às "uniões de facto" em que haja filhos menores.

Surgiu, em segundo lugar, o Decreto-Lei nº 191-B/79, de 25 de Junho, atribuindo aos membros supérstites das referidas uniões o direito à pensão de sobrevivência, em expresso acolhimento, conforme o preâmbulo, do "princípio da relevância de uniões de facto, de alguma forma equiparáveis à sociedade conjugal, de harmonia com a redacção actual do artigo 2020º do Código Civil".

E similar mutação dos "fundamentos axiológicos imanentes à ordem jurídica", assim precipitada positivamente, é que, para a orientação em apreço, igualmente imporia a concessão do subsídio por morte de servidor do Estado ao "cônjuge de facto", passe a expressão, que lhe sobreviveu.


3. Permita-se-nos breve pausa de reflexão, sopesando as razões das teses em confronto.

Tudo ponderado, não parece que os argumentos acabados de sintetizar ponham em causa a doutrina que prevaleceu.

Esses fundamentos encontram, a bem dizer, resposta na dialéctica do parecer.

Note-se, aliás, o essencial acordo no conteúdo e limites do parâmetro constitucional.

Mas, aceite uma tal delimitação, poderá, na realidade, dizer-se que as "exigências éticas" (e sociais), invocadas pelos reformadores do Código Civil em 1977 para justificar um simples "esboço de protecção", autorizam a formulação de algum princípio generalizador?

Também quando as soluções legais que constituem esse "esboço" indiciem de algum modo a união de facto como corpo estranho à instituição familiar, indesejável, de plano, na tónica dos valores que enformam a ordem jurídica?

A união de facto pode ser uma realidade sociológica. Convenha-se em que o é.

Facilmente se aceitará, porém, que nem todas as "realidades sociológicas" em geral hão-de, só porque o são, obter juízo de aprovação ética e merecer, em derradeiro termo, a chancela do direito.

Não obstante, a algumas dessas "realidades", atendendo a ingredientes meritórios nelas eventualmente concorrentes, pode o legislador, prudencialmente "pouco arrojado" e avaro de "estímulos" à sua proliferação, apenas "esboçar" uma justificada protecção.

Quando assim seja, é provável que os ditames éticos intervenham mais a limitar que a liberalizar.

A ideia aparece, de resto, aflorada em Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1987 (15 :

"A preocupação do legislador tem sido, pois, a de, cautelosamente, só atribuir efeitos de direito às "uniões de facto" em casos específicos, que tem vindo a fixar, por achar serem dignos da protecção da lei.
"E isto porque - lembra o legislador - "não há que estimular as uniões de facto".

Estavam em oposição os acórdãos da Relação de Lisboa, de 2 de Junho de 1981, - precisamente citado pela minoria vencida no parecer nº 4/82, como se viu há pouco - e de 4 de Maio de 1984, sendo o conflito resolvido, com aquele e outros fundamentos, no sentido do último aresto (16).

Ao derradeiro argumento objecta-se, por seu turno, expressamente no próprio texto do parecer, e ao que cremos com proficiência, escrevendo-se, (frisado nosso):

"Quando o Decreto-Lei nº 191-B/79 vem conceder a pensão de sobrevivência aos sobrevivente dessa "união de facto", está, como reconhece confessadamente, a inovar, a utilizar o princípio constitucional
programático que admite que se possam reconhecer à "união de facto" alguns efeitos jurídicos; ou seja, a aplicar o princípio da concessão de alimentos ao companheiro sobrevivo estabelecido no artigo 2020º do Código Civil e nos limitados termos aí estatuídos.
"O companheiro sobrevivo é herdeiro hábil para efeitos de pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos - nº 2 do artigo 41º do Decreto-Lei nº 142/73 na redacção que lhe deu o Decreto-Lei nº 111-B/79; estes alimentos só são devidos se o companheiro sobrevivo os não puder obter, nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º do Código Civil, do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, ascendente ou irmãos".

Estas, em nosso modo de ver, as limitações intrínsecas que o legislador de 79 a si próprio se impôs, quando podia, ao invés, ter decidido acolher uma generalizada equiparação de situações que se lhe deparavam normativamente contrastantes.

Em suma, com o respeito devido à tese minoritária, as suas motivações não persuadem decisivamente no sentido de alterar a rota traçada pela opinião que triunfou.


III

Todavia, a consulta que nos é dirigida manifesta ainda preocupação pelas modificações operadas no ordenamento jurídico subsequentemente à emissão do parecer nº 4/82, tanto no âmbito do direito da família, quanto no direito da

função pública, sendo o sentido dessas transformações que mais justificaria uma tomada de posição actualizada deste Conselho.

As alterações que se hajam tido em mente não vêm de qualquer modo particularizadas, sendo tarefa aqui porventura inviável a todas inventariar.

Julgamos, em todo o caso, possível passar em revista as mais significativas.


1. Situe-se no tempo o parecer nº 4/82, de 18 de Março de 1982.

Estava em vigor a Constituição de 1976 na sua versão original, embora em curso de primeira revisão. Consumada esta no mesmo ano, apenas veria formalmente a luz mercê da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro ("Diário da República", I Série, nº 227, dessa data).

Relativamente ao artigo 36º cifrou-se no aditamento de um nº 7 - "A adopção é regulada e protegida nos termos da lei" -, mantendo-se ponto por ponto o texto originário dos outros seis números (17 .

Cremos, pois, não haver a reponderar actualizações, neste plano, da doutrina do Conselho (18 .

Mesmo perspectivando a alteração sofrida pelo artigo 67º, sem dúvida relevante - e não só por ter deixado impressa na lei básica a importância da família "como elemento fundamental da sociedade" -, mas sem implicações decisórias, a nossos olhos, na temática que nos ocupa (19 .


2. No sector da legislação ordinária, levantamento feito permitiu detectar certo número de diplomas em que a consideração das situações de "união de facto" vai, como quer que seja, positiva ou negativamente, implicada.


2.1. Atende-se a tais situações, conferindo-lhes relevo, em quatro desses diplomas: dois no domínio do arrendamento, um terceiro em sede de processo penal e o derradeiro no regime jurídico da função pública.

Vejamos.

a) A Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, tendo por objecto a definição do regime das rendas nos arrendamentos para habitação, introduziu (artigo 40º) pontuais alterações em preceitos do Código Civil, entre os quais os nºs 2 e 3 do artigo 1111º.

Por força delas, a posição do inquilino (habitacional), sendo pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, passou a poder transmitir-se também "àquele que no momento da sua morte vivia com ele há mais de 5 anos em condições análogas às dos cônjuges" (nº 2).

Contudo, a transmissão defere-se, por ordem: ao cônjuge sobrevivo em primeiro lugar; seguidamente aos parentes ou afins na linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau ulterior; só em último lugar se dando vez "à pessoa mencionada no nº 2" (nº 3).

b) O Decreto-Lei nº 394/88, de 8 de Novembro, veio definir o regime jurídico do chamado arrendamento florestal, aquele que o seu artigo 2º, nº 1 define como "locação de prédios rústicos para fins de exploração silvícola".

Ora, também o artigo 19º prevê a transmissibilidade da posição contratual do arrendatário ao sobrevivente da sua "união de facto".

O arrendamento não caduca, com efeito, por morte do arrendatário, "transmitindo-se ao cônjuge sobrevivo não separado de pessoas e bens ou de facto, àquele que no momento da sua morte vivia com ele há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges e a parentes ou afins na linha recta que com ele vivessem em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há pelo menos dois anos" (artigo 19º, nº 2).

Mas de novo se defere a transmissão pela mesma ordem estabelecida no artigo 1111º, nº 3, do Código Civil, figurando o membro da união de facto em último lugar (nº 3).

c) O novo Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, regula, no Título IV do Livro I, o instituto da assistência.

Privilegiada legitimidade para se constituírem assistentes detêm os "ofendidos", considerando-se como tais "os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos" (artigo 68º, nº 1, alínea a)).

Porém, se o ofendido falecer sem ter renunciado à queixa podem constituir-se assistentes, sucessivamente, "o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou, na falta deles, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes, o adoptante, o adoptado" e, finalmente, "a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges" (alínea c)).

A mesma sucessão de posições é, aliás, definida para a hipótese de o ofendido ser incapaz, figurando ainda à testa do elenco o seu representante legal (alínea d)).

d) O recente Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro, que estabeleceu novo regime de férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública, é outro dos diplomas inventariados onde se detectam formas de tutela às denominadas uniões de facto.

Assim, no capítulo das férias, o artigo 5º, nº 6, confere, em certas condições, "aos cônjuges que trabalhem no mesmo serviço ou organismo", "preferência na marcação de férias em períodos coincidentes". E o nº 7 torna extensiva esta preferência "ao pessoal cujo cônjuge, caso seja também funcionário ou agente, tenha, por força da lei ou pela natureza do serviço, de gozar férias num determinado período do ano".

Sucede, justamente, que o nº 8 do mesmo artigo declara aplicável o disposto nos dois números anteriores "às pessoas que vivam há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges".

Por sua vez, o artigo 25º, nº 1 permite ao funcionário ou agente faltar justificadamente "por motivo de falecimento de familiar": "a) Até cinco dias consecutivos por falecimento do cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente ou afim no 1º grau da linha recta"; "b) Até dois dias consecutivos por falecimento de parente ou afim em qualquer outro grau da linha recta e no 2º e 3º graus da linha colateral".

Reservou-se para a disposição separada do outro número a extensão do benefício previsto na alínea a) ao "caso de falecimento de pessoa que viva em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos com o funcionário ou agente" (20 .

Ainda, o artigo 52º, nº 1 declarou extensivo o disposto no nº 1 do artigo anterior (21 "à assistência ao cônjuge ou equiparado, ascendente, descendentes, adoptandos, adoptados e enteados, menores ou deficientes, em regime de tratamento ambulatório, quando comprovadamente o funcionário ou agente seja a pessoa mais adequada para o fazer" (sublinhado agora).

Surpreendentemente, outros preceitos do citado diploma legal ignoram e recusam mesmo protecção legal às uniões de facto em eventualidades que se diriam paralelas.

É o caso do artigo 24º, segundo o qual as "faltas por adopção regem-se pelo disposto na Lei nº 4/84, de 5 de Abril, e no Decreto-Lei nº 135/85, de 3 de Maio", a que já aludiremos (infra, 2.2., a)).

É também o caso do artigo 53º, que manda regular pelos mesmos diplomas as "faltas para assistência a familiares doentes", cujo regime subsequentemente será focado (infra, 2.2., a)).

É, em terceiro lugar, o caso paradigmático do artigo 84º, que - sem primar pelo rigor técnico - apenas ao cônjuge reserva o direito à licença sem vencimento em situações de delicada implicação (cfr. ainda os artigos 86º, nºs 1 e 2, 87º, nº 1, e 88º, nº 2):


"Artigo 84º
Licença sem vencimento para acompanhamento
do cônjuge colocado no estrangeiro

Quando o funcionário ou agente for colocado no estrangeiro por período de tempo superior a 90 dias ou indeterminado, em missões de defesa ou representação de interesses do País, ou em organizações internacionais de que Portugal seja membro, o respectivo cônjuge, caso se encontre também abrangido pelo presente diploma, tem direito à concessão de licença sem vencimento para acompanhamento daquele." (22 .


2.2. Nesta mesma linha, um conjunto de medidas legislativas de protecção à família vieram a lume no período subsequente a 1982, quedando-se avessas a toda a consideração pelas uniões de facto.

a) Assim a Lei nº 4/84, de 5 de Abril, tendo como escopo a protecção da maternidade e da paternidade, considerados "valores sociais eminentes" (artigo 1º, nº 1).

Desde logo, nenhuma indicação explícita, na economia do articulado, no sentido da relevância das situações "conjugais" de facto.

O artigo 11º refere-se às "faltas por adopção" há momentos deixadas em suspenso (supra, 2.1., d)), dispondo que, após a declaração para efeitos de adopção de menor de 3 anos, "o trabalhador ou a trabalhadora que pretende adoptar tem direito a faltar ao trabalho durante 60 dias, para acompanhamento da criança".

Em execução do diploma no âmbito da função pública foi publicado o Decreto-Lei nº 135/85, de 3 de Maio, inserindo no artigo 3º vários preceitos visando regulamentar condições para o exercício pleno do direito previsto naquele artigo 11º.

Deste modo, após consignar-se que esse direito "só pode ser exercido nos 60 dias imediatamente posteriores à data em que o trabalhador tome a criança a seu cargo" (nº 1), dispõe-se que, nas hipóteses de adopção por casal, "apenas é reconhecido o direito à licença no caso de ambos os cônjuges terem actividade profissional" (nº 2) (frisado agora, como nos demais textos de lei) (23 .

Em tal situação, poderá ser exigido ao trabalhador que se prevalece do direito a faltar "a apresentação de declaração da entidade patronal ou do dirigente do serviço do cônjuge comprovativa do não exercício, por este, do mesmo direito" (nº 3).

E a morte do trabalhador durante o gozo da licença em causa "confere ao cônjuge o direito à dispensa de trabalho por período de duração igual àquele a que o primeiro ainda teria direito e não inferior a 10 dias" (nº 4) (24 (25 .

No concernente às "faltas para assistência a familiares doentes", há momentos aludidas (supra, 2.1., d)), releva o artigo 23º da mesma Lei nº 4/84.

Segundo ele, os "trabalhadores têm direito a faltar ao trabalho, até 15 dias por ano, quando se trate de prestar assistência inadiável e imprescindível em caso de doença ao cônjuge, ascendentes, descendentes maiores de 10 anos e afins na linha recta", faltas que, de resto, o artigo 10º, nº 3, do Decreto-Lei nº 135/85 equipara, "para todos os efeitos, às faltas por doença do próprio" (26 .

b) A exegese a que nos votámos na tentativa de correctamente satisfazer o tema da consulta, justifica que se continue explorando o direito da função pública, de algum modo interseccionado já na análise precedente.

O Decreto-Lei nº 45/84, de 3 de Fevereiro, estabeleceu um elenco de medidas relativas à atribuição de subsídio de deslocação e incentivos para a fixação na periferia do pessoal da função pública.

O subsídio de deslocação "visa compensar o pessoal deslocado das despesas emergentes da mudança de residência para a periferia e consiste em abono pecuniário", além do mais, para a "cobertura das despesas de viagem do próprio e do respectivo agregado familiar" (artigo 2º, alínea a)).

Não se define, é certo, o que seja de entender por "agregado familiar", mas o artigo 4º (redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 12/87, de 8 de Janeiro) alguma indicação fornece acerca das pessoas que devem - ou melhor, que não devem - reputar-se incluídas.

Efectivamente, os incentivos de natureza não pecuniária à fixação na periferia, conforme o citado preceito, abrangem, além de outros:

"a) A garantia de transferência escolar dos filhos de qualquer dos cônjuges, bem como da inscrição dos mesmos, sem observância do numerus clausus (...);

b) A preferência de colocação do cônjuge funcionário ou agente em serviço ou organismo sito na localidade de trabalho do funcionário integrado ou deslocado transitoriamente para a periferia ou no concelho ou concelhos limítrofes daquela localidade;

c) A preferência a atribuir ao cônjuge, em caso de igualdade de classificação obtida em concurso, face aos demais candidatos não vinculados à função pública, no ingresso para serviço ou organismo sito no local de trabalho do funcionário integrado ou deslocado transitoriamente para a periferia ou no concelho ou concelhos limítrofes daquele local" (27 .


2.3. Poder-se-ia ainda aludir a outra classe de textos de lei que, não compendiando propriamente soluções normativas com o sentido de desfavorecimento à união de facto, todavia a tratam, dir-se-ia, com indiferença, omitindo-lhe explícita menção.

Quando, em tónica adversa ao parecer nº 4/82 deste Conselho, se auguraria atitude quiçá de menor neutralidade legislativa.

Citem-se, a título exemplificativo, o Decreto-Lei nº 14/85, de 6 de Julho, sobre o acompanhamento da mulher grávida durante o trabalho de parto, e o Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril, que intentou aperfeiçoar a protecção na maternidade, paternidade e adopção em matéria de segurança social, revogando o Capítulo III - "Prestações pecuniárias do regime de segurança social" - do Decreto-Lei nº 136/85, de 3 de Maio, relativo ao tema.


IV

Que juízo emitir face à evolução descrita, posterior a 1982?


1. A contraposição entre família e casamento, que alguns vêem modelada no artigo 36º, nº 1, da lei fundamental não tem que significar necessariamente - vimo-lo na análise do parecer nº 4/82 - o reconhecimento constitucional da união de facto em si como relação jurídico-familiar.

Há quem, de resto, interprete o inciso no sentido da consagração do "direito de "constituir família" estabelecendo as correspondentes relações de filiação" (28 .

Nesta conformidade, o artigo 36º, nº 1, não obrigaria a considerar a união de facto como fonte de relações familiares a adicionar às enumeradas no artigo 1576º do Código Civil.

De semelhante ponto de vista careceria de fundamento a atitude que, a pretexto de uma "interpretação conforme a Constituição", almejasse entender o Decreto-Lei nº 42 947, ou integrar casos nele pretendidos lacunares nomeadamente por via do artigo 10º, nº 3, do Código Civil, concedendo o subsídio por morte a pessoas estranhas ao elenco do seu artigo 2º e, portanto, ao sobrevivente da união de facto.

A questão não deve, porém, dogmatizar-se excessivamente. Se a união de facto não é relação familiar de plano, para a generalidade dos efeitos, nada impedirá que assim possa ser qualificada para efeitos determinados, aqueles que há pouco analisámos e outros mais (29 - a construção teorética dessas soluções legais assim, porventura, o justificará.

Entendemos, porém, que se trata de casos isolados.

De casos em que a situação se diria assaz desvalorizada, fruto de um circunscrito relevo reconhecido pelo legislador.

Não pode ademais, para além deles, esquecer-se o vasto campo de irrelevância que ainda resta.

Aí, no domínio essencial das relações jurídico-familiares, da sua constituição e efeitos, modificação e extinção, queda a união de facto, enquanto tal, no limbo dos eventos juridicamente indiferentes.

Muito longe, em todo o caso, de poder equiparar-se ao casamento.

Parificação que seria porventura violenta e injustificada, ou seja, "aplicar o estatuto do casamento a pessoas que não quiseram casar" (30 .

Implicando, outrossim, uma radical contradição "insita nel rendere omaggio alla libertà di convivere imponendo conseguenze legali al vincolo que non è vincolo (si vuole essere liberi di convivere liberamente, ma non si sarebbe liberi di restare liberi!)" (31 .

Possa embora o artigo 36º, nº 1, da Constituição interpretar-se no sentido do direito de constituir família fora do matrimónio, não é por isso que esta instituição resultará no essencial "desinstitucionalizada".

Não será esse o entendimento capaz de conferir por si às uniões de facto o relevo e as consequências jurídicas que apenas do casamento derivam.


2. Continuamos, pois, a pensar que as soluções legais inventariadas dificilmente permitem concluir no sentido de uma "alteração dos fundamentos axiológicos imanentes à ordem jurídica" tal que alguma lacuna superveniente houvesse surgido a demandar integração.

Tratar-se-ia, aliás, de situações de excepcionalidade em que o recurso à analogia defrontaria dificuldades elementares.

E como criaria o intérprete, pondere-se por mera hipótese, na impossibilidade desta, uma norma no "espírito do sistema"?

No máximo, colocando, porventura, a sobrevivente da união de facto em último lugar da ordem de acesso ao subsídio por morte, com a consequente eleição, no caso que nos é posto, da candidatura da filha do funcionário falecido (32 .

Mantemos, de qualquer maneira, a mesma posição.

Em lugar de lacuna, o que ocorre é antes "caso não regulado".

Como tantos que o legislador deixou, e provavelmente continuará a deixar, de normativizar.

Ora, nesta sede, é caso de recordar.

Não nos compete, em condição de intérpretes, fazer prevalecer soluções que de alguma óptica pudessem reputar-se desejadas.

Incumbe-nos simplesmente, obedecendo aos ditames e no mais estrito rigor da técnica jurídica, eleger, entre diversos possíveis, o entendimento prevalecente da lei em vigor.

Uma derradeira nota.

O direito comparado não nos oferece, por seu turno, chegados a este ponto, argumentos substanciais motivando qualquer significativa rotação no rumo doutrinário imprimido pelo parecer nº 4/82.

Está-se indubitavelmente perante questões de fundo sociológico comum, de algum modo supra-ordenadas à contingência espacial do direito.

Mas a temática deixa essencialmente imbuir-se de matizes polémicos que apelam a coeficientes de sensibilidade diversificada, acantonando-se frequentemente na irredutibilidade, dos legisladores, dos intérpretes, dos estudiosos das ciências sociais (33 .

O que sem dúvida deve registar-se é que os postulados dogmáticos utilizados pelo parecer nº 4/82 no tratamento da questão heurística não sofreram entretanto fundamental contestação, concedendo a evolução doutrinária posterior acrescido reforço às construções ensaiadas (34 .

Sinal de que os instrumentos aparelhados pelo intérprete em 1982 garantiam bem mais que soluções precárias.

Conclusão:
V

Pelo exposto se reafirma, em conclusão:

Não tem direito a receber o "subsídio por morte" a que se refere o Decreto-Lei nº 42 947, de 27 de Abril de 1960, a pessoa que tenha convivido maritalmente com um servidor do Estado, mesmo que no momento da morte deste se encontre nas condições previstas no artigo 2020º do Código Civil.

__________________________________________

(1) De 18 de Março de 1982, homologado por despacho do Senhor Secretário de Estado do Orçamento, de 3 de Agosto do mesmo ano e publicado no "Diário da República", II Série, nº 258 de 15 de Dezembro de 1982; "Boletim do Ministério da Justiça", nº 322, págs. 184 e segs; e "Revista de Legislação e de Jurisprudência", Ano 116º, nº 3710, págs. 132 e ss.

(2) Visava-se dar execução ao preceituado no artigo 10º da Lei nº 2101, de 19 de Dezembro de 1959, que estabelecia o subsídio por morte nos seguintes termos:
"Por morte dos servidores do Estado, ocorrida a partir de 1 de Janeiro de 1960, as pessoas de família a seu cargo, como tal definidas na lei, terão direito a receber, mediante processo simplificado, o vencimento completo do mês em que se der a morte e ainda o do mês seguinte".
Segundo o breve exórdio, o diploma de 1960 tinha como declarado objectivo "facultar às famílias dos servidores falecidos os meios necessários para acorrer às despesas que ordinariamente se fazem sentir com maior premência logo após o falecimento e, por outro lado, imprimir simplicidade e rapidez ao processo de liquidação de tais abonos".

(3) O artigo 19º do Decreto-Lei nº 49 031, de 27 de Maio de 1969, fez corresponder o montante do subsídio ao vencimento de seis meses. Foi, aliás, revogado pelo artigo 108º, nº 2, do Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro, a que mais tarde se aludirá, com excepção dos artigos 2º, 3º, 4º, 19º e 20º (cfr. infra, nota 22).

(4) Face ao antecedente regime das pensões de sobrevivência e perante dispositivos sensivelmente idênticos aos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 42 947, supra transcritos - artigos 32º do Decreto-Lei nº 24 046, de 21 de Junho de 1934, 40º e 41º do Decreto-Lei nº 142/73, de 31 de Março -, houve este Conselho o ensejo de rejeitar a equiparação entre "cônjuge sobrevivo" e "sobrevivente de união de facto" para efeitos de concessão da pensão. Apelava-se decisivamente ao "elemento racional" da interpretação, à luz da occasio legis, para entender o sistema então vigente "todo ele construído sobre o estatuto familiar reconhecido por lei", reflectindo "uma filosofia avessa à tutela de situações conjugais de facto". Sem que semelhante ilação se pudesse ver infirmada, em "plano de interpretação transpositiva que tenha em conta as realidades sociológico-jurídicas", por uma pretensa "ruptura de valores" importando aí substancial alteração do nosso sistema jurídico.
No sentido exposto, o parecer nº 5/78, de 26 de Janeiro de 1978, "Diário da República", II Série, nº 116, de 20 de Maio de 1978, e "Boletim do Ministério da Justiça", nº 281, pág. 52; cfr. também o parecer nº 4/79, de 1 de Fevereiro de 1979, "Diário" e série citada, nº 154, de 6 de Julho de 1979, e mesmo "Boletim", nº 287, pág. 158.

(5) As expressões transcritas encontram-se por vezes entre comas no texto do parecer nº 4/82, citando-se, no sentido exposto, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1978, págs. 428 e 436, e KARL ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, Lisboa, 1968, pág. 227.

(6) Cita-se ainda LARENZ, op. cit., pág. 437; ENGISCH, op. cit., pág. 233; FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, 3ª edição, Coimbra, 1978, pág. 156.

(7) ENGISCH, op. cit., pág. 228; C.W. CANARIS, De la manière de constater et de combler les lacunes de la loi en droit Allemand, "Études de logique juridique", Bruxelles, págs. 21 e ss. Cfr. a nota 10 do parecer nº 4/82.

(8) J. HERMANO SARAIVA, Apostilha ao projecto do Código Civil, Lisboa, 1966, pág. 139, trabalho citado no ponto 4, e nota 7 do parecer em análise.

(9) Op. cit., pág. 437.

(10) Citam-se neste sentido LIA VIEGAS, A Constituição e a Condição da Mulher, 1977, págs. 48 e ss., apud H.E. HÖRSTER, Inconstitucionalidade da tributação conjunta dos cônjuges, "Revista de Direito e Economia", ano III, nº 2, Julho/Dezembro de 1977, págs. 506 e s., na mesma orientação.

(11) Assim, CASTRO MENDES, Artigo 36º, nº 1 (Família e casamento), "Estudos sobre a Constituição", vol. I, Lisboa, 1977, págs. 371 e ss.; JORGE MIRANDA, Um projecto de revisão constitucional, Coimbra, 1980, pág. 38.

(12) No sentido exposto invocaram-se GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, A Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, pág. 105, e um passo de PEREIRA COELHO, Curso de Direito de Família, Lições 77/78, págs. 7 e 8: "(...) a despeito do nº 1 do artigo 36º da Constituição da República a união de facto não deverá considerar-se relação "familiar".

(13) Segue-se agora de perto no parecer a lição de ANTUNES VARELA, Direito da família, Lisboa, 1982, págs. 21 e ss.

(14) "Colectânea de Jurisprudência", ano VI, tomo 3, pág. 61.

(15) "Diário da República", I Série, nº 122, de 28 de Maio de 1987, págs. 2128 e ss.

(16) O teor do Assento é o que segue: "As normas dos nºs 2, 3 e 4 do artigo 1110º do CC não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores".

(17) Para uma perspectiva histórica da formação do preceito na Constituinte pode ver-se EDUARDO DOS SANTOS, Direito da família, Coimbra, 1985, págs. 96 e ss.

(18) E isto apesar de os trabalhos preparatórios da revisão mostrarem que a Aliança Democrática propôs, para o nº 1 do artigo 36º, a substituição da expressão "todos têm direito de constituir família e contrair casamento", pela expressão "todos têm o direito a constituir família, contraindo casamento", a qual não obteve aprovação.
Pronunciando-se sobre a proposta, o deputado VITAL MOREIRA declarava: "Em relação ao nº 1, nós não compartilhamos da ideia - que não sei se todos os deputados da AD compartilham - de que as famílias são necessariamente baseadas no matrimónio". Cfr. o "Diário da Assembleia da República", II Legislatura, 2ª Sessão Legislativa (1981-1982), II Série, 2º Suplemento ao nº 6, de 28 de Outubro de 1981, págs. 70-(58) e s.; 2º Suplemento ao nº 80, de 21 de Abril de 1982, págs. 1508-(30); I Série, nº 103, de 16 de Junho de 1982, pág. 4240.
Nada, portanto, se bem entendemos, de essencialmente novo relativamente à posição assumida frente à versão inicial do mesmo inciso (cfr. supra, no texto, II, 1.3. e nota 12). Basta ver o paralelo comentário em GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1º volume, Coimbra, 1984, pág. 229: "O conceito constitucional de família não abrange, portanto, apenas a "família jurídica", havendo assim uma abertura constitucional - se não mesmo uma obrigação - para conferir o devido relevo às uniões familiares de facto" (frisado nosso)
(19) Cfr., a título esclarecedor, em sede de trabalhos parlamentares acerca do aludido preceito, o "Diário da Assembleia da República", II Legislatura, 2ª Sessão Legislativa (1981-1982), II Série, Suplemento ao nº 12, de 11 de Novembro de 1981, págs. 204-(33) e ss.; Suplemento ao nº 84, de 29 de Abril de 1982, pág. 1562-(1) ; Suplemento ao nº 98, de 29 de Maio de 1982, págs. 1873-(33) e ss.; I Série, nº 107, de 24 de Junho de 1982, pág. 4410; II Série, 2º Suplemento ao nº 111, de 24 de Junho de 1982, pág. 2058-(30); I Série, Suplemento ao nº 115, de 8 de Junho de 1982, págs. 4787 e ss.; II Série, nº 124, de 16 de Julho de 1982, págs. 2230-(14) e s.

(20) Aliás mediante fórmula que se diria arrevesada: "2 - O disposto na primeira parte da alínea a) do número anterior é também aplicável em caso de falecimento (...)".

(21) Artigo 51º, nº 1: "O funcionário ou agente que, encontrando-se ao serviço, careça, em virtude de doença, deficiência ou acidente em serviço, de tratamento ambulatório que não possa efectuar-se fora do período normal de trabalho pode faltar durante o tempo necessário para o efeito".

(22) Já, de resto, se registou (supra, nota 3) que o artigo 108º, nº 1, revogando vários diplomas, inclusivamente o Decreto-Lei nº 49 301, de 27 de Maio de 1969, deixou incólume neste o artigo 19º, que elevara o montante do subsídio por morte previsto na Lei nº 2101 e no Decreto-Lei nº 42 947.
Não pode, pois, duvidar-se de que o legislador português de 1988 tivesse presentes, quando fazia relevar ou não as uniões de facto, os requisitos subjectivos da concessão daquele subsídio, o que, porém, não o motivou no sentido de qualquer extensão do regime.

(23) Como se sabe, a adopção por "casal" é permitida a "duas pessoas casadas há mais de cinco anos e não separadas judicialmente de pessoas e bens ou de facto" (artigo 1979º, nº 1, do Código Civil), sendo em geral necessário para a adopção o consentimento do "cônjuge do adoptante não separado judicialmente de pessoas e bens" (artigo 1981º, nº 1, alínea b), do mesmo Código).

(24) A licença não tem, aliás, lugar "se a criança a adoptar for filho do cônjuge do trabalhador" (nº 5).

(25) Disposições perfeitamente homólogas constam do artigo 3º do Decreto-Lei nº 136/85, de 3 de Maio, que regulamentou a Lei nº 4/84 na parte aplicável aos "trabalhadores abrangidos pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho, incluindo os trabalhadores agrícolas e do serviço doméstico" (artigo 1º).

(26) O Decreto-Lei nº 135/85 insere-se, aliás, numa linha de orientação coerente advinda de diploma precedente, o Decreto-Lei nº 165/80, de 29 de Maio, por ele revogado (artigo 24º, alínea a)). Dispunha o seu artigo 1º: "1- Os funcionários e agentes poderão faltar justificadamente ao serviço até quinze dias por ano, para prestar assistência inadiável e imprescindível, em caso de doença, ao cônjuge, ascendentes, descendentes e afins na linha recta. 2 - O prazo estabelecido no número anterior poderá ser alargado até trinta dias por ano, para prestação de assistência a filhos, adoptados e enteados menores de 10 anos".
Refira-se, já agora, que, segundo o artigo 2º, alínea c), do Decreto-Lei nº 167/80, de 29 de Maio, só podem aceder ao regime de trabalho em tempo parcial, disciplinado no mesmo Decreto-Lei, os funcionários que, entre outras condições e situações, "pretendam assistir ao cônjuge ou a ascendente seu ou do cônjuge". Não os funcionários que pretendam assistir à pessoa com eles convivente em união de facto.

(27) Preceituam ainda os nºs 2 e 3 do mencionado artigo 4º: "2 - A colocação do cônjuge funcionário ou agente ao abrigo da alínea b) do número anterior não carece da concordância do membro do Governo que tutele o serviço de origem, devendo, porém, ser-lhe comunicada atempadamente. 3 - Nos casos de deslocação por interesse público previstos no artigo 9º do presente decreto-lei, é garantida a colocação do cônjuge funcionário ou agente em serviço ou organismo sito na localidade de trabalho do funcionário deslocado, mediante transferência ou requisição, sendo-lhe aplicável o regime previsto no número anterior".

(28) PEREIRA COELHO, Casamento e Família no Direito Português, "Temas de Direito da Família", Coimbra, 1986, pág. 8.

(29) PEREIRA COELHO Casamento, págs. 8 e s. No Curso de Direito da Família, Coimbra, 1986, pág. 11, reproduz, de resto, o excerto transcrito supra, nota 12.

(30) PEREIRA COELHO, Casamento, pág. 19.

(31) A. TRABUCCHI, Morte della famiglia o famiglia senza famiglia?, "Rivista di Diritto Civile", Ano XXXIV, nº 1, 1988, págs. 41 e s

(32) Note-se que os serviços do Ministério dão como assente que a mesma se encontra nas condições previstas na lei para que lhe seja atribuído o subsídio em causa.

(33) Cfr. em todo o caso, a título ilustrativo, no tema geral da união de facto, em cambiantes e planos problemáticos variados, para os sistemas italiano, francês, suiço e alemão, além do estudo citado na nota 31, ENZO ROPPO, La famiglia senza matrimonio. Diritto e non-diritto nella fenomenologia delle libere unioni, "Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile", Ano XXXIV, nº 3, 1980, págs. 697 e ss.; MARINA SANTILI, Note critiche in tema di "famiglia di fatto", no mesmo número dessa revista, págs. 771 e ss.; GIAMBATTISTA NAPPI, Riconnoscimento e limiti della famiglia di fatto nel rispetto del diritto vigente, e Il Convengno di Milano sulla famiglia di fatto, "Il Diritto di Famiglia e delle Persone", Ano XVII, 1988, págs. 1818 e ss. e 1912 e ss., respectivamente; ANDREA GENTILI, Sul risarcimento del danno da morte del convivente, nella giurisprudenza francese ed italiana, na mesma revista, Ano XIV, 1985, págs. 1126 e ss.; J. RUBELLIN-DEVICHI, L'attitude du législateur contemporain face au mariage de fait, "Revue Trimestrielle de droit civil", nº 3, 1984, págs. 390 e ss.; CLAUDE COLOMBET, La famille, Paris, 1985, págs. 91 e ss.; HELEN MARTY-SCHMID,La situation patrimoniale des concubins à la fin de l'union libre, Genève, 1986, págs. 9 e ss. e passim.

(34) Ver, por exemplo, LARENZ, Methodenlehre der Rechswissenschaft (Studienausgabe), 5ª edição alemã, Springer-Verlag, Berlin, Heidelberg, New York, Tokyo, 1983, págs. 244 e ss.; ENGISCH, Einführung in das juristische Denken, 8ª edição alemã, Verlag W. Kohlhammer, Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz, 1983, págs. 138 e ss.; ZIPELLIUS, Juristische Methodenlehre, 4ª edição, Verlag C.H. Beck, München, 1985, págs. 57 e ss.; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1985, págs. 192 e ss.; OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 4ª edição revista, Lisboa, 1987, págs. 359 e ss.
Anotações
Legislação: 
L 4/84 DE 1984/04/05 ART1 ART11 ART23.
DL 135/85 DE 1985/05/03 ART3.
DL 45/84 DE 1984/02/03 ART2 ART4.
DL 42947 DE 1960/04/27 ART1 ART2.
CCIV66 ART2020 ART10 ART2196 ART1111.
DL 191-B/79 DE 1979/06/25 ART40 N1 A.
CONST76 ART36 N1 ART67.
ASS STJ DE 1987/04/23.
L 46/85 DE 1985/09/20 ART40.
DL 394/88 DE 1988/11/08 ART19.
CPP87 ART68 N1 A C D.
DL 497/88 DE 1988/12/30 ART5 N8 ART25 N1 N2 ART52 N1 ART24 ART53 ART84.
Referências Complementares: 
DIR ADM * FUNÇÃO PUBL / DIR CIV * DIR FAM.
Divulgação
Número: 
DR238
Data: 
16-10-1989
Página: 
10322
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