Simp English Español

Está aqui

Dados Administrativos
Número do Parecer: 
91/2006, de 13.03.2008
Data do Parecer: 
13-03-2008
Número de sessões: 
1
Tipo de Parecer: 
Parecer
Votação: 
Unanimidade
Iniciativa: 
PGR
Entidade: 
Procurador(a)-Geral da República
Relator: 
Maria de Fátima da Graça Carvalho
Descritores e Conclusões
Descritores: 
DESERÇÃO
DESCRIMINALIZAÇÃO
SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO
SERVIÇO EFECTIVO NORMAL
EXTINÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
RETROACTIVIDADE DA LEI PENAL
CRIME PERMANENTE
MILITAR
CRIME MILITAR
CÓDIGO DE JUSTIÇA MILITAR
Conclusões: 
1ª – No conceito de militar definido pelo artigo 4º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, cabem, além de outras categorias, os militares em efectividade de serviço, independentemente das formas de prestação do serviço, que não constituem, enquanto tais, elementos essenciais de integração do conceito;

2ª – O crime de deserção, enquanto crime específico que apenas pode ser cometido por quem tenha a qualidade de militar, apresenta, quer na previsão do Código de Justiça Militar de 1977, quer na previsão do Código de Justiça Militar de 2003, uma essencial identidade quanto à factualidade típica e aos interesses jurídicos que tutela, ordenados, em ambos os casos, à prossecução da defesa nacional;

3ª – Os crimes de deserção praticados antes da entrada em vigor do Código de Justiça Militar de 2003 por militares que prestavam serviço efectivo normal, cuja execução cessou com a extinção desse regime, continuam a ser puníveis após a entrada em vigor deste Código, já que não foram eliminados do número de infracções nele previstas e, na sucessão das normas penais que lhe respeitam, não se verifica qualquer alteração relevante quanto aos elementos típicos e mantém-se uma identidade substancial dos valores e bens jurídicos tutelados.
Texto Integral
Texto Integral: 
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:



I

1. Com base numa exposição enviada pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta, directora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto[1], dignou-se o antecessor de Vossa Excelência solicitar parecer deste Conselho Consultivo acerca da eventual descriminalização dos crimes de deserção praticados «no âmbito do anterior Código de Justiça Militar» por militares em regime de Serviço Efectivo Normal (SEN).

De acordo com a referida exposição, a questão suscitou-se em processos pendentes naquele Departamento, no qual tem sido seguida a tese da descriminalização e em seu abono vêm invocados, em síntese, os seguintes fundamentos:

– Na sequência das alterações introduzidas aos artigos 275º e 276º da Constituição pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, na parte em que consagravam o princípio da obrigatoriedade do serviço militar, e de acordo com a sequente legislação infra-constitucional (designadamente a Lei de Serviço Militar e respectivo Regulamento – Lei nº 174/99, de 21 de Setembro, e Decreto-Lei nº 289/2000, de 14 de Novembro), passou a vigorar no ordenamento jurídico interno o princípio de que «em tempo de paz o serviço militar baseia-se no voluntariado», pelo que, refere a exponente, «nenhum cidadão pode, actualmente e em tempo de paz, ser obrigado a ser militar»;

– O actual Código de Justiça Militar (CJM, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro) acolheu um conceito de militar que «nada tem a ver com o carácter obrigatório a que antes a Lei Fundamental se referia» e que, sendo mais restritivo, implica a restrição do âmbito do direito penal, «abrangendo apenas aqueles que preenchem o actual conceito de militar, mas já não aqueles que eram obrigados a serem militares»;

– Sendo o crime de deserção um crime de natureza permanente, que cessa com a «captura ou apresentação do agente, perda da nacionalidade ou cessação das obrigações militares», não fará sentido a captura de um agente quando a obrigação deixou de existir. Mas, acrescenta a exponente, «se esse momento marca o fim dessa situação, então deve concluir-se que, após a entrada em vigor do novo CJM, deixou de existir deserção naqueles casos»;

– Embora o facto punível não tivesse sido eliminado do elenco de infracções previstas neste último Código e a obrigação de prestar serviço militar não decorresse de uma lei temporária (não se verificando assim as hipóteses previstas no artigo 2º, nºs 2 e 3, do Código Penal), as normas que determinaram a cessação da obrigatoriedade do serviço militar devem ser consideradas normas de referência para a lei penal;

– E, citando TAIPA DE CARVALHO[2], acrescenta que «houve uma diminuição da extensão da punibilidade, por força do aumento da exigência (compreensão) normativa da lei nova, deixando, assim, factos que eram crimes de o ser, por não preencherem a exigência contida no novo conceito».

Essencialmente com estes fundamentos, conclui a exponente: «(...) entendemos que todos os factos constitutivos dos crimes de deserção praticados por militares que foram obrigados a cumprir o serviço militar não integram, actualmente, tal ilícito penal, razão pela qual deverão ser considerados descriminalizados e, consequentemente, deverão ser arquivados todos os inquéritos instaurados por tais factos».

2. Esta solução terá sido também acolhida no âmbito do Ministério da Defesa, conforme dá conta um ofício subscrito pelo Director-Geral da Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar[3], junto ao expediente enviado, onde se refere que, tendo cessado as obrigações militares daqueles que estavam a cumprir o Serviço Efectivo Normal (SEN), não se justifica proceder à sua captura, dado o disposto no artigo 73º, nº 2, última parte[4], do actual CJM, daí se extraindo a conclusão de que tinha deixado de ser considerada crime a deserção por parte desses militares e que era ilegal qualquer detenção feita a partir de Novembro de 2004.

3. Contudo, a exponente esclarece que a posição defendida não colhe unanimidade, mesmo entre os magistrados do Ministério Público, pelo que termina propondo a elaboração de parecer com vista à uniformização de posições.

De facto, resulta do expediente enviado que, pelo menos em determinados processos pendentes nas varas criminais de Lisboa, nos quais, por despacho judicial, foi determinado o arquivamento dos autos com fundamento na descriminalização das referidas condutas, o Ministério Público interpôs recurso desses despachos alegando que a extinção do SEN não havia determinado a descriminalização das deserções cometidas durante a vigência desse regime; no essencial, argumentou o magistrado recorrente que se estava perante uma lei temporária e, ainda que assim não fosse, o actual preceito incriminador sempre abrangeria os militares não pertencentes aos quadros permanentes em efectividade de serviço.

Refira-se, desde já, que, embora com diversa fundamentação, estes recursos obtiveram provimento em acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que concluíram também pela não descriminalização das deserções em tal circunstancialismo[5].

Cumpre emitir parecer.


II

1. Constituindo a defesa da Pátria um direito e dever fundamental de todos os portugueses – assim afirmado pelo nº 1 do artigo 276º da Constituição de 1976, cuja redacção originária não sofreu, nesta parte, alteração – já a forma como deve ser cumprido o dever de serviço militar, instrumental daquele primeiro dever e com âmbito de aplicação mais restrito («abrangendo apenas os cidadãos capazes da sua prestação»[6]), sofreu uma modificação relevante na sequência da revisão constitucional de 1997, que remeteu para o legislador ordinário a regulação do serviço militar, designadamente no que respeita à sua natureza obrigatória ou voluntária.

No essencial, seguindo as opções que vinham sendo tomadas em diversos países europeus, o legislador ordinário optou também por pôr fim ao anterior sistema de serviço militar obrigatório (conscrição), e adoptou o sistema segundo o qual, em tempo de paz, o serviço militar baseia-se no voluntariado[7].

2. Numa breve retrospectiva da história recente[8], o Serviço Militar Obrigatório (SMO) começou a “ganhar terreno” em Portugal no período do constitucionalismo, influenciado pelos ideais da revolução francesa; contudo, foi com a primeira constituição republicana que o SMO universal, tal como perdurou até data recente, foi institucionalizado.

Assim, o artigo 68º, nº 1, da Constituição de 1911 determinava que «Todos os portugueses, cada qual segundo as suas aptidões, são obrigados pessoalmente ao serviço militar, para sustentar a independência e a integridade da Pátria e da Constituição e para defendê-las dos seus inimigos internos e externos». E a Constituição de 1933 dispunha no seu artigo 54º: «O serviço militar é geral e obrigatório».

Não obstante a enunciação deste princípios e a existência, desde 1911, de Forças Armadas assentes no SMO universal, em tempo de paz, salienta aquele Autor que «o alargamento efectivo a todos os jovens do sexo masculino apenas aconteceu durante a 1ª e 2ª guerras mundiais e no período das guerras coloniais».

2.1. Também a Constituição de 1976 consagrava, na sua redacção originária, o princípio da obrigatoriedade do serviço militar, dispondo no nº 2 do artigo 276º que «O serviço militar é obrigatório, nos termos e pelo período que a lei prescrever».

A mesma regra foi consagrada e desenvolvida em diversa legislação ordinária aprovada posteriormente, designadamente na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro[9]), no Estatuto dos Militares das Forças Armadas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro[10]), e na Lei de Serviço Militar (Lei nº 30/87, de 7 de Julho[11]).

No que particularmente releva no âmbito deste parecer, cabe referir que, de acordo com o modelo instituído por esta última lei, o serviço efectivo (definido pelo nº 1 do artigo 4º como «a situação dos cidadãos enquanto permanecerem ao serviço nas Forças Armadas») abrangia, nos termos do nº 2, os seguintes regimes: serviço efectivo normal, serviço efectivo nos quadros permanentes, serviço efectivo em regime de contrato, e serviço efectivo decorrente de convocação ou mobilização.

O Serviço Efectivo Normal (SEN) compreendia a prestação de serviço nas Forças Armadas por cidadãos conscritos ao serviço militar, com início no acto da incorporação e até à passagem à situação de disponibilidade (nº 2 do artigo 4º).

Nos termos do artigo 23º e seguintes, a prestação de serviço efectivo normal era precedida pelo recrutamento geral (que incluía o recenseamento militar, a classificação e selecção e a distribuição e alistamento) e incidia sobre o universo de cidadãos conscritos ao serviço militar (portugueses com idades entre os 18 e 38 anos de idade, as quais podiam ser alteradas em tempo de guerra).

O SEN compreendia a incorporação (geralmente aos 20 anos e que consistia na apresentação dos recrutas na unidade ou estabelecimento em que haviam sido alistados), a preparação militar e o período nas fileiras, e a sua duração era de 12 a 15 meses, no Exército, e de 18 a 20 meses, na Marinha e na Força Aérea (artigos 23º e seguintes).

Na situação de disponibilidade, os cidadãos podiam ainda ser convocados para a prestação de serviço militar efectivo, quer para efeitos de treino e reciclagem, quer por força de situações de perigo de guerra ou de agressão iminente ou efectiva por forças estrangeiras; também os cidadãos na situação de disponibilidade, licença e reserva territorial podiam ser mobilizados para o serviço efectivo militar em caso de excepção ou de guerra (artigos 28º e 29º).

2.2. Com a revisão constitucional de 1997, a norma do nº 2 do artigo 276º da Constituição passou a ter a seguinte redacção «O serviço militar é regulado por lei, que fixa as formas, a natureza voluntária ou obrigatória, a duração e o conteúdo da respectiva prestação»[12].

Vejamos quais as opções consagradas pelo legislador ordinário, na sequência da credencial que lhe foi conferida e que, no essencial, constam de determinadas normas da nova Lei de Serviço Militar (Lei nº 174/99, de 21 de Setembro, que revogou a Lei nº 30/87), cujo conteúdo importa conhecer.

Dispondo o nº 4 do artigo 1º que «Em tempo de paz, o serviço militar baseia-se no voluntariado», dispõem os números seguintes:

«5 – O disposto no número anterior não prejudica as obrigações dos cidadãos portugueses inerentes ao recrutamento militar e ao serviço efectivo decorrente de convocação ou de mobilização, nos termos estatuídos na presente lei;
6 – O período de sujeição dos cidadãos portugueses a obrigações militares, nos termos do número anterior, decorre entre o primeiro dia do ano em que completam 18 anos de idade e o último dia do ano em que completam 35 anos de idade.»

Nos termos do artigo 2º da mesma lei, o serviço militar abrange as seguintes situações: a) Serviço efectivo; b) Reserva de recrutamento; c) Reserva de disponibilidade.

Sobre “Serviço efectivo”, dispõe o artigo 3º, nos seguintes termos:
«1 – Serviço efectivo, entendido como contributo para a defesa da Pátria, é a situação dos cidadãos enquanto permanecerem ao serviço das Forças Armadas.
2 – O serviço efectivo abrange:
a) Serviço efectivo nos quadros permanentes;
b) Serviço efectivo em regime de contrato;
c) Serviço efectivo em regime de voluntariado;
d) Serviço efectivo decorrente de convocação ou mobilização.
3 – O serviço efectivo nos quadros permanentes corresponde à prestação de serviço pelos cidadãos que, tendo ingressado voluntariamente na carreira militar, se encontrem vinculados às Forças Armadas com carácter de permanência.
4 – O serviço efectivo em regime de contrato corresponde à prestação de serviço militar voluntário por parte dos cidadãos durante um período de tempo limitado, com vista à satisfação das necessidades das Forças Armadas ou ao seu eventual ingresso nos quadros permanentes.
5 – O serviço efectivo em regime de voluntariado corresponde à assunção voluntária de um vínculo às Forças Armadas por um período de 12 meses, incluindo o período de instrução, findo o qual o militar pode ingressar no serviço efectivo em regime de contrato.
6 – O serviço efectivo decorrente de convocação ou mobilização compreende o serviço militar prestado na sequência do recrutamento excepcional, nos termos previstos na presente lei.
7 – O estatuto dos militares nas diversas situações de serviço efectivo é definido em diplomas próprios.»

Por seu turno, a reserva de recrutamento «é constituída pelos cidadãos portugueses dos 18 aos 35 anos de idade, que, não tendo prestado serviço efectivo nas fileiras, podem ser objecto de recrutamento excepcional, em termos a regulamentar» (artigo 4º). Já a reserva de disponibilidade «é constituída pelos cidadãos portugueses que cessaram a prestação de serviço militar até à idade limite dos deveres militares», «destina-se a permitir o aumento dos efectivos das Forças Armadas até aos quantitativos tidos por adequados» e «para efeito de convocação, abrange o período de seis anos subsequente ao termo do serviço efectivo, sem prejuízo do limite de idade previsto no nº 1» (nºs 1, 2, e 3 do artigo 5º).

O recrutamento militar, definido, pelo artigo 7º, como «conjunto de operações necessárias à obtenção de meios humanos para ingresso nas Forças Armadas», compreende as seguintes modalidades: a) recrutamento normal (para prestação de serviço efectivo em regime de contrato ou de voluntariado»; b) recrutamento especial (para a prestação de serviço efectivo voluntário nos quadros permanentes; c) recrutamento excepcional (para a prestação de serviço efectivo decorrente de convocação ou mobilização).

O serviço efectivo em regime de contrato (regulado pelo artigo 23º e seguintes) compreende a incorporação, a instrução e o período nas fileiras; o contrato é celebrado na sequência do alistamento, entra em vigor na data da incorporação e tem duração de dois a seis anos, renovável, podendo, em determinadas situações funcionais, ser criado, por decreto-lei, um regime de contrato com duração máxima de 20 anos.

O serviço efectivo em regime de voluntariado «constitui a expressão do direito de defesa da Pátria e assenta na adesão voluntária a um vínculo às Forças Armadas, com vista à satisfação destas» (artigo 30º). Tem a duração de 12 meses, incluída a instrução e, no termo do prazo, pode ser requerida a permanência no serviço efectivo em regime de contrato.

Sobre os regimes de mobilização e convocação dispõem os artigos 34º e seguintes da mesma Lei de Serviço Militar, cujos normativos mais relevantes se transcrevem:

«Artigo 34º
Serviço efectivo por convocação

1 – Os cidadãos que se encontrem na situação de reserva de recrutamento podem ser convocados para prestação de serviço efectivo com uma antecedência mínima de 60 dias, nos casos em que a satisfação das necessidades fundamentais das Forças Armadas seja afectada ou prejudicada a prossecução dos objectivos permanentes da política de defesa nacional, por períodos de 4 meses prorrogáveis até ao máximo de 12 meses.
(...).
6 – Os cidadãos que se encontrem na situação de reserva de disponibilidade podem ser convocados para prestação de serviço efectivo, nas seguintes condições:
a) Com um antecedência mínima de 60 dias, por portaria (...), por período ou períodos na totalidade não superiores a dois meses, enquanto durarem os deveres militares, para efeitos de reciclagem, treino, exercícios ou manobras militares;
b) Por decreto (...), em caso de perigo de guerra ou de agressão iminente ou efectiva por forças estrangeiras, enquanto se mantiverem estas situações e não for decretada a mobilização militar, até à totalidade da reserva de disponibilidade.
7 – Nos termos e para os efeitos previstos no nº 1, podem ainda ser convocados, mediante oferecimento, os cidadãos na reserva de disponibilidade.»

E o artigo 36º (“Serviço efectivo por mobilização”) dispõe:

«Os cidadãos nas situações de reserva de recrutamento e de disponibilidade podem ser mobilizados para prestarem serviço militar efectivo nas Forças Armadas em casos de excepção ou de guerra, nos termos previstos em lei da Assembleia da República.»

Por fim, cabe referir o artigo 59º, inserido no capítulo referente a disposições transitórias e finais, que dispõe:

«Artigo 59º
Prestação de SEN

1 – A obrigação de prestar o serviço efectivo normal – SEN – é gradualmente eliminada num prazo que não pode exceder quatro anos, contado a partir da data da entrada em vigor da presente lei.
2 – Para os efeitos previstos no número anterior, os quantitativos dos militares em SEN são anualmente fixados por portaria do Ministro da Defesa Nacional, ouvido o Conselho de Chefes de Estado-Maior.»

3. Resulta do exposto que a actual Lei de Serviço Militar procedeu à eliminação gradual do Serviço Efectivo Normal, que constituía, antes da sua entrada em vigor, a principal modalidade de prestação de serviço militar obrigatório, mantendo embora outras formas de prestação de serviço militar obrigatório, reservadas a situações específicas expressamente previstas e baseadas na convocação e na mobilização. Para a eliminação gradual do SEN foi estabelecido o prazo máximo de 4 anos a contar da data da entrada em vigor daquela lei, a qual apenas ocorreu com a entrada em vigor do respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 289/2000, de 14 de Novembro.

Complementarmente, o nº 1 do artigo 3º do diploma que aprovou o regulamento da lei de serviço militar estabeleceu que, durante aquele período transitório, se mantinham em funcionamento «as estruturas de recrutamento e de classificação e selecção actualmente existentes para efeitos de prestação de serviço efectivo normal (SEN)»; por seu turno, o artigo 4º previu que os militares que, à data da sua entrada em vigor, prestassem serviço nos regimes de voluntariado, de contrato ou de serviço efectivo normal (SEN) com destino àquelas formas de prestação de serviço, transitassem para o novo regime de contrato ao abrigo da LSM (salvo declaração escrita em contrário).

Constata-se, assim, que, não obstante as alterações verificadas no regime de prestação de serviço militar, não houve uma eliminação absoluta e imediata do serviço militar obrigatório, que se manteve, quer nas modalidades específicas de convocação e mobilização, quer na modalidade de Serviço Efectivo Normal, neste caso em termos transitórios, mas por período cujo limite máximo se situou já na vigência do novo Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, e que entrou em vigor no dia 14 de Setembro de 2004.

Vejamos, então, qual a relevância dos modelos de prestação de serviço militar expostos, nas normas que, nos Códigos de Justiça Militar de 1977 e de 2003, incriminam as deserções cometidas por militares.


III

1. No Código de Justiça Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril[13], o crime de deserção estava previsto e punido no artigo 142º e seguintes, inseridos na secção referente aos “Crimes contra a honra e o dever militar”, cuja redacção importa conhecer.

«Artigo 142º

1 – Em tempo de paz, comete o crime de deserção o militar que:
a) Se ausente sem licença do seu quartel, base, navio, local ou posto de serviço ou deixe de se apresentar no seu destino no prazo indicado para esse fim, conservando-se na situação de ausência ilegítima por mais de oito dias consecutivos;
b) Encontrando-se na situação de licença de qualquer natureza, na de disponibilidade, na de licenciado ou na de reserva, se não apresente onde lhe for determinado dentro do prazo de dez dias a contar da data fixada no passaporte de licença, no aviso convocatório, no edital de chamada ou em qualquer outra forma de intimação;
c) Fugir à escolta que o acompanhe ou do local em que esteja preso ou a cumprir qualquer pena, uma vez que se não apresente ou não seja capturado no prazo de oito dias a contar da fuga.
2 – (...).»

«Artigo 143º

Em tempo de guerra, os prazos para a deserção estabelecidos no artigo anterior são reduzidos a quatro dias, na hipótese da alínea b) do nº 1, e a três dias, nos restantes.»

«Artigo 144º

Cometem o crime de deserção, os indivíduos que, tendo sido convocados ou requisitados nos termos da lei de mobilização civil, não se apresentem nos prazos fixados no artigo anterior, bem como aqueles que abandonem o serviço ou o trabalho de que estiverem incumbidos, mantendo-se nessa situação para além dos mesmos prazos.»


«Artigo 145º

Cometem também o crime de deserção os militares pertencentes às tropas territoriais que, dentro de cinco dias em tempo de guerra e doze dias em tempo de paz, deixem de se apresentar nos centros de mobilização, unidades ou locais que lhes forem designados, em ordem de convocação individual ou colectiva expedida pela autoridade competente, seja qual for o motivo desta convocação.»

«Artigo 146º

Os mancebos com mais de 18 anos que, em tempo de guerra, deixem de se apresentar no prazo de dez dias consecutivos, a contar da data em que deviam realizar a sua apresentação nos locais que lhes forem determinados, ou que, depois de se terem apresentado, se ausentarem ilegitimamente, conservando-se ausentes durante dez dias sucessivos, são considerados desertores e como tal punidos, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 149º.»

«Artigo 147º

Em tempo de guerra, verifica-se a deserção para país estrangeiro quando o militar:
a) Ausentando-se ilegitimamente, transpuser os limites que separam o território nacional de outro Estado.
b) Estando fora do território nacional, abandonar a unidade, navio ou aeronave a que pertencer.»

Os preceitos seguintes dispunham sobre as penas aplicáveis em diversas situações especificamente previstas.

2. No ano de 2003, no âmbito de uma reforma da justiça militar considerada «imperativo constitucional», que teve como “primeiro plano” a extinção dos tribunais militares em tempo de paz, assistiu-se à revogação do CJM de 1977 e à aprovação (pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro) do actual Código de Justiça Militar[14].

Apesar de a justiça militar ter passado a ser administrada pelos tribunais comuns, entendeu o legislador que «ela não se acomoda satisfatoriamente nos quadros do direito penal comum, em razão quer do tipo de bens cuja protecção está em causa quer de especiais exigências de celeridade», salientando que os bens subjacentes à tipificação própria da justiça militar são os bens que servem os interesses militares, numa opção segundo a qual «o direito penal militar é um direito de tutela de bens jurídicos militares e não um direito penal do agente»[15].

Assim, e conforme se referiu na exposição de motivos que precedeu o Projecto de Lei nº 259/IX, o segundo “grande plano” da reforma consistiu na adopção do conceito de crime estritamente militar, com uma redução do elenco dos crimes previstos e uma «mais estreita definição do bem jurídico protegido pelas normas penais de natureza militar».

Por outro lado, em resposta ao «imperativo constitucional de uma horizontalização da justiça penal, ou seja, da inclusão possível do direito penal militar no direito penal comum»[16], assistiu-se à redução de normas próprias e à convocação da regulação geral do direito penal e processual comuns; a parte inovadora do Código ficou essencialmente constituída por normas que especializam princípios gerais de direito penal e processual penal e que tipificam crimes estritamente militares.

De facto, vinha-se entendendo que existe entre o direito penal comum e o direito penal militar uma relação de especialidade e que este tutela bens jurídicos especiais, militares, que carecem de uma tutela penal específica e que são, segundo o Tribunal Constitucional, «inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas» ou, segundo FIGUEIREDO DIAS, «aquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica, designadamente a defesa da Pátria»[17].

2.1. De acordo com estas concepções, o Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, aplica-se aos crimes estritamente militares, definidos como «facto lesivo dos interesses militares da defesa militar e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal seja qualificado pela lei», os quais se regulam pelas disposições do Código Penal «em tudo o que não for contrariado pela presente lei» (artigo 2º).

Nos termos do nº 1 do artigo 4º, sobre “Conceito de militar”, consideram-se militares, para efeito deste Código:

«a) Os oficiais, sargentos e praças dos quadros permanentes das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana em qualquer situação;
b) Os oficiais, sargentos e praças não pertencentes aos quadros permanentes na efectividade de serviço;
c) Os alunos das escolas de formação de oficiais e sargentos.»

Por seu turno, o nº 2 dispõe que «Os aspirantes a oficial consideram-se como oficiais, para efeitos penais».

2.2. O crime de deserção encontra-se previsto e punido nos artigos 72º e seguintes deste Código, inseridos em capítulo dedicado aos “Crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional”, importando conhecer o conteúdo das respectivas normas incriminadoras.

«Artigo 72º
Deserção

«1 – Comete o crime de deserção o militar que:
a) Se ausentar, sem licença ou autorização, do seu posto ou local de serviço e se mantenha na situação de ausência ilegítima por 10 dias consecutivos;
b) Encontrando-se na situação de licença ou dispensa de qualquer natureza ou ausente por outra causa legítima, não se apresentar onde lhe for determinado dentro do prazo de 10 dias a contar da data fixada no passaporte ou guia de licença ou dispensa, ou em qualquer outra forma de intimação;
c) Sem motivo legítimo, deixe de se apresentar no seu destino no prazo de 10 dias a contar da data indicada para esse fim;
d) Fugindo à escolta que o acompanhe ou se evadir do local em que estiver preso ou detido, não se apresentar no prazo de 10 dias a contar da data da fuga;
e) Estando na situação de reserva ou de reforma e tendo sido convocado ou mobilizado para a prestação do serviço militar efectivo, não se apresentar onde lhe for determinado dentro do prazo de 10 dias a contar da data fixada no aviso convocatório, no edital de chamada ou em qualquer outra forma de intimação.
2 – Em tempo de guerra, os prazos referidos no número anterior são reduzidos a metade.»

«Artigo 73º
Execução da deserção

1 – Os dias de ausência ilegítima necessários para que se verifique a deserção contam-se por períodos de vinte e quatro horas desde o momento em que se verifique a falta.
2 – A deserção mantém-se até à captura ou apresentação do agente, perda de nacionalidade portuguesa ou cessação das obrigações militares.
3 – Para efeitos do número anterior só faz cessar a execução do crime:
a) A captura feita por causa da deserção ou seguida de comunicação ás autoridades militares;
b) A apresentação voluntária do agente a qualquer autoridade militar, policial, diplomática ou consular portuguesa, com o propósito de prestar o serviço militar que lhe caiba ou de regularizar a sua situação militar;
c) A perda de nacionalidade portuguesa ou a cessação das obrigações militares.»

O artigo 74º contém as normas de punição da deserção e o artigo 75º contém os casos de deserção qualificada.

Convém ainda conhecer o texto do artigo 76º, com a epígrafe “Outras deserções”:

«Cometem ainda o crime de deserção:
a) Os cidadãos que, estando na situação de reserva de disponibilidade ou de reserva de recrutamento e tendo sido mobilizados para a prestação do serviço militar efectivo, não se apresentarem onde lhes for determinado dentro do prazo de 10 dias a contar da data fixada no aviso convocatório, no edital de chamada ou em qualquer outra forma de intimação;
b) Os cidadãos abrangidos pela mobilização civil que não se apresentem no local que lhes tenha sido determinado, nos 10 dias subsequentes à data fixada para a sua apresentação, bem como os que abandonem o serviço de que estavam incumbidos por efeito da mobilização civil, pelo mesmo prazo;
c) Os trabalhadores a que se aplica o estatuto de cidadãos abrangidos pela mobilização civil, nos termos da lei, que abandonem o serviço de que estavam incumbidos, por 10 dias consecutivos durante a vigência da requisição que lhes tenha sido notificada pelo respectivo órgão de gestão, bem como os que, estando ausentes da empresa ou serviço requisitado, não compareçam aí nos 10 dias subsequentes ao fim do prazo que lhes tenha sido notificado para a sua apresentação;
cabendo-lhes as penas do nº 2 do artigo 74º.»

3. A análise comparativa das normas que, em cada um dos Códigos sucessivamente em vigor, descrevem a factualidade típica do crime de deserção cometido por militar revela que esta consiste, matricialmente, na ausência ou na não comparência ilegítimas e não justificadas na respectiva unidade militar durante um determinado período de tempo (no primeiro de oito e no segundo de 10 dias consecutivos); na sua objectividade, a factualidade típica mantém-se essencialmente idêntica revelando a intenção legislativa de continuar a punir os mesmos factos.

Porém, é certo que, nesta parte, não existem divergências de entendimento pois que, mesmo aqueles que defendem a tese da descriminalização nas situações que constituem objecto deste parecer, reconhecem que os factos integradores do crime de deserção no anterior CJM se mantêm nas correspondentes normas do novo Código.

A questão sobre a qual existe divergência respeita, por um lado, ao preenchimento, face à nova lei, do elemento pessoal do tipo, ou seja, a verificação da qualidade de militar (relativamente aos tipos que exigem essa qualidade, já que outros preceitos incriminadores prevêem a deserção por civis) sempre que o respectivo agente, na data em que praticou o crime, prestasse serviço militar em regime de serviço efectivo normal (SEN), posteriormente extinto.

Defende-se que, estando em causa um crime específico, que apenas pode ser praticado por quem tenha determinada qualidade ou condição, essa qualidade deve verificar-se também face à definição do conceito tal como é acolhido pela nova lei; recorde-se que, na exposição que esteve na base do pedido de parecer se referiu, a este propósito, que o conceito actual de militar «nada tem a ver com o carácter obrigatório a que antes a Lei Fundamental se referia» e que, sendo mais restritivo, implica a restrição do âmbito do direito penal, «abrangendo apenas aqueles que preenchem o actual conceito de militar, mas já não aqueles que eram obrigados a serem militares».

Deste modo, invocando a doutrina mais autorizada sobre a relevância das normas de referência extra-penais na restrição ou supressão do âmbito do direito penal, concluiu-se pela descriminalização das condutas nos aludidos casos.

Noutra perspectiva, entende-se ainda que a cessação das obrigações militares (que se verificou com a cessação do respectivo regime obrigatório de prestação de serviço militar) «marca o fim da situação de ausência ilegítima», pelo que, afirma-se na mesma exposição, após a entrada em vigor do novo CJM (cujo artigo 73º, nº 2, refere a cessação das obrigações militares como uma das causas que determina que a deserção não se mantenha) «deixou de existir deserção».

Analisemos, pois, a pertinência destes argumentos.


IV

1. Como corolário do princípio da legalidade, e em nome da segurança jurídica e da protecção dos agentes, o nº 1 do artigo 29º da Constituição estabelece, entre outros princípios, o da não retroactividade da lei penal, segundo o qual «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior». Contudo, numa perspectiva ditada pelo favorecimento da posição do arguido, a parte final do nº 4 do mesmo preceito constitucional determina a aplicação retroactiva da lei penal «de conteúdo mais favorável ao arguido»[18].

Da retroactividade da lei penal mais favorável decorre que, se uma lei deixar de qualificar como crime determinados factos ocorridos antes da sua entrada em vigor (e que tinham então essa qualificação), aquela lei se aplica a tais situações implicando a descriminalização dos factos; por outro lado, se da nova lei resultar que a punição que cabe aos factos é menos severa do que a punição que resultava da aplicação da lei que vigorava na data em que foram praticados, aplica-se também a nova lei.

O artigo 2º do Código Penal (“Aplicação no tempo”) desenvolve esses princípios, dispondo:

«1. As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
2. O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
3. Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período.
4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.»

Conforme anota MAIA GONÇALVES[19], sobre a excepção ao princípio da não retroactividade da lei penal, no caso de a infracção ser eliminada do mundo das infracções, referem alguns Autores que incidem, por sua vez, duas outras excepções: uma seria constituída pelas “leis temporais”; a outra seria integrada pelos casos em que a alteração resultasse da modificação, não de normas de direito penal, mas de normas de outros ramos do direito.

A primeira destas “excepções à excepção” encontra consagração expressa no nº 3 do artigo 2º do Código Penal; já a segunda tem sido refutada pela doutrina que, na esteira de EDUARDO CORREIA[20], considera que «as normas a que se refere a lei penal fazem parte desta, são elementos normativos da descrição dos seus conceitos» e que «se da revogação destas normas resulta uma restrição do âmbito do direito penal, isso importa uma atenuação da sua eficácia, e portanto deve aproveitar ao delinquente».

2. Não se coloca, a nosso ver, a questão da eventual relevância de uma lei temporária, com referência às normas que impunham o serviço militar obrigatório.

De facto, de acordo com a norma do nº 3 do artigo 2º do Código Penal, atrás transcrita, a lei temporária «vale para um determinado período de tempo» ou, como refere EDUARDO CORREIA[21], «tem em vista um certo estado de coisas»; ora, como vimos, a vigência de um sistema de conscrição era próprio de um modelo de organização das Forças Armadas que atravessou várias décadas e a que só a ocorrência de importantes alterações políticas e militares viria a pôr termo.

2.1. Mas já uma das questões que vem suscitada no âmbito deste parecer respeita, precisamente, à relevância de eventuais normas de referência da lei penal na medida em que da sua modificação ou supressão deva resultar a modificação ou eliminação de um dos elementos constitutivos da infracção.

Não se pondo em causa a bondade dessa tese, há porém que apurar se, in casu, estão efectivamente verificados os seus pressupostos.

É certo que o legislador extra-penal extinguiu o sistema de serviço efectivo normal (SEN) ao qual estavam adstritos os agentes da infracção nos casos que constituem objecto da consulta. Ao tipificar as modalidades de prestação de serviço militar, as actuais leis de índole militar, designadamente a lei de serviço militar e seu regulamento, já não incluem o SEN, embora aludam a esse regime em sede de transitoriedade, segundo uma opção de extinção gradual, prolongada por alguns anos. Refira-se aliás que, na data em que entrou em vigor o actual CJM ainda era possível subsistir esse regime de transitoriedade e que alguns militares se encontrassem ainda a prestar serviço nessa modalidade.

Porém, este Código, ao utilizar em diversas normas incriminadoras o conceito de militar como elemento pessoal do tipo (designadamente no artigo 73º, referente a um crime de deserção específico, que apenas pode ser cometido por quem tenha essa qualidade), não se limita a remeter para a noção de militar dada pela legislação extra-penal mas acolhe directamente a definição que, para efeitos da sua aplicação, consta da sua parte geral (artigo 4º).

Ora, o legislador não utilizou como critério de definição as formas específicas de prestação de serviço militar ou a sua natureza obrigatória ou voluntária, tendo antes seguido um critério mais abrangente e mais próximo da noção estatutária[22], privilegiando, por um lado, a pertença aos quadros permanentes e, por outro, a efectividade de serviço, ou seja, a situação dos militares enquanto permanecem ao serviço das Forças Armadas. Assim, são considerados militares os oficiais, sargentos e praças dos quadros permanentes, em qualquer situação, bem como os oficiais, sargentos e praças não pertencentes aos quadros permanentes, desde que em efectividade de serviço e, ainda, os alunos das escolas de formação de oficiais e sargentos.

Deste modo, afigura-se-nos que a situação daqueles que prestaram serviço efectivo normal (SEN) é susceptível de se subsumir na categoria prevista na alínea b) do artigo 4º do CJM (oficiais, sargentos e praças não pertencentes aos quadros mas em efectividade de serviço) e que estes não perderam a qualidade de militares à luz do artigo 4º deste Código. As diversas formas que a prestação de serviço militar abrange, revelam-se algo instrumentais e não interferem na essência do conceito, dada pela pertença ou pela permanência ao serviço das Forças Armadas.

De qualquer modo, estando em causa um crime específico[23], que apenas pode ser cometido por quem tenha determinada qualidade, o que importa é que o agente fosse detentor dessa qualidade no momento em que o praticou, conquanto os elementos essenciais, que a caracterizam, se mantenham na lei nova não implicando uma heterogeneidade desse elemento do tipo.

3. Por outro lado, a circunstância de o serviço militar ter deixado de ser, em geral, obrigatório não implica necessária e automaticamente uma despenalização das infracções cometidas no anterior regime de conscrição.

É certo que com a cessação desse regime, e observados os prazos e modos de eliminação gradual, cessaram também as obrigações e deveres militares daqueles que lhe estavam adstritos, pelo que, no caso de se encontrarem em situação de deserção, esta findou nessa mesma data. Porém, o que findou foi a execução do respectivo crime (tal como refere o nº 3 do artigo 73º, que tem, aliás, por epígrafe “Execução da deserção”), o que não se confunde com a eliminação do crime (descriminalização).

Trata-se de um crime permanente em que, segundo FIGUEIREDO DIAS[24], «a consumação persiste no tempo, por vontade do autor, até que cesse o estado anti-jurídico» ou, como se escreveu no parecer nº 54/98, deste Conselho Consultivo[25], «não só a consumação, como a execução permanecem enquanto se mantiver o estado de compressão do interesse objecto jurídico do crime (...).».

Especificamente quanto ao crime de deserção, acrescenta-se, nesse parecer, que «é integrado pela sequência e conjugação de dois elementos em unidade estrutural de conduta – uma acção ou omissão directa (a ausência ou a não apresentação voluntária) e uma subsequente omissão (a manutenção na situação ilegítima), que perdurará no tempo até que seja feita cessar voluntária ou involuntariamente (apresentação ou captura)».

Cessando as obrigações militares a que o desertor estava sujeito, por ter findado o regime em que prestava serviço, deixa de subsistir a “compressão” do interesse jurídico tutelado e, tal como se refere na exposição que serviu de base a este parecer, não fará sentido proceder à sua captura, até porque não existe já uma situação de flagrante delito. Porém, contrariamente ao que aí se conclui, isso não significa que não deva haver lugar à competente acção penal.

4. A circunstância de não se manter já o modelo de conscrição em que o serviço militar foi prestado não implica, pois, que as deserções praticadas sob esse regime tenham deixado de ser puníveis.

De facto, nada revela que tenha havido uma modificação da concepção legislativa acerca da ilicitude do facto, quer com respeito à factualidade descrita, quer com respeito ao bem jurídico tutelado[26]; existindo uma essencial homogeneidade quanto aos elementos integradores da infracção, nada indicia que tenha havido uma opção de política criminal traduzida no abandono dos valores antes tutelados.

O crime de deserção era, no CJM de 1977, um crime essencialmente militar, definido pelo nº 2 do artigo 1º como «factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das Forças Armadas, bem como os interesses militares de defesa nacional (...)».

No domínio do novo CJM, o crime de deserção é um crime estritamente militar, definido como «facto lesivo dos interesses militares da defesa militar e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas (...)», e está inserido em capítulo referente aos crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional. Através dos crimes estritamente militares pretende-se evitar «as ofensas graves a valores que tutelam e são os pilares da própria existência das Forças Armadas, garante da independência nacional, da integridade do território e da liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa»[27].

Os fins que a Constituição comete às Forças Armadas, pelo artigo 273º, têm-se mantido idênticos. Ora, é com vista à sua realização e, em suma, à prossecução da defesa nacional que estão ordenadas as exigências de efectividade e de continuidade de serviço militar que, segundo considerou o parecer nº 54/98, eram tutelados pelo crime de deserção no CJM de 1977 e que não deixam de merecer a mesma tutela no novo Código.

A identidade valorativa, bem como a identidade da factualidade típica descrita relativamente aos crimes de deserção previstos em ambos os Códigos permitem considerar que se está perante uma “continuidade normativo-típica”[28], que assegura a sucessão das leis penais e que não deixa espaço à descriminalização.

Refira-se, por fim que, também o acórdão nº 2991/2007-5, do Tribunal da Relação de Lisboa[29], concluiu que «a Lei do Serviço Militar extinguiu o serviço militar obrigatório, mas não extinguiu a responsabilidade criminal pelos actos praticados durante a prestação desse serviço».

Evidenciando que a mesma factualidade (ausência ilegítima da unidade que se prolongou por determinado período de tempo) continua a ser descrita em norma incriminadora do actual CJM, considerou que não se surpreendia «nenhuma alteração da concepção do legislador»; para além de não se verificar que a lei nova tivesse deixado de considerar crime “certos factos” (tal como exige o artigo 2º, nº 2, do Código Penal), refere aquele aresto que, tratando-se de crime específico, o que releva é a condição das pessoas que o podem praticar, ou seja, a condição de militar. Assim, segundo o entendimento acolhido, seria necessário que a nova lei tivesse extinguido a responsabilidade criminal daqueles que cometeram o crime de deserção e, não o tendo feito, tal responsabilidade mantém-se.


V

Face ao exposto, extraem-se as seguintes conclusões:

1ª – No conceito de militar definido pelo artigo 4º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, cabem, além de outras categorias, os militares em efectividade de serviço, independentemente das formas de prestação do serviço, que não constituem, enquanto tais, elementos essenciais de integração do conceito;

2ª – O crime de deserção, enquanto crime específico que apenas pode ser cometido por quem tenha a qualidade de militar, apresenta, quer na previsão do Código de Justiça Militar de 1977, quer na previsão do Código de Justiça Militar de 2003, uma essencial identidade quanto à factualidade típica e aos interesses jurídicos que tutela, ordenados, em ambos os casos, à prossecução da defesa nacional;

3ª – Os crimes de deserção praticados antes da entrada em vigor do Código de Justiça Militar de 2003 por militares que prestavam serviço efectivo normal, cuja execução cessou com a extinção desse regime, continuam a ser puníveis após a entrada em vigor deste Código, já que não foram eliminados do número de infracções nele previstas e, na sucessão das normas penais que lhe respeitam, não se verifica qualquer alteração relevante quanto aos elementos típicos e mantém-se uma identidade substancial dos valores e bens jurídicos tutelados.



[1] Através de ofício nº 162, de 4 de Julho de 2006, recebido na Procuradoria-Geral da República em 7 de Julho de 2006.
[2] Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, página 144.
[3] Ofício nº 02404, com data de 16 de Fevereiro de 2006, e com a referências 13.3 – DSCJE/DAM – Proc. 1/2006.
[4] O nº 2 do artigo 73º (que tem por epígrafe “Execução da deserção”) tem o seguinte conteúdo: «A deserção mantém-se até à captura ou apresentação do agente, perda de nacionalidade portuguesa ou cessação das obrigações militares».
[5] Acórdãos de 23 de Outubro de 2007, no processo nº 2991/2007-5; de 4 de Julho de 2007, no processo nº 3999/2007-3; de 30 de Maio de 2005, no processo nº 2975/2007 – 3; de 2 de Fevereiro de 2006, no processo nº 125/2006 – 9, todos disponíveis no sítio da Internet http:/www.dgsi.pt.
[6] Cfr. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, página 965.
[7] Cfr., sobre as razões desta opção, RAIMUNDO NARCISO, “Os debates sobre o fim do SMO e a profissionalização das F.A.”, Janus 98 (suplemento especial), Universidade Autónoma de Lisboa, página 56 e seguintes.
[8] Segue-se, nesta parte, RAIMUNDO NARCISO, “O serviço militar e a cidadania”, Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 91, Outono 99, 2ª Série, página 69 e seguintes.
[9] Alterada pelas Leis nº 111/91, e 113/91, ambas de 29 de Agosto; nº 18/95, de 13 de Julho; nº 3/99, de 18 de Setembro; nº 4/2001, de 30 de Agosto; e nº 2/2007, de 16 de Abril.
[10] Alterado pela Lei nº 27/91, de17 de Julho, pelo Decreto-Lei nº 157/92, de 31 de Julho, pela Lei nº 15/92, de 5 de Agosto, e pelos Decretos-Leis nº 27/94, de 5 de Fevereiro, e nº 175/97, de 22 de Julho. Revogado pelo Decreto-Lei nº 236/99, de 25 de Junho.
[11] Alterada pelas Leis nºs 89/88, de 5 de Agosto, nº 22/91, de 19 de Julho, e nº 36/95, de 18 de Agosto. Revogada pela Lei nº 174/99, de 21 de Setembro.
[12] O nº 3 do artigo 276º manteve a regra da prestação de serviço cívico ou de serviço militar não armado relativamente aos cidadãos sujeitos a serviço militar armado e que sejam considerados inaptos; também os nºs 6 e 7 mantiveram as anteriores redacções, respectivamente: «Nenhum cidadão poderá conservar nem obter emprego do Estado ou de outra entidade pública se deixar de cumprir os seus deveres militares ou de serviço cívico quando obrigatório» e «Nenhum cidadão pode ser prejudicado na sua colocação, nos seus benefícios sociais ou no seu emprego permanente por virtude do cumprimento do serviço militar ou do serviço cívico obrigatório».
[13] Alterado pelos Decretos-Leis nº 157/77, de 3 de Maio, nº 319-A/77, de 5 de Agosto, e nº 177/80, de 31 de Maio, nº 103/81, de 12 de Maio, nº 105/81, de 14 de Maio, nº 208/81, de 13 de Julho, nº 232/81, de 30 de Julho, nº 122/82, de 22 de Abril, e nº 146/82, de 28 de Abril.
[14] Na mesma data ou em datas próximas foram ainda aprovados o estatuto dos juízes militares (que passaram a integrar os tribunais comuns no julgamento de crimes estritamente militares) e dos assessores militares do Ministério Público, alterações à lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, e uma nova lei orgânica da Polícia Judiciária Militar.
[15] Cfr. trabalhos preparatórios, designadamente a discussão em plenário dos projectos de lei nº 259/IX (do PSD e CDS-PP), nº 97/IX (do PS) e nº 156/IX, do PCP, publicada no Diário da Assembleia da República, I Série, nº 107, de 3 de Abril de 2003.
O texto que foi aprovado a final resultou de uma versão elaborada por um grupo de trabalho constituído para o efeito e teve por base o primeiro daqueles projectos, com alterações provenientes dos restantes e outras tidas por adequadas (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série A, de 4 de Outubro de 2003).
[16] Cfr. exposição de motivos do projecto de lei nº 97/IX.
[17] Citações retiradas da exposição de motivos que precedeu o projecto de lei nº 97/IX.
[18] Cfr. sobre estes princípios GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, volume I, página 491 e seguintes; JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, tomo I, página 323 e seguines.
[19] Código Penal Português Anotado, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1996, página 177.
[20] Direito Criminal, Almedina, Coimbra, 1971 (reimpressão da edição de 1968), I volume, página 155. Sobre o tema, cfr., entre outros, LOPES ROCHA, “Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço”, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, página 89 e seguintes; TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2ª edição revista, Coimbra Editora, 1997, página 109 e seguintes; FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal (Parte Geral), 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, Tomo I, página página 193 e seguintes.
[21] Obra citada, página 155.
[22] Cfr. a lei de bases gerais da condição militar (Lei nº 11/89, de 1 de Junho), e o Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-lei nº 236/99, de 25 de Junho (alterado pelas Leis nº 12-A/2000, de 24 de Junho, e nº 25/2000, de 23 de Agosto, e pelos Decretos-Leis nº 66/2001, de 22 de Fevereiro, nº 197-A/2003, de 30 de Agosto, nº 70/2005, de 17 de Março, nº 166/2005, de 23 de Setembro, e nº 330/2007, de 9 de Outubro).
[23] Cfr., sobre esta matéria, entre outros, FIGUEIREDO DIAS, obra citada, página 301.
[24] Obra citada, página 314.
[25] De 23 de Outubro de 1998, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1999.
[26] Cfr. TAIPA DE CARVALHO, obra citada, página 110.
[27] Cfr. exposição de motivos que precedeu o Projecto de Lei nº 259/IX. Cfr. nota 15.
[28] Cfr., TAIPA DE CARVALHO, obra citada, página 167.
[29] Cfr. nota 5. Outros acórdãos do mesmo Tribunal concluem também pela não descriminalização mas com diferentes fundamentos, invocando-se, em alguns desses acórdãos, que ««o serviço militar obrigatório, então designado por Serviço Efectivo Normal (SEN) não foi extinto enquanto modo de prestação de serviço militar que origina a aquisição da qualidade de militar para efeitos penais, mantendo-se decorrente, nomeadamente, de convocação ou mobilização, terminologia agora adoptada, bastando para tal que este serviço esteja a ser prestado em efectividade.
Anotações
Legislação: 
LC
1/97 DE 20/09/1997 , L 174/99 DE 21/09/1999 ; L 289/2000 DE 14/11/2000; L 100/2003 DE 15/11/2003 ART2 ART4 ART72 ART73 ART74 ; CONST76 ART29 N1 N4 ART273 ART276 N1 ; CONST11 ART68 N1 ;L 29/82 DE 11/12/1982; L 111/91 DE 29/08/1991 ; L 113/91 DE 1991/08/21 ;L 18/95 DE 13/07/1995; L 3/99 DE 18/09/1999 ; L 4/2001 DE 2001/08/30; L 2/2007 DE 16/04/2007; DL 34-A/90 DE 24/11/1990; L 27/91 DE
17/07/1991; DL 157/92 DE 31/07/1992; L 15/92 DE 05/08/1992 ; DL 27/94 DE 05/02/1994; DL 175/97 DE 22/07/1997 ;DL 236/99 DE 25/06/1999 ; L 30/87 DE 07/07/1987 ; L 89/88 DE 05/08/1988 ; L 22/91 DE 19/07/1991 ; L 36/95 DE 18/08/1995 ; L 174/99 DE 21/09/1999 ART1 N4 ART2 ART3 ART4 ART5 ART7 ART30 ART34 ART36 ART59 ; DL 289/2000 DE 14/11/2000 ART3 N1 ART4 ; DL141/77 DE 09/04/1977 ART142 ART143 ART144 ART145 ART146 ART147 ; DL 157/77 DE 03/05/1977 ; DL 319-A/77 DE 05/08/1977 ; DL 177/80 DE 31/05/1980 ; DL 103/81 DE 12/05/1981; DL 105/81 DE 14/05/1981 ; DL 208/81 DE 13/07/1981; DL 232/81 DE 30/07/1981 ; DL 122/82 DE 22/04/1982; DL 146/82 DE 28/04/1982; CP82 ; L 11/89 DE 01/06/1089; DL 236/99 DE 25/06/1999; L 12-A/2000 DE 24/06/2000; L 25/2000 DE 23/08/2000; DL 66/2001 DE 22/02/2001; DL 197-A/2003 DE 30/08/2003; DL 70/2005 DE 17/03/2005 ; DL 166/2005 DE 23 /09/2005 ; DL 330/2007 DE 09/10/2007
Jurisprudência: 
AC RL P 2991/2007-5 DE 23/10/2007;
AC RL P 3999/2007-3 DE 04/07/2007 ;
AC RL P 2975/2007-3 DE 30/05/2007;
AC RL P 125/2006 -9 DE 02/02/2006
Referências Complementares: 
DIR MIL * JUST MIL / DIR CRIM / DIR CONST*****
PJL 259/IX; PJL 97/IX ; OJL 156/IX
Divulgação
Data: 
30-05-2008
Página: 
24284
5 + 13 =
Por favor indique a resposta à questão apresentada para descarregar o pdf